Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«Passa‑se por uma sebe em flor e sente‑se logo a primavera que se exala: no ambiente de O Tempo e o Modo respirava‑se, em estado natural, a cultura e o bom gosto». Quem o disse foi o Padre Alexandre Nascimento, futuro Cardeal de Luanda, quando vivia em Lisboa com residência fixa, tendo estabelecido uma relação privilegiada com o grupo da Livraria Moraes, em torno de António Alçada Baptista, que contava com João Bénard da Costa, Pedro Tamen e Nuno Bragança. Aí não apenas desenvolveu uma militância cívica assinalável, uma reflexão religiosa muito rica, com a criação de elos muito profundos que preparavam o futuro da independência da nação angolana. Escritor de rara sensibilidade, escreveu em três volumes um livro indispensável O Meu Diário (Luanda, 2017), que testemunha o percurso determinado de um sereno combatente da liberdade e do Estado de Direito. A tradução que fez, para a Moraes, do Diário Íntimo do Papa João XXIII constitui um documento importante, onde se nota a grande maturidade do clérigo, que muito bem compreendeu os sinais dos tempos, o aggiornamento e a força reformadora que conduziu ao Concílio Vaticano II, pondo em causa o eurocentrismo eclesial e abrindo horizontes para o ecumenismo. Havia, de facto, que lançar as bases de uma Igreja Católica que compreendesse o novo mundo, as novas nações africanas e a sua capacidade emancipadora.
Como salienta João Miguel Almeida no ensaio publicado na Lusitania Sacra (nº 46, julho-dezembro 2022), “quaisquer que fossem as ligações de Alexandre Nacimento aos nacionalistas angolanos”, o certo é que desenvolveu uma apurada consciência crítica do colonialismo português. Os seus comentários escritos no diário são muito significativos. Não cala a solidariedade com os padres sujeitos a vigilância do regime (como Vicente Rafael) ou mesmo sujeitos a prisão como o Monsenhor Manuel das Neves. Mantém contactos com Nuno Teotónio Pereira e Natália Duarte Silva, com Frei Bento Domingues e com o Padre Alberto Neto, com especial preocupação na divulgação das notícias mais relevantes da situação colonial, designadamente em iniciativas do Centro Nacional de Cultura. No período do desanuviamento, em que o Bispo do Porto regressa ao País, é recebido por Marcelo Caetano em julho de 1969, sendo autorizado a ir a Angola para visitar sua mãe, podendo deslocar-se ao estrangeiro desde que o comunicasse…
Depois da independência, desempenhou um papel fundamental, estabelecendo intensos contactos políticos, com Lúcio Lara e Pepetela, ou com o seu antigo aluno José Eduardo dos Santos, e também com a UNITA, sendo reconhecido como fator de unidade pelos clérigos angolanos, assumindo uma atitude moderada, mas firme. Mário Soares admirava-o profundamente, considerando-o como um exemplo único de conciliação no clima de guerra civil. Em 1983, foi o primeiro angolano a ser investido como Cardeal. De 1986 a 2001 exerceu funções na Arquidiocese de Luanda, tendo tido um papel insubstituível como fator de unidade em Angola. A coragem notou-se quando esteve detido na Jamba em 1982 e foi libertado após o apelo do Papa João Paulo II. Evitando dramatizar o episódio, afirmou: «Tenho por norma ser o mais reservado possível relativamente a esse episódio da Jamba. O meu papel é unir. Não gostaria que uma afirmação minha prejudicasse qualquer das partes. Sou irmão de todos e ministro da reconciliação».
Os escritos da prisão de Luandino Vieira acabam de ser reunidos em arquivo digital, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Grande parte da obra ficcional do autor de “Luuanda” foi escrita durante os 12 anos em que esteve preso – de 1961 a 1964 em várias cadeias da cidade de Luanda, tendo sido enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde, onde permaneceu até 1972, altura em que foi transferido para Lisboa, em regime de residência fixa, até 1974. São do período da prisão 17 cadernos com anotações diarísticas, correspondência, postais, desenhos, cancioneiros populares, esboços literários, textos em quimbundo, traduções e notas várias. Em 2015, a editorial Caminho publicou em livro “Papéis da Prisão – Apontamentos, diários e correspondência” (1962-1970)” ainda com apoio da Gulbenkian. E agora, graças ao trabalho realizado sob a coordenação de Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, com a equipa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, todo o acervo ficou acessível para consulta pública.
Foi-me dado reencontrar Luandino Vieira, retomando um antigo diálogo extraordinário, que se tem traduzido em admiração e amizade. E de novo falámos, em várias declinações, dos mundos da língua portuguesa. Língua portuguesa que apenas ganha sentido pleno se vista como pluralidade. E ambos nos demos, sem combinação prévia, a lembrar palavra por palavra o “Chiquinho” de Baltazar Lopes, o Caleijão, a importância e a riqueza dos crioulos, as incertezas, os debates no seio da revista “Claridade” sobre a importância simbólica do protagonista do romance fundador da moderna literatura de Cabo Verde. E esse encontro inesquecível ocorreu, num rasgo de felicidade, um dia apenas depois de termos iniciado ali mesmo a invocação de Eduardo Lourenço, vindo à baila o que Roberto Vecchi dissera no lançamento desse colóquio, que constituiu um aperitivo para a reflexão necessária sobre o ensaísta de “Do Colonialismo como Nosso Impensado” (Gradiva, 2014).
Quer no testemunho direto de Luandino Vieira, quer na releitura dos textos de Eduardo Lourenço, podemos encontrar, de modo objetivo, sem complexos, nem justificações retrospetivas anacrónicas, uma análise do presente e do futuro sobre um “impensado” que reclama uma leitura desapaixonada sobre quem somos na relação com a História. De facto, a raiz verdadeira de uma «estranha permanência e difusão do mito do nosso colonialismo ‘diferente dos outros’ reside na identidade substancial das situações metropolitana e colonial, ambas coloniais, a tal ponto que salvas certas manifestações tipicamente esclavagistas e cada vez mais incompatíveis com os tempos, com a melhor consciência do mundo, o colonizado da metrópole não acha muito estranha a situação do colonizado das “províncias”, nem a má consciência o apavora quando se comporta diante dele como no fundo o senhorito da Metrópole se comporta para com ele. A nossa idílica harmonia colonial, condimentada com epiderme exótica e alguma água benta, repousa sobre esta cinzenta identidade». E enquanto ingleses, franceses, holandeses e belgas foram colonialistas que se aceitaram como tais, nós (como os castelhanos) não sabemos o que isso é, “somos colonialistas como somos portugueses”. E assim há um “espantoso silêncio” a esconder a aventura colonial – “sob a indiferença dos trópicos e o esquecimento do mundo”.
É esse esquecimento que nos obriga a pensar que não fomos os únicos a deixarmo-nos esquecer dessa maneira. Eduardo Lourenço foi claro na explicitação de essenciais intuições sobre as nossas especificidades, já que “tudo isto está de acordo com a nossa maneira de estar no mundo”. E por isso mesmo o impensado (do salazarismo e do colonialismo) não pode ser visto de ânimo leve. E “só no dia em que de portas adentro descobrirmos o sentido do que nos aconteceu deveras e medirmos a nossa agora exata dimensão, a já visível ressaca será crise de identidade e reformulação de destino”.
Acaba de ser publicado o romance “A Outra Margem do Mar” de António Lobo Antunes (D. Quixote, 2019) que nos fala de um incidente ocorrido em Angola antes da guerra colonial, quando grandes plantações de algodão começaram a ser incendiadas, prenunciando a que viria a acontecer depois…
QUARENTA ANOS… O programa das celebrações dos quarenta anos de vida literária de António Lobo Antunes na Fundação Calouste Gulbenkian, em colaboração com o grupo Leya, permitiu aprofundar o conhecimento da obra de um grande escritor e refletir sobre a riqueza da produção literária e artística de um autor, recentemente recebido na Biblioteca Pléiade, célebre coleção francesa que reúne os maiores autores da humanidade, só excecionalmente reservada aos vivos. Desde o momento em que, no ano de 1979, foram publicados os dois primeiros romances, Memória de Elefante e Os Cus de Judas assistimos a um percurso consistente, no qual o que importa é a história de gente de carne e osso que encontramos na vida a cada passo. E recordamos o momento em que nos foi dado ler pela primeira vez o novo autor: “O Hospital em que trabalhava era o mesmo a que muitas vezes na infância acompanhara o pai: antigo convento de relógio de junta de freguesia na fachada, pátio de plátanos oxidados, doentes de uniforme vagabundeando ao acaso tontos de calmantes, o sorriso gordo do porteiro a arrebitar os beiços para cima como se fosse voar, de tempos a tempos, metamorfoseado em cobrador, aquela Júpiter de sucessivas faces surgia-lhe à esquina da enfermaria de pasta de plástico no sovaco a estender um papelucho imperativo e suplicante: A quotazinha da sociedade, senhor doutor”… De que nos fala António Lobo Antunes? De nós e dos outros. E nesse ano de 1979 era Portugal que evoluía, que se adaptava às novas circunstâncias. E era isso que interessava ao escritor, não numa perspetiva global ou metafísica, mas a partir dos fragmentos da vida protagonizados por pessoas concretas, inesperadas, diferentes, capazes de nos acompanhar nos caminhos e nos momentos mais difíceis e intrincados. Não faço aqui um enquadramento geral, mas recordo o trabalho editorial incessante de Maria da Piedade Ferreira na construção do diálogo pertinente de um escritor difícil, mas necessário, com os seus leitores. E neste encontro multifacetado e polifónico, importa a agradecer ao autor por tudo o que nos tem dado e por certo continuará a dar – em memória, criatividade, talento e extraordinário domínio da palavra e da narrativa. E é devido ainda um agradecimento a todos quantos têm contribuído para a análise e melhor compreensão de uma obra rica de cerca de meia centena de livros, recebidos sempre com uma significativa e justa expectativa. Com ironia, António Lobo Antunes diz que não devia fazer eletrocardiogramas, mas sim escalas de Richter porque (diz-nos) “me parece que em lugar de coração tenho um sismógrafo cuja agulha assinala o menor estremeço interior ou exterior com uma amplitude imensa: basta-me viver para a agulha não parar, e que cordilheiras de tinta os meus dias…”.
O CORAÇÃO DO CORAÇÃO… O colóquio internacional fez-se sob a invocação: “Apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo”. É este o desafio perante o qual nos temos de haver. É o encontro dos outros com que a cada passo nos deparamos. E lembro dois grandes amigos de António, Ernesto Melo Antunes de José Cardoso Pires, que em memória e espírito nos acompanharam, demonstrando como as razões do coração, que encontramos ao longo desta obra, constituem uma matéria-prima inesgotável. E o certo é que se aplica a ela o que o escritor disse sobre Eduardo Lourenço. “sob a inevitável complexidade artesanal da sua arquitetura, tudo atravessado por um humor subterrâneo, uma discreta ironia sulfúrica e uma espécie de inocência sábia, (…) de criança antiga, dona de um dedinho certeiro”. Sim, António também se preocupa com “uma máquina de entender o mundo, através do homem, infinitamente simples”. O coração do coração e o antecipar dos olhos nos olhos, e o tentar começar a ver distintamente estão presentes. E essa consciência das diferenças, da multiplicidade, das tensões, dos dramas, dos encontros e desencontros está no cerne da marca deste grande escritor – e é por isso que com António Lobo Antunes podemos compreender melhor quem somos no caminho de um lento entendimento. “O que seria de mim (diz o escritor) se não escrevesse, povoado pelos meus cães negros? Agora, e até começar o livro, não cessam de rondar-me: sinto-lhes a respiração, o cheiro, a baba. Sinto-os roçarem-me. Vejo-lhes as órbitas amarelas, os dentes…”. Mas eis que é a vida que irrompe. E ficam os livros: “em certo sentido, é terrível que a criação dure mais que o criador: Flaubert enfurecia-se que a Bovary continuasse viva e ele não. É curioso: agora é ela, a quem Flaubert deu vida, que lhe dá a vida a ele. É essa a grandeza da Arte: o Verbo torna-se Carne, que por sua vez torna a ser Verbo. Pode desejar-se atividade mais nobre?” O mundo e a vida não param. Os grandes romances, como a grande poesia, exigem que se releiam no maravilhamento da descoberta – “a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos”. E isto vale para o leitor e para o escritor, já que a descoberta é necessariamente biunívoca. Há uma troca permanente entre a escrita e a leitura. Tudo é excecional. Se falamos de ler, falamos de reescrever, de refletir, de pensar. É da vida que se trata. Por isso, a leitura é o melhor modo de realizar a liberdade. E que marca extraordinária essa na coerência do escritor. Em cada linha António no-lo diz com persistência. Não se trata de fechamento, mas de partilhar uma experiência própria e intransmissível.
A ORIGINALIDADE DO ESCRITOR Bernard-Henri Lévy leu com especial cuidado a obra de António Lobo Antunes e encontrou nela a reinvenção do tempo, o diálogo interior e a polifonia (capaz de não esquecer cada som e cada interpretação), como pontos essenciais da originalidade do escritor. O tempo, o mundo e o mal; a consideração da guerra como bomba atómica moral; mas também o domínio da escrita e da comunicação: a música, a pontuação e a perceção da doença – eis os elementos que colocam o escritor na galáxia dos maiores, dos inovadores, daqueles que revelam capacidade de ir ao encontro da voz do leitor… Ah! E temos a presença sub-reptícia, permanente, dessa estranha aventura que aprendemos a ler em “Peregrinação” e nas mil peripécias e personagens em que Fernão Mendes foi protagonista plural – “e com muita Avé-Maria e muito pelouro nos fomos a eles e em menos de um Credo os matámos a todos”… Que é a escrita senão essa capacidade de exprimir de forma inusitada o inesperado devir, permitindo ver melhor a realidade, como na subversão do tempo em “As Naus” (1988)? Sim, somos nós e os outros que António Lobo Antunes traz em observação cuidadosa, atenta e complexa. Regressado da guerra, sabia de feridos, de tiros e explosões, de minas, de prisioneiros, de crianças mortas, mas ainda tinha sido poupado ao conhecimento do inferno. E assim pôde entender o género humano, a coragem e a tibieza, o fundo bom e as baixezas… No fundo, acredita nas pessoas, por ter tido a possibilidade de conhecer o inominável… Aqui tudo começa e tudo continua. E, afinal, António, “basta um sorriso para ressuscitar o universo”…
Agora que Marcelo Rebelo de Sousa voltou a aproximar Angola e Portugal, pondo-nos nos braços uns dos outros, num daqueles kandandos apertados (que é como os caluandas chamam a um abraço amigo), veio-me à lembrança do luandense, que eu também sou, um episódio de sonho e inocência
Quando flutuam no céu não sei se parecem anjos se, longe e pequeninos, são mais alforrecas.
Em “O Dia Mais Longo”, invade-se a Normandia. Milhares de barcos tapam o mar, a multidão de soldados de infantaria chapinha na última onda da praia fugindo à metralha alemã. Entretanto, os pára-quedistas saltam atrás das linhas inimigas.
Recordo a aldeia de St. Mère Église. Os páras tinham os boches à espera. Vinham no ar e eram ceifados sem piedade. Um ficou preso no campanário da igrejinha. Fingiu-se morto e ficou pendurado, horas, os sinos a ensurdecer-lhe os ouvidos, vendo o morticínio dos camaradas. Episódio real, o pára sobreviveu no filme e na vida.
No filme mais fácil de assobiar de que os meus lábios se lembram, “A Ponte do Rio Kway”, saltam em território inimigo para sabotar a ponte que o prisioneiro Alec Guinness construiu para os japoneses. William Holden, o pára-quedista americano, salta com a alegre elasticidade moral yankee que o fez logo mais herói a meus olhos do que a sorumbática honradez do britânico Guinness.
Saí da matinée e, aos 7 anos, vi os primeiros páras saltar, num festival a que Luanda assistiu mal a guerra começou.
No ar, os velhos Nordatlas, chamados barrigas de jinguba, roncavam, preguiçosos. Abriram-se como torneiras e o azul celeste povoou-se de pontos negros caindo vertiginosos para a morte. De repente, nascia-lhes na cabeça uma salvadora e ampla cabeleira. Flutuavam, então, presos a esses alucinados lençóis de Deus.
Três amigos, 7 anos como eu, extasiaram. A imaginação exigiu-lhes igual cabeleira. Cortaram plásticos, novelos de fio grosso. Procuraram local propício: uma obra em construção. Subiram a um andar. No chão, dois montes da amarela areia do Bengo garantiam queda macia.
O resto é pura epopeia. Um amarrou ao pescoço o científico e improvisado pára-quedas. Os outros, em rígida continência, tributavam-lhe a coragem. Saltou. O plástico reagiu com eficácia newtoniana e abriu-se. Numa imparável cadeia de efeitos, a corda esticou e, ai meu Deus, o pescoço do mais jovem boina verde do mundo viu-se apertado. Faltou-lhe o ar e os olhos (mania que os olhos têm) esbugalharam-se, aflitos, para o mundo. Tentava gritar roucos sons intraduzíveis.
Os amigos foram amigos. Correram escadas, saltaram andaimes, trovejando “tem calma! tem calma!”, “já aterras! já aterras!”
Corriam desenfreados e pairava o herói em histérica majestade. Aterraram juntos: os dois maratonistas de andaimes esfolando-se no cimento, o atónito pára-quedista na areia dourada. Cinema puro: terminava com um fio de sangue, suor tropical e sem lágrimas a aventura militar de um trio empreendedor e aberto à experimentação científica.
Muito estremeceu depois o céu de Angola, mas já não com a valente inocência de uns principezinhos sem asas.
Pelos mais de duzentos milhões de falantes distribuídos por vários continentes, a língua portuguesa produz, necessariamente, curiosidade e conhecimento, sendo compreensível que falantes externos ao seu espaço físico e linguístico a ele queiram ter acesso, no âmbito das suas várias manifestações de produção económica, científica, tecnológica, cultural, desportiva. Disseminada por oito países em quatro continentes, é não só uma língua global e de comunicação internacional, mas igualmente transcultural e transcontinental. Como uma língua em crescimento demográfico, de populações e países maioritariamente jovens, também tem disponibilidade para crescer como língua estrangeira e de exportação, conjugando-se os fatores económicos e políticos potenciadores do desenvolvimento dos países seus falantes.
A que acresce uma diáspora portuguesa, que se converte em lusófona e contemporânea, em que para além de ser o idioma de mais de cinco milhões de emigrantes e cidadãos de ascendência portuguesa, há que contar com as deslocações de emigrantes de outros países lusófonos, em especial do Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde, com todas as consequências daí derivadas, a médio e longo prazo, para a difusão mundial do nosso idioma comum.
A que corresponde um mercado de grande dimensão num espaço geograficamente descontínuo e de perfil variado, dando-lhe maior dinamismo e podendo suscitar, no futuro, uma acumulação de oportunidades de mercados relevante. Há comunidades lusófonas e lusófilas crescentes, pela Europa, Américas, África, Ásia e resto do mundo, que fazem o culto do mercado da saudade, de laços afetivos, visitas regulares e apetência por produtos lusófonos, quer em termos alimentares, gastronómicos, culturais, turísticos ou outros.
A língua portuguesa é ainda língua oficial, de trabalho ou de tradução obrigatória, em várias organizações internacionais, como a União Europeia, a Unesco, a União Africana, o Mercosul, a Organização dos Estados Ibero-Americanos, a Organização dos Estados Americanos, entre outras, sendo crescente a implementação para que seja idioma oficial da Organização das Nações Unidas, com a perspetiva de remodelação do seu Conselho de Segurança, em que o Brasil seja parte integrante.
Estudos tendo por fim a divulgação da cultura e da língua portuguesa no estrangeiro, concluem que representa 17 por cento do produto interno bruto nacional, havendo um aumento significativo do português como língua de trabalho, de comunicação e de viagem, com projeções de maior valor, no futuro, a que não será alheio a força crescente, na área internacional, de Angola e do Brasil, em especial deste último. Numa perceção da língua em geral no exterior e em termos literários, o inventário é liderado pelos portugueses Fernando Pessoa e José Saramago, à frente do brasileiro Paulo Coelho, um recordista de vendas. Havendo, noutras áreas, referências a Lula da Silva, bem como aos futebolistas Ronaldinho Gaúcho e Ronaldo, do Brasil, e a Luís Figo e Cristiano Ronaldo, de Portugal.
Para a dimensão de mercado, é fundamental uma marca distintiva que faça sobressair o nosso idioma no espaço da produção contemporânea. Em termos artísticos, o agrupamento musical português mais internacional de sempre, os Madre Deus, sempre cantaram em português e fizeram o culto da nossa música, o que de outro modo, para eles, não faria sentido. Para Mariza o facto de cantar em português nunca a impediu de ter uma carreira internacional de sucesso. Amália internacionalizou-se cantando em português, internacionalizando o fado. Veja-se, agora, a internacionalização de Joana Vasconcelos, com esculturas chamativas e impactantes, onde a marca portuguesa está sempre presente em interação com os tempos atuais. Atente-se na música popular brasileira, nos movimentos da bossa nova e do tropicalismo, onde Vinícius de Morais, Dorival Caymmi, Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Chico Buarque, Toquinho, Gal Costa, Maria Bethânia, entre outros, universalizaram a língua portuguesa exportando-a e originando inúmeros lusófilos. Sem esquecer a cantora e atriz portuguesa, naturalizada brasileira, Carmen Miranda.
Não é apagando as marcas de origem que um artista singra internacionalmente. Antes sim, tendo voz própria e uma marca distintiva que o diferencie com qualidade na diversidade, diferenciando e não banalizando, nem massificando o que é genuíno e como tal deve ser trabalhado, evoluindo e enriquecendo-o, e não apenas normalizando-o, ficando tudo igual, em todo o lado. Tentando, sem mais, equiparar-nos aos outros, normalmente aos tidos como mais evoluídos, abdicando do que nos distingue, além de provinciano, revela incapacidade de nós próprios. Afinal, a capacidade em assumirmos e valorizarmos o que nos distingue é a mais universal das linguagens.
Após longas viagens, Portugal sente-se inseguro em arrumar tantas memórias num espaço geográfico territorial tão estreito. Desfeito o império, regressa a casa e sente-se detido. O fim dos impérios coloniais converteu as antigas potências colonizadoras numa espécie de depressão pós-parto. Antigas colónias, como o Brasil, e mais recentemente as outrora possessões ou províncias ultramarinas, como Angola, emergem e assumem-se como protagonistas a vários níveis. O mesmo sucede com o fim do império inglês, francês, espanhol e holandês. Com reflexos culturais, por exemplo, na literatura, na música popular, artes plásticas e desporto. Tendo como representantes principais um número cada vez maior de autores, intérpretes, artistas e desportistas de origem americana, africana ou asiática. Também em Portugal essa presença já é notória: Mariza, Sara Tavares, Kalaf, Da Weasel, Buraka Som Sistema, Luanda Cozetti, Nelson Évora, Patrícia Mamona, Susana Costa, Luciana Diniz, Pepe, Éder, Renato Sanches, etc. Sem esquecer a cada vez mais consagrada e presente literatura lusófona, de procedência brasileira ou africana, música, telenovelas e séries do Brasil.
Ao português, como língua de estratégia e de vanguarda, importa delimitar objetivos e prioridades na sua divulgação e promoção a nível planetário e das culturas que a partilham, como meio de alcançar intentos e fins mais amplos de natureza comercial, cultural, diplomática, económica, jurídica, política. Tendo sempre presente ser a língua, para além da sua imaterialidade, um assunto e um produto cultural economicamente relevante e rentável, com consequências tecnológicas, de imagem e marca externa do país, ultrapassando meras referências simbólicas.
Em linhas gerais, são enumerados como argumentos básicos de defesa dessa estratégia e vanguarda, os da coesão, da disseminação pelos descobrimentos, da diáspora portuguesa, lusófona, contemporânea, da dimensão de mercado, da globalização e do seu potencial geoestratégico. Quanto a nós, importa ainda falar do português como idioma de cultura, pluricultural, de exportação, intercontinental, transoceânico, como língua informática, internauta, sendo predominantemente, e cada vez mais, não-europeia, tendo como referência, a este respeito, a sua distribuição espacial e demográfica.
No imediato, a curto e médio prazo, o estatuto universal da língua portuguesa não está em perigo. Não, no essencial, por aquilo que nós, portugueses, tenhamos feito ou fazemos, pois temos feito pouco. Mas pelo peso e poder emergente, demográfico e económico do Brasil, sem prejuízo de outros de independência recente, onde sobressai Angola e Moçambique. Tem de se compreender que, a nível global e internacional, não há futuro, de momento, para a língua portuguesa sem o Brasil e sem os futuros falantes do continente africano, segundo as previsões demográficas para os próximos cinquenta anos. Não está em causa uma questão de liderança, mas sim de realismo.
Ao invés, o estatuto europeu do nosso idioma está ameaçado, desde logo na União Europeia, onde Portugal é parte integrante, onde não fizemos, nem fazemos, o suficiente para a defender, promover e valorizar. O que põe em risco o seu estatuto universal, a sua dimensão estratégica e de vanguarda. Imagine-se os demais povos, não residentes na Europa, que partilham connosco um idioma comum, aperceberem-se que para falar com os europeus e a UE, ou estes com eles, de nada os beneficiar falarem português, concluindo que Portugal abdicou das suas responsabilidades históricas.
Daí a necessidade de o português se impor como uma língua de comunicação global, de estratégia e de vanguarda, entre a Europa e outros continentes, e nunca, ou apenas, como uma língua intraeuropeia, local e regional, a par das outras línguas oficiais da Europa e UE.
10 de outubro de 2016 Joaquim Miguel De Morgado Patrício