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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O QUERIDO BORDA D’ÁGUA…


TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 31 de dezembro de 2018.

 

Sou um leitor fiel, há muitos anos, do “Borda d’Água”. Aqui está o meu exemplar, na edição dos noventa anos. Foi uma tradição deixada pelo meu avô, que fazia da vida do campo o seu quotidiano. Lembro-me do seu Almanaque cuidadosamente anotado a lápis – ora com as lembranças e com os compromissos a realizar, ora para dar nota das boas e das menos boas colheitas. Nunca usava a expressão má colheita, todas eram resultado da graça de Deus – com maior ou menor fortuna. E foi ele que me contou pela primeira vez a história de José do Egipto. Havia que poupar e não desperdiçar, que prevenir e que guardar, que cuidar e que proteger. O trigo ou o milho multiplicavam-se e os melhores e menos bons momentos eram criteriosamente referenciados. Anos havia em que a floração das plantas e das árvores era mais tardia ou serôdia, como aconteceu neste ano de 2018, e outros eram mais prematuros ou temporãos. E nos calendários tudo era anotado. Pelo S. João havia os primeiros figos, em Agosto anotava-se o número de milhos-reis ou milhos-vermelhos, pelo S. Miguel havia as vindimas, em outubro colhiam-se as romãs. E havia o varejo das amêndoas, das alfarrobas e das azeitonas – com vara e redes… Estou a recorrer à memória, sem ter o cuidado de ir rever a coleção dos Borda d’Água de meu avô – e dentro das folhas havia orações para as boas colheitas – a agricultura ligava-se à fé, e o espírito franciscano aí pairava numa genuína atitude ecologista, como diríamos hoje… Cada mês tem a sua especificidade, cada tempo tem o seu valor – e o culto dos campos permite compreender a natureza como natural prolongamento de nós mesmos. Que são as verdadeiras Humanidades senão a procura do equilíbrio entre o desejo e a lembrança? Duarte Nunes do Leão dizia por isso que essas eram as características da saudade. E como não considerar a “Menina e Moça” de Mestre Bernardim e o “Grande Sertão” de Guimarães Rosa os mais belos romances de amor da literatura da língua portuguesa? Mas o Borda d’Água tinha ditos e provérbios inesquecíveis: o mesmo solo que te faz cair, faz levantar-te (adágio hindu); transportai um punhado terra todos os dias e fareis uma montanha (Confúcio); quem na sopa deita vinho de velho se faz menino; à boa fome não há mau pão; dinheiro compra pão não compra gratidão; cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso… Era um não mais acabar… Para terminar por hoje, no final deste ano do Património Cultural fica a ideia simples que é de vida que falamos. Referi aqui de muitas coisas – desde as pedras às tradições, da natureza às paisagens, dos transportes às culturas… E termino com sempre fiz neste Tu cá tu lá. Com um poema, desta feita de um amigo de meu Avô, que tantas vezes lhe arranjava o Borda d’Água. Falo de António Aleixo, também amigo do Professor Joaquim Magalhães, que saudosamente aqui recordei há dias. E é de amor que aqui fala o poeta! Que melhor fecho para este Ano…  

 

«Que feliz destino o meu 
Desde a hora em que te vi; 
Julgo até que estou no céu 
Quando estou ao pé de ti.» 

GLOSAS 

Se Deus te deu, com certeza, 
Tanta luz, tanta pureza, 
P'rò meu destino ser teu, 
Deu-me tudo quanto eu queria 
E nem tanto eu merecia... 
Que feliz destino o meu!    

Às vezes até suponho 
Que vejo através dum sonho 
Um mundo onde não vivi. 
Porque não vivi outrora 
A vida que vivo agora 
Desde a hora em que te vi. 

Sofro enquanto não te veja 
Ao meu lado na igreja, 
Envolta num lindo véu. 
Ver então que te pertenço, 
Oh! Meu Deus, quando assim penso, 
Julgo até que 'stou no céu. 

É no teu olhar tão puro 
Que vou lendo o meu futuro, 
Pois o passado esqueci; 
E fico recompensado 
Da perda desse passado 
Quando estou ao pé de ti.»

 

Votos de Bom Ano Novo!
Esta secção termina. Depois virá: “Cada Roca com seu Fuso”…

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 31 de dezembro de 2018 a 6 de janeiro de 2019.

 


Muitas foram as iniciativas do Ano Europeu do Património Cultural, que agora termina. E todos somos chamados a assumir a capacidade de garantirmos que tudo quanto recebemos, de património material, natural ou contruído, de património imaterial, bem como da própria criação contemporânea, deve ser preservado, protegido, beneficiado e transmitido nas melhores condições às gerações futuras.

 

UMA NOÇÃO DINÂMICA
Não esqueçamos a etimologia que liga patres e múnus – o serviço do que recebemos de nossos pais. A atenção e o cuidado têm de estar bem presentes, designadamente quando tratamos do património que está ao cuidado de comunidades religiosas. Quando no Conselho da Europa estávamos a escrever o que viria a ser a Convenção de Faro sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea, ainda sob os efeitos da guerra do Kosovo, fomos confrontados com a persistente pergunta: a quem caberia a herança cultural de um templo que havia sido, ao longo da história, igreja cristã ortodoxa, mesquita muçulmana e até sinagoga judaica? O problema era difícil, na prática, mas a nossa reflexão não suscitou grandes dúvidas. Deveríamos considerar esse monumento como património comum, que a todos caberia respeitar e salvaguardar. E essa noção de património cultural comum tornou-se central na nossa Convenção, assinada em 2005, para que a memória e a herança histórica pudessem integrar a noção essencial de uma cultura de paz. Com efeito, as identidades culturais devem ser abertas, capazes de garantir diálogo, respeito, conhecimento e enriquecimento mútuos. E se falamos de património religioso, num contexto de liberdade de consciência e de culto, reportamo-nos a um acervo riquíssimo na Europa e no mundo, que deve ser estudado, protegido e salvaguardado – tendo em mente a memória das diferentes pessoas, comunidades e culturas que fizeram de um culto parte importante da sua vida.

 

RESPEITARMO-NOS
Não deixar ao abandono o património cultural, significa respeitarmo-nos, defender a memória das raízes e assim protegê-lo – e essa proteção leva a cumprir algumas regras muito simples, mas essenciais. Referimos isto com especial preocupação, uma vez que o património religioso está muitas vezes a cargo de comunidades, que não são constituídas por especialistas – formados para a proteção desses bens de culto e de cultura. Mas se isso assim é, a verdade é que muitas vezes falamos de valores incalculáveis. Eis algumas dessas regras, que urge ter bem presentes: (a) antes do mais, ter os bens com valor patrimonial em segurança; (b) não os deixar sem vigilância, sobretudo quando houver presença de público; (c) só entregar a conservação e o restauro a especialistas com provas dadas; (d) recusar intervenções de amadores ou de meras boas intenções; (e) no caso de dúvida sobre o que fazer, consultar especialistas; (f) sempre que há um bem ou uma peça em perigo deve ser guardada até que haja condições para ser restaurada nas melhores condições; (g) realizar inventários rigorosos, que permitam conhecer o que existe e as suas características fundamentais; (h) realizar fotografias e ter uma identificação precisa das existências. E a estes cuidados temos de juntar uma formação cuidada e cuidadosa. Lembremo-nos que uma medida tão simples como o fecho dos templos religiosos quando não há um vigilante presente, permitiu uma redução drástica dos furtos, assaltos, degradação de bens patrimoniais, tantas vezes por negligência, desatenção ou voluntarismo. Devemos lembrar o projeto português “SOS Azulejo”, que obteve o Grande Prémio da Europa Nostra, que permitiu, graças a medidas de prevenção, uma proteção efetiva de conjuntos com grande valor histórico e artístico. Muitas vezes, mais importante do que mobilizar ou reclamar vultuosos meios financeiros, torna-se essencial cumprir procedimentos simples que evitam perdas irreparáveis. Usar materiais desadequados, recorrer a meios não aconselháveis, utilizar o cimento armado sobre pedra, não usar os materiais originalmente utilizados, – tudo isso pode ter como consequência a destruição irremediável de bens patrimoniais que duraram vários séculos e que mercê de uma intervenção errada podem pura e simplesmente ser destruídos. É mais importante ter um inventário estudado e atualizado do que tentar fazer pseudo-restauros por amadores com consequências irreparáveis. Paralelamente, é importante dar a conhecer o património existente, através de formação e de ações pedagógicas com escolas ou associações da sociedade civil. Segundo o Euro-barómetro, publicado a propósito do Ano Europeu, os portugueses salientam-se pela positiva no reconhecimento da importância e do valor do património, mas também pela negativa ao terem sido dos menos classificados quanto a visitas a museus ou a ações concretas em prol do património cultural.

 

REALIDADE DE PRESENTE E FUTURO
E não estamos a falar do Património artístico e arquitetónico como realidade do passado. É um património cultural vivo que referimos, desejando que todos se mobilizem para que as raízes se não esqueçam e se tornem fatores de democracia e de desenvolvimento. O património cultural deve, assim, favorecer a paz e a segurança, o desenvolvimento sustentável, o conhecimento, a filantropia e a solidariedade. Estamos, assim, a reportarmo-nos também à criação contemporânea e ao diálogo do passado com o presente. Lembremo-nos em Portugal, por exemplo, os audaciosos projetos das Igrejas de Nossa Senhora de Fátima e do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, ou de Marco de Canavezes, da autoria de Álvaro Siza Vieira – todos com especial valor artístico e patrimonial. Os novos horizontes da criação artística integram-se de pleno no conceito dinâmico de património cultural. O Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), surgido em 1952, com Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas, José Escada, António Freitas Leal, Diogo Lino Pimentel, João de Almeida, Manuel Cargaleiro, Flórido de Vasconcelos, Maria José Mendonça ou Madalena Cabral, entre outros, constituiu um fator extraordinário de “aggiornamento”, que o Concílio Vaticano II veio confirmar. Trata-se da noção dinâmica de Património Cultural, que engloba um essencial e fecundo diálogo entre História e Modernidade.

 

E OS BENS RELIGIOSOS?
O Conselho Pontifício da Cultura da Santa Sé publicou em dezembro de 2018 as orientações sobre a reutilização dos templos católicos para usos não sagrados. E aí se recomenda que sejam privilegiados novos destinos religiosos, culturais ou caritativos, ficando de fora as utilizações comerciais, designadamente bares e discotecas. No recente Congresso sobre o tema realizado em novembro na cidade de Roma na Pontifícia Universidade Gregoriana foram dados bons exemplos de reutilização de igrejas: para oficinas artísticas, para centros sociais (como nas Basílicas de Santo Eustáquio e de Santa Maria de Trastevere, neste último caso em atividades da Comunidade de Santo Egídio) e até, em situações de menor valor artístico, para habitação. Temos entre nós os exemplos do Museu do Banco de Portugal, na antiga Igreja de S. Julião, da Livraria na Igreja de S. Tiago em Óbidos, do Centro Inter-religioso na Igreja da Misericórdia de Leiria, ou do Museu de Arte Antiga na Capela das Albertas… A preocupação fundamental é a da conservação e da salvaguarda da dignidade de edifícios referenciais do património cultural. Infelizmente na nossa história temos muitos exemplos em que o abandono foi o triste destino. Segundo o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, importa “haver indicações específicas em matéria de bens culturais, sobre a importância e o valor histórico e artístico do património religioso” – a formação, o inventário, o cuidado, o estudo rigoroso, tudo são aspetos fundamentais a não esquecer. “Algumas formas de degeneração ou profanação nascem (segundo o cardeal Ravasi) por incompetência ou falta de formação. Só uma formação adequada possibilita troca de informações com profissionais especializados”. De facto, “se a sacralidade de um templo lhe é subtraída, isso não quer dizer que ele perde a função simbólica de lugar espiritual e artístico. Por isso o património ‘nobre’ será conservado e tutelado como está, mesmo não destinado ao culto”. Deste modo, deve haver um extremo cuidado (e referimo-nos a lugares sagrados de todas as religiões) na reutilização desses edifícios, em nome da preservação da memória – daí que as comunidades devam ser envolvidas para que a participação e o bom senso prevaleçam e se procurem utilizações adequadas à defesa do património cultural.

 

UNIDADE NA DIVERSIDADE
Em suma, deixemos uma meditação final sobre o Ano Europeu: os valores, as culturas e as memórias constituem a base de uma Europa que deve caracterizar-se pela “Unidade na Diversidade”, resistindo à fragmentação dos egoísmos e da intolerância. Fora da lógica das identidades fechadas, ou do medo do outro, devemos construir realidades abertas e complexas, que não excluam ninguém. O património cultural liga gerações, suscita complementaridades, cruza influências e assenta na evolução histórica de encontros e desencontros – abrindo caminhos de diálogo e de cooperação entre comunidades, mas também com outras culturas do mundo. Trata-se de uma ponte entre o passado e o futuro, um processo contínuo de criatividade e inovação, que assenta as suas raízes na evolução histórica e suplanta-a em nome de uma cidadania ativa e responsável, do desenvolvimento sustentável e de uma sólida coesão social.

A Nova Agenda Europeia para a Cultura não pode assim ser confundida com uma cornucópia de meios financeiros usados sem critério nem avaliação. Ligue-se o investimento na cultura, educação e ciência com os objetivos de coesão social e de desenvolvimento, envolvendo cidades, campos, litoral, meio ambiente, turismo, sustentabilidade, mudança climática, investigação e inovação, política digital. Estamos a referir a obrigação de maior responsabilidade da Europa e de coerência com a Convenção de Faro do Conselho da Europa, com a Estratégia Europeia para o Património no Século XXI e com a Agenda das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável. As instituições europeias deverão reconhecer o património cultural, a Cultura em sentindo amplo, como prioridade estratégica, o que contribuirá para o urgente investimento para o capital humano e cultural e para a promoção dos valores universais da dignidade humana.     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

UM ESTUDIOSO INCANSÁVEL

 

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TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 26 de dezembro de 2018.

 

Acabo de ter a triste notícia de que Joaquim Antero Romero Magalhães morreu. É uma perda irreparável. Estive com ele há poucos dias e falámos longamente, em especial da reedição do seu livro fundamental «Para o Estudo do Algarve Económico no Século XVI». A obra é uma peça crucial para o conhecimento da História Económica. E nota-se o dedo e a influência do Doutor Vitorino Magalhães Godinho, mestre de um novo pensar e homem que abriu novos horizontes no conhecimento da historiografia dos Descobrimentos. Romero Magalhães assumiu papel fundamental na Comissão, que teve em Vasco Graça Moura um animador inigualável. Em boa hora a editora Sul, Sol e Sal reeditou essa obra essencial sobre o Algarve e a Universidade do Algarve concretizou o Doutoramento Honoris Causa no último momento. Não houve assim celebração post mortem mas homenagem em vida. Temo sempre as homenagens póstumas – que revelam sempre alguma injustiça… Nestes dias, voltei às páginas de Romero Magalhães. Li o seu prefácio agora escrito, que aconselho vivamente – e lembrei a memória de seu Pai, que também foi meu amigo… Quantas conversas na Rua de Santo António em Faro. Nada melhor do que ler Romero Masgalhães. As grandes obras tornam vivos os seus autores, mesmo depois de nos deixarem… É isso que vou fazer, lê-lo, lê-lo sem descanso…

 

 

A ESTRANHA GRANDE BRETANHA.

 

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Antes da notícia triste, estive a ler a imprensa britânica. E falei com o meu vizinho Robertson, que me disse estar atónito e confuso, porque não vê que os seus patrícios recuperem juízo. O desenho da capa do “Spectator” representa uma verdadeira cacofonia. As vozes são contraditórias e desencontradas. Dir-se-ia que quase todos dizem o que não querem e querem o que não dizem. Um velho industrial do Ulster que eu conheço já me disse e escreveu que de duas uma ou não há Brexit (e ele não sabe como isso se dará) ou a Irlanda se tornará um só Estado, uma República, com um só povo e uma só bandeira. No outro dia contava-me que em Belfast nas janelas há mais bandeiras da República do que “union jacks”… E um escocês amigo dizia-me que se a Irlanda se tornar uma só, a Escócia quererá ir também, mas o certo é que a bandeira do Reino Unido poderá mudar, uma vez que as cruzes sobrepostas atuais pressupõem que o Ulster continua no UK. Volto a olhar este desenho bem apanhado de um coro desafinado. É isso que hoje se passa, para mal dos nossos pecados. Grande Bretanha ou Pequena Realidade? E que poderá um anglófilo incorrigível como eu pensar… A finalizar agradeço os meus leitores que tanto elogiaram o meu automóvel… Por mim, ainda acredito que o Brexit possa ser uma miragem… Como habitualmente, deixo-vos um poema – desta vez natalício, da autoria do meu querido homónimo e padrinho de pia batismal – Frei Agostinho da Cruz:

 

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

 

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

 

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

 

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

 

 

       Agostinho de Morais

 

 

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   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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A VIDA DOS LIVROS

De 24 a 30 de dezembro de 2018.

 

Os “Diálogos com o Mosteiro dos Jerónimos, Entre o Mundo que não vivemos e o Mundo que não viveremos” foram uma iniciativa oportuna de Maria da Glória Dias Garcia, Diogo Freitas do Amaral e Isabel Cruz Almeida, para assinalar o Ano Europeu do Património Cultural.

 

DEFENDER O PATRIMÓNIO CULTURAL
Ao longo do ano pudemos contar com intervenções de grande interesse e atualidade, a começar pelo Presidente da República. No fundo, tratou-se de procurar afirmar que o património cultural não é um conceito do passado, mas uma noção dinâmica que nos põe em contacto não só com o que herdamos das gerações que nos antecederam, mas também com a criatividade dos nossos contemporâneos. Tive o gosto de participar na última sessão sobre o tema “Património: Representação e Inspiração”, em diálogo com Suzana Tavares da Silva, professora da Universidade de Coimbra. E porquê a ligação entre estes dois elementos? Exatamente porque há uma projeção dinâmica entre o que recebemos e o que lhe acrescentamos, que se traduz em memória e capacidade de inovação. Lembremo-nos, por exemplo, da obra que acaba de ser publicada da autoria de Umberto Eco Aos Ombros de Gigantes (Gradiva). São doze lições proferidas entre 2001 e 2015 no Festival La Milanesiana, sobre a importância dos clássicos, a beleza e a fealdade, os relativismos, os paradoxos, as mentiras, o segredo e o sagrado, e aí verificamos como o Património Cultural é muito mais do que a conservação do construído ou das tradições, envolvendo o património material e imaterial, a natureza, as paisagens, o mundo digital, as novas tecnologias e a criação contemporânea… De facto, todos somos, recorrentemente, pequenos anões aos ombros dos gigantes que nos antecederam. Daí que a referência ao mundo “que não vivemos” e ao “mundo que não viveremos”, reporta-se à antiga consideração de Agostinho de Hipona sobre os três presentes que nos são dados para viver, na difícil relação com o tempo. É fugaz o nosso tempo, pelo que temos de lhe dar valor – compreendendo as Humanidades, como elo incindível que leva a transformar informação em conhecimento, e o conhecimento em sabedoria…

 

COMO PROTEGER O PATRIMÓNIO?
A minha interlocutora começou por exercitar a sua dúvida metódica, sobre a razão da escolha deste tema para um Ano Europeu. Não haveria outras ideias e oportunidades? Haveria urgência na escolha do Património Cultural? E até que ponto não poderia tratar-se de uma cedência ao consumismo e à lógica pobre do turismo de massas? Por outro lado, poderíamos sempre questionarmo-nos sobre a utilidade e pertinência destes anos europeus. Que consequências positivas visamos atingir? Não correremos o risco de caírem estas celebrações no esquecimento e limitarem-se à espuma dos dias? Estamos perante um verdadeiro instrumento de política europeia? Estaremos a sensibilizar os cidadãos e a suscitar um debate que permita a mudança das mentalidades? O certo é que nos deparamos com um conjunto muito vasto de preocupações, desde a salvaguarda do património histórico ou da consideração do direito do património cultural até à reabilitação urbana, à proteção da natureza, do meio ambiente, das paisagens e da qualidade de vida… Suzana Tavares da Silva suscitou dúvidas e questões que têm resposta e merecem o devido esclarecimento, até porque, como tenho insistido, não é por acaso que este foi o único ano temático adotado neste ciclo dos órgãos comunitários europeus, que termina com as próximas eleições para o Parlamento Europeu em 2019. O certo é que não foram razões técnicas que conduziram à decisão dos órgãos da União Europeia de escolher o Património Cultural como tema para 2018, mas foram razões cívicas e políticas.

 

DETERMINAÇÃO E TRABALHO
Quando na Europa Nostra, designadamente com o seu presidente Plácido Domingo, a ideia começou a germinar e a ser defendida, no sentido de sensibilizar a União Europeia para o Património Cultural, as preocupações centrais tiveram a ver com o momento difícil que atravessávamos em virtude da crise financeira de 2008. A ilusão económica prevalecia sobre a capacidade criadora e a austeridade, como fim em si, pesava mais do que a ideia de sobriedade e de equilíbrio entre os meios e os fins, numa sociedade democrática, que desse prioridade à mediação das instituições e ao desenvolvimento humano. Pensadores, artistas, cientistas, cidadãos em geral salientam a necessidade de pôr a cultura, a educação e a ciência na primeira linha das nossas preocupações. Afinal, o processo criador do artista e do cientista, do artesão e do filósofo, do técnico ou do matemático são em tudo semelhantes. Tudo está em dar-lhes valor e em compreender que o progresso humano obriga à capacidade inovadora e à preparação das pessoas para a incerteza e para a complexidade. Daí que não tenha sido a lógica patrimonialista ou conservacionista a prevalecer na escolha que teve lugar. Além do mais, a Convenção-Quadro do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (assinada em Faro em 27 de outubro de 2005) põe a tónica num entendimento aberto e dinâmico, transversal e abrangente sobre este conceito. Importava considerar a identidade cultural como uma troca permanente, um enriquecimento constante e não como um circuito fechado ou tentação de qualquer lógica retrospetiva. Assim, as razões ponderosas para a decisão foram: a consideração do património cultural como fator de paz; a ligação do património a um conceito aberto de identidade; o entendimento do culto do património como modo de respeitar as diferenças; a necessidade de superação do medo do outro e do diferente, que tem alimentado nacionalismos e tribalismos; bem como, o desenvolvimento de um conceito de património comum europeu e da humanidade.

 

A CULTURA COMO PRIORIDADE
A cultura não é um luxo, é uma exigência humana. Liga-se naturalmente à educação, à formação e à ciência. Não podemos esquecer que o Euro-barómetro nos disse que os portugueses valorizavam a herança cultural, mas visitam e apoiam pouco os museus e os lugares do património cultural. Daí a aposta nas escolas. E, como disse Suzana Tavares da Silva importa que os roteiros culturais não se percam na existência líquida da não existência, para usar a expressão de Zygmunt Bauman, ou seja, que se compreenda que a cultura não deve tornar-se um mero bem de consumo. Daí a exigência ampla do Património Cultural, designadamente quando temos de considerar que a sociedade civil se deve organizar para proteger a herança e a memória com qualidade e profissionalismo, que a relação entre os direitos fundamentais e a cultura tem de contrariar uma perigosa deriva transhumanista que se vai afirmando, e que a economia, a concorrência e a sustentabilidade (a ideia de turismo sustentável está na ordem do dia) ponham as pessoas e o bem comum em primeiro lugar. Assim se escolheu o lema “onde o passado encontra o futuro”. Mas urge compreendermos a situação de que partimos. O património cultural não pode ficar ao abandono. Há conhecimento e sabedoria que têm de ser incentivados. A permanência da representação chama-se memória. A prevalência da inspiração é a criatividade.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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MORTE E VIDA SEVERINA

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO

Especial. 11 de dezembro de 2018.

 

Este fim de semana fui dar ar à pluma, que o mesmo é dizer fui com o meu MGA (temendo que o Brexit o inutilize) dar um passeio pelas estradas da Arrábida até ao Conventinho. Publico a fotografia do meu automóvel, para vos causar uma pontinha de inveja. O motor está fantástico, apesar de ser de 1955. E o verde está reluzente porque o protejo o mais que posso. Passei naturalmente pelo Portinho, onde parei junto do lugar onde conheci Sebastião da Gama e onde aprendi de cor muitos dos seus versos em honra da nossa Serra Mãe. Não choveu e pude gozar o ar fresco da manhã de sábado. Preocupei-me ao ver as imagens de Paris. Mas continuo angustiado com o que se passa no reino de Sua Majestade Sereníssima. Não faço prognósticos. Quem poderá fazê-los? O meu amigo Graham, com quem troco mensagens, também não arrisca. Acha que neste momento todos os cenários são possíveis e maus… Ele acha que a Senhora May está a ser colocada num beco sem saída. Continua a sofrer amargamente o erro monumental de Cameron… É um mal dos tempos que correm: confundir os interesses de curto prazo com a perspetiva de longo prazo. O “Prospect Magazine” publica no último número uma sondagem significativa. Cada vez mais ingleses acham que o resultado do referendo foi negativo. E mesmo aqueles que achavam que a aliança anglo-americana arranjaria as coisas, acham que o protecionismo do Senhor Trump estragou tudo… Nesta segunda semana do Advento reli ontem João Cabral e a sua “Morte e Vida Severina”. Severino debate-se com o desespero e descrê de tudo. Mas vem uma réstia de luz e de esperança – é uma vida nova que nasce. Não resisto a citar a parte final do poema, também do ano de 1955 (pura coincidência!). Lembro-me bem de quando li pela primeira vez esta obra-prima da língua portuguesa. Foi o meu saudoso amigo Padre Alberto Simões Neto que mo indicou – e um dia lemo-lo mesmo em conjunto, maravilhados com as palavras, com a estória e com a luminosidade… Severino perguntava se valia a pena a vida. Pois eu digo-vos que faz-nos bem depois do ar fresco da serra voltar a este rincão… Que o mesmo é dizer à vida que vale mesmo a pena…

 

«— De sua formosura
(fala do bebé que nasceu)
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infeciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

 

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE
QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR
PARTE DE NADA

 

— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.

 

Agostinho de Morais

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 10 a 16 de dezembro de 2018

 

Os 130 anos de Os Maias merecem ser lembrados. A exposição que a Fundação Gulbenkian organiza, com o inestimável apoio da Fundação Eça de Queiroz, pretende centrar-se na importância de um livro referencial e na promoção de uma reflexão, que leve à leitura da obra, que permita um conhecimento da mesma e que promova ainda o gosto de ler, um melhor domínio da língua e o contacto com a literatura e a História viva.

 

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REFERÊNCIA BEM PRESENTE
Não se trata de um exercício retrospetivo ou passadista, mas da consideração de uma preocupação bem presente, orientada para os cidadãos de hoje. E se há bem pouco tempo se discutiu se essa obra deveria estar no elenco dos programas escolares, o certo é que o bom senso prevaleceu, com a preocupação com os hábitos de leitura e o culto das humanidades, que não podem desaparecer da ordem do dia. A iniciativa nasceu de uma conversa despretensiosa com o meu amigo Afonso Eça de Queiroz Cabral. Havia que pôr momentaneamente Tormes, Santa Cruz do Douro, em Lisboa, para que esse roteiro extraordinário pudesse tornar-se mais conhecido – e para que a ideia dos percursos literários e das viagens com livros pudesse enraizar-se nos nossos hábitos culturais. No Ano Europeu do Património Cultural, nada melhor do que lembrar um romance como este, que constitui uma verdadeira panóplia sobre quem fomos e sobre o que não devemos esquecer criticamente sobre as nossas qualidades e defeitos, virtudes e limitações. Aí estão muitos ingredientes que nos conduzem à ideia complexa de património cultural, nas suas diversas aceções. O longo tempo de feitura e de revisão que o autor dedicou à obra permite que haja um conjunto complexo e heterogéneo de elementos, que nos levam a compreender o património material e imaterial, a natureza e a paisagem, e a capacidade criadora ditada pela contemporaneidade. Alguém disse “está lá tudo”… Não sei se está, mas a verdade é que há muito do que permite compreender criticamente a nossa realidade. Fizemos um longo percurso, o apuramento do sentido crítico que Eça e a sua geração nos ensinaram teve os seus resultados, mas há muito para fazer. Daí a importância de podermos lidar com a oficina do escritor, percebendo que à mediocridade devemos saber contrapor o não deixar ao abandono o que recebemos e a aprendizagem exigente da informação que tem de se tornar conhecimento e do conhecimento que deve ser sabedoria…

 

TUDO O QUE TENHO NO SACO
Na célebre carta a Ramalho Ortigão de 20 de fevereiro de 1881, a propósito de uma hipótese confusa de publicação em folhetins de Os Maias no “Diário de Portugal”, de Lourenço Malheiro, Eça fica na esperança de poder obter uma boa retribuição monetária pelo romance – “e como via nessa proposta uma pequena fortuna (o Malheiro afiançava-mo) decidi logo fazer não só um romance, mas um romance em que pusesse tudo o que tenho no saco. A ocasião confesse era sublime para jogar uma enorme cartada”… O episódio é triste de desencontros e incompetências, atrasos tipográficos e outras incapacidades. Mas só em 1888 essa obra, considerada quase pronta sete anos antes, viu finalmente a luz do dia. O que importa dizer é que o romancista fez indiscutivelmente uma grande aposta – e é esse o resultado de que todos somos beneficiários, ao ler uma ampla representação da sociedade do momento. Em 12 de junho de 1888, em carta a Oliveira Martins, dirá: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena do jornal A Tarde; e sobretudo o sarau literário. Basta ler isso e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa”. Os Maias são um retrato do Portugal citadino do final do século XIX. Há um rico percurso que abrange desde um tempo de confronto entre a tradição e os ventos novos, representado pelo avô Afonso da Maia, que nos liga à sociedade antiga, até aos efeitos da acalmação e do progresso concretizado pela Regeneração. Dir-se-á, porém, que confluem a imitação das sociedades avançadas da Europa e a ausência de meios suficientes para assegurar que os melhoramentos de Fontes Pereira de Melo tornassem o país próspero e superasse o atraso. A sombra do défice e da dívida pública abatem-se sobre o país – e os ingredientes do romance trazem-nos, ao lado de uma trágica trama amorosa entre dois irmãos, que se desconhecem, o confronto entre o tédio vivido por Carlos da Maia e o pensamento de João da Ega, ditado pelas influências de um fim de século pessimista e contraditório. Há mudanças profundas que se reclamam, há intenções. Mas o pano de fundo revela futilidade, descrença, ilusão e mediocridade.

 

UM ROMANCE FIEL AO AMBIENTE VIVIDO
Indiscutivelmente, Os Maias é um romance fiel ao ambiente que se vivia quando foi publicado e escrito, o que faz crer a muitos que continuamos a persistir nessa sociedade retratada há tantos anos, numa obra longamente escrita e pensada… As diferenças na sociedade são profundas, mas há reminiscências que perduram. A escrita é cortante, clara, incisiva e tem de ser reconhecida na sua imensa riqueza. Os Maias assumem um lugar central no nosso panorama literário, pelo caráter, pela diversidade das personagens, pela força da escrita e pelo sentido crítico. Representam uma das marcas deixadas pela Geração de 1870 – graças a uma voz severa, mas não a um negativismo sem horizonte. Devemos lembrar o que Eduardo Lourenço disse em O Labirinto da Saudade: “Não é suscetível de discussão o amor (e o fervor) com que a Geração de 70 tentou desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e dececionante, um outro, sob ele soterrado, à espera de irromper à luz do sol”. E sobre a crítica de Fialho de Almeida, o próprio Eça dirá em sua defesa: “condenar um escritor, como caluniador e maldizente, porque ele revela os ridículos do seu país – é declarar maldizente toda a literatura de todos os tempos, que toda ela tem tido por fim fazer a crítica dos costumes, pelo drama, a poesia, o romance e até o sermão!” (a Mariano Pina, 27.7.88). Talvez A Ilustre Casa de Ramires seja mais problematizante, mas também mais enigmático. Estamos, assim, diante de uma panóplia inesquecível, que deve ser recordada por quem queira conhecer a literatura portuguesa. Lembremos Maria Eduarda, fantasma marcante no romance, os Gouvarinhos, Cohen, Dâmaso, Alencar, Palma Cavalão… A diversidade esconde, no entanto, uma uniformidade desgostante. E a imitação é a marca. Agora, podemos contar com a presença de peças originais que vieram especialmente de Tormes, onde costumam estar expostas (como a secretária do escritor e a célebre cabaia) e que, por certo, se tornarão motivo para que o roteiro queirosiano se torne mais conhecido. É de literatura como realidade viva e atual que cuidamos, eis a razão desta escolha – de uma obra-prima da língua portuguesa de sempre.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A MARCA AMARELA E O LUAR DE LONDRES

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 5 de dezembro de 2018

 

Passeio por Londres. A chuva miudinha não para. Mas entre as nuvens, aparece tímido o célebre luar londrino descrito por João de Lemos, e que não esqueço, recordando as noites serenas de inverno de outrora, entre poemas e declamações…

Passo em Limehouse e vêm-me à lembrança as leituras juvenis de E. P. Jacobs e da sua “Marca Amarela”.

Foi mesmo aí o cenário do misterioso enredo.

Os mistérios podiam ser desvendados nas salas do Centaur Club…

Como anglófilo incorrigível, dou-me a pensar nos efeitos desta dolorosa separação que se chama Brexit…

Alguma coisa se passará, antes deste divórcio que ninguém quer, mas que ninguém sabe como se ver livre dele.

Por agora, prefiro, porém, ficar-me a lembrar o poema célebre de João de Lemos.

Poderia invocar um texto pungente de William Blake.

Mas prefiro por estes dias citar um romântico em “Impressões e Recordações”.

Esperemos o que irão decidir os Comuns… E leio os conselhos avisados de Timothy Garton Ash.

Por que razão não chega uma centelha de bom senso?

 

«É noite; o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu:
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor,
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala d'amor às belas,
Não fala aos homens d'amor.

Meiga lua! os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d'além do mar?
Foi na terra tua amada,
Nessa terra tão banhada
Por teu límpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
Na pátria dos meus amores,
Pátria do meu coração?

Oh! que foi!... deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
Lá onde nasce o tomilho,
Onde há fontes de cristal;
Lá onde viceja a rosa,
Onde a leve mariposa
Se espaneja à luz do sol;
Lá onde Deus concedera
Que em noites de Primavera
Se escutasse o rouxinol.

Tu vens, ó lua, tu deixas
Talvez há pouco o país,
Onde do bosque as madeixas
Já têm um flóreo matiz;
Amaste do ar a doçura,
Do azul céu a formosura,
Das águas o suspirar;
Como hás-de agora entre gelos
Dardejar teus raios belos,
Fumo e névoa aqui amar?

Quem viu as margens do Lima,
Do Mondego os salgueirais,
Quem andou por Tejo acima,
Por cima dos seus cristais,
Quem foi ao meu pátrio Douro,
Sobre fina areia d'ouro,
Raios de prata esparzir,
Não pode amar outra terra
Nem sob o céu d'Inglaterra
Doces sorrisos sorrir.

Das cidades a princesa
Tens aqui; mas Deus, igual
Não quis dar-lhe essa lindeza
Do teu e meu Portugal;
Aqui, a indústria e as artes,
Além, de todas as partes,
A natureza sem véu;
Aqui, oiro e pedrarias,
Ruas mil, mil arcarias,
Além, a terra e o céu!

Vastas serras de tijolo,
Estátuas, praças sem fim
Retalham, cobrem o solo,
Mas não me encantam a mim;
Na minha pátria, uma aldeia,
Por noites de lua cheia,
É tão bela e tão feliz!...
Amo as casinhas da serra,
Co'a lua da minha terra,
Nas terras do meu país.

Eu e tu, casta deidade,
Padecemos igual dor,
Temos a mesma saudade,
Sentimos o mesmo amor:
Em Portugal, o teu rosto,
De riso e luz é composto,
Aqui, triste e sem clarão;
Eu lá, sinto-me contente,
Aqui, lembrança pungente
Faz-me negro o coração.

Eia, pois, ó astro amigo,
Voltemos aos puros céus,
Leva-me, ó lua, contigo
Preso num raio dos teus;
Voltemos ambos, voltemos,
Que nem eu, nem tu podemos
Aqui ser quais Deus nos fez;
Terás brilho, eu terei vida,
Eu já livre, e tu despida
Das nuvens do céu inglês».

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 19 a 25 de novembro de 2018.

 

Quando lemos “Istanbul – A Tale of Three Cities” de Bettany Hughes (Weidenfeld & Nicolson, 2017) compreendemos como a encruzilhada da História nos permite entender a incerteza e a mudança, a complexidade e as diferenças.

 

PATRIMÓNIO CULTURAL, REALIDADE VIVA
No Ano Europeu do Património Cultural, a atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, constitui um momento especial pela sua entrega a Bettany Hughes, de nacionalidade inglesa, historiadora, autora consagrada e responsável por programas de televisão e de rádio de extraordinária qualidade. Depois de Claudio Magris, Ohran Pamuk, Jordi Savall, Plantu, Eduardo Lourenço e Wim Wenders, o júri deliberou por unanimidade e em coerência com o espírito do Prémio, atribuir o galardão de 2018 a uma mulher que tem, ao longo da sua vida e obra, cultivado a memória histórica como fator de compreensão, de conhecimento e de salvaguarda da diversidade e do respeito mútuo. Entender a heterogeneidade das raízes e das culturas é perceber melhor quem somos, de onde vimos e como nos devemos relacionar com os outros. Helena Vaz da Silva é um exemplo bem presente quando falamos do património e da memória como realidades vivas. Foi notável a sua contribuição não só para o respeito do património cultural, mas também para a defesa dos ideais universalistas do humanismo e da cidadania ativa. O património cultural é uma realidade dinâmica e multifacetada – que abrange o que recebemos das gerações que nos antecederam, mas também a semente da contemporaneidade, de modo a criar valor através do incessante movimento da criatividade humana. Como afirma a Convenção de Faro do Conselho da Europa assinada em Portugal em 2005: “O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo”. É esse valor que desejamos proteger.

 

UM PRÉMIO PARA O FUTURO
Instituído pelo Centro Nacional de Cultura em 2013 em cooperação com a Europa Nostra, a principal organização europeia de defesa do património, que o CNC representa em Portugal, e o Clube Português de Imprensa, o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva distingue contribuições excecionais para a proteção e divulgação do património cultural e dos ideais europeus. Num tempo em que há nuvens negras no horizonte no tocante a uma perspetiva humanista de cooperação humana e social – numa ameaçadora articulação dos riscos das mudanças climáticas, da saúde, da segurança alimentar, de proteção do planeta e dos perigos inerentes à ciber-segurança – torna-se necessário encontrar respostas capazes de articular a coesão social, a sustentabilidade humana e as novas dimensões do conhecimento. Os quatro cavalos que constituem o símbolo da Fundação Calouste Gulbenkian representam os domínios centrais da ação numa sociedade que se deseja mais humana – falamos da arte, da educação, da ciência e da filantropia. Só pela ligação desses meios poderemos garantir que a informação se torna conhecimento e o conhecimento sabedoria, e que as tecnologias se possam tornar instrumentos úteis e emancipadores ao serviço da pessoa humana. Eis por que razão a valorização do Património Cultural pode constituir-se em fator de dignificação humana. Bettany Hughes é uma reconhecida historiadora que dedicou os últimos vinte cinco anos à comunicação do passado. Mas não se trata de uma visão retrospetiva centrada num tempo pretérito, mas sim de uma leitura dinâmica das raízes, da História, do tempo, das culturas, dos encontros e desencontros, numa palavra: da complexidade. A especialidade da História e da Cultura da Antiguidade e da Idade Média da nossa premiada permite-nos perceber melhor os acontecimentos como desafios permanentes para compreender o que permanece e o que muda, o que une e o que diferencia, o que articula e o que complementa.

 

UM PERCURSO NOTÁVEL
Bettany Hughes tem um percurso notável que abrange as Universidades de Oxford, Cambridge, Cornell, Bristol, Maastricht, Utrecht ou Manchester. Devemos ainda recordar a tutoria no Institute of Continuing Education de Cambridge e a investigação no King’s College de Londres bem como a participação no New College of the Humanities. Quando percorremos as suas obras sentimos a noção viva de memória, como em “Helena de Tróia” (2005), mas também em “The Hemlock Cup: Socrates, Athens and the Search for the Good Life (2010), finalista do Writers Guild Award. Permito-me referir os mais de 50 programas de rádio e televisão que produziu e realizou para entidades diferentes como o BBC, Channel 4, Discovery, ou National Geographic. Falamos de programas vistos por mais de 250 milhões de telespectadores em todo o mundo. E é a pedagogia do património cultural que permite compreendermos melhor a cultura, a paideia ou a humanitas, de que falava Cícero. Assim, a História e as Humanidades têm permitido a Bettany Hughes realizar uma verdadeira pedagogia de cidadania e de humanidade, sobretudo no que diz respeito à defesa dos direitos de todos, e em especial das mulheres e à salvaguarda das diferenças e do respeito mútuo. Bizâncio, Constantinopla, Istambul são três referências que nos levam ao estabelecimento de necessárias pontes entre o Oriente e o Ocidente, entre o Imperio Romano do Oriente e os Impérios Orientais. Se Istambul é mais do que uma cidade, mas uma história, indispensável se torna conhecer e compreender essa realidade com ao menos seis mil anos. Trata-se de uma mosaico fantástico de fenícios, genoveses, venezianos, judeus, vikings… E ao invocar este caleidoscópio mágico vem à memória o testemunho de Calouste Gulbenkian, que, em Lisboa, nos últimos anos de vida pedia para usufruir da paisagem da cidade sobre o rio Tejo, uma vez que considerava ser a paisagem que mais se assemelhava à de Istambul de sua infância. Também Ohran Pamuk disse que entre Lisboa e a antiga Constantinopla havia semelhanças extraordinárias. E quanto às raízes históricas, aqui estiveram os fenícios que criaram a cidade, aqui chegaram os celtas desde a Capadócia até à Finisterra peninsular, aqui passaram os vikings e os marinheiros do Mar Norte, resultando a caravela da confluência das experiências do Atlântico e do Mediterrâneo e a navegação pelos astros graças ao astrolábio dos saberes vindos da Ásia trazidos pelas culturas de judeus e árabes. Quantas cidades encontramos no património cultural comum que nos deve mobilizar? Quantas culturas? Quantas pessoas? Bettany Hughes tem-nos ensinado a conhecê-lo, a defendê-lo e a amá-lo!

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

De 12 a 18 de novembro de 2018.

 

Os seis ensaios que constituem a obra «As Artes do Sentido» de George Steiner (Relógio d’Água, 2017) põem-nos perante o tema do confronto e da ligação ente Humanidades e as Ciências, o que constitui questão crucial quando se fala da noção ampla de património cultural que comemoramos este ano de 2018.

 

 

MAIS DO QUE UM ACERVO DO PASSADO
O Ano Europeu do Património Cultural não celebra apenas um acervo europeu, uma identidade europeia ou um passado exclusivo. Falar de Património Cultural é falar de uma noção comum, universal, capaz de unir a humanidade e de criar condições para uma verdadeira cultura de paz, que a UNESCO tem proclamado. Estamos no centro do culto saudável das Humanidades. Este Ano Europeu situa-se na linha do que defende a Convenção de Faro, sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005). Não se está a tratar de uma identidade europeia, fechada sobre si mesma, sucedâneo de identidades nacionais. O undamental é a referência ao Património Cultural, como realidade dinâmica e humanista. Recorde-se o que diz a Convenção de Faro: «O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo» (artigo 2º, alínea a). E não esquecemos entre os objetivos deste instrumento do Conselho da Europa: “a preservação do património cultural e a sua utilização sustentável”, tendo por objetivo “o desenvolvimento humano e a qualidade de vida” (artigo 1º, alínea c), bem como a adoção das “medidas necessárias à aplicação do disposto na presente Convenção, no que se refere ao papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural” (alínea d). É a prioridade à Cultura que está em causa, compreendendo-se esta ligada à Educação e à Ciência. Falamos do mundo da vida, das raízes, das aspirações, das atitudes e dos valores – do que recebemos e do que legamos. Eis por que razão quando Palmira foi destruída parcialmente na guerra da Síria, quando o diretor do centro arqueológico foi assassinado, ou quando qualquer parcela da humanidade e da sua cultura são atingidos é do património cultural no seu todo que está em causa. Não são os produtos do passado que devem ser repetidos – importa, sim, que o passado constitua uma base para compreender melhor o presente e para lançar as bases do futuro. E não esquecemos a lição de John Dewey quando falava da educação e da escola como realidades que pressupunham um “processo vivo”, um enriquecimento permanente pela experiência, uma sociedade aberta à inovação e à diversidade, uma democracia cooperativa. Neste sentido o cuidado do património cultural tem de ter um lugar especial na educação e na escola, na informação e na troca de saberes.

 

IDENTIDADE E PATRIMÓNIO
Longe da tentação de ver o património cultural como uma marca exclusiva ou própria de uma comunidade só, temos de estar conscientes de que as identidades e o património cultural só se enriquecem abrindo-se à diferença e à alteridade. Só assim poderemos enriquecer o que é próprio, dando-lhe dimensão humanista e universalista, em lugar da tentação uniformizadora e indiferente ou de simplificações folclóricas e de uma cultura de bricabraque. Nesse sentido, neste Ano Europeu, propus logo de início, e foi aceite, o reconhecimento da necessidade de dar às escolas, às comunidades educativas e às famílias um papel especial – de modo a lançar sementes para o futuro e como exigência de não deixar o património cultural ao abandono, compreendendo-se simultaneamente que um monumento e uma tradição que estão próximos, têm de fazer lembrar as referências culturais e patrimoniais que estão mais distantes. Por isso, os concursos que lançámos nas escolas tiveram sempre presente a escolha de um elemento próximo e de um outro exemplo europeu – de modo a entender que há uma dimensão de abertura à diversidade que não pode estar ausente, e que torna mais valiosa e aberta a nossa identidade, como fator de troca, de respeito e de enriquecimento mútuo. O património cultural tem múltiplas componentes: monumentos, museus, edifícios históricos, arquivos, referências artísticas e arqueológicas – o património material -, tradições, costumes, línguas e dialetos, romanceiros, artesanato, música e danças, relações interculturais – o património imaterial -, mas ainda o património natural, o meio ambiente, as paisagens, o património digital, e a criação contemporânea… esta enumeração abre inúmeras pistas que nos obrigam a uma especial atenção relativamente à criatividade humana.

 

ENTENDER A COMPLEXIDADE
Como tem ensinado Edgar Morin, importa compreender que a complexidade tem de ser entendida como chave do saber. Impõe-se que a informação de que dispomos se transforme em conhecimento e que o conhecimento se torne sabedoria. E que é a evolução das sociedades humanas senão uma sucessão de metamorfoses como as ciências naturais nos ensinam? Não é possível entender a importância das Humanidades sem ligar as culturas literária e científica, as artes e a matemática (como no-lo ensinou Almada Negreiros) – Sophia de Mello Breyner alertou-nos, deste modo, para que ler uma pauta de música ou distinguir um alexandrino ou uma redondilha obrigava a cuidar da numeracia. E se nos preocupamos com a relação com a natureza, temos de considerar a Ecologia, os recursos naturais em risco, as emissões poluidoras, o aquecimento global, do mesmo modo que os códigos genéticos, a ética suscitada pelo progresso científico e tecnológico como exigentes desafios para a Humanidade. E, se se fala da 4ª revolução industrial, temos de lembrar não apenas a microinformática ou as tecnologias de informação, mas também as novas fontes de energia e os progressos no domínio da saúde, como a imunologia e a evolução celular… O património cultural envolve, assim, um mundo fascinante, mas incerto e complexo. A cultura não é um luxo nem uma realidade supérflua, não é o último capítulo de um programa político, nem a cereja no cimo de um bolo – é uma prioridade absoluta e um tema transversal, que envolve a aprendizagem como fator decisivo do desenvolvimento humano, que reclama o espírito científico. A razão e os sentimentos estão intimamente associados, como nos ensina António Damásio, numa tradição antiga que encontramos desde os pré-socráticos até Montaigne ou Leibniz e à modernidade. A arte e a ciência reclamam o espírito criador e a necessidade de compreender como são incindíveis a continuidade e a inovação. A crise financeira que ainda sofremos desvalorizou a capacidade criadora e limitou-se à ilusão das economias de casino. A valorização do património cultural abre veredas atentas á dignidade humana. É a democracia que está em causa. Precisamos de instituições mediadoras nas quais os cidadãos estejam e se sintam representados, e em que participem. O património cultural liga-nos às gerações que nos antecederam e tornam-nos responsáveis pelo valor que formos capazes de criar, melhorando o que legarmos a quem nos vai suceder…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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JÁ CEM ANOS…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Especial. 11 de novembro de 2018

 

A imagem do vagão no Bosque de Compiègne em que o Marechal Foch encara o General alemão Maxime Weygand, representante alemão, fica na retina. A memória dos povos é curta, mas faz-se de grandes acontecimentos e de grandes tragédias. A primeira guerra mundial, que terminou com a assinatura do armistício, há exatamente cem anos, foi um desses acontecimentos marcantes, ainda que a esperança que então existiu depressa se tenha desvanecido pelo graves erros cometidos na Conferência de Versalhes, de que resultou a humilhação dos vencidos, em especial do Império Alemão, com as consequências conhecidas. Vinte anos depois a guerra regressaria mais mortífera que nunca. Os vinte milhões de mortos registados entre 1914 e 1918 não serviram de lição. Até 1945 tivemos, na continuação, uma tremenda Guerra dos Trinta Anos. E a segunda guerra registaria mais de sessenta milhões de mortos. A História da Europa e do mundo contemporânea foi marcada por esses acontecimentos, que agora se recordam. Porém, não basta a invocação formal. A União Europeia vive momentos de perplexidade e incerteza. Quando o Presidente Macron e a Senhora May aparecem a homenagear os soldados mortos há a estranha sensação de estarmos num filme de ficção, com o Brexit em fundo a marcar uma fragmentação perigosa. Depois, há outros elementos perturbadores. O Presidente Trump é a instabilidade em pessoa, a Itália demonstra uma evidente falta de coesão, a Hungria e a Polónia agem como crianças irrequietas numa loja de porcelanas, A Rússia convence-se mal de que não é mais do que uma potência regional, capaz de perturbar o cenário mundial, mas pouco mais… A China está num compasso de espera, ciente de que se tem de preparar para uma influência global. Os fatores somam-se terrivelmente. E a Senhora Merkel? Dir-se-ia que a Europa precisa mais do que nunca da ligação efetiva entre o Eixo Franco-Alemão e a Entente Cordiale! O Reino Unido é indispensável à Europa. E se é preciso fazer um acordo para o Brexit criem-se condições para que a defesa e a segurança sejam garantidos e que o tema das fronteiras não semeie um conflito imprevisível. Nesta celebração do Armistício de 1918 lembremo-nos de tudo isto. Não basta celebrar. É preciso tirar lições!

 

As papoilas de papel ou os pequenos capacetes militares da minha infância estão bem presentes para a minha geração. Mas a memória esvai-se e o horizonte do desastre pode reaparecer… Leia-se o poema do médico canadiano que tornou a papoila símbolo da memória da guerra. John Mc Crae (1872-1918) escreveu que as papoilas cresciam nos campos da Flandres entre as cruzes dos mortos:

 

In Flanders' fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place: and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.

We are the dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie
In Flanders' fields.

Take up our quarrel with the foe;
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high,
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow  
In Flanders' Fields.

 

Agostinho de Morais

 

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