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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

 


De 7 a 13 de outubro de 2024


Anne Applebaum acaba de publicar «Autocracia, Inc.» (Bertrand, 2024) sobre uma perigosa tendência dos ditadores pretenderem dominar as economias, paralelamente Mário Draghi apresenta um plano para a Europa. Os dois temas merecem ser considerados.


TEMPO DE INCERTEZA
Vivemos um tempo de grande incerteza, com uma inesperada relevância da irracionalidade. Neste ano em que celebramos o terceiro centenário do nascimento de Immanuel Kant, dir-se-ia que a sua memória se desvanece perigosamente. Não falo já de A Paz Perpétua: Um Esboço Filosófico (1795), que longe de ser um projeto utópico, está na lógica sequência do imperativo categórico, como apelo às nações e aos cidadãos no sentido de organizarem as sociedades segundo o primado do direito e o sentido crítico. Para tanto é necessário que os poderes se sintam limitados pela moral e pelos seus fundamentos. Depois do sangrento século XX, verificamos que os trinta gloriosos anos de reconstrução e de paz (1945-1975), tendo como pano de fundo a guerra fria, deram lugar à grande esperança de 1989 com a queda do muro de Berlim. Mas, a pouco e pouco, invadiram a vida política o medo das diferenças e as tentações irracionais, com uma perigosa fragmentação de poderes e a emergência de influências materiais descontroladas e autodestrutivas.


Pode designar-se o sistema atual como de “polaridades difusas”, caracterizado por poderes de natureza diferenciada, em que os Estados tradicionais coexistem com organizações fundamentalistas não subordinadas ao direito e à regulação. O ataque às torres gémeas de Nova Iorque em 2001 abriu caminho a uma situação internacional com intervenientes fora das regras comummente aceites, com efeitos miméticos sobre os Estados e alguns governantes, sendo paradigmática a atitude do governo da Federação Russa nos casos da Crimeia e da Ucrânia, além da situação no Médio Oriente, bem ilustrativa da complexidade atual. Acresce que a tudo isso se associa a grave ameaça, no âmbito do meio ambiente, do aquecimento global e da desregulação ecológica, os efeitos das guerras e os novos desafios no âmbito da saúde, não só ditadas pela ocorrência da pandemia, mas também pela pressão social sobre os sistemas de saúde e a cobertura de riscos sociais.


QUE PROJETO EUROPEU? 
O projeto europeu está, assim, posto à prova, até porque no sistema internacional há um vazio político e de regulação que exige a presença de protagonistas com legitimidade cívica e democrática capazes de dar sentido crítico, racionalidade e partilha de responsabilidades ao desenvolvimento de uma cultura de paz e de justiça, que exige equilíbrio de poderes que impeça a criação de vazios de poder e de legitimidade. Quando Mário Draghi apresentou recentemente o seu Plano de ação para a União Europeia, visando contrariar a decadência e a perda de relevância do velho continente o objetivo fundamental é evitar uma lógica fatalista. Para tanto é necessária uma coordenação muito maior entre os países da UE para garantir a coesão económica e social e para tornar os investimentos mais eficientes, capazes de concorrer com os principais protagonistas globais. Urge assim dar uma atenção especial aos setores cruciais que contribuam para o aumento da produtividade, como o tecnológico e o energético, bem como para a segurança europeia nos setores da defesa e do espaço. É necessário mobilizar capitais públicos e privados, com um planeamento estratégico atuante, para contrariar a tendência de declínio. A investigação e o desenvolvimento e as infraestruturas transeuropeias exigem um esforço intenso e corajoso, dotado de uma visão de conjunto, compreendendo a complexidade. Nem o mercado resolve o problema por si, nem o Estado ou a lógica pública tem soluções mágicas. É necessária a coordenação europeia das políticas industrial e de financiamento público; uma maior consolidação nas telecomunicações, defesa e energia;  o alargamento do Mercado Único às áreas da energia, financeira e de telecomunicações; a redução da regulação da atividade empresarial, privilegiando a responsabilidade; a possibilidade da emissão conjunta de dívida, cumprindo-se a regra de ouro das finanças públicas e privilegiando os investimentos reprodutivos social e economicamente; bem como a reforma dos processos de decisão comunitários.


NÃO ESQUECER ESTADOS E UNIÃO 
A complementaridade entre a União e os Estados tem de ser reforçada, para que os cidadãos se sintam ouvidos e mobilizados. Importa lembrar o projeto New Frontier de John F. Kennedy que permitiu pôr um homem na Lua antes do final da década de 1960, mobilizando as energias disponíveis e permitindo uma articulação da educação, da ciência, da tecnologia, da indústria e dos recursos financeiros do Estado e do mercado, abrindo horizontes novos na informática, nas comunicações e na transição energética. Hoje, tal como há sessenta anos, os grandes desafios para o futuro têm de estar bem presentes - a descarbonização, a digitalização e a inteligência artificial devem ser encaradas como oportunidades e não como bandeiras abstratas. E o tema da autonomia estratégica tem de ser visto com inteligência considerando, no mundo digital e das novas energias, os interesses vitais comuns e as especificidades nacionais. Os 800 mil milhões de euros necessários para o investimento anual têm de ser encarados seriamente, o que exige um maior orçamento europeu em benefício de todos. Não haverá avanços no desenvolvimento regional, na investigação científica, no capital social, na defesa e na segurança sem recursos disponíveis e sem sustentabilidade económica, social, ecológica e cultural. Se alguns receiam a maior liberalização e a desregulamentação, a verdade é que tudo depende do modo como tais objetivos serão postos em prática. Deveremos lembrar-nos da velha fórmula de Karl Schiller (1911-1994): mercado tanto quanto possível, Estado tanto quanto necessário. De facto, a regulação formal e burocrática torna-se inútil, porque cega, e a intervenção do Estado fragiliza-se se for dominada pela pressão eleitoral pelos ciclos eleitorais de curto prazo, sem a formulação de compromissos duráveis, como defendeu Knut Wicksell (1851-1926), segundo o qual a estabilidade dependia de acordos duráveis entre as principais forças políticas que permaneçam para além da natural alternância política (desde os investimentos na educação e na ciência até à legitimidade política e eleitoral). Eis por que razão a ideia de sustentabilidade ultrapassa em muito a lógica económica ou ambiental. A coesão e a confiança obrigam à ideia de sustentabilidade cultural que começa por reconhecer a importância de democracia como um sistema de valores éticos e não apenas um modo de escolha de governantes. A legitimidade, a participação, a responsabilidade, a representação e a cidadania obrigam a estabelecer condições de eficiência e de equidade. Por isso, quando o Plano Draghi aponta para objetivos audaciosos e investimentos corajosos tem como subjacente a ideia de que a Europa apenas poderá ter uma voz que seja ouvida no mundo se tiver autoridade moral para ser internacionalmente um fator de equilíbrio em nome da razão, do sentimento e do sentido crítico, para que o mundo não se torne uma selva.


Anne Applebaum, em paralelo lança um apelo para que as democracias reorientem fundamentalmente as suas políticas para combater um novo tipo de ameaça correspondente a um desejo comum de poder, riqueza e impunidade. O mundo democrático precisa de valores éticos e de democratas unidos.     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença