Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANO VELHO. ANO NOVO


Os historiadores e fenomenólogos da religião fazem notar que, mesmo nas sociedades secularizadas, encontramos ainda algo dos mitos cosmogónicos, nomeadamente nos festejos da passagem de ano: folguedos e licenças, uma certa tonalidade orgiástica, alguma "confusão" social, na noite de passagem de ano, simbolizam o regresso ao estado indiferenciado e caótico de antes da formação do mundo pelos deuses. Volta-se, portanto, de algum modo, ao caos das origens, para que o mundo se regenere e se reponha o cosmos, um mundo outra vez novo, ordenado, belo: a caos contrapõe-se precisamente cosmos, que quer dizer belo (é do grego kosmós que vem cosmética)...


Aparentemente, é a repetição. Mas, de facto, é mesmo no novo que nos encontramos, dia 1 de Janeiro de 2023, (Janeiro, de Jano, o deus com dupla face: uma voltada para trás e outra para a frente). Embora enraizados no passado e sem esquecê-lo, de facto nunca houve nem nunca haverá um ano como este em que acabámos de entrar. É novo e único na história da humanidade e do mundo.


Depois dos alegres e ledos festejos, também haverá alguns pensamentos de meditação.


É tão certo tratar-se de um ano novo que para nós constitui uma incógnita. O que acontecerá?, como será? Até certo ponto, o ano que começa é programável, mas nunca de modo adequado, pois há o completamente imprevisível: não somos senhores absolutos do tempo, do futuro. Há o que podemos e devemos programar, dito na palavra futuro e há o que chega sem nós, que não podemos programar, dito na língua alemã na distinção entre Futur e Zukunft. Mas é preciso estar preparado, preparar-se, para o que chega sem nós, o inesperado. Por isso, um dos conselhos mais veementes no início do novo ano é cada um, cada uma, prometer a si próprio, a si própria, que dedicará diariamente alguns instantes ao silêncio, para estar consigo, meditando, reflectindo, sobre a sua vida, a orientação a dar-lhe... Quantos desastres pessoais, familiares, políticos, se evitariam, se houvesse este propósito, prometido e cumprido, ao longo dos dias de um novo ano... Desastres e tragédias.


Nestes dias festivos, lembramos mais os amigos, os familiares, aqueles e aquelas que levamos no coração. Ao menos por esta altura, há uma saudação, uma palavra, um encontro. Mas talvez nenhum de nós, nesta lembrança, tenha deixado de deparar-se com um buraco negro: um amigo, um familiar, uma amiga, que ainda no ano passado cá estavam e já cá não estão. E é uma falta e uma tristeza e um queixume e uma pergunta e talvez uma oração (afinal, rezar é perguntar...). A falta que nos fazem! Ficámos com saudades. A palavra saudade é uma palavra tipicamente portuguesa, que não encontra tradução adequada noutras línguas, e até a sua etimologia é discutida, mas, se vier de salutem dare (saudar), significa que, esteja onde estiver o nosso amigo, a nossa amiga, manifestamos o desejo de que passem bem, se vier de solitate (solidão), então exprime o nosso sentimento de solidão, porque não estão presentes e fazem falta. E uma advertência: por vezes, fica um remorso, porque não fizemos a tempo o que devíamos ter feito com eles e por eles; então um aviso: é preciso fazer a tempo e com tempo o que há para fazer; depois, é tarde, o nunca mais...


O dia primeiro do ano é também o Dia Mundial da Paz, iniciativa que se deve ao Papa Paulo VI. A paz, esse bem inestimável! A paz que não é apenas ausência da guerra, mas tranquilidade na ordem, que resulta da verdade, da justiça, do perdão, da fraternidade, da reconciliação. Reconciliação que tem de contar com cada um: precisamos todos e cada um de estar em paz connosco.


Considerando a loucura de num século já irmos na Terceira Guerra Mundial - a primeira: 1914-1918; a segunda: 1939-1945; a terceira está em curso, com toda a sua crueldade, horrores sem fim..., à vista de todos -, Francisco não se cansa de fazer apelo ao diálogo, ao desarmamento, à paz. No passado dia 8 de Dezembro, na tradicional oração da celebração da Imaculada Conceição, em frente da Coluna de Nossa Senhora, na Piazza di Spagna, em Roma, comoveu-se, e ficou com a voz embargada e algumas lágrimas correram, ao lembrar a martirizada Ucrânia.


Rezou: "Nossa Mãe Imaculada, trago-te o amor filial de homens e mulheres sem conta; trago-te os sorrisos das crianças, que aprendem o teu nome diante da tua imagem, nos braços das mães e avós; trago-te a gratidão dos idosos; trago-te as preocupações das famílias; trago-te os sonhos e as ansiedades dos jovens, abertos ao futuro mas refreados por uma cultura rica em coisas e pobre em valores, saturada de informação e deficiente na educação. Recomendo-te de modo especial os mais pequenos, que foram mais afectados pela pandemia, para que pouco a pouco recuperem para abrir as asas e voar, recuperem o gosto de voar alto. Virgem Imaculada, quereria tanto hoje trazer-te o agradecimento do povo ucraniano pela paz que há muito pedimos ao Senhor; pelo contrário, ainda tenho de apresentar-te a súplica das crianças, dos anciãos, dos pais e das mães, dos jovens dessa terra martirizada. Mas na realidade todos nós sabemos que estás com eles e com todos os que sofrem, como estiveste ao lado da cruz do teu Filho. Obrigados, Mãe nossa. Olhando para ti, podemos continuar a acreditar e a esperar que o amor ganhará ao ódio, a verdade ganhará à mentira, o perdão ganhará à ofensa, a paz ganhará à guerra. Assim seja!" Bom ano de 2023!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de janeiro de 2023

CRÓNICA DA CULTURA

2022

 

As coisas da condição humana continuam a ser coisas simples, verdades antigas como a necessidade de entender o mundo, a procura da origem, a raiz dos fenómenos e dos sentires.


Poder falar destas realidades, é domínio de quem com extrema sabedoria, consegue a simplicidade de as dizer.


Descuidam – ou não?-  as gentes, no atribuir-se si mesmas utilidades com tamanha facilidade e jeito tão atreito ao seu milímetro, que explicam com aptidão o sucesso dos maus canais televisivos, bem como os seus viveres reveladores de que sem o tal vil metal, se descarnavam espalmadas as consequências das suas próprias descobertas.


Afinal, quando será que num novo ano, nos congratularemos com a coragem da pergunta sincera que as gentes farão ao seu pensamento, não recuando nas consequências do ato?


Afinal referimo-nos a uma prática de honestidade intelectual que descobre o átomo da mente não serventuário, nem dócil ao embuste em que se vive.


Afinal a condição humana continua a não ser apenas o discurso de lugares-comuns que tudo mostram para que pouco se veja.


Afinal o que está em jogo é a felicidade do homem numa historicidade que os tem dominado belicosamente numa relação de poder e não de sentido como afirmava Michel Foucault.


Cremos que a orientação no mundo, é uma necessidade humana que deve ser bem mais desenvolvida do que aquela que se investe nos ginásios para orientação física.


Vive-se um tempo de universo concentracionário e exposto sem pudor. Nem parece o quanto dele é ainda tabu, viagem, liberdade, coisas de substância da condição humana.


Sugere Drummond

(…)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


(extrato do poema “Receita de Ano Novo”)

 

Teresa Bracinha Vieira

ANO NOVO: 2022


Os fenomenólogos da religião fazem notar que, mesmo nas sociedades secularizadas, encontramos ainda algo dos mitos cosmogónicos, nomeadamente nos festejos da passagem de ano: folguedos e licenças, uma certa tonalidade orgiástica, alguma "confusão" social na noite de passagem de ano simbolizam o regresso ao estado indiferenciado e caótico de antes da formação do mundo pelos deuses. Volta-se, portanto, de algum modo ao caos das origens, para que o mundo se regenere e se reponha o cosmos: um mundo outra vez novo, ordenado, belo.


Aparentemente, é a repetição. Mas, de facto, é mesmo no novo que nos encontramos: 2022. Nunca houve nem nunca haverá um ano como este em que acabamos de entrar. É novo e único na História da Humanidade e do mundo.


Depois dos eufóricos festejos — este ano, por causa  da pandemia, quase nada —, também haverá alguns pensamentos de meditação.


É tão certo tratar-se de um ano novo que para nós constitui uma incógnita. O que acontecerá?, como será? Até certo ponto, o ano que começa  é programável, mas nunca de modo adequado, pois há o completamente imprevisível: não somos senhores absolutos do tempo, do futuro. Significativamente, em algumas línguas, existem duas palavras para dizer o futuro; no alemão , por exemplo: Futur e Zukunft. Nós, embora não tão acentuadamente, também temos futuro e advento. Para dizermos o futuro até certo ponto programável, pois é continuidade do presente, e futuro enquanto não programável, pois é o que chega, o que vem, não programável. Significativamente, o último livro da Bíblia, o Apocalipse, diz o que é Deus nesta referência ao tempo: “Deus  é Aquele que era, que é e que há-de vir”, quando esperávamos que dissesse: “e que será”. Sendo Deus Aquele que vem, a História está aberta à esperança que não engana.


Nestes dias festivos, lembramos mais os amigos, os familiares, aqueles e aquelas que levamos no coração. Ao menos por esta altura, há uma saudação, uma palavra, um encontro. Mas talvez nenhum de nós, nesta lembrança, tenha deixado de deparar-se com um buraco negro: um amigo, um familiar, uma amiga, que ainda o ano passado cá estavam e já cá não estão. E é uma falta e uma tristeza e um queixume e uma pergunta e talvez uma oração (afinal, rezar também é perguntar...).


Depois, há a História e votos para o novo ano. Foi no dia 1 de Janeiro de 2002 — há vinte anos — que o euro, a nova moeda dos europeus, começou a circular de modo palpável. Desde então, é possível circular de Lisboa a Atenas, a Helsínquia ou a Berlim sempre com a mesma moeda. Quantos acreditariam ainda há poucos anos que isto havia de ser possível? Afinal, há sonhos e utopias que se tornam realidades. No ano anterior, a 15 de Dezembro, houve a Declaração Comum dos Chefes de Estado e de Governo da União Europeia, aprovada na Cimeira de Laeken: "Num mundo globalizado, mas simultaneamente muito fragmentado, a Europa deve assumir as suas responsabilidades na gestão da globalização. O papel que deve desempenhar é o de uma potência que luta decididamente contra todas as formas de violência, terror ou fanatismo, mas que também não fecha os olhos às injustiças gritantes que existem no mundo". Mas hoje sente-se algum mal-estar e até se fala em ameaças de guerra…


O dia primeiro do ano é também o Dia da Paz. A guerra só traz destruição. Foi a 8 de Dezembro de 1967 que o Papa Paulo VI propôs a criação do Dia Mundial da Paz, que se celebraria no dia 1 de Janeiro de cada ano. Como é hábito, este ano o Papa Francisco também escreveu uma mensagem para este dia. Fica aí um apontamento.


Começa com uma constatação: “O caminho da paz permanence, infelizmente, arredio da vida real de tantos homens e mulheres e consequentemente da família humana, que nos aparece agora totalmente interligada. Apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos, ao mesmo tempo que ganham espaço doenças de proporções pandémicas, pioram os efeitos das alterações pandémicas e da degradação ambiental, agrava-se o drama da fome e da sede e continua a predominar um modelo económico mais baseado no individulaismo do que na partilha solidária. Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra para implorar justiça e paz.”


Para a construção de uma paz duradoura, propõe três caminhos. 1. O primeiro é o diálogo entre as gerações como ponte entre o passado e o futuro: ele é a base, forma eminente de amor para a realização de projectos compartilhados e sustentáveis. 2. A instrução e a educação são “os alicerces de uma sociedade coesa, civil, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso”. Impõe-se um novo paradigma cultural, através de “um pacto educativo global para e com as gerações jovens, que empenhe as família, as comunidades, as escolas e universidades, as instituiçoes, as religiões, os governantes, a Humanidade inteira na formação de pessoas maduras.” 3. O trabalho é indispensával para “construir e preserver a paz”: ele constitui “expressão da pessoa e dos seus dotes, mas também compromisso, esforço, colaboração com outros, porque se trabalha sempre com ou para alguém.” O trabalho “é uma necessidade, faz parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento humano e realização pessoal”. Neste domínio, “é chamada a desempenhar um papel activo a política, promovendo um justo equilíbrio entre a liberdade económica e a justiça social.” Bom ano 2022!  

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 de janeiro de 2022

CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE

ponte nevoeiro.jpg

 

   Minha Princesa de sempre :

   Não recordo, não registei, nem sequer medi o tempo decorrido desde a última carta que te escrevi. Talvez por me sentir mais desvinculado da duração de tudo, finalmente mais preso à memória das coisas e das vidas como essencial substância da minha consciência do presente... como se este mais não fosse do que passado imperfeito! Sou hoje o que fui mais o que não cheguei a ser. Quero assim dizer que prevaleço nesse sentimento de mim em que, mais do que eu e a minha circunstância, me surpreendo como eu e a minha imperfeição. Já me não conjugo no futuro, não consigo completar-me. Tampouco me habita qualquer sentimento de perda, muito menos desejo ou vontade de ser agora o que não fui no devido tempo. Nem sequer rumino vadios pensamentos de culpa minha ou alheia. Não vou gritar, como a Traviata, "É tarde!" Tudo na nossa vida tem o seu tempo oportuno.

   Não é por deitarmos abaixo antigos ídolos ou antiquados símbolos que nos convertemos. Aquilo que for o ser novo e limpo, ou estará já dentro de nós, ou será mais um episódio da nossa imperfeição. Nesta nossa vida presente, queiramos ou não, há um tempo e um espaço que necessariamente nos condicionam quando agimos. O nosso estado de liberdade pertencerá sempre, por enquanto, a essa mística interior, alheia a qualquer espaço ou tempo que possa limitar-nos, algo tão misterioso que apenas podemos imaginar como o antiquíssimo futuro de nós... 

   Sempre te disse e escrevi, minha Princesa agora perdida entre estrelas de um universo em contínua expansão  -  que talvez seja a extensão do Deus desconhecido que procuramos  - , quanto me deixa perplexo, mesmo para além de qualquer angústia, pensarsentir a contradição desta nossa condição humana, hesitação constante (interminável?) entre o finito e o infinito, talvez interrogação sem resposta certa na finitude da nossa temporalidade, mas fé e esperança que o amor dos outros (e de nós) desenha na intemporalidade do infinito que, afinal, dia após dia, incansavelmente vamos desejando e desenhando. 

   Talvez cheguemos a esta idade do fim do nosso tempo apenas para confrontarmos a nossa pequenez com a infinita grandeza de Deus. Momento difícil este, em que finalmente realizamos que Deus não tem tamanho nem tempo, e que o "mundo" que nos espera estará certamente fora de nós e do nosso muito imaginar. 

   No início calendarizado de mais um Ano Novo, e quando completo o octogésimo da minha vida presente, contemplo o meu rio envolto em nevoeiro e procuro a ponte que me levará para fora do tempo e do espaço...

 

Camilo Martins de Oliveira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Fernando Pessoa

 

91. FICÇÕES DO TEMPO

 

Santo Agostinho, em Confissões, reconhece três tempos: “Um presente das coisas passadas, um presente das coisas presentes, e um presente das coisas futuras. O presente das coisas passadas é a memória; o presente das coisas presentes é a vida, e o presente das coisas futuras é a espera”.

A realidade existe apenas no presente, que é o tempo permanente em movimento.

 

Como também opina Fernando Pessoa, em Ano Novo:

“Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento”

 

Ou se deduz do fado Vida Vivida, cantado por Argentina Santos:

“Meu Deus, como o tempo passa
Dizemos de quando em quando
Afinal o tempo fica
A gente é que vai passando”

 

Daí que passado e futuro sejam referências a um tempo inacessível que já foi ou que potencialmente virá a ser, mas que não é, sendo o presente real, mas efémero e fugidio, pois o tempo é criado por nós, em pensamento e na nossa mente, como o ano velho e o novo que se augura que venha.

 

31.12.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

CRÓNICA DA CULTURA

Crónica da Cultura - Celebração.jpg

 

CELEBRAÇÃO

 

Minha filha vamos, vamos, a levantar, aproxima-se o dia, o teu dia, e afinal o de todos nós! A cidade e o povo reivindicam-te. A um sinal de assentimento teu, todos vamos a demanda do novo ano. Vai, vai no cortejo das tuas núpcias, canta as glórias das essências. As ruas irão encher-se de coroas e tochas e vinhos e perfumes. É um dia de vitória muito teu. Neste primeiro dia do ano, de pronto, vai soltar-se o teu coração, sem qualquer medo do que lhe está destinado. São assim as núpcias, estabelecem elas alianças com futuros frente a frente para que se vejam, e ainda assim tão longe, ou já amanhã, quem sabe?

Minha filha, concede!, antes que te faltem as forças e que deixe de ser evidente que quem te pretende, te ama, disposto a arruinar-se por ti, sabendo que a ruína é o tanto imenso amor que te tem e terá, e que o ano a viver é o início de uma ideia.

Prodígio! Cantamos todos! Prodígio extraordinário! Vem 2021! Vem ó ano dos futuros que o enlace original é da minha filha! Grande é a sua formusura, superior mesmo à dos segredos dos escultores e pintores e poetas e arquitetos e músicos. Centras tu, filha minha, meu amor, a força feminina da história catalisadora dos movimentos e das ações. O teu herói será a separação e o reencontro, e tu o enfrentarás como aos perigos dos caprichos da Sorte.

Minha filha luta, assume o desafio a exigir núpcias. E eis que te vais surpreender em cálculos e desfechos e em perceções contraditórias, mas o sonho e o que nele viste, vai existir também na realidade.

Filha vamos a levantar, aproxima-se o dia, o teu dia, e afinal o de todos nós! Nada temas! Se prisioneira, se prisioneiros, as crianças serão destino, sempre!

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

deus jano.jpg

 

69. A DUPLA FACE DE JANO

Segundo a lenda, Saturno teria dado a Jano o dom da dupla ciência, a do passado e a do futuro, representando-o os romanos com duas faces voltadas em sentido contrário.

Jano tornou-se o deus do início de todas as coisas, entre elas o início do ano, o 1.º de janeiro, “a porta que abre o ano”.

Responsável pela abertura das portas ao ano que se iniciava, era o guardião das portas, tendo presente que toda a porta olha para dois lados, com duas faces, uma contendo o ano velho que findou e outra o ano novo com os seus mistérios e segredos futuros.

Jano mostra-nos que tudo tem duas faces, que tudo tem em si princípio e fim, daí ser representado por duas faces contrapostas e opostas: uma envelhecida (passado) e outra jovem (futuro).

Há sempre o ano velho e o novo, no sentido de que tudo tem, pelo menos, duas faces, nada sendo imutável e permanente.

Mas nem tudo é a preto e branco, bom e mau, numa dualidade constante, com referência a uma pretensa analogia com as duas faces do ser humano.

Jano também simbolizava o deus das metamorfoses, das transformações, da mudança, da sabedoria, podendo ser representado com uma face masculina e feminina, ou outras dualidades, como guerra e paz, sol e lua.

Para Ovídio a face dupla de Jano exercia o seu poder sobre a terra e sobre os céus.

E de deus que presidia aos começos, do início de todas as coisas, como o início do ano (januarius significa janeiro), tornou-se no deus das quatro estações possuindo, então, quatro cabeças, em vez de duas.

Para os romanos, o primeiro mês do ano era dedicado a Jano, celebrando-se as januárias, no início de janeiro, em sua honra, por analogia com as atuais celebrações de ano novo, num renascer permanente ano a ano, querendo descartar o passado (ano velho) e viver o futuro (ano novo), numa afirmação e formulação anual de rituais, balanços, expetativas e desejos que no essencial se repetem e que marcam a natureza transitória da nossa passagem no mundo que conhecemos.

No final e início do ano há sempre promessas e juras de metamorfoses em que acreditamos ou teatralizamos acreditar.

Há o passado (ano velho) e o futuro (ano novo) que, para Santo Agostinho, são figuras de linguagem de um tempo que já foi ou que virá a ser, mas que não é, em que a realidade existe apenas no presente, que é o tempo em movimento.

Um melhor e mais auspicioso 2021.

 

01.01.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

ENTRE O ANO VELHO E O ANO NOVO

bing-ben-londres.jpg

 

A passagem de ano é sempre, mesmo nesta nossa presente circunstância triste e confinada, um tempo especial: balanço do ano que passou, perspectivação do ano novo que chega.

1. Agora, percebemos melhor que é preciso programar, mas há também o imprevisível. Quem poderia prever há um ano que iria cair sobre nós, nós todos, globalmente, esta catástrofe de uma pandemia: um vírus invisível, com sofrimentos indizíveis por todo o lado, que nos traz a todos em sobressalto permanente? Tivemos de aprender por experiência dura o que não conhecíamos: palavras como covid-19, confinamento, desconfinamento, reconfinamento, “distância social”, máscaras (sabíamos, mas era tudo em abstracto)... Sobretudo: que muitos, no fim do ano de 2020, já cá não estão, e foram-se sem uma despedida, como se tivessem desaparecido numa noite de breu, no meio de uma tempestade...

Ficámos a saber - será que ficámos? -, nós que nos julgávamos omnipotentes, que afinal somos frágeis, terrivelmente frágeis. E oxalá tenhamos aprendido que somos todos interdependentes, para o melhor e para o pior. E esta desgraça pandémica também nos mostrou à saciedade que o ser humano é de uma inaudita complexidade e de terríveis contradições: somos capazes de generosidade heróica para salvar pessoas, mas também está aí a nossa loucura e brutalidade: apesar da pandemia, que esperaria uma trégua no meio do horror, guerras brutais, terrorismos hediondos, assassinatos arrepiantes, violações repugnantes, exploração clamorosa dos mais fracos... continuaram. Já Sófocles constatou: “Coisas terríveis há, mas nenhuma mais terrível que o Homem.”

Daqui a alguns anos, quando se voltar ao “normal” - o que é isso? -, o que se dirá desta desgraça? O que ficará na memória? A memória humana é curta e talvez só quando vier outra pandemia - ela virá com certeza, sobretudo se não houver a necessária conversão quanto ao modelo de desenvolvimento, que atenda ao meio ambiente e à justiça para toda a Humanidade, no quadro de uma racionalidade dialógica global, como propugna J. Habermas - é que aqueles que cá estiverem recordarão... Quem se lembrava de que, no século XIV, a peste negra fez 100 milhões de mortos e que há cem anos a gripe espanhola ceifou uns 50 milhões de vidas, incluindo os dois pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta?

2. Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, temores, esperança. Que é que nos reserva 2021? Para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou?

Ele está aí novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança. Todos nós, individual e colectivamente, enfrentamos o novo ano essencialmente com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo, também com algum ou muito temor, mas essencialmente esperamos confiadamente, tanto mais quanto está aí a vacina. O ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida nos vai confrontando.

Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistimos de lutar e esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e pestes e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas para a justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”

Neste movimento incontível. ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansou de repetir o ateu Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX: “Onde há esperança, há religião”.

3. Um propósito bom para o novo ano: prometer a si mesmo, a si mesma, no meio do turbilhão da vida, do barulho e da agitação, alguns momentos diários de meditação, de silêncio, para o aparentemente inútil, que é o mais necessário: ouvir o Silêncio, ouvir a voz da consciência e da razão, falar com o Mistério, talvez mudar de rumo. Neste contexto, permita-se-me evocar Maradona, a quem chamaram “deus”, um dos mais famosos a desaparecer em 2020: um ano antes, confessou que “não era exemplo para ninguém”, que tinha cometido “muitos erros”, mas também tinha feito “coisas boas”, que “o regresso à Igreja fora inspirado pela vida e a fé da sua mãe” - “uma das coisas que aprendeu dela foi a fé simples”, “tinha orgulho nela e no seu pai também” -, que “queria paz para o tempo de vida que Deus ainda lhe concedesse.”

Bom ano!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 DEZ 2020