Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Vale! era a saudação latina: Saúde, passa bem, passai bem! Aliás, a própria palavra saudação tem também a ver com saúde e com salvação (salus, salutis). Saudar vem do latim: salutem dare (dar, desejar saúde). Ainda se diz nas aldeias: 'negar a salvação a alguém', com o sentido de recusar-se a cumprimentar uma pessoa. Saudade tem aqui igualmente o seu étimo. Veja-se, por exemplo, a expressão: mandar muitas saudades. A saudade é aquele sentimento de solidão que tem na sua base a falta da pessoa querida. Ter saudades e enviar saudades é aquele desejo de que quem partiu e anda longe, esteja onde estiver, passe bem... Por sua vez, saúde refere-se sempre àquela situação em que o ser humano na sua totalidade está bem. A saúde tem a ver com o todo holisticamente considerado, numa situação de integração e equilíbrio harmoniosos: saúde somática, saúde psíquica, saúde social, saúde ecológica, saúde espiritual, implicando, portanto, uma relação sã consigo, com os outros, com a natureza, com Deus...
Tudo isto por causa do dia 1 de Novembro. É possível que muitos portugueses pensem que esse dia é feriado nacional por causa dos mortos. Mas não é verdade: é feriado nacional por causa da celebração da Festa de Todos os Santos.
Aí está algo que praticamente ninguém que alguma vez tenha pensado nisso (mas quantos pensaram?) quereria ser: santo. Até porque os santos com os quais habitualmente contactamos julgamos que são aquelas figuras geralmente pouco belas, torcidas e até por vezes ridículas que vemos em muitos altares das igrejas e que são levadas a “passear” pelas ruas uma vez por ano nas procissões das romarias. Mesmo quando nos reportamos àqueles homens e àquelas mulheres reais de carne e osso, que aquelas figuras quereriam representar, vemo-los a maior parte das vezes como beatos, tristes, a bichanar orações, desagradados com a vida, deprimidos, ascetas a quem não é permitido apreciar as coisas boas e belas da existência...
No entanto, se pensássemos bem, é mesmo isso que queremos ser: santos. Porque santo, também etimologicamente, tem a ver com saúde. E o que é que nós fazemos sem saúde? Santo e são têm a mesma raiz. E isso tanto nas línguas latinas como nas anglo-saxónicas — dizemos: aquele homem está são e também dizemos São João; em inglês: holy (santo), health (saúde), em conexão com the whole (o todo harmónico já apontado)... Há sempre essa conexão entre saúde, santidade, salvação e totalidade harmónica. Só estamos sãos, se tudo em nós estiver bem: uma dor da alma ou uma simples unha encravada colocam-nos em desequilíbrio. Ser santo significa, repito, harmonia toda: estar de bem consigo, com os outros, com o mundo, com a natureza, com o divino... Assim, por exemplo, quem despreza o mundo não é santo. O desequilíbrio é o contrário da santidade, que consiste precisamente na plenitude harmónica e expansiva.
De qualquer modo, nos dias 1 e 2 de Novembro, o que, de facto, lembramos mais são os mortos. Nas nossas sociedades, urbanas, científicas e técnicas, onde o que mais se valoriza é o aparecer, o parecer, o dinheiro, a eficácia, a juventude, o light, o ter, o poder, o êxito, e onde, por isso mesmo, a morte é tabu e sobre a morte se mente às crianças e mentimos a nós mesmos e uns aos outros, permite-se até certo ponto que os mortos, os defuntos, surjam dois dias por ano no convívio dos vivos. Os cemitérios enchem-se, embora cada vez menos. Aí, há uma lembrança, uma recordação. Talvez se erga, sem palavras, uma prece. E surge uma inquietação: o que é o Homem? O padre António Vieira respondeu: “pó levantado”. Com isso, ele queria apelar à humildade, aquela humildade que não anula a dignidade. Pelo contrário: o ser humano humilde é o ser humano (homem ou mulher) bom, digno e verdadeiro. E precisamente a bondade, a dignidade e a verdade no combate pela justiça, a fraternidade e a paz, pertencem ao núcleo do que se chama santo, também em ligação constituinte com a esperança: no meio das dúvidas, perplexidades, injustiças e horrores, a esperança da plenitude da vida eterna em Deus...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 1 de Novembro de 2025
O que é a religião? O que deve entender-se por pessoa religiosa? Onde se fundamenta a religião? Qual é o dinamismo que está na base das religiões? Porque há religião/religiões?
Toda a religião tem a ver com a ética e também com a estética. Hegel viu bem, quando afirmou que a arte, a religião e a filosofia estão referidas ao Absoluto. A pergunta é, como escreveu o filósofo J. Gómez Caffarena, se a ética, a estética e a filosofia acabarão por absorver a religião, como já insinuava Goethe: “quem tem arte (e moral e filosofia) tem religião; quem a não tem que tenha religião”.
Segundo Lucrécio, “o medo criou os deuses”. Desde então, isso tem sido repetido, acrescentando a ignorância e a impotência, de tal modo que, com o avanço da ciência e da técnica, a religião acabaria por ser superada e desaparecer. Será, porém, verdade que na génese da religião estão o medo, a ignorância e a impotência? Ninguém poderá negá-lo. A questão é saber se esses são os únicos e decisivos factores e de que modo actuam. De facto, não é a limitação enquanto tal que está na base da religião, mas a consciência da limitação. Na consciência da finitude, que tem a sua máxima expressão na consciência da mortalidade, o Homem transcende o limite e articula um mundo simbólico de esperança de sentido último e salvação. Como disse Hegel, a verdade do finito encontra-se no Infinito, e Kant viu bem, ao referir a religião à esperança de um sentido final. Segundo ele, o interesse da filosofia pode reduzir-se às seguintes perguntas: “O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? O que é o Homem? À primeira pergunta responde a metafísica, à segunda a moral, à terceira a religião e à quarta a antropologia”. Assim, é possível que a ciência e a técnica obscureçam a força do apelo religioso. Mas, permanecendo a finitude e a sua consciência, há-de erguer-se sempre a pergunta pelo Fundamento e Sentido últimos.
Como disse E. Ciorán, “tudo se pode sufocar no Homem, salvo a necessidade do Absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos e mesmo ao desaparecimento da religião”. Na mesma linha, afirmou L. Rougier: “A Igreja pode declinar. O sentimento religioso grávido de um impulso para o ideal, de uma sede do Absoluto, de uma necessidade de superar-se, que os teólogos chamam Transcendência, subsistirá.” O que, do ponto de vista biológico, une a Humanidade é a interfecundidade. Do ponto de vista espiritual, o que a une é a pergunta radical pela totalidade e o seu sentido, o Sentido último.
O Homem é o animal que pergunta pelo seu ser e pelo ser. A razão humana não cria a partir do nada. Na base do ser humano, há uma “passividade originária”, como repetia o meu saudoso mestre e amigo Miguel Baptista Pereira: quando damos por nós, já lá estamos, ninguém foi consultado nem decidiu vir a este mundo e ser quem é; depois, um dia, a morte chega e leva-nos. A razão humana constrói, portanto, a partir do dado e, feito todo o seu percurso, sabe que acende a sua luz na noite do Mistério. Se pergunta, é porque ela própria é perguntada pela realidade, que é ambígua. Precisamente na sua ambiguidade, provocando, por isso, espanto positivo e negativo, a realidade e a existência convocam para a pergunta radical: o que é o Ser?, o que é o Homem? Quando, no processo evolutivo, se deu a passagem do animal ao homem, apareceu no mundo uma forma de vida inquieta que leva consigo constitutivamente a pergunta pelo Sentido de todos os sentidos, portanto, a pergunta pelo Sentido último. A dinâmica religiosa deriva da experiência de contingência radical e da esperança num sentido final. A mesma experiência tem um duplo pólo: a radical problematicidade do mundo e da existência e a referência em esperança a uma resposta de Sentido último, plenitude, felicidade, orientação, identidade, salvação. Este domínio da busca de sentido aparece de modo tão central na vida humana que a História da Humanidade não se compreende sem a história da consciência religiosa, não sendo de esperar o fim da religião e das religiões. Neste contexto, não é ousado afirmar que todo o ser humano é religioso, na medida em que é confrontado com a pergunta pela Ultimidade. Só poderíamos falar de irreligiosidade, no caso de alguém se contentar com a imediatidade empírica, recusando todo e qualquer movimento de transcendimento, o que não é possível, pois isso é contraditório.
É inevitável a pergunta: Sem Deus, que sentido teria a vida?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 25 de Outubro de 2025
Com a assinatura da primeira fase do acordo de paz entre Israel e o Hamas, que deverá levar à libertação de todos os reféns em Gaza (incluindo os cadáveres dos mortos) e de cerca de dois mil presos palestinianos em Israel, qualquer ser humano verdadeiramente humano sonha com o fim do horror e com uma viragem para o Médio Oriente no sentido da liberdade, da justiça e da paz.
O Papa Leão XIV saudou este “raio de esperança na Terra Santa”, animando “as partes envolvidas a que sigam com coragem o caminho traçado para uma paz justa, duradoura e respeitadora das legítimas aspirações do povo israelita e do povo palestiniano”. Sim, “dois anos de conflito deixaram por todo o lado morte, sobretudo nos corações de quem perdeu filhos, pais”, assegurando o Papa estar, “com toda a Igreja”, próximo da “vossa imensa dor”.
Significativamente, a primeira viagem apostólica do Papa Leão realizar-se-á de 27 de Novembro a 2 de Dezembro próximo, indo à Turquia entre 27 e 30 de Novembro para a comemoração dos 1700 anos do Concílio ecuménico de Niceia, o primeiro da história do cristianismo, convocado no ano de 325 pelo imperador Constantino, e, depois, deslocar-se-á ao Líbano “pela possibilidade de anunciar de novo uma mensagem de paz no Médio Oriente” e a promoção do diálogo inter-religioso, sublinhou.
Entretanto, Leão XIV, depois das queixas da Embaixada de Israel no Vaticano criticando uma entrevista do Secretário de Estado, Pietro Parolin, nomeadamente pela “aplicação do termo ‘massacre’ tanto ao ataque genocida do Hamas do 7 de Outubro como ao legítimo direito de Israel à legítima defesa”, defendeu Pietro Parolin: “o cardeal exprimiu muito bem a opinião da Santa Sé. Há dois anos, com esse acto terrorista, morreram mais de 1.200 pessoas”, acrescentando que “se fala de 67.000 palestinianos que também foram assassinados”, e sublinhou que a defesa deve ser proporcional. “Foram dois anos muito dolorosos. É preciso pensar em quanto ódio há no mundo.” Ora, o terrorismo e o ódio “não podem ser aceites” e lamentou os actos de “antissemitismo” no mundo: “a existência — não sei se em aumento ou não — destes actos de antissemitismo é preocupante”.
Ficam aí algumas declarações fundamentais da referida entrevista do Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, concedida no passado dia 7 de Outubro, que pode ser lida na íntegra em Religión Digital:
“O ataque terrorista praticado pelo Hamas foi desumano e injustificável... Foi um massacre indigno e desumano. A violência brutal contra crianças, mulheres, jovens, anciãos não pode justificar-se de modo nenhum. Foi um massacre indigno e, repito, desumano. A Santa Sé exprimiu imediatamente a sua total e firme condenação, pedindo a imediata libertação dos reféns e exprimindo a sua proximidade das famílias afectadas durante o ataque terrorista. Rezámos e continuamos a fazê-lo, como continuamos a pedir o fim desta perversa espiral de ódio e violência que corre o risco de arrastar-nos para um abismo sem retorno.”
“Hoje a situação em Gaza é ainda mais grave e trágica do que há um ano, depois de uma guerra devastadora que custou dezenas de milhares de vidas. É preciso recuperar o senso comum, abandonar a lógica cega do ódio e da vingança, rejeitar a violência como solução. Os agredidos têm direito a defender-se, mas inclusivamente a legítima defesa deve respeitar o parâmetro da proporcionalidade. Desgraçadamente, a guerra que se seguiu teve consequências desastrosas e desumanas... É inaceitável e injustificável reduzir os seres humanos a meras ‘vítimas colaterais’.”
Os episódios de antissemitismo “são uma consequência triste e igualmente injustificada: vivemos de fake news, da simplificação da realidade. E isto leva a quem se alimenta dessas coisas a atribuir a responsabilidade do que acontece em Gaza aos judeus enquanto tais. Sabemos que não é assim: também são muitas as vozes de forte dissidência que se erguem a partir do mundo judaico contra a forma como o actual governo de Israel actuou e actua em Gaza e no resto da Palestina, onde — não o esqueçamos — o expansionismo amiúde violento dos colonos quer tornar impossível o nascimento de um Estado palestiniano. Vemos o testemunho público das famílias dos reféns. O antissemitismo é um cancro que é preciso combater e erradicar: fazem falta homens e mulheres de boa vontade, educadores que ajudem a compreender e sobretudo a distinguir... Não podemos esquecer o que aconteceu no coração da Europa com a Shoah, devemos comprometer-nos com todas as nossas forças para que este mal não volte a levantar a cabeça. Ao mesmo tempo devemos assegurar-nos de que os actos de desumanidade e as violações do direito humanitário nunca sejam justificados: nenhum judeu deve ser atacado ou discriminado por ser judeu, nenhum palestiniano por sê-lo deve ser atacado ou discriminado porque — como infelizmente se ouve — é um ‘terrorista em potência’. A perversa cadeia do ódio está destinada a gerar uma espiral que nada pode trazer de bom. Lamento ver que somos incapazes de aprender com a história, inclusive com a história recente, que continua a ser mestra de vida.”
A propósito de uma pergunta sobre o plano de Donald Trump: “Qualquer plano que implique o povo palestiniano nas decisões sobre o seu futuro e permita pôr fim a esta matança, libertando os reféns e parando a matança diária de centenas de pessoas deve ser bem-vindo e apoiado.”
“A Santa Sé, por vezes incompreendida, continua a pedir a paz, convidando ao diálogo, utilizando as palavras ‘negociação’ e ‘acordo’, e fá-lo a partir de um profundo realismo: a alternativa à diplomacia é a guerra perene, é o abismo do ódio e a autodestruição do mundo. Devemos gritar com força: paremos antes de que seja demasiado tarde. E devemos agir, fazer todo o possível para que não seja demasiado tarde. Todo o possível.”
“A Santa Sé reconheceu oficialmente o Estado da Palestina há dez anos, com o Acordo Global entre a Santa Sé e o Estado da Palestina. O Preâmbulo desse acordo internacional apoia plenamente uma solução justa, global e pacífica da questão palestiniana, em todos os seus aspectos, em conformidade com o direito internacional e todas as resoluções pertinentes das Nações Unidas, Ao mesmo tempo apoia um Estado da Palestina independente, soberano, democrático e viável, que inclua a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza. Identifica este Estado não em oposição a outros, mas capaz de viver ao lado dos seus vizinhos, em paz e segurança. Vemos com satisfação que vários países do mundo reconheceram o Estado da Palestina. Mas não podemos deixar de observar com preocupação que as declarações e decisões israelitas vão na direcção contrária, isto é, pretendem impedir para sempre o possível nascimento de um verdadeiro Estado palestiniano. Esta solução — o nascimento de um Estado palestiniano — depois do que aconteceu nos últimos anos parece-me ainda mais válida. É o caminho, o de dois povos em dois Estados, que a Santa Sé seguiu desde o princípio. Os destinos dos dois povos e dos dois Estados estão entrelaçados.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 18 de Outubro de 2025
Penso que é mesmo urgente parar para pensar. Concretamente neste nosso tempo de ameaça de apocalipse niilista, quando Deus morreu e a questão de Deus é ignorada mesmo enquanto questão constitutiva do ser ser humano enquanto tal. O que se segue à morte Deus e quando a própria pergunta por Ele está morta?
1. Volto muitas vezes a esse sublime e abissal texto, pavoroso, um dos grandes da grande literatura alemã, escrito por Jean Paul, pseudónimo de Johann Paul Friedrich Richter, em 1796: Rede des toten Christus vom Weltgebäude herab, dass kein Gott sei (Discurso do Cristo morto, a partir do cume do mundo, sobre a não existência de Deus).
Nele, o célebre escritor descreve um sonho. Pela meia-noite e em pleno cemitério, numa visão apavorante, o olhar estende-se até aos confins da noite cósmica esvaziada, os túmulos estão abertos, e, num universo que se abala, as sombras voláteis dos mortos estremecem, aguardando, aparentemente, a ressurreição.
É então que, a partir do alto, surge Cristo, uma figura eminentemente nobre e arrasada por uma dor sem nome. E, com um terrível pressentimento, "os mortos todos gritam-lhe: “Cristo, não há Deus?” Ele respondeu: "Não, não há Deus."
Então, a sombra de cada morto estremeceu, e umas a seguir às outras desconjuntaram-se. E Cristo continuou, anunciando o que aconteceu no instante da sua própria morte: "Atravessei os mundos, subi até aos sóis, voei com as galáxias através dos desertos do céu; e não há Deus. Desci até onde o ser estende as suas sombras, e olhei para o abismo, gritando: "Pai, onde estás?" Mas apenas ouvi a tormenta eterna, que ninguém governa." Quando, no espaço incomensurável, procurou o olhar divino, não o encontrou; apenas o cosmos infindo o fixou petrificado com uma órbita ocular vazia e sem fundo, "e a eternidade jazia sobre o caos e roía-o e ruminava-se".
O coração rebentou de dor, quando as crianças sepultadas no cemitério se lançaram para Cristo, perguntando: "Jesus, não temos Pai?" E ele, debulhado em lágrimas, respondeu: "Somos todos órfãos, eu e vós, não temos Pai." "Nada imóvel, petrificado e mudo! Necessidade fria e eterna! Acaso louco e absurdo! Como estamos todos tão sós na tumba ilimitada do universo! Eu estou apenas junto de mim. Ó Pai, ó Pai! Onde está o teu peito infinito, para descansar nele? Ah! Se cada eu é o seu próprio criador e pai, porque é que não há-de poder ser também o seu próprio exterminador?"
Para Jean Paul, a morte de Deus não era ainda um destino espiritual inevitável. Apenas a tentação de uma possibilidade ameaçadora. E ele queria estar prevenido: que, quando a tentação o visitasse, soubesse de antemão o abismo sem fim, pavoroso, a que a morte de Deus conduz. Quando acordou do pesadelo ateu, a sua alma "chorava de alegria, por poder de novo adorar a Deus — e a alegria e o choro e a fé nele era a oração".
2. Um século depois (1882), o louco de Friedrich Nietzsche proclamou, em A Gaia Ciência, a morte de Deus: "Quem o matou fomos todos nós, vós mesmos e eu! Os seus algozes somos nós todos! E como o fizemos? Como conseguimos engolir todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos nós, quando soltámos a corrente que ligava esta terra ao seu sol? Para onde se dirige ela agora? Para onde vamos nós? Para longe de todos os sóis? Não estaremos a precipitar-nos para todo o sempre? E a precipitar-nos para trás, para os lados, para a frente, para todos os lados? Será que ainda existe um em cima de um em baixo? Não andaremos errantes através de um nada infinito? Não estaremos a sentir o sopro do espaço vazio? Não estará agora a fazer mais frio? Não estará a ser noite para todo o sempre, e cada vez mais noite?”
Ao contrário do que habitualmente se afirma, não penso que Nietzsche — morreu há precisamente 125 anos: 25 de Agosto de 1900 — seja ateu. Ele constata o que se segue à morte de Deus. E quer que se pense...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 11 de Outubro de 2025
Penso que ninguém pensante duvida que nos encontramos num tempo convulso de crises e guerras — actualmente, mais de 50 conflitos armados em curso —, num tempo obscuro e decisivo, imprevisível, da História. A crise é dramática, para não dizer trágica, de contornos não bem definidos, global. Ela é, evidentemente, ecológica, tecnológica — pense-se na IA, com todas a suas vantagens, é claro, mas também com os seus imensos perigos —, financeira, económica, política, social, religiosa, moral, de valores. Sim, decisivamente, de valores. De valores vinculantes. A própria democracia está em crise.
Zygmunt Bauman, um dos maiores sociólogos e pensadores do nosso tempo, caracterizou a situação como “modernidade líquida”. Os laços, íntimos e sociais, são frágeis. Há o receio de compromissos a longo termo. Tudo deve ficar em aberto, para não fechar possibilidades.
Baumann dava o exemplo do amor e da sua vivência contraditória, dolorosa. Por um lado, num mundo incerto e instável, “tem-se mais necessidade do que nunca de um parceiro leal e dedicado, mas, por outro, fica-se aterrado com a ideia de compromisso (para já não falar de compromisso incondicional) com este tipo de lealdade e dedicação.” Há o receio de perder a liberdade e oportunidades. “E se o parceiro/a fosse o/a primeiro/a a decidir que está farto/a, de modo que a minha entrega acabasse no caixote do lixo? Isto leva então a tentar realizar o impossível: ter uma relação segura, mas permanecendo livre, para poder acabar com ela a cada instante. Melhor: viver um amor verdadeiro, profundo, durável, mas revogável a pedido... Tenho o sentimento de que muitas das tragédias pessoais derivam desta contradição insolúvel”.
No fundo, é a recusa do sacrifício. De facto, querer salvar o amor do turbilhão da ‘vida líquida’ é inevitavelmente custoso, como é custosa e difícil a vida moral. Entregar-se a outro ser humano no amor traz felicidade real e duradoura, mas “não se pode recusar o sacrifício de si e esperar ao mesmo tempo viver o ‘amor verdadeiro’ com que sonhamos”.
Na nossa sociedade, tende-se a substituir a noção de ‘estrutura’ pela de ‘rede’. É que, “ao contrário das ‘estruturas’ de outrora, cuja razão de ser era vincular com laços difíceis de desfazer, as redes servem tanto para ligar como para desligar”. Por isso, Baumann contrapunha ‘liquidez’ e ‘solidez’ das instituições. Afinal, “instituições sólidas, no sentido de duráveis e previsíveis, constrangem, mas ao mesmo tempo tornam possível a acção dos agentes”.
Pessoalmente, mais do que a imoralidade preocupa-me a amoralidade. Porque, quando tudo vale, nada vale, pois tudo é igual. Uma sociedade sem convicções e valores comuns partilhados não tem futuro, porque lhe falta horizonte e sentido. Por isso, fonte maior de mal-estar hoje está na falta de critérios de valor e de orientação.
Neste contexto, a revista alemã STERN publicou há alguns anos um dossier subordinado à pergunta: “Os Dez Mandamentos estão ultrapassados?” Significativamente, políticos como o então Ministro Federal das Finanças, W. Schäuble, realizadores como Wim Wenders, filósofos como Peter Sloterdijk, declararam que eles continuam vivos e actuais. De facto, quem negará actualidade a preceitos como: “Não farás imagens de Deus, mas respeitarás a dignidade de todos os seres humanos, sua imagem”, “Não matarás”, “Não cometerás adultério”, “Amarás os filhos e respeitarás os pais”, “Não roubarás”, “Não viverás à custa dos outros”, “Serás justo com todos“, “Protegerás a natureza”, “Assumirás as tuas responsabilidades”?
Referindo-se-lhes como um compêndio da sabedoria humana, acumulada ao longo de séculos, o grande escritor Thomas Mann disse que eles são “manifestação fundamental e rocha da decência humana”, “o ABC da conduta humana”.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 4 de Outubro de 2025
Em merecido descanso, reproduzimos uma crónica anterior do Padre Anselmo Borges.
É surpreendente que o austero Immanuel Kant, um dos pensadores maiores de todos os tempos, autor da moral do imperativo categórico, tenha deixado na sua Antropologia um belo texto sobre as regras de uma refeição agradável em boa companhia. Não é saudável, mesmo para o filósofo e sobretudo para o filósofo, escreve ele, comer sozinho. É que o objectivo da celebração de uma refeição não deve ser tanto a satisfação corporal (portanto, comer em ordem à sobrevivência física) - isso podia fazê-lo cada um por si mesmo - quanto o prazer de estar juntos. Daí que sublinhe permanentemente o imperativo do respeito mútuo. "De facto, escreve, mesmo sem prévio pacto expresso, todo o banquete tem uma certa sacralidade". A conversa deve ser mantida em bom ritmo, de tal modo que a refeição termine, "como num concerto, no meio da alegria geral e assim seja tanto mais salutar; como naquele banquete de Platão, do qual o convidado dizia: ‘As tuas refeições não agradam só enquanto se saboreiam, mas também sempre que se pensa nelas'". E os amigos, sempre que se reencontram, avisam: “havemos de repetir”.
Não é verdade que uma das alegrias grandes que podemos conceder-nos é oferecer um almoço ou um jantar, pelo simples prazer de estarmos juntos? Será possível imaginar uma festa - um casamento, um aniversário, um reencontro - sem um banquete, por mais simples que seja?
Por surpreendente que pareça, há um feriado nacional em Portugal que tem a ver com um banquete, a Última Ceia de Jesus Cristo. Jesus, que escandalizou os contemporâneos, pois comia com mulheres consideradas pouco recomendáveis e os pecadores públicos, antes de ser condenado à morte, ofereceu uma refeição de despedida. E os cristãos, ao longo dos tempos, deviam reunir-se, lembrando-se dele e da sua causa, que é a causa dos seres humanos, isto é, a liberdade, a dignidade, a igualdade, a felicidade, a alegria, a fraternidade entre todos os homens e mulheres.
Quando os cristãos se reúnem para a celebração da Missa ou da Ceia do Senhor, partilham o pão e o vinho. Na nossa cultura mediterrânica, o pão e o vinho são dois símbolos fundamentais. O pão quer dizer força, vida, o vinho simboliza festa e alegria. Quem convida para essa festa é o próprio Jesus Cristo. Ele oferece pão e vinho. E, segundo a mentalidade oriental, quem oferece uma refeição oferece sobretudo a sua presença. Assim, os cristãos, quando se reúnem para lembrar a Última Ceia de Jesus, acreditam que Ele está presente. Mas discutir o modo dessa presença só pode levar a becos sem saída, como é sabido pela História. O decisivo é reunir-se, ouvindo e cumprindo o único mandamento de Cristo: sede bons uns para os outros, amai-vos uns aos outros como eu vos amei. O amor vence a morte.
Lembrar. Se, neste instante, perdesse a memória, não perdia apenas o passado. De facto, uma vez que já não saberia quem sou, ao perder a memória, perdia não só o passado, mas também o presente e o futuro. O animal vive da imediatidade do presente. O ser humano, esse, conjuga os verbos no passado, no presente e no futuro. Pela memória, sabemos que vimos de um passado, pela atenção, damos por nós no presente, pela expectativa, pela esperança, projectamo-nos no futuro. E é integrando o passado, o presente e o futuro, que nos vamos erguendo, na procura de uma identidade sempre a caminho.
Por estranho que pareça, isto tudo vem, mais uma vez, a propósito da festa que a Igreja Católica celebra: a festa do Corpo de Deus, festa que nos remete para a Eucaristia e, em linguagem mais comum, para a Missa. Aos Domingos, muitos cristãos continuam a ir à Missa. O que é que lá se vai fazer? Diria que fundamentalmente lembrar, recordar. Na Última Ceia, Jesus, abençoando o pão e o vinho, que significam a sua entrega por amor a todos, disse: “Fazei isto em memória de mim”. Na Eucaristia, os cristãos recordam-se do que Jesus é e fez. Assim, lembram-se também do que eles próprios são e devem ser e fazer. E anunciam, desde já, o futuro: celebram a esperança do que há-de vir: a vida eterna. Deste modo, não é totalmente destituído de sentido que muitos que nem eram praticantes habituais, quando morrem, queiram uma Missa: porque nela se celebra a memória do futuro..., a esperança da salvação. Um funeral de alguém, no contexto cristão, é a celebração da sua morte e ressurreição.
A festa do Corpo de Deus. É impressionante: festa do Corpo de Deus. Quem imaginaria? A pergunta então é: celebra-se o Corpo de Deus, e depois despreza-se o corpo? A festa do Corpo de Deus tem de ser também a festa do corpo humano, que é corpo vivo, que sente, corpo que deseja, que pensa, que quer, que ama, corpo que diz eu, que é esperante, até espera para lá da morte...
Na festa do Corpo de Deus, há quem pergunte se os católicos acreditam na presença real de Cristo na Eucaristia. A resposta é sim. Mas é preciso distinguir entre a presença física e coisista e a presença real pessoal. Por exemplo, um homem e uma mulher, pela relação sexual, estão fisicamente presentes, mas, se não houver amor, estão realmente ausentes enquanto pessoas. Porém, até pode acontecer que, por qualquer motivo, tenham de estar fisicamente ausentes, mas se há amor, continua a presença real entre eles. Os católicos não crêem na presença físico-coisista de Cristo, mas na sua presença espiritual, dando o seu Espírito de Vida, de Amor, de Paz: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Isso tem de ter consequências na vida.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 1 de junho de 2024
Em merecido descanso, reproduzimos uma crónica anterior do Padre Anselmo Borges.
Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo entre a Polónia e a Lituânia, e que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre : “Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar, atreve-te a saber, atreve-te a pensar! “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”
Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que posso saber?”, “Que devo fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”
Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos. Não são demonstráveis.
Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant, esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é universalizável? O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados. Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio”. Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim.
Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados postulados da razão prática.
Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade. Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso, postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.
Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à paz mundial, concretizada no século XX na Sociedade das Nações e na ONU.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de junho de 2024
Em merecido descanso, reproduzimos uma crónica anterior do Padre Anselmo Borges.
Dostoiévski. Foto: Corbis/Getty Images
Nunca esqueci a senhora Isilda, uma idosa antiga, muito bonita e viva, com filhos, que, já com 91 anos, um dia no café me esclareceu quanto ao baptismo: segundo ela, baptizam-se as crianças pequeninas para receberem o Espírito Santo que é mais forte do que Jesus e que é o Espírito falador: é ele que dá às crianças a capacidade divina para falar.
À sua maneira, a senhora Isilda tinha consciência do milagre que é falar. Quem algum dia reflectiu sobre isso - a capacidade de falar: proferir sons articulados que transportam sentido - falando, dizemo-nos a nós próprios, damos ordens, fazemos declarações de amor, e ódio também, ensinamos, contamos anedotas, fazemos paralisar um homem, levamos uma mulher à lua, discutimos sobre o que há e o que não há, sobre o possível e o impossível, dirigimo-nos ao Infinito... -, não pode deixar de cair no assombro interrogativo.
Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Lá está Aristóteles, que viu bem ao definir o ser humano como animal que tem fala (zôon lógon échon), sendo, por isso, animal político (zôon politikón), com a capacidade de distinguir e discutir sobre o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o bem e o mal... Ah! Se os políticos soubessem disto e agissem em consequência!...
E as palavras não são arbitrárias. Assim, muitos já estão em férias, outros irão para férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de “descanso, repouso, paz, dias de festa”. No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de “comemoração festiva”, enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria.
Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: lunes, martes, lundi, mardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira, enquanto mercado esteja associada a feria, deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias - aliás, isso ainda hoje acontece frequentemente.
De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo, quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol, férias diz-se vacaciones e, em francês, vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, e isso quer dizer: em dias santos. Os alemães, esses têm ferien ou urlaub. Ora, a raiz de urlaub é erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho.
É necessário sublinhar que a Bíblia faz questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal santo, sem trabalho, para que o ser humano fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga. E Jesus também trabalhou e trabalhou no duro. Quantos padres falam disso? Mas também descansou e tentava levar os discípulos para um lugar recôndito onde pudessem repousar.
Mas, aqui chegados, é preciso reflectir, pois, se pensarmos bem, os dias de descanso semanal e as férias não têm, ou, pelo menos, não deveriam ter, como finalidade única e última ser só um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais.
As férias e o descanso semanal têm o seu fim em si mesmos: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música excelente, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o Sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente (sabia?) e a exaltar-se com a Lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade se não vê.
É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de qualquer rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá?
Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, como asiático, como africano e, de modo mais concreto, como chinês, como ugandês, como mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus nos livre da uniformidade!).
É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoiévski?
Ai de quem, concretamente nestes tempos de dispersão, de barulho ensurdecedor e correria sem fim não se sabe muitas vezes para onde, não tenha todos os dias um pouco de tempo para o melhor: estar consigo lá no mais íntimo para se concentrar e conviver com o milagre de viver - sim, viver é um milagre - e encontrar o mistério da Transcendência e Sentido.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 de agosto de 2024
Mesmo correndo o risco de repetições, volto ao tema, porque a ameaça temível da verborreia oca não cessa de aumentar...
Sim, é verdade. Quando comparamos o ser humano e os outros animais, notamos que a linguagem duplamente articulada é característica decisiva dos humanos. Foi sobretudo a partir do século XVIII que se deu essa compreensão: até encontramos caricaturas com um missionário no meio da selva africana dizendo a um macaco: “Fala, e eu baptizo-te”. Se falasse, era humano. Evidentemente, esta fala refere-se ao que é próprio do ser humano: dupla articulação da linguagem.
Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só podemos compreender-nos a nós próprios em corpo, com outros e na História.
O Homem, pelo facto de ser “zôon lógon échon”, animal que tem lógos (razão e linguagem), é também “zôon politikón”, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles, na Política: “A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra”. E continua: “A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade”. A linguagem humana não se reduz à expressão emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, a linguagem está na base da ética e funda eticamente a pólis (a cidade, no sentido da vida política).
Percebe-se assim que o ser humano é constitutivamente dialogante. Aliás, o que é, logo à partida, pensar senão falar consigo mesmo? Damos tantas vezes connosco a falar connosco — isso mesmo, a dialogar connosco no mais íntimo de nós, quando precisamos de deliberar e vamos apresentando razões a favor e razões contra uma determinada tomada de posição.
Precisamos de falar connosco. É preciso falar, dialogar em família. Quando o diálogo morre numa família, o amor vai esmorecendo e caminhando também para a morte. Mas hoje, desgraçadamente, parece que não há tempo para dialogar em família, porque o barulho invasor das televisões — o que lá vai de comentadores, tantas vezes ignaros! — toma conta de tudo. E os telemóveis e quejandos, meu Deus!... Já se diz que a “Última Ceia” do século XXI representa Jesus com as mãos à cabeça, aflito, porque os Apóstolos estão todos entretidos a olhar e a “dedar” entusiasmados nos seus smartphones!...
Por outro lado, quem não faz silêncio, quem não medita (significativamente, meditação, medicina e moderação têm a mesma proveniência: o verbo latino mederi — a raiz é med: pensar, medir, julgar, tratar um doente —, que significa cuidar de, tratar, medicar, curar), quem não ouve a Palavra originária, que fala no silêncio, pode produzir tempestades de palavras, mas elas são ocas ou até perniciosas. Porque então a palavra já não existe para “manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto”. Ora, não é isso que tantas vezes se passa nas campanhas eleitorais e nos Parlamentos? E também em muitas homilias de padres e bispos e discursos de todo o género? Como faz falta a palavra poética, criadora, revigoradora e que cura! Ah, sim, pela palavra, animamos alguém, damos-lhe força, esperança, abrimos-lhe futuro. Com uma palavra podemos curar alguém, mas também podemos “matar”, destruir-lhe a vida.
Tudo fica abalado, quando os sofistas e a sofística tomam conta do espaço público e privado. Nunca mais se vai ao essencial. E tudo se agrava agora com a ameaça da banalização total das redes sociais. Para isso chama a atenção um comentário aceso e paradigmático do grande Umberto Eco, pouco antes de morrer: “As redes sociais concedem o direito de palavra a legiões de imbecis que antes falavam só no bar depois de um copo de vinho, sem danos para a colectividade. Eram imediatamente remetidos ao silêncio enquanto agora têm o mesmo direito de palavra de um Prémio Nobel. Assistimos à invasão dos imbecis.”
É, pois, urgente dar espaço e tempo ao silêncio. E também à oração. Sim, à oração. Para colocar o ser humano em contacto com o Mistério último da realidade e da vida. Dialogar com o mais fundo da Vida. Estar ligado ao Fundamento, à Fonte, ao Sentido último. Para se não perder na dispersão, completamente desorientado, desorientada, sem referências, perigo maior do nosso tempo.
Mas a oração e o que é essencial exigem o salto para fora do barulho ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num tempo em que se é invadido e esmagado pelo tsunami das informações, entrando no mundo caótico da dispersão e da fragmentação, da “agitação paralisante e da paralisia agitante”, segundo a expressão do famoso bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, é urgente parar, fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim, ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos vendavais de palavras em que vivemos, que nos atordoam e paralisam, ouvir outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio. Só depois de ouvir o silêncio será possível falar, falar com sentido e palavras novas, seminais e iluminantes, criadoras. De verdade. Onde se acendem as palavras novas, seminais, iluminadas e iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão no silêncio, talvez melhor, na Palavra originária, criadora, que fala no silêncio? Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência, que sussurra ou grita no silêncio. Quem a ouve? Ouvir o quê? Ouvir na noite o silêncio da noite e também na noite contemplar o alfobre das estrelas. Ouvir música, a grande música, aquela que diz o indizível e nos transporta lá, lá, ao donde somos e para onde verdadeiramente queremos ir: a nossa morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria. Sócrates, o filósofo grego, o mártir da Filosofia, que só sabia que não sabia, consagrou a vida a confrontar a retórica sofística com a arrogância da ignorância e a urgência da busca da verdade. Falava, mas só depois de ouvir o seu daímon, a voz do divino e da consciência.
O grande filósofo A. Comte-Sponville é partidário de um “ateísmo místico”, no quadro de “uma espiritualidade sem Deus”. Mas constituinte dessa espiritualidade é precisamente o silêncio. “Silêncio do mar. Silêncio do vento. Silêncio do sábio, mesmo quando fala. Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é outra coisa), para que só haja verdade, que todo o discurso supõe, verdade que os contém a todos e que nenhum contém. Verdade do silêncio: silêncio da verdade.”
O problema está em que já Pascal, nos Pensamentos, se queixava: “Toda a desgraça dos homens provém de uma só coisa, que é não serem capazes de permanecer em repouso num quarto.” Hoje é ainda pior do que no tempo de Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Sinal extremo disso: Quem ousa ouvir, em todo o seu abismo, o silêncio da morte no silêncio de um rosto morto, que nos cala e nos abala até à raiz de nós e ao fundo abissal do ser? No entanto, é em silêncio que, na noite do mistério, se pode entrever a luz da verdade do amor e da morte e do Sentido final. Por isso, é preciso constantemente pedir com Sophia de Mello Breyner: “Deixai-me com as coisas/Fundadas no silêncio.”
Há um preceito sufi que reza: “Se a palavra que vais dizer não for mais bela do que o silêncio, não a digas”. Se este preceito fosse cumprido, poderia estar a caminho o casamento feliz, humanizante e criador da Fala e do Silêncio.
N. B.: Estas crónicas ficam suspensas até Outubro.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 16 de Agosto de 2025
Esta é a notícia trágica: nos últimos cinco anos suicidaram-se na Índia pelo menos 13 padres católicos — em média, um a cada seis meses; nos primeiros cinco meses deste ano de 2025, já se suicidaram dois... Evidentemente, a situação é alarmante e obriga a Igreja na Índia, e não só, a uma reflexão profundíssima.
Não vou entrar directamente no tema. Mas, aproveitando este acontecimento trágico e o facto de estarmos ainda no início de um novo pontificado, deixo aí três momentos de reflexão inevitável, que não pode de modo nenhum continuar a ser adiada, tanto mais quanto, mesmo entre nós, o número de padres está em queda vertiginosa, aumentando sem cessar o número de paróquias sem padre.
Em termos simples.
1. A Igreja não pode impor como lei o que Jesus entregou à liberdade. Que é que isto quer dizer? É necessário acabar com a lei do celibato obrigatório para os padres. Aliás, essa lei é relativamente recente e, mesmo hoje, há padres na Igreja católica normalmente com família — é o caso na Igreja oriental ou de convertidos da Igreja anglicana. Concretizando, pergunta-se: porque é que, dentro de determinados critérios, não hão-de voltar ao ministério padres que tiveram de abandonar levados pelo amor e constituindo família?
2. Jesus não discriminou as mulheres. Assim, a Igreja também não pode discriminá-las também no que se refere aos ministérios. Isso é contra a vontade de Jesus e contra os direitos humanos. Herbert Haag, talvez o maior exegeta do século XX, a quem devo o favor de ser um querido amigo, insistiu constantemente — veja-se o seu livro “A Igreja Católica ainda tem futuro?” — que nos primeiros séculos houve mulheres que presidiram à Eucaristia; então, porque é que o que foi possível no princípio não há-de ser possível hoje?
3. Pode escandalizar, mas é um facto: Jesus foi leigo, não pertencia à classe sacerdotal. Aliás, nesta linha, o Novo Testamento evitou a palavra hiereus (sacerdote). Só mais tarde (século III) é que a Eucaristia, que era um banquete festivo dos cristãos no qual se fazia memória da Última Ceia e dos muitos banquetes de e com Jesus, foi interpretada como sacrifício ritual, dando origem, consequentemente, aos sacerdotes, seguindo-se daí que a Igreja ficou dividida em duas classes: o clero (ai o clericalismo!) e os leigos.
4. A Igreja vai continuar a precisar de ministérios para as diversas funções e serviços? É claro que sim.
Neste contexto, quero chamar a atenção para que Bento XVI, quando era apenas professor Joseph Ratzinger, falou em dois tipos de padres: uns que continuariam na sua vida normal, na sua família, nas suas profissões, mas que as comunidades escolheriam, depois de provas dadas, para presidir à comunidade, orientá-la...; outros que, optando livremente pelo celibato, escolheriam dedicar a sua vida integralmente à Igreja, estando entre as suas tarefas a coordenação e formação dos outros padres...
5. Neste contexto de temas e problemas, é inevitável e imprescindível rever toda a questão da formação nos Seminários, com uma vivência que corre o risco de fugir à realidade como ela é, com a ausência do universo feminino e de todas as exigências até económicas da vida actual e formando jovens para uma vida que vai ser tantas vezes de exigência e solidão insuportável numa sociedade que hoje já não é sequer sociologicamente cristã. Os padres devem cuidar; e quem cuida deles?...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 16 de Agosto de 2025