Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Leonardo Sciascia foi, mais do que um homem notável, uma pessoa interessante pelo seu percurso militante e público, afinal sempre animado por uma fidelidade muito íntima a algo que me comove e alegra chamar esperança ou incessante busca da graça. Foi tribuno e comunista, lutou sempre contra os abusos do poder estabelecido, como contra a máfia, creio que por sobretudo serem limitações da própria pessoa humana e sua essencial liberdade. Por isso também terá sido leitor atento e afeito de Graham Greene, em cuja obra terá descoberto a promessa da graça como redenção. Mas não é dele que te venho falar hoje. Na sequência do que te prometera já, antes dele partirei para falar de Tácito e voltar a Le Procurateur de Judée do Anatole France. Retomando, aliás, o fio da meada que começara a desenrolar em carta anterior, ou seja, traduzindo o trecho do posfácio escrito por Sciascia, de que então te falei:

 

   Narrativa que é um apólogo - e uma apologia - do ceticismo mais absoluto (e, portanto, da tolerância sua filha), mas que é também - para além das referências precisas que possamos tirar dos Anais - uma subtil homenagem a Tácito: homenagem prestada, através da obliteração grosseira de  Pôncio Pilatos à quase obliteração - misteriosa, sugestiva, intrigante, de Tácito. Pôncio Pilatos esqueceu totalmente Cristo e os cristãos; suspeita-se Tácito de ter querido - por intolerância profunda ou por desejo de previsão - querido esquecê-los. O trecho em que deles fala, a respeito do incêndio de Roma, é para nós efetivamente misterioso, sugestivo e intrigante: sobe-nos à imaginação como quando de um vinho dizemos que nos sobe à cabeça. Vale a pena relê-lo:

 

   «Mas nada, nem as intervenções humanas, nem as larguezas do príncipe, nem os sacrifícios aos deuses conseguiu dissipar o rumor infamante de que o incêndio fora aceso a mando. Assim, para abafar tal boato, Nero resolveu denunciar os incendiários com sendo gente detestada pelos seus reprováveis costumes, e a que o vulgo chamava cristãos, e infligiu-lhes os mais refinados suplícios. Tais pessoas derivavam o seu nome de Cristo que, no reino de Tibério, fora condenado à morte por Pôncio Pilatos. Imediatamente reprimida, essa execrável superstição ressurgia todavia, não só na Judeia, donde era tal calamidade proveniente, mas na própria Roma, para onde convergem todos os horrores e todas as ignomínias, e onde fazem escola. Prenderam-se  primeiro os que confessavam a sua fé, e depois, por indicação destes, uma multidão de outras pessoas que foram condenadas, menos por crime de incêndio do que pelo seu ódio ao género humano. Infligiram-se, aos que iriam morrer, os maiores ultrajes, tal como serem revestidos de peles de animais, ou serem mordidos e rasgados pelos cães, ou pregados em cruzes, ou incendiados, ao pôr do sol, para serem tochas na noite. Nero cedera os seus próprios jardins para tal espetáculo, enquanto oferecia jogos circenses e se misturava à plebe vestido para de auriga. Assim, face a essa geração culpada e merecedora de exemplar castigo, a piedade seguia o seu caminho, não tanto como se fossem sacrificados para bem de todos, mas para satisfação da ferocidade de um só.

 

   Para melhor entendimento deste texto de Tácito, convém ter presente que o imperador Nero pretendia apresentar-se como Apolo, deus solar, cujos principais símbolos ou atributos eram o traje de auriga ou condutor de carros velozes, dos quais se distinguia a quadriga, puxada por quatro cavalos e representando o carro solar, e a lira, instrumento musical por excelência. O culto divino do imperador era parte importante da consistência política da religião romana daquele tempo que, por outro lado, acolhia cultos de várias divindades, até de origem estranha, provenientes sobretudo do oriente. Entre os letrados romanos, todavia, mantivera-se, desde o fim da república e estabelecimento do regime imperial, a par de uma certa reserva crítica e censória de costumes considerados atentatórios da higiene moral nativa, sobretudo da familiar, um certo "nacionalismo" ético, avesso a hábitos e valores provenientes de estirpes não romanas. Lido no seu contexto coevo próprio, então moral e socialmente correto, esta prosa contém, talvez mais do que uma crítica aos cristãos, vulgar em Roma naquela época, uma censura à megalomania intolerante de Nero, e ao abuso de poder: "não sacrificados para bem de todos, mas para satisfação da ferocidade de um só". É notável.

 

   Aqui chegados, deixa-me voltar à novela de Anatole France, cujos trechos finais iluminam duas zonas de penumbra distintas mas, cada qual à sua maneira, bem presentes em elaborações do nosso próprio pensarsentir. Uma diz-nos como quanto da nossa indiferença, ou esquecimento, ou abandono do outro, tem que ver com uma qualquer necessidade de olvidarmos a nossa própria intolerância ou imperfeição. Outra  -  que, neste caso, é a confissão de Laelius Lamia ao seu amigo Pilatos  -  já nos fala da força contagiante do amor, revestido, ou não, de referências carnais. Começo por esta, traduzindo-te passos de Anatole France, narrando essa confidência de Lamia (o "exilado de Tibério") ao seu amigo Pôncio, quando ambos já gozavam confortável reforma:

 

   O exilado de Tibério já não escutava o velho magistrado. Após esvaziar o seu copo de falerno, sorria a qualquer imagem invisível.

 

   Depois de uns minutos de silêncio, começou a falar em voz baixa, que a pouco e pouco se ia erguendo:

 

   - As mulheres da síria dançam com tanta languidez! Conheci uma judia de Jerusalém que, numa espelunca, à luz duma lamparina fumarenta, em cima dum tapete reles, dançava erguendo os braços, para fazer soar uns címbalos. De rins quebrados e cabeça atirada para baixo, como que arrastada pelos fartos cabelos ruivos, com os olhos banhados em voluptuosidade, ardente e langorosa, elástica, teria feito a própria Cleópatra empalidecer de inveja. Deliciavam-me as suas danças  bárbaras, o seu canto algo rouco e todavia tão doce, o seu perfume de incenso, o semissono em que parecia viver. Seguia-a para todo o lado. Misturava-me com a turba vil de soldados, meliantes e publicanos que a rodeavam. Certo dia desapareceu, não voltei a vê-la. Por muito tempo a procurei, por ruas suspeitas e em tabernas. Era mais difícil desabituar-me dela do que do vinho grego. Meses depois de a perder de vista, soube por acaso que se tinha juntado a um pequeno grupo de homens e mulheres que seguiam um jovem taumaturgo galileu. Chamavam-lhe Jesus Nazareno e foi crucificado nem sei porque crime. Pôncio, lembras-te desse homem?

 

   Pôncio Pilatos franziu as sobrancelhas e levou a mão à fronte, como quem procura uma memória. E, passados alguns instantes de silêncio:

 

   -  Jesus?, murmurou, Jesus Nazareno? Não me recordo.   

 

   Palavras... para quê, Princesa? Só se for para citar Pascal: o coração tem razões que a razão desconhece. Ou será que talvez nada nos possa ocorrer, para além da imediata conclusão de que, afinal, pode haver sentimentos que nos escapem ao juízo moral, ou razões afetivas que o derroguem ou mesmo revoguem. Ou ainda, mais simplesmente, que acontece, em tempos e modos tão diversos, procurar ou simular um esquecimento de algo de que demasiadamente nos lembramos, ou somos lembrados. Mas este final de uma novela do nobel Anatole France é uma ficção, não um documento histórico. O que qualquer ciência do passado nos pode dizer é que Pôncio Pilatos foi certamente um funcionário imperial arrogante, sem margem para despotismos, mas, por vezes, bastante temerário e pouco propenso ao exercício da prudência ou amor sagaz. Tampouco sabemos como lhe correu a vida após ter sido destituído das suas funções de prefeito na Judeia pelo legado na Síria, Lucius Vitellius, que o remeteu a Roma para mais explicações. Na origem do processo estaria a prepotência de Pilatos sobre qualquer suspeita de movimentação messiânica, na Judeia, Galileia ou Samaria... Suicidou-se? Foi decapitado por ordem do imperador Calígula? Exilou-se em Viena? Ter-se-á convertido ao cristianismo, como o pretendeu piedosa, mas inverosímil, lenda registada por Tertuliano e por apócrifos como os Actos de Pilatos e o Evangelho de Gamaliel? Aparentemente, mas isto com toda a certeza, foi sendo objeto de várias ficções literárias: até no ano 2000, um século depois da 1ª. edição de Le Procureur de Judée, o romancista Eric-Emmanuel Schmitt, publicou um Evangelho segundo Pilatos...

 

   Se concordares, Princesa de mim, deixar-nos-emos ficar pela ficção do Anatole, questionando o porquê do aparecimento dessas memórias das personagens de Laelius Lamia e de Pôncio Pilatos no final da novela: o primeiro fora exilado de Roma por adultério e levara uma vida de maus costumes; o segundo regressara a Roma por castigo da sua prepotência. Mas aquele recordava-se de ter perdido uma mulher de má vida, que muito amara, desde que esta tudo deixara para seguir o evangelho de um galileu taumaturgo. O magistrado romano afirmava já nem se lembrar desse nazareno que tanto lhe assustara os sonhos...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:  

 

   Eis como vou vivendo esta  Semana Santa: em quarentena que me aproxime de familiares e amigos, e de ti, Princesa de mim, na contemplação de mistérios que, menino e moço, aprendi a guardar em labor de contínua cultura. Também me dá para novamente mergulhar nos labirintos secretos da literatura japonesa, talvez por me desafiarem a repensarsentir o nosso próprio universo. Acontece-me, aliás, ser levado por atalhos de regresso ou de vaivém, como quando autores nipónicos do início do século XX se inspiram em Stendhal ou Flaubert, sem esquecer Anatole France, que um romancista japonês me recordou, e do qual um encontro com Pilatos na leitura da Paixão de Jesus Cristo me fez reler Le Procureur de Judée.

 

   Para quem, como eu, viveu alguns anos no Japão, a leitura de textos históricos e literários, mesmo da Bíblia, ganha, em paralelo  ao seu propósito espiritual, e deste por vezes extravasado, um sabor exótico acentuado pelo próprio ambiente climático e cultural em que tal leitura se vai então fazendo. Jerusalém, a Judeia e a Galileia do tempo de Jesus não têm vida nem história entendíveis sem a perceção de Roma e do seu poder, ao ponto de ser até fácil cair-se na tentação de cotejar duas cidades mediterrânicas tão carismáticas e imaginar algum tribuno romano a reclamar delenda est Jerusalem! , como aliás veio a acontecer com a destruição do Templo no ano 70 D.C. E, por outro lado, também imaginaremos cheiros, alimentos, encontros e ruídos familiares, contrapondo-os à humidade do clima japonês, que o calor estival anualmente torna pesado, sudorífero e silencioso. Quando estamos no campo, sobretudo na montanha pouco habitada, abandonamo-nos a essa atmosfera, entregamo-nos a uma meditação telúrica com a natureza, como se nesta também a transcendência repousasse. Esquecemos a distinção mediterrânica, linear, da luz e da sombra, a verticalidade grega de uma iluminação vinda de cima. E percebemos melhor o porquê de São Francisco Xavier ter desistido de achar na terminologia shintoísta ou budista palavra que dissesse Deus, ao que parece quando descobriu que até a palavra kami  significa os espíritos, mesmo imanentes (como árvores, águas ou rochas) do universo. Por isso os nossos jesuítas optaram pelo nome latino e português de Deus que, em romaji ou caracteres latinos para transcrição fonética do japonês de então, se escreveu Daesu.

 

   A revisão literária "ocidentalizante" que se iniciou na Era Meiji e se prolongou pelos períodos Taisho e Showa, na primeira metade do século XX, trouxe à ribalta das letras nipónicas formas de tratamento dos comportamentos e paixões mais conformes aos cânones das escolas romântica, realista e naturalista europeias. Mas delas se apoderaram sensibilidades japonesas, que lhes trouxeram um gosto mais paciente do pormenor e outra delicadeza e profundidade. Sobretudo, talvez, um pouco mais de penumbra, um jeito mais sombrio de aproximar e contemplar humanos corações e mentes. Algo bem chegado ao mistério essencial da humanidade e do mundo, tal como sentido por imanência. Tenho para mim - reconhecendo todavia tratar-se sobretudo de pessoal sensibilidade - que a espiritualidade japonesa mais próxima da nossa se encontra no ensinamento Zen. Talvez por uma certa mística do vazio como visão. Ou por uma qualquer possível intuição metafísica de Deus que, todavia, no cristianismo se revestiu da humanidade de Pai. Diz o preceito da oração de Jesus: Pai Nosso... O mesmo a que, na agonia humana da morte, o mesmo Jesus interroga: Meu Pai, meu Pai, porque me abandonaste? Como, ao longo de séculos, a todos nós tem acontecido fazê-lo.

 

   Le Procurateur de Judée, a novela histórica de Anatole France que te referi, conheceu várias edições, a primeira em 1902, tendo Leonardo Sciascia, que dela publicara uma tradução para italiano em 1980, escrito um posfácio para a edição francesa de 2005 (Paris, Payot et Rivages) de que seguidamente te verto alguns passos:

 

   Tácito, Anais, Livro III: «Entretanto, em Roma, Lepida que, além da nobreza dos Aemilii, se reclamava da ancestralidade de L. Sila e C. Pompeu, foi acusada de ter fingido dar à luz um filho nascido da sua relação com P. Quirinius, homem rico e sem descendência. Era ainda acusada de adultério, envenenamento, e de ter consultado magos caldeus sobre a família do imperador». Estamos no início da década de 20, depois do nascimento de Cristo, e Tácito narra o caso de Lepida como exemplo da corrupção de que eram então presas as grandes famílias. Na realidade, trata-se de ação movida por um marido, a fim de negar a sua paternidade de um filho que sua mulher, da qual estava separado tinha fingido ter tido. Duplo delito, pois, ao qual, diríamos nós hoje, no decurso da instrução, se acrescentam adultério, tentativa de envenenamento, manigâncias com magos caldeus que prefiguram crime de lesa majestade. Tácito não fala em cúmplices nem corréus. Dezanove séculos mais tarde, Anatole France inventa um: Lucius Aelius Lamia: «Acusado de  manter relações criminais com Lepida, mulher de Suplicius Quirinus...» [há aqui um pequeno engano, esse Quirinus não se chamava Sulpicius, mas Publius] E a partir da condenação ao exílio que fere o adúltero Lamia se desenvolve uma narrativa curta e perfeita, quiçá uma das mais perfeitas do género.

 

   Tal conto é, na opinião de Leonardo Sciascia, e na minha, uma homenagem paradoxalmente subtil e descarada àquilo que terá sido o ceticismo e o espírito de tolerância de Tácito, tal como te lembrarei na próxima carta. Por hoje, em tarde cinzenta e atenta de 4ª. Feira Santa, vou recolher-me na escuta da versão original, para orquestra, das Septem Verba Christi in Cruce, de Joseph Haydn, considerada uma das obras mais representativas da música do Iluminismo, composta por um pedreiro livre sobre palavras dos evangelhos da Paixão de Cristo. Aliás, a única voz humana que se ouve, recitando-as, é de um narrador. Na gravação, que irei acompanhar hoje, de Le Concert des Nations, de Jordi Savall, registam-se também textos de Raimon Panikkar e José Saramago. Pela mão deste interrogarei também a minha fé:  ...E eu respondi-lhe:« Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens». ...   ...E agora, Deus Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?

 

   Estas cartas, afinal, são apenas desabafos. Para nos ajudarem a pensarsentir, juntos, esta Páscoa em confinamento.

 

   Amanhã, voltarei ao que estava a dizer-te...

 

 Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira