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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior.


“.. Architecture produces desire. The exhilaration we find when we walk into the space between or inside certain buildings produces a kind of psychological space. It can represent an experience we never had before and want to see more of.”, Steven Holl (Holl 2008, 29)


Steven Holl no livro “Urbanisms. Working with doubt”, escreve que a dúvida deve fazer parte de um projeto urbano. É a dúvida que suspende o absoluto e a perfeição e que permite a construção de sistemas mais dinâmicos e abertos. Steven Holl é da opinião de que o poder experimental das cidades não pode ser completamente racionalizado, deve sim ser estudado subjetivamente.


A subjetividade associada assim à dúvida pode ajudar a recuperar a importância de características fenomenológicas no contexto urbano. São o espaço, a matéria, a luz, a cor e o som que acentuam e incentivam as perceções de cada indivíduo e podem dar profundidade à realidade objetiva.


A experiência urbana cheia de contradições e incoerências pode, deste modo, ser imensamente enriquecedora para o ser humano. Para Steven Holl, a verdadeira tarefa do urbanista deve sobretudo acentuar valores relacionais e de conexão, de maneira que a arquitetura de pequena escala possa ser o elemento primeiro, apto a gerar essas necessárias ligações.


Steven Holl explica que é a arquitetura que tem a capacidade de envolver e de introduzir diferentes dimensões ao espaço. A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior, na ocasião em que a circunstância se converte em algo intrínseco e interno. É a flexibilidade, a complexidade e a metamorfose espacial que aumentam e potenciam a expansão de cada indivíduo. Assim que a arquitetura é incomensurável, sem limites conhecidos e aceita justaposições, possibilita que o espaço tenha sempre a capacidade de se tornar e de vir a ser - será espaço em potência.


Para Holl, a arquitetura deve assim ser porosa, em que espaço e movimento se interpenetram constantemente. A arquitetura objeto, sólida, estável e maciça deve dar lugar a fenómenos experienciais diversos e a sequências espaciais independentes de qualquer direção. Através do tempo, é a arquitetura que permite o encontro - livre, experimental e verdadeiro - do indivíduo consigo próprio, com outros indivíduos e com o mundo que o rodeia.


“The recognition of spatial and material phenomena meets the imagination.” (Holl 2008, 29)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior.


“I look outside myself, and the tree inside me grows.”, R. M. Rilke


Gaston Bachelard em The Poetics of Space, ainda no capítulo “Intimate Immensity” explica que Baudelaire, na sua poesia, se refere a vastidão como sendo um conceito que não pertence ao mundo objetivo. A palavra, vastidão, quando usada é um vocábulo que evoca pausa, silêncio, unidade, respiração, imperturbabilidade. De facto, vastidão é o eco dos lugares mais ocultos e desconhecidos do ser. É uma abertura para um espaço ilimitado: “With it, we take infinity into our lungs, and through it we breath cosmically…” (Bachelard 1994, 197)


Para Bachelard, poetas tais como Baudelaire, ajudam no constante contentamento do olhar, que na presença de um objeto familiar, permitem a extensão da esfera interior e particular.


“Space, outside ourselves, invades and ravishes things: 
If you want to achieve the existence of a tree, 
Invest it with inner space, this space

That has its being in you. Surround it with compulsions, 
It knows no bounds, and only really becomes a tree

If it takes its place in the heart of your renunciation.”, R. M. Rilke


Objetos, espaços e lugares precisam de ser impregnados de imagens construídas na esfera interna e intima - caso contrário não existe ligação, nem vínculo. Na verdade, eu e objeto são um só. Para ultrapassar o seu limite, o objecto ou o espaço precisa do sujeito para transmitir as suas imagens. O objeto contém o sujeito e o sujeito contém o objeto. Juntos tomam o lugar um do outro. 


Bachelard esclarece que, quando o sujeito sabe que um objeto ou espaço do mundo é reflexo de imensidão, isso significa que é o próprio sujeito que está à procura da sua essência. O eu e o mundo têm assim um forte vínculo metafísico: os dois espaços - interior e exterior - completam-se e são uma plenitude.


É o espaço íntimo que descodifica e abre o mundo. É este espaço que permite ampliar, dilatar e alargar o mundo exterior. Ao dar valor a um espaço está-se a conceder ainda mais espaço do que aquele que existe objectivamente. O espaço exterior é o eco da expansão do espaço interior: “… may all matter achieve conquest of its space, its power of expansion over and beyond the surfaces…” (Bachelard 1994, 202-3)


Deste modo, para Bachelard, é a imensidão que une o espaço íntimo e o mundo exterior - e assim que a solidão humana se aprofunda, os dois infinitos tornam-se idênticos. E é através desta dinâmica e desta coexistência de espaços que se manifesta a consciência do próprio existir.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


A imensidão dos espaços físicos existe dentro de cada ser.


“The world is large, but in us it is deep as the sea.”, R. M. Rilke


Os espaços são testemunhos de vida e são suscetíveis de ser manipulados pela memória e pela imaginação. São uma mistura de passado, de sonho e de experiência e têm a capacidade de revelar e corresponder ao estado íntimo de cada ser.


Gaston Bachelard em The Poetics of Space, no capítulo “Intimate Immensity” explica que a imensidão do mundo exterior é um estado íntimo. A imensidão pertence à categoria do sonho. O sonho e o devaneio têm a capacidade de transportar o ser para fora do mundo imediato e a contemplação tem sobre si a marca do infinito. 


Para Bachelard, apenas através da memória, longe do mar e da terra sem-fim, podem-se adquirir ressonâncias do inalcançável. A imensidão está dentro de cada ser. Está ligada a uma expansão, que a vida restringe e sufoca - mas que, segundo Bachelard, pode ser reactivada sempre que se está sozinho ou parado: “Indeed, immensity is the movement of motionless man.” (Bachelard 1994, 184)


A sede de imensidão, define o ser da imaginação pura, permite o alargamento da consciência e a abertura do mundo concreto. Muitas vezes é esta imensidão interior que dá sentido real ao espaço limitado e visível.


“I live in great density (…) In the forest, I am my entire self.”, René Ménard


Bachelard revela que só se consegue meditar perante aquilo que já conhece. Mas existem certos espaços físicos cuja ligação é imediata e intrínseca e não depende de nenhuma condição ou predisposição prévia - tal como o mar ou a floresta. Estes espaços, transportam naturalmente a profundidade íntima de todos os seres: “The forest is a before-me, before-us, whereas for fields and meadows, my dreams and recollections accompany all the different phases of tilling and harvesting. When the dialectics of the I and the non-I grow more flexible, I feel that fields and meadows are with me, in the with-me, with-us. But forests reign in the past.” (Bachelard 1994, 188)


Há assim imagens de certos lugares que já existem dentro de cada ser, mas a ressonância dos espaços que formam o mundo só acontece se houver predisposição. O muro que separa o eu de o mundo e que impede a sua compreensão, só pode deixar de existir se houver um diálogo entre dois silêncios e duas solidões. E o esforço de entender e de ver a verdade que está por trás de cada espaço e de cada objeto, pode ajudar a pertencer. Os espaços desconhecidos demoram tempo a ser entranhados e entendidos.


Deste modo, Bachelard escreve que um espírito que medita e que sonha, consegue alcançar imagens de imensidão até no mais pequeno objeto. A vastidão e o infinito podem estar ao alcance imediato. O mundo percetível é então um eco do que já existe dentro de cada ser. A imensidão íntima e particular tem a capacidade de absorver e dissolver o mundo percetível. Quanto mais profunda for a interioridade e o detalhe maior será o alcance do infinito. Para Bachelard cada ser é o espelho de uma vastidão singular.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


 Ilustração de Ana Ruepp

 

«Ouvindo a queda de granizo 

como se este meu corpo 

fosse uma velha árvore», Matsuo Bashô, O Eremita viajante


Bashō
nasceu Matsuo Kinsaku cerca de 1644, perto de Ueno na província de Iga. O pai dele teria sido um Samurai de baixa hierarquia, o que permitia a Bashō aspirar a uma carreira militar. Tradicionalmente os biógrafos têm referido que ele se dedicou à culinária. No entanto, Bashō quando criança foi pajem de Tōdō Yoshitada, que compartilhou com Bashô o amor por haikai no renga, uma forma de composição poética cooperativa. Essa prática foi nomeada como hokku e mais tarde seria rebatizado como haiku quando apresentado como obra autónoma. Bashō e Yoshitada passaram a usar o nome artístico haigō ou haikai. Bashō era Sōbō. Em 1662 foi publicado o seu primeiro poema. Em 1664 dois de seus hokku foram impressos numa compilação e em 1665 Bashō e Yoshitada compuseram um renku de cem versos, bastante conhecido. A morte súbita de Yoshitada em 1666 encerrou a vida pacífica de Bashō como pajem. Nenhum registo restou sobre essa época, mas acredita-se que Bashō desistiu da possibilidade de adquirir o estatuto de samurai e saiu de casa. Os biógrafos têm falado da possibilidade de um romance entre Basho e uma miko xintoísta chamada Jutei, o que é pouco provável. As referências a Bashō sobre esse tempo são vagas. "Ao mesmo tempo eu cobicei um posto oficial e a posse de terra". Viveu, porém, indeciso quanto a tornar-se um poeta em exclusivo. De acordo com seu próprio testemunho, "as alternativas digladiavam-se em minha mente e tornaram a minha vida agitada". A sua indecisão pode ter sido influenciada pelo estatuto então relativamente baixo de renga e haikai no renga e pelo facto de se tratatrem mais de atividades sociais do que sérios esforços artísticos. Os seus poemas continuaram a ser publicados em antologias em 1667, 1669 e 1671 e publicou a sua própria compilação com outros autores da escola Teitoku, Seashell Game em 1672.  Por volta da primavera do mesmo ano ele se mudou para Edo (Tóquio) para continuar seu estudo da poesia. Nos círculos da moda literária de Nihonbashi, a poesia de Bashō foi reconhecida por seu estilo simples e natural. Em 1674 entrou no círculo íntimo da profissão haikai, recebendo ensinamentos secretos de Kitamura Kigin (1624-1705).  Apesar de seu sucesso, Bashō cresceu insatisfeito e solitário e começou a praticar a meditação Zen, o que não parece ter acalmado a sua mente. No inverno de 1682 houve um incendio na sua cabana e pouco depois, no início de 1683, sua mãe morreu. Em seguida, viajou para Yamura para ficar com um amigo. No inverno de 1683, os seus discípulos deram-lhe uma segunda cabana em Edo, mas as angústias continuaram. Em 1684 seu discípulo Takarai Kikaku publicou uma compilação dele e de outros poetas.  Mais tarde naquele ano, deixou Edo para a primeira de quatro grandes peregrinações. É dessa época (1685) seu haikai mais célebre, No antigo lago, e também o seu livro mais famoso, Sendas de Oku. Na sua última viagem, Bashō adoeceu em Osaka, antes de chegar ao destino (Kiushu), e encontrou a morte no dia 28 de novembro de 1694.

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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   Ilustração de Ana Ruepp

 

“Über aller dieser deiner Trauer: kein zweiter Himmel.”

“Por cima de todo este teu pesar: nenhum segundo Céu”
Paul Celan, Die Schleuse (A Eclusa)

 

Paul Celan, Paul Antschel, nasceu a 23 de novembro de 1920, em Bukovina, no Norte da Roménia, no Império Austro-húngaro. Filho de judeus de expressão alemã, ficou a dever a sua paixão pela poesia à mãe, que lhe recitava Novalis e Rainer Maria Rilke. Em 1926 iniciou a frequência da escola primária alemã, tendo sido depois enviado para uma escola hebraica, a Safah Ivriah. Em 1933, após o bar mitzvah, ritual judaico de entrada na adolescência, aderiu a um grupo comunista, responsável pela publicação de uma revista destinada aos estudantes. Em 1938 deu início a estudos de Medicina, em Paris, transitando depois para a Universidade de Czernowitz, onde ingressou como estudante de Filologia Românica. Em 1940, e no decurso da Segunda Grande Guerra, Bukovina foi invadida pelas tropas russas, enquanto os alemães começavam a enviar judeus para campos de concentração, onde os pais de Célan teriam sido mortos, e para onde ele próprio foi também enviado, permanecendo no cativeiro até 1943. Em 1944 as tropas soviéticas invadiram parte da Roménia, o que levou Célan a refugiar-se em Bucareste, onde trabalhou como tradutor e editor. Mudou sucessivamente de nome, primeiro para Paul Aurel, logo para Paul Ancel, e finalmente para Paul Célan. Em 1947 viajou até Viena, emigrando no ano seguinte para Paris, tornando-se professor de Alemão na École Normale Supérieure, Rue d’Ulm. Em 1951, conheceu Gisèle Lestrange, artista gráfica com quem casou no ano seguinte. Nos dezanove anos que estiveram juntos, trocaram cerca de sete centenas de cartas, apesar de Célan ter mantido uma relação extraconjugal com Ingeborg Bachmann. No final da década de 40, Célan começou a publicar os seus poemas em publicações periódicas da então República Federal Alemã. Publicou o seu primeiro livro em 1948, Der Sand aus den Urnen, a que se seguiu Mohn und Gedachtnis (1952), bem acolhido pela crítica, que considerou o poeta como figura proeminente da literatura do Holocausto. Em 1963 publicou Die Niemandrose, obra característica do seu estilo de sintaxe sincopada e minimalismo radical. Entre as décadas de 50 e 60, foi acusado de plágio relativamente à tradução de poemas de Cocteau, Rimbaud e Pessoa, entre outros e foi vítima de um colapso nervoso. A 1 de maio de 1970 morreu por afogamento no rio Sena. Na sua agenda de bolso havia uma nota nesse dia, na qual estava escrito "Partida Paul".

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Ilustração de Ana Ruepp.jpg
   Ilustração de Anna Ruepp

 

“… in danger of losing his shadow…”
Carl G. Jung in 
The Undiscovered Self

 

Nascido em 26 de julho de 1875, Carl Jung foi o psiquiatra suíço responsável pela criação da psicologia analítica, que explora a importância da psique individual e sua busca pela totalidade. Jung popularizou termos comuns da psicologia, como “arquétipo”, o significado de “ego” e a existência de um “inconsciente coletivo”. O seu trabalho influenciou vários campos além da psicologia, como a antropologia, a filosofia e a teologia. Como investigador na Suíça, Jung chamou a atenção de Sigmund Freud, progenitor da psicanálise, e vários conceitos desenvolvidos pelos dois apresentam semelhanças, embora não tenham trabalhado juntos. Em Tipos Psicológicos, um de seus livros mais conhecidos, Jung analisou os padrões da personalidade e comportamento que compõem as singularidades de alguém. Jung afirma que existem duas “atitudes” opostas, conhecidas como extroversão e introversão.  O introvertido sente-se mais confortável com os seus próprios pensamentos e sentimentos enquanto o extrovertido sente-se “em casa” quando lida com outras pessoas e objetos, além de prestar mais atenção ao seu impacto diante do mundo. Os introvertidos costumam observar como o mundo ao seu redor os afeta. Segundo Jung, nascemos com uma herança psicológica e uma herança biológica. As duas são importantes para determinar traços de comportamento: “assim como o corpo humano representa um ‘museu de órgãos’, cada um com um longo período evolutivo por trás dele, devemos esperar que a mente também esteja organizada desta forma”, explicou. O psiquiatra enfatiza que o inconsciente coletivo é o centro de todo o material psíquico que não corresponde à experiência pessoal. Seu conteúdo e imagens parecem ser compartilhados por pessoas de todas as épocas e culturas, enquanto o inconsciente pessoal envolve o passado e memórias de cada indivíduo”.

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

“Faces and darkness separate us over and over.
Now I am a lake.”

Sylvia Plath, Mirror

 

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   Ana Ruepp

 

Com Sylvia Plath a poesia e a ficção do pós-guerra conhecem dos seus momentos mais significativos. Nascida em Boston, a 27 de outubro de 1932, Sylvia Plath revelou-se uma estudante exemplar. Ao longo do seu percurso escolar acumula sucessivas bolsas de estudo e prémios literários. Em 1955, encontramo-la em Cambridge com uma bolsa 'fullbright'. Será aí que conhece o poeta Ted Hughes com quem casará no ano seguinte. Os anos subsequentes caracterizam-se por uma atividade intensa e disciplinada. Sylvia Plath produz inúmeros contos e o romance onde recria a sua tentativa de suicídio, 'The Bell Jar' ('A Campânula de Vidro') que será publicado em janeiro de 1963, sob o pseudónimo de Victoria Lucas. Se a sua atividade no domínio da narrativa é considerável, não o é menos aquela que exerce no da criação poética. "The Colossus" surgirá ainda durante a sua vida. 'Three Women: A Monologue for Three Voices', 'Winter Trees', e a sua obra-prima 'Ariel', são já trabalhos póstumos. Em 1962, ocorre a separação do casal. A partir de dezembro Sylvia Plath passa a residir em Londres com os seus dois filhos, Frieda e Nicholas. A Inglaterra sofre então um inverno como não havia memória. Sylvia Plath adoece, ficando de cama durante algumas semanas. Na manhã de onze de fevereiro de 1963, pratica o suicídio. É essencial da sua obra narrativa e poética. Como definir de uma forma sintética essa importância? No plano da narrativa, o essencial é 'The Bell Jar', pelo modo como consegue conjugar a experiência pessoal com um distanciamento algo irónico, e pela sua recuperação do legado romanesco modernista. No plano da poesia, Sylvia Plath consegue dar alguns dos momentos de maior tensão conhecidos pelo género neste século levando ao limite o trabalho das formas e a experiência do eu". - Mário Avelar, in "A Phala", nº 11

A FORÇA DO ATO CRIADOR


VERDE DE VERÃO


Neste mês de Agosto, vivemos um tempo em que podemos usufruir da gratuitidade dos dons da natureza.
A memória desse tempo constitui o tema de hoje.
Ana Luísa Amaral é a nossa cicerone de hoje.


 ‘O sol de lado

e em frente: um verde

de verão, tão verde de

verão

a amanhecer: eu sem

saber’, Ana Luísa Amaral 


Ana Luísa Amaral nasceu a 5 de abril de 1956, em Lisboa. Autora de mais de três dezenas de livros, entre poesia, teatro, ficção, infantis e de ensaio, a sua obra está traduzida e publicada em diversos países. Obteve várias distinções e prémios em Portugal e no estrangeiro, como a Medalha da Cidade de Paris, a Medalha de Ouro da Câmara Municipal do Porto, o Prémio Literário Correntes d’Escritas, o Premio de Poesía Fondazione Roma, o Grande Prémio de Poesia da APE, o Prémio PEN de Ficção, o Prémio Vergílio Ferreira, e ainda, o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana. Traduziu diferentes poetas, como Emily Dickinson, William Shakespeare e Louise Glück. Foi professora da Faculdade de Letras do Porto e membro sénior do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, onde trabalhou nas áreas de poéticas comparadas e estudos feministas. Morreu a 5 de agosto de 2022.

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Nas próximas semanas Ana Ruepp publicará diversas ilustrações subordinadas a um tema ou uma citação.
Hoje, temos Hermann Broch.


“...por cima de todo o sonho que o homem sonha, flutua uma claridade do cósmico…”, Hermann Broch.

 


Essa necessidade de transcendência e de liberdade foi a grande marca de Hermann Broch, um dos grandes intelectuais europeus do século XX. Escritor austríaco de etnia judaica, nasceu a 1 de novembro de 1886, em Viena. Filho de um industrial têxtil, recebeu os fundamentos de uma educação técnica, tendo servido durante a Primeira Grande Guerra na Cruz Vermelha austríaca. Pelos cafés de Viena tomou contacto com figuras da intelectualidade austríaca, como Robert Musil, Franz Blei e a jornalista Ea von Allesch. Broch romperia com Milena Jesenská, que começou uma relação com o escritor Franz Kafka, para se juntar a Ea, mais velha onze anos. Em 1909 tornou-se crítico do Moderne Welt, sobretudo graças aos contactos de Ea, que o encorajou nos seus esforços literários. Ao cabo de muitos anos de trabalho na empresa da família, decidiu, aos quarenta anos de idade, dedicar-se por completo à escrita. Divorciou-se e ingressou na Universidade de Viena como estudante de Matemática, Filosofia e Psicologia, de 1926 a 1930. Em 1927 havia resolvido vender a fábrica. Aos quarenta e cinco anos de idade publicou o seu primeiro romance em formato de trilogia, “Os Sonâmbulos” (1931-32), que tratava da desintegração dos valores culturais na Alemanha de 1880 a 1920. No mesmo dia da anexação da Áustria à Alemanha pelas tropas alemãs, Broch foi detido para interrogatório. Auxiliado por James Joyce e outros escritores amigos, conseguiu uma autorização para emigrar da Áustria. Mudou-se primeiro para Londres, depois para a Escócia e, finalmente, para os Estados Unidos da América, onde se fixou em Princeton. Por falta de títulos académicos, foi-lhe negada uma posição nas universidades de Princeton e de Yale. Recebeu, no entanto, bolsas de várias fundações. A partir de 1940 envolveu-se na ajuda humanitária a refugiados, pelo que muito dos fundos que recebeu foram distribuídos por outros refugiados de guerra europeus. Em 1945 concluiu, nos Estados Unidos, “A Morte de Virgílio”, obra constituída por quatro partes - a água, a terra, o ar e o fogo - que é considerada um dos grandes monumentos da literatura do exílio. Passou os últimos anos da sua vida próximo da Universidade de Yale. Tornou-se, em 1949, docente do Saybrook College. Faleceu na véspera de uma viagem planeada à Europa, vítima de um ataque cardíaco, a 30 de maio de 1951.

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A forma da capela de Notre-Dame-du-Haut domina com autoridade mas admite concessões através da experiência e dos fenómenos a que está exposta. 


‘1950-1955. Liberté: Ronchamp. Architecture totalement libre. Pas de programme autre que le service de la messe, - l’une des plus vieilles institutions humaines. Une personnalité respectable était toutefois présente, c’était le paysage, les quatre horizons. Ce sont eux qui ont commandé. Véritable phénomène d’acoustique visuelle. “Acoustique visuelle, phénomène introduit au domaine des formes”: les formes font du bruit et du silence; les unes parlent, les autres écoutent…’  Le Corbusier In L’atelier de la Recherche Patiente (Le Corbusier 2015, 166)


No texto “Actualidade de Le Corbusier”, de Nuno Portas (Portas 2005, 180-194) lê-se que a Capela Notre-Dame-du-Haut em Ronchamp (Le Corbusier, 1955) surgiu já após do movimento CIAM (Congressos Internacional de Arquitetura Moderna) se ter desagregado e após os discípulos de Le Corbusier e camadas mais jovens terem posto em causa os diversos lados do método e do vocabulário do racionalismo e o estilo internacional. 


No início da década de 1950, Portas explica, reabriram-se novas referências tais como o organicismo de Frank Lloyd Wright, a arte nova de Van de Velde, o empirismo e o neo-realismo dos nórdicos e dos italianos. A máquina de habitar de Le Corbusier estava agora contaminada com o realismo, os costumes e as tradições populares e com a pretensão de integração e diálogo com os ambientes históricos preexistentes. Para Nuno Portas esta retirada de Le Corbusier como propulsionador e profeta coincidiu “…com o seu mais importante período de construtor de obras diferentes e dispersas e atestam a capacidade maravilhosa de um homem que fora o mestre de maior influência escolástica neste século…” (Portas 2005, 192)


Neste novo período Le Corbusier foi capaz de superar as próprias bases do seu próprio método e conseguiu também romper com esquematismos ideológicos e figurativos, através de um esforço em tornar a sua linguagem formal mais realista - que resulta de um franco diálogo com as condições concretas da existência e da permanente investigação ao ritmo da mudança daquilo que existe de facto. Talvez para trás tenha ficado também a sua inclinação por ideais de cariz fascista (https://www.bbc.com/news/world-europe-32546182).


Em todas as primeiras obras de Le Corbusier estava presente a ideia de aglutinação dos elementos da composição - os elementos eram volumes que traduziam uma função única. E estes volumes funcionais eram por Le Corbusier tratados como sólidos geométricos simples que, ao serem justapostos e o articulados com outras peças de circulação, formavam um edifício onde o observador se poderia deslocar para contemplar os volumes como uma escultura geométrica arquitetónica se tratasse. 


Nos últimos quinze anos de produção, Le Corbusier interessou-se em tornar o espaço interno o protagonista da sua nova arquitetura. O espaço interno é assim moldado, escavado e esculpido dentro das paredes através da luz, da cobertura, do chão inclinado e do céu. O espaço interno é agora o elemento principal que consegue, através da sua escala e do seu percurso, comunicar e relacionar-se com cada indivíduo que contempla, que vive e que se move.


Ora, Vincent Scully no texto ‘The Nature of the Classical in Art’ refere-se à arquitetura dos últimos anos de Le Corbusier, também como sendo uma tentativa de resolver integralmente espaço interior e revestimento exterior - forma e espaço são um só. 


Para Scully, a capela de Ronchamp evoca a escala humana, a horizontalidade a verticalidade, o peso, o suporte, uma ordem nova artificial e abstrata, que completa aquele mundo natural da colina. Sem aquele artifício, aquele lugar específico não faria sentido. Le Corbusier coloca toda a paisagem visível em foco humano. A capela é ponto de convergência que transforma mas dá a ver. Le Corbusier escava no interior cavidades nos volumes inchados para uma experiência sublime de luz e de cor. O exterior escultural revela elementos dissonantes e violentos mas que se apaziguam ao estarem combinados, colados e cosidos uns aos outros. 


Scully escreve que, tanto as paredes como a cobertura estão comprimidos em direção ao interior. O objeto não é um simples volume oco. Em Ronchamp, caverna e invólucro são um só. O santuário escavado interno é revestido com formas externas de força escultórica extraordinária - Scully afirma que a capela é um impulso material que atracou naquele monte em eterno voo.


Está-se, por isso, perante um recipiente espiritual, que engole e que envolve. É um corpo que cobre, que rodeia e que cerca um outro corpo.


Ronchamp lida com o todo e sobretudo com opostos em conflito e em confronto: a figura e o abstrato; o finito e o eterno; o absoluto e o relativo; a matéria e o espírito. E a fusão, o equilíbrio, o diálogo dos opostos só se dá através da vivência daquele espaço - é o indivíduo que permite a concretização total daquele lugar.


A forma da capela de Ronchamp domina com autoridade mas admite concessões através da experiência e dos fenómenos a que está exposta. É a sua unicidade e singularidade que permite a irrepetibilidade da experiência. Experiência essa que é individual e rara e que coloca o indivíduo perante existências ambíguas e por vezes contrárias. É aí que se situam em simultâneo verdades e incertezas, respostas e perguntas, presenças e ausências, massa e vazio, luz e sombra, barulho e silêncio, o dentro e o fora, o primitivo e o novo, o passado e o futuro.


Scully refere-se a Ronchamp como o invólucro que apela à liberdade a todos os que reconhecem a condição não submissa nem constrangida desta capela. É o absoluto que cresce através da aceitação total do que é relativo e indeterminado pois o interior e o exterior completam-se e confundem-se. 


Le Corbusier conseguiu na capela de Ronchamp aproximar opostos ao relacionar diretamente o ser humano com a natureza. E foi assim capaz de criar um espaço gerador e suscetível de criar um novo ser. O estado rudimentar e inicial, de concha e de casulo, deste objeto, provoca e permite o princípio de algo. Este é o sentido sagrado desta capela pois é um espaço causador, capaz de criar, de produzir e de propor constantemente novos conteúdos. É um espaço contentor contemplativo mas acima de tudo indizível.


“… e esta(s) obra(s) ficam entre as mais poderosas máquinas de comover que terão sido inventadas.”, Nuno Portas (Portas 2005, 193)


Ana Ruepp