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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

85. AFEIÇÃO AOS ANIMAIS


É tida como compensatória a afeição aos animais.

Há uma necessidade psicológica, em cada um de nós, de dedicar a alguém a nossa afeição, agudizada quando achamos que os nossos semelhantes não a sabem aceitar ou reconhecer, voltando-nos para os animais. 

Nem todos assim pensam, com razão, pois podemos sentir-nos compensados com os nossos afins e similares, e afeiçoarmo-nos a todas as formas de vida juntas que fazem parte do ecossistema global, sendo um ponto de referência matricial segundo o qual o ser humano se deve relacionar com os seus semelhantes, com os animais e a natureza, assim se sentindo realizado.

Há que evitar que a afeição e amizade pelos animais seja, no essencial, uma compensação para as deceções, frustrações e desilusões sofridas. 

Há quem tenha tanta necessidade de amar e ser amado, que tem por insuficiente, por si só, os carinhos dos semelhantes e a dedicação dos animais. São pessoas amoráveis, em que a necessidade de amar e ser amado é extensivo às coisas, à natureza, ao meio ambiente e ao cosmos.

O ser humano tem predileção especial pelos cães e gatos.

Os cães são dedicados, exuberantes, ruidosos, fiéis, amigos e devotos para com o dono que os acarinha, alimenta e sustenta. Ladram, saltam e agitam-se, levantam amigavelmente as patas e chegam a lamber a mão de quem os afaga. Bem conhecido o poema Fiel de Guerra Junqueiro. 

Os gatos não acariciam, deixam-se acariciar, meneiam-se e contorcem-se em elegantes e lânguidas curvas. São contemplativos, calados, concentrados, silenciosos, indiferentes e desconfiados. Não perturbam o trabalho mental, daí a afeição e a amizade que lhes têm tantos pensadores e intelectuais, tendo-os como uma companhia ideal. É bem conhecido o apreço e estima por gatos que tinha Agostinho da Silva. 

Gostamos de falar com os animais, presumindo que nos compreendem sempre, e como não falam, não dizem mal de nós, não nos atraiçoam, sendo a nossa afeição por eles um meio transferido do sentimento da amizade, não nos deixando sós, porque juntos de um ser vivo, numa simbiose animista. 

O que nos leva a concluir dever ser ultrapassada a tradição ocidental dominante de que o mundo natural existe essencialmente para benefício dos seres humanos, de que a natureza não tem valor intrínseco e de que a destruição das plantas e dos animais só é censurável se tal destruição prejudicar os seres humanos, porque superiores.

 

10.09.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

SOBRE PESSOAS E ANIMAIS QUEM DECIDE?

 

1. Eu sei que o tema é hoje muito sensível e complexo. Já aqui escrevi várias vezes sobre ele, mas volto a ele, sobretudo porque penso que é fundamental ter conceitos claros, contra a confusão que quer impor-se neste e noutros domínios. Dentro da confusão, é fácil perder-se quanto ao essencial.

 

Dou exemplos de confusionismo. Contou-me uma pessoa amiga que, durante uma volta a pé, ouviu uma senhora aflita a chamar: “Anda à mãe, anda à mãe.” Até se afligiu, pensando que uma criança se tinha perdido. Afinal, era um cãozinho. Outra pessoa contou-me que viu na televisão uma senhora grávida num supermercado com o cãozito num carrinho e, à pergunta para quando o nascimento do bebé, disse a data prevista na qual o cão iria ter um irmão. Segundo o Expresso, André Silva declarou: “Há mais características humanas num chimpanzé ou num cão do que numa pessoa em coma”. E já se pede um SNS para cães e gatos. E há jardins públicos infrequentáveis por crianças, tanta é a porcaria largada por cães, com os donos regalados a observar o alívio dos bichos. E tem havido ataques graves de cães e perturbações sem conta por outros animais que destroem colheitas inteiras, mas nada acontece...

 

A afirmação acima está na continuidade da de Peter Singer, professor da Universidade de Princeton, que escreveu em Ética Prática: “Devemos rejeitar a doutrina que coloca a vida dos membros da nossa espécie acima da vida dos membros de outras espécies. Alguns membros de outras espécies são pessoas; alguns membros da nossa não o são. De modo que matar um chimpanzé, por exemplo, é pior do que matar um ser humano que, devido a uma deficiência mental congénita, não é capaz nem pode vir a ser pessoa.” Quem faz estas afirmações fá-lo baseado em que a desigualdade de tratamento que damos às pessoas humanas e aos outros animais deriva do chamado especismo, que consiste na preferência que damos aos seres humanos sem qualquer outra razão que não a pertença a uma espécie, no caso, a espécie humana.

 

2. Oponho-me veementemente a esta tese, que é a tese animalista, uma das teses mais deletérias e ameaçadoras contra o humanismo. E estou à-vontade, por várias razões. Na universidade, sempre falei aos estudantes da Animal Liberation (Libertação animal), de Peter Singer, e há muito que defendi que se deveria encontrar, do ponto de vista jurídico, uma denominação para os animais, que não são coisas. Aliás, isso encontra-se também num livro que coordenei juntamente com Alexandre Manuel, Desafios à Igreja de Bento XVI, no qual o constitucionalista J. Gomes Canotilho perguntava se precisamente um desses desafios não era desenvolver uma ecologia em que “as diferenças entre ‘algo e alguém’ não remetam para o domínio das coisas a problemática humana dos outros seres vivos da Terra.” E sempre fui a favor do valor da vida, do cuidado a dar à Criação e de que aos animais é devido tratamento adequado, recusando sofrimentos cruéis e inúteis.

 

Para mim, de qualquer forma, há uma distinção entre a pessoa humana e os outros animais — e quando se fala em animais, é preciso distinguir entre animais e animais: não é a mesma coisa falar de cães e gatos e falar de pulgas, piolhos, carraças, percevejos, vespa asiática... e, por outros motivos, de leões, tigres, crocodilos, hipopótamos...—, distinção que é não só de grau ou quantitativa, mas essencial, qualitativa, ontológica. Bastará estar atento às diferenças, de que dou apenas exemplos. Neste tema como noutros, o problema é o fundamentalismo e a falta de racionalidade.

 

Como escreveu Edgar Morin, “embora muito próximo dos chamados chimpanzés e gorilas, tendo 98% de genes idênticos, o ser humano traz uma novidade à animalidade”. Há, apesar de tudo, entre etólogos e antropólogos, convergência bastante no reconhecimento de que entre o animal e o homem se deu um salto qualitativo essencial. Esse salto manifesta-se, em termos gerais, na autoconsciência (consciência de que se é consciente), na autoposse de si mesmo como único e centro de identidade, na linguagem simbólica e reflexiva, na capacidade de abstrair e formar conceitos, na transcendência em relação ao espaço e ao tempo, na criação e assunção de valores éticos e estéticos, no pré-saber da morte própria vinculada às crenças religiosas e à angústia frente ao nada, na pergunta pelo ser e pelo seu ser...

 

O homem  não se encontra na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu Max Scheler, o homem é “o asceta da vida”, pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos, vendo aí o célebre biólogo F. J. Ayala “a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela”. Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o homem é um animal livre e moral.

 

Os outros animais também comunicam, mas o homem tem linguagem duplamente articulada.  Aristóteles viu bem, ao definir o homem como animal que tem lógos (razão e linguagem), e, assim, político: “Só o homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos frente aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a pólis.”

 

O Pensador, de Rodin, diz-nos bem o que é o ensimesmamento: entrada dentro de si próprio, descida à sua intimidade única, à subjectividade pessoal: o ser humano vem a si mesmo como único, tem a experiência de eu enquanto própria e exclusiva, face ao outro, que é outro eu, outro como eu, mas simultaneamente um eu que não sou eu: um eu outro impenetrável. Disse o famoso psicanalista Jacques Lacan: “Possuir um Eu na sua representação: este poder eleva o homem infinitamente acima de todos os outros seres vivos sobre a Terra. Por isso, é uma pessoa”. Sabe que sabe, é autoconsciente, consciente de ser consciente.

 

O homem é um ser inquieto, nunca satisfeito (satis-factus: feito suficientemente), acabado. Por isso, é o ser do transcendimento, como escreveu Pascal, ao dizer que o homem mora algures entre “le néant et l’infini” (o nada e o infinito), aberto ao Infinito, à Transcendência. É o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, chega a perguntar ao infinito pelo Infinito, isto é, por Deus. Neste sentido, é constitutivamente metafísico e religioso. E tem dignidade, é fim e não meio, como defendeu Immanuel Kant, pois há nele algo de infinito, precisamente esta sua capacidade e necessidade de perguntar pelo Infinito, pelo Fundamento e pelo Sentido último.

 

E há o riso e o sorriso, a contemplação e a criação de beleza (quando é que um animal vai compor uma sinfonia?), o amor de autodoação, erguer edifícios jurídicos com o estabelecimento da lei e da igualdade de todos perante a lei, a sepultura, a esperança...

 

E, no final de tudo, se estas notas características e capacidades específicas e outras não convencessem, há uma que é definitiva: nesta questão de saber se a distinção entre os humanos e os outros animais é meramente de grau ou, pelo contrário, qualitativa,  essencial, quem é convocado é o homem.  É ele e só ele que debate. Alguém se lembra de convocar uma assembleia de outros animais para dirimir a questão?

 

É preciso tomar consciência do perigo da indiferenciação e da ameaça da animalização da sociedade.

 

3. Há uma pergunta inevitável. E os membros da nossa espécie que não podem de facto exercer essas capacidades, como os deficientes mentais profundos? Estou com a filósofa Adela Cortina: “Isso não os torna membros de outras espécies, mas pessoas que é preciso ajudar para poderem viver ao máximo essas capacidades, o que só conseguirão numa comunidade humana que cuide deles e os promova na medida do possível.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 SET 2019

OS HUMANOS E OS ANIMAIS

 

II - PERSPETIVAS HIERARQUIZANTES E IGUALITARISMO CÓSMICO

 

1. Aristóteles não nega que o ser humano é um animal, embora racional. Todavia, a partilha de uma natureza animal comum, é insuficiente para que seres humanos e animais tenham igual consideração. Ao defender que o ser humano que era escravo era inferior ao que era livre, também era defensável o direito dos seres humanos dominarem os animais. A própria natureza é na sua essência uma hierarquia em que os que têm menor capacidade de raciocínio existem para servir os que a têm em maior grau. As plantas estão para os animais e estes para o ser humano. Se a natureza nada faz incompleto e em vão, é necessário admitir que tenha criado tudo para o ser humano. Se o imperfeito existe para servir o perfeito, o irracional para servir o racional, o ser humano, como animal racional, pode usar e dispor do que lhe é inferior para seu benefício, passando tal convicção para a civilização e tradição ocidental.

Porém, o apelo de que o humanitarismo inclui o respeito por todos os seres que são parte integrante do mundo natural, foi-se acentuando. Chegando a incluir um sentimento mais amplo de unidade e de amor universal com toda a natureza. Exemplifica-o São Francisco de Assis, que tinha como irmãos e irmãs o sol, a lua, a água, o fogo, o vento, os rios, as colinas, os campos, as rochas, as flores, as árvores, as aves, as cotovias, as borboletas, os coelhos, os patos, as ovelhas, os cavalos, os bois, os burros. No filme de  Franco Zeffirelli, São Francisco de Assis, (Brother Sun, Sister Moon, no original), são patentes sentimentos de amor universal, cantando-se o irmão sol e a irmã lua, as brisas suaves e reparadoras que sopram, as flores que deleitam o nosso olhar, o querer viver-se  como as aves no céu, sendo o seu protagonista tido, para muitos, como louco, por cantar como as aves, seguir as borboletas e olhar as flores.         Sobressaiem cada vez mais, nos nossos dias, preocupações ecológicas, segundo as quais o ser humano não tem (nem lhe foi conferido) um poder absoluto ou uma liberdade para usar e abusar dos seres não humanos, dado que nas relações com a natureza estamos sujeitos a leis biológicas e outras.

 

2. Independentemente de uma defesa sadia de todos os seres indefesos (humanos e não humanos) e haver pessoas que gostam mais de animais que de humanos temos, por um lado, os defensores de que o especismo é o grande adversário a abater, para bem da evolução e progresso civilizacional, ao lado dos que entendem que embora tal perspetiva igualitarista esteja na moda, não têm como exaltante tal igualitarismo, optando pelas perspetivas hierarquizantes, tendo a vida de um animal como um valor relativo e a humana como um valor absoluto. Se bem que aliciante e sedutor, o igualitarismo cósmico e o sofrimento igualitário, no seguimento de pensadores como Peter Singer e Tom Regan, é muito contestada a tese da igualdade de valor das vidas humana e não-humana, desde logo por se entender que quem dá mais valor à vida de um cavalo, de um cão ou de um gato do que à humana, é porque o dono lhe dá esse valor, e não por valer mais que a humana. Enquanto cada humano é um ser único da sua espécie, com um valor intrínseco e irrepetível, um animal é só mais um caso da sua espécie, que nunca sabe que errou, nem porquê, que pode ser abatido por poder ser uma ameaça ou um risco para os humanos e segurança pública (especialmente se de raças perigosas), não o devendo ser por vingança ou por ter culpa. Além de que se é necessário serem os humanos a defender os animais, por estes não terem capacidade de defender os seus direitos, isto parece negar a tese de que a vida humana e animal têm igual valor.

 

3. Como se justifica, então, que na hipótese de haver dois seres em perigo de vida, um humano desconhecido e o nosso cão, haja pessoas que salvem o seu animal, se só viável salvar um? Como explicar este maior afeto e simpatia pelo animal?
É usualmente dada como justificação a crise civilizacional que vivemos, onde primam ideias que duvidam das potencialidades humanas, tendo a nossa raça como malévola, perversa e sem redenção, o humano como um episódio gratuito da evolução, uma filosofia do absurdo, pondo o humanismo em causa, sem que as humanidades nos salvem. Só que, se o ser humano não tem capacidade para o bem que nele existe, como se compreende a contradição entre essa alegada ausência e a capacidade de bem que esses mesmos humanos têm ao defender os animais, dado que são estes que não têm essa capacidade para se defenderem? E se a fome e as guerras mostram o mal que há em nós, por oposição a um alegado pacifismo dos animais, como se justifica que a violência também exista em tantos animais que lutam e se matam entre si, quando não contra e em relação aos humanos? Ou há que distinguir entre animais domésticos de bom caráter e pacíficos e os selvagens de mau caráter e violentos, em paralelismo com os humanos bons, pacíficos e santos e os assassinos, psicopatas e de maus instintos? 

 

4. Aqui chegados, ideologias e sectarismos à parte, parece que o bom senso terá de prevalecer. Não sendo uma causa de direita ou de esquerda, é compreensível que sejamos pelos direitos dos animais, no sentido de serem estimados, não abandonados ou mal tratados, que se sancionem ou criminalizem os seus maus-tratos, o seu uso abusivo e infundado por malvadez, como bodes expiatórios e puro egoísmo humano. Mas respeitá-los e tratá-los bem, não implica abdicarmos de uma hierarquização de valores, entre o que é humano e os outros seres, se e quando na medida do suficiente e necessário. Tendo sempre presente que a dignidade humana é uma espécie de reserva e salvaguarda em qualquer sociedade, protegendo todos os humanos de quaisquer despotismos, dada a inalienabilidade e indisponibilidade de certos direitos, mesmo em relação aos bebés, deficientes ou incapazes, quando confrontados com animais adultos tidos, para alguns, como mais racionais e sensíveis. E se a capacidade de sofrer e sentir pode ser uma razão para ter direitos iguais aos humanos, desde logo, por extensão aos animais, por que não o é, perguntam outros, na mesma extensão e em igualdade de circunstâncias, para os animais terem deveres iguais, a começar pelo dever de pagar impostos? Mesmo quando incidem sobre animais de que são donos, são impostos sempre pagos por humanos, de tendência crescente nas sociedades urbanas e mais desenvolvidas onde, por vezes, a solidão humana é compensada e suprida pela posse de animais. Posse essa que, quando arrebatadora e obsessiva, também pode ser censurável, por manifestar uma atitude de arrogância e superioridade ao priorizar os animais, se em conflito com humanos, tendo-os como coisa sua, em termos absolutos.

 

10.01.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício