Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Com data de 4 de Outubro, o dia da festa de São Francisco de Assis, e 8 anos depois da publicação da encíclica Laudato Sí, Francisco publicou a Exortação Apostólica Laudate Deum, com a intenção de partilhar com todas as pessoas de boa vontade a sua “profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum”, porque, “com o passar do tempo, dá-se conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe está-se esboroando e talvez aproximando de um ponto de ruptura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida de que o impacto da alteração climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. Sentiremos os seus efeitos em termos de saúde, emprego, acesso aos recursos, habitação, migrações forçadas e noutros âmbitos.”
Entre a primeira afirmação do texto: “Louvai a Deus (Laudate Deum) por todas as suas criaturas” e a última: “Laudate Deum é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior inimigo para si mesmo, Francisco desenvolve o seu grito profético em cinco pontos: 1. a crise climática global; 2. o crescente paradigma tecnocrático; 3. a fragilidade da política internacional; 4. as conferências sobre o clima e o que se espera da COP28, no Dubai; 5. as motivações espirituais: um “antropocentrismo situado”.
1. Começa por chamar a atenção contra os negacionistas. Escreve: “Por muito que se tente negá-los, escondê-los, dissimulá-los ou relativizá-los, os sinais das alterações climáticas impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente.” E dá exemplos dos últimos anos: fenómenos extremos, períodos frequentes de calor anormal, seca e “outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que nos afecta a todos”. E, se não se tomar medidas, há a ameaça de esses fenómenos extremos se tornarem mais frequentes e intensos. E é necessário sublinhar que se trata de um fenómeno global e não se pode atribuir a culpa aos pobres, pois “a realidade é que uma reduzida percentagem mais rica do planeta polui mais do que os 50% mais pobres de toda a população mundial”.
Faço notar que o relatório anual científico Lancet Countdown, publicado já neste mês de Novembro, traça cenários dramáticos para a Humanidade, se a actual trajectória de emissões de gases com efeito de estufa continuar: o número de mortes associadas ao calor extremo, por exemplo, pode mais do que quadruplicar até 2050.
2. “A origem humana — ‘antrópica’— das alterações climáticas já não se pode pôr em dúvida.” Foi com o progresso industrial que as emissões dos gases com efeito de estufa, causadoras do aquecimento global, sofreram aumento: nos últimos 50 anos “a temperatura aumentou a uma velocidade inédita”.
O que está na base deste processo de degradação ambiental é o paradigma tecnocrático. Nunca a Humanidade teve tanto poder, mas “nada garante que o utilizará bem, sobretudo se se considerar a maneira como o está a fazer.” O aumento de poder não significa sempre um progresso para a humanidade, pois pode destruir a vida. Desgraçadamente, “a lógica do máximo lucro ao menor custo, disfarçada de racionalidade, progresso e promessas ilusórias, torna impossível qualquer preocupação sincera com a casa comum.”
3. É evidente que estas questões são globais. Por isso, frente à fragilidade da política mundial, Francisco insiste na necessidade de “favorecer os acordos multilaterais entre os Estados”. “Não basta pensar nos equilíbrios de poder, impõe-se também responder aos novos desafios e reagir com mecanismos globais aos desafios ambientais, sanitários, culturais e sociais, sobretudo para consolidar o respeito dos direitos humanos mais elementares, dos direitos sociais e do cuidado da casa comum.”
4. É verdade que há já decénios que os representantes de mais de 190 países se reúnem para enfrentar a questão climática, mas o que se passa é que “os acordos tiveram um baixo nível de implementação, porque não se estabeleceram mecanismos adequados de controlo, revisão periódica e sanção das violações.” Avisa quanto ao limite ideal máximo de aumento global da temperatura de 1,5 graus do acordo de Paris: em breve poderemos atingir “o risco de um ponto crítico”: 3 graus.
A próxima Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, de 30 de Novembro a 12 de Dezembro próximo, tem lugar no Dubai.
Francisco, que estará presente, espera que constitua “um ponto de viragem”, que “se torne histórica”. Para isso, repete: “Para que se quer preservar hoje um poder que será recordado pela sua incapacidade de intervir quando era urgente e necessário fazê-lo?”
5. O Papa dirige-se a todas as pessoas de boa vontade. Quis, porém, reservar um ponto para as motivações espirituais, concretamente no contexto da Bíblia, que conta que “Deus criador, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa”. A terra pertence-Lhe e os seres humanos são “hóspedes”. Assim, “a responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência, respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo”.
É claro que o ser humano é especial e único, tem “um valor peculiar e central no meio do concerto de todos os seres, mas hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um ‘antropocentrismo situado’, ou seja, reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 25 de novembro de 2023
Em todas as licenciaturas, há uma cadeira se imporia: Antropologia, pois é sempre o ser humano que está em causa.
1 . E quando falamos do ser humano, temos de ter sempre em consideração que se trata de uma unidade em tensão. Assim, ele apareceu na história da evolução e, por isso, é preciso dizer que ele vem da natureza, mas, ao mesmo tempo ele é na natureza, pois é nele que a natureza e a evolução sabem de si. Ele é no tempo: vem do passado, vive no presente e projecta-se no futuro. Ele é simultaneamente impulso, emoção e razão. É consciente, consciente de que é consciente, mas mergulha no inconsciente, o isso em nós sem nós, de tal modo, que por vezes perguntamos: eu fiz isso?, aí não era eu. Limitado, o ser humano é uma abertura ilimitada, nunca estamos suficientemente feitos, estamos abertos a tudo, à Transcendência.
2. Deste modo, encontramos o cuidado. Cuidaram de nós e nós devemos cuidar: cuidar de nós (desde o que comemos ao repouso...), cuidar dos outros (só sou eu face ao tu), cuidar da natureza (há uma ligação estreita entre a saúde e o ambiente), cuidar do Sagrado, de Deus.
3. G. K. Chesterton escreveu: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Aqui, porque por vezes, nos sentimos mal e caímos doentes, encontramos a medicina. Precisamos de alguém com conhecimentos e técnica que nos ajude, mas no quadro de um conceito holístico de saúde. Quando vamos ao médico, esperamos evidentemente encontrar alguém que perceba do assunto, mas que simultaneamente nos trate como pessoas e atendendo àquela unidade tensa já exposta. O encontro médico não pode reduzir-se a este quadro: de um lado um técnico e do outro uma máquina desarranjada, pois deve ser um pacto entre alguém que sabe e outro alguém que precisa de ajuda. Há estudos que mostram como uma boa relação de confiança entre o médico e o doente é fundamental para a cura — em latim, cuidado diz-se cura.
Quando estamos atentos às palavras, elas dizem o essencial. Clínica vem do grego klínein, que significa inclinar-se : o clínico inclina-se sobre alguém em necessidade. Hospital vem de hospes, hóspede: é como tal que o doente deve ser tratado.
4. Sobre a importância decisiva da saúde dizem as nossas saudações quotidianas quando encontramos alguém, e isso nas várias línguas: “Como está, como estás?” A palavra valor vem do latim: vale!, a palavra usada pelos romanos para saudar alguém, também na despedida: “passa bem!”. É essencial um conceito holístico de saúde — do grego hólon, que significa o todo, não enquanto soma das partes, mas o todo que é mais do que essa simples soma.
Vamos de novo às palavras e ao seu étimo, e encontramos o elo entre a espiritualidade, a religião e a saúde. A palavra medicina tem na sua base um radical med-, que dá origem a moderação, meditação e medicina. Saúde provém do latim salus, salutis, na base também de salvação. E saudar vem de salutem dare. Em inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, em conexão com the whole ( o todo); em alemão, temos heilig para santo e heilen significa curar. Em português, de uma pessoa com saúde dizemos que está são, a mesma palavra que usamos para São João e São José...
E vamos ao encontro de estudos científicos que mostram uma relação globalmente positiva entre a religião e a saúde – repito: significativamente, o étimo latino de saúde e salvação é o mesmo: salus, salutis. Apenas alguns exemplos — quem estiver interessado poderá procurar outros e um estudo mais aprofundado da questão no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?
Mario Beauregard, investigador de neurociências na Universidade de Montréal, escreve que se acumulam provas consideráveis que mostram que as experiências religiosas, espirituais e/ou místicas “estão associadas a melhor saúde física e mental.” Na sua obra The Spiritual Brain, cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77% fazem menção de um efeito clínico positivo. Outro estudo mostrou que “os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de handicap nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que os que não o fazem.” O neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, escreveu: “A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas... A experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado.”
Neste contexto, encontramos, evidentemente, a questão fulcral da religião e do sentido. Foi concretamente Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz e fundador da chamada terceira corrente de psicoterapia de Viena, que sublinhou, a partir aliás também das suas terríveis experiências dos campos de concentração, a relação entre o sentido e a cura. O que move o ser humano é o sentido, de tal modo que tudo suportará, se encontrar um sentido, e a religião tem a ver precisamente com o sentido de todos os sentidos, o Sentido último. Na busca de Sentido Último, a pessoa, inconscientemente, procura Deus — Der unbewusste Gott (O Deus inconsciente) é uma das suas obras.
Escusado será dizer que é essencial a imagem que se tem Deus. Que Deus?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 18 de novembro de 2023
1. O Papa Francisco ficará na História por muitos bons motivos, mas estou convicto de que a razão principal tem a ver com a tentativa de avançar para uma “Igreja sinodal”, uma Igreja na qual todos caminham juntos. Percebe-se a revolução que pode constituir, quando se lê este texto do Papa Pio X, que até foi canonizado, na encíclica Vehementer Nos: “A Igreja é por natureza uma sociedade desigual. É uma sociedade composta por uma dupla ordem de pessoas: os pastores e o rebanho, os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão (plebs, plebe) dos fiéis. As categorias são de tal modo diferentes umas das outras que só na hierarquia residem a autoridade e o direito necessários para mover e dirigir os membros para o fim da sociedade, enquanto a multidão não tem outro dever senão o de aceitar ser governada e cumprir com submissão as ordens dos seus pastores”.
A partir daí percebe-se — contra a vontade de Jesus que tinha declarado expressamente aos discípulos: “vós sois todos irmãos” e que a autoridade só se justifica enquanto serviço — os abusos da hierarquia. E, na consideração desses abusos, que fizeram até com que muitos tenham abandonado a Igreja, não é preciso recuar muito no tempo. De facto, já em pleno Sínodo, no passado dia 25 de Outubro, Francisco, depois de declarar que gosta de pensar na Igreja como “o povo fiel de Deus, santo e pecador, o povo fiel, o santo povo fiel de Deus”, fez à 18.ª congregação geral, um discurso demolidor contra o clericalismo. Assim: “Quando os ministros exageram no seu serviço e maltratam o povo de Deus, desfiguram o rosto da Igreja com atitudes machistas e ditatoriais. É doloroso encontrar em algumas secretarias paroquiais a ‘tabela de preços’ dos serviços da Igreja (sacramentos, funerais...), como num supermercado. Ou a Igreja é o povo fiel de Deus a caminho, santo e pecador, ou acaba por ser uma empresa de diversos serviços. E quando os agentes da pastoral seguem esta segunda via, a Igreja torna-se o supermercado da salvação e os sacerdotes meros empregados de uma multinacional. Este é o grande fracasso a que nos conduz o clericalismo. E isto com muita tristeza e escândalo (basta ir às alfaiatarias eclesiásticas de Roma para ver o escândalo de jovens sacerdotes — aqui, permito-me perguntar: só sacerdotes? E bispos e cardeais, não? — a experimentarem batinas e chapéus e barretes ou alvas e roquetes com rendas. O clericalismo é um flagelo, é uma chaga, é uma forma de mundanidade que suja e danifica o rosto da Igreja, escraviza o santo povo fiel de Deus. E o povo de Deus, o santo povo fiel de Deus, avança com paciência e humildade, suportando o desperdício, o abuso, a marginalização do clericalismo institucionalizado. E com que naturalidade se fala dos ‘príncipes da Igreja’ — ‘purpurados’, acrescento eu —, ou das promoções episcopais como progresso na carreira! Os horrores do mundo, a mundanidade que maltrata o santo povo fiel de Deus!”.
2. A simples realização do Sínodo dos Bispos na sua primeira sessão durante todo o mês de Outubro constitui um acontecimento histórico, pois, embora continue a chamar-se Sínodo dos Bispos, teve a presença de leigos, homens e mulheres, com direito a voz e voto.
No final, surgiu uma informação de Síntese relativamente breve, sem que se possa tirar grandes conclusões, pois essa informação serve sobretudo para reflectir agora durante um ano sobre convergências e propostas, tendo em atenção a segunda sessão da Assembleia em Outubro de 2024, que abrirá para um Documento final conclusivo do Papa. Ficam aí alguns indicações mais significativas da Síntese.
Apesar das reticências de alguns sectores, reconhece que se tratou de uma experiência vivida com alegria, pois pelo baptismo formamos “um só corpo”, portanto, uma Igreja sinodal em missão: todos discípulos, todos missionários, conscientes da diversidade, da multiculturalidade, com sensibilidades e necessidades diferentes e prevenindo contra o perigo do colonialismo e racismo.
Decisiva é a unidade dos cristãos e, por isso, a necessidade do diálogo ecuménico. Aparece mesmo o desejo de “convocar um sínodo ecuménico sobre a missão comum no mundo contemporâneo”.
Deve-se escutar os jovens, as vítimas de abusos sexuais e também espirituais, económicos, de poder e de consciência por parte de membros do clero, e atender o grito das guerras, dos pobres, dos excluídos...
Que se continue a reflectir sobre questões controversas, como “a identidade de género e a orientação sexual, o final da vida, os casamentos difíceis, as situações matrimoniais difíceis, questões éticas relacionadas com a Inteligência Artificial”. Não é referida a bênção de casamentos homossexuais.
Pede-se “uma reflexão mais profunda” sobre o celibato dos padres, a sua “obrigação disciplinar”, de modo especial “onde os contextos eclesiais e culturais o tornam mais difícil”.
Inaceitável é, para mim, a posição quanto às mulheres. Critica-se “o clericalismo e o machismo”, está clara a necessidade de dar-lhes maior participação em cargos cimeiros e inclusivamente da sua presença na formação nos seminários. Mas continua a divisão quanto ao diaconado, a questão mais polémica nas votações, e sobre a ordenação presbiteral nem uma palavra. Tem razão Consuelo Vélez: “Realmente as mulheres somos um tema não resolvido na Igreja e não parece que o clero e também parte do laicado, incluindo mulheres, estejam dispostos a dar um passo em frente.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 11 de novembro de 2023
Actualmente, porque, com a televisão, temos acesso às imagens, talvez seja sobretudo perante os horrores das guerras que se pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus. São bombardeamentos que não deixam pedra sobre pedra, que matam indiscriminadamente homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a desorientação das crianças inocentes. Onde está Deus?
Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos para o serviço militar do Reich, foi desertor e prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento XVI, como já aqui escrevi, esteve em Auschwitz e fez um discurso dramático e deveras emocionante: "Tomar a palavra neste lugar de horror, de crimes contra Deus e contra o ser humano sem precedentes na História, é quase impossível, e é particularmente difícil e deprimente para um cristão, para um Papa que procede da Alemanha. Num lugar como este faltam as palavras; no fundo, só há espaço para um atónito silêncio, um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”
Perante o horror do mundo e todos os mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas inocentes — e o aparente silêncio de Deus, percebemos a tentação do ateísmo. E até poderá tratar-se de um ateísmo moral, um ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus, que é preciso recusar por causa da moral: um mundo com tanta dor, tantas injustiças, tanto sofrimento de inocentes, tanto cinismo brutal do poder, como pode ser criação de um Deus bom? Mas a quem recusa Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não existe, donde vem o bem e a nossa revolta, desde a raiz de nós, contra o mal e a morte, clamando por justiça e salvação para as vítimas inocentes? Porque, sem Deus, afundamo-nos no nada e anula-se, em última análise, a própria diferença entre bem e mal. Por isso, segundo Jürgen Habermas, para mim o maior filósofo vivo, agnóstico, o que mais nos inquieta é “a irreversibilidade dos sofrimentos do passado — a injustiça contra as pessoas inocentes vítimas de maus tratos, aviltamento e assassinato — sem que o poder humano possa repará-los”, acrescentando: “A esperança perdida da ressurreição” sente-se como um grande vazio.”
Há uma pergunta decisiva — para Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt, a que Habermas também está ligado, é mesmo “a pergunta fundamental de Filosofia” —: o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor, percorre a História. Há uma dívida incontável para com essas vítimas. Quem a pagará?
Max Horkheimer e Theodor Adorno, principais representantes da Escola Crítica, com quem Bento XVI entrou em diálogo na sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em Esperança”, viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível a edificação de uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e então seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por essas vítimas, e então não era humana, porque não solidária.
Adorno e Horkeimer exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, “o anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra.”
Esta esperança tem de traduzir-se numa práxis solidária tal que, como disse de modo incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que não se possa pensar que não existe um Além.” Nesta práxis, está implicado o pensamento do Absoluto, como exigência moral e como anelo de que o finito e o mundo da injustiça não sejam a ultimidade e o definitivo. Também neste sentido, Adorno escreveu que “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. Neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. A pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
No seu diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é “um motivo importante para crer que o ser humano está feito para a eternidade”, “mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavras” convence da necessidade da ressurreição dor mortos e da vida eterna.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 4 de novembro de 2023
Aproxima-se o Halloween, a festa de todos os santos e o dia de finados. O que aí fica é uma reflexão sobre essas celebrações, também num esforço por mostrar a sua conexão.
1. Como todas as instituições, que celebram os seus heróis, também a Igreja cristã começou, já no século II, a celebrar os mártires, aqueles que, como diz a palavra, morreram por Cristo, para d'Ele darem testemunho. No século VII, o Papa Bonifácio IV consagrou em 13 de Maio de 609 ou 610 o Panteão romano a Maria, mãe de Jesus, e todos os mártires. No século seguinte, uma vez que, dado o seu número, já não era possível dedicar um dia a cada santo, Gregório III dedicou uma igreja em Roma a todos os santos, e essa festa de todos os santos tornou-se universal em 835 por decisão do Gregório IV. E aqui surge uma pergunta: porquê no dia 1 de Novembro?
No dia 1 de Novembro, havia uma grande festa celta, o Samhain, celebrando as divindades pagãs, as colheitas e a entrada no inverno: precisamente nesse dia acendia-se o primeiro fogo. Para que a festa pagã não monopolizasse as atenções, introduziu-se a festa de todos os santos neste mesmo dia.
No século XIX, houve uma imensa imigração de irlandeses para os Estados Unidos. Como é natural, levaram com eles as suas tradições, também o Samhain, inaugurando o inverno, no qual se impõe a noite, noite que mete medo — na noite, esbatem-se as fronteiras entre o aquém e o além.
Na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, festeja-se o Halloween, a noite das bruxas, dos fantasmas... Repare-se no termo Halloween em inglês e veja-se o que significa. Halloween é All Hallow’s Eve, que significa, textualmente, véspera de todos os santos.
Que se conclui então? Diz-se que o Halloween é uma importação da América. Sim. Mas, se se estiver atento, percebe-se que, afinal, se trata da importação de uma exportação anterior.
2.1. Perguntam-me se os festejos do Halloween me preocupam. Nada, desde que, como todos os festejos, se passem com juízo. Até compreendo. O ser humano precisa de divertir-se, de rir, de fazer humor, exorcizar medos. Ora, cá está, repetindo: na noite, no meio das trevas, há mais permeabilidade entre este mundo e “o outro mundo”. Não esqueço uma conversa, na Alemanha: “com a luz eléctrica, as almas do outro mundo deixaram de aparecer!”.
O que me preocupa é o predomínio desses festejos sobre a festa de todos os santos. Preocupa-me que já não se pense no sentido da vida, no sentido último.
Por vezes, tem-se uma ideia errada da santidade. O santos não são uns beatos, a “bater constantemente com a mão no peito”. São pessoas normais, que cumprem o seu dever, numa vida honrada e digna. Significativamente, santo tem a ver com saúde em várias línguas. Em português, dizemos que alguém está são, com saúde, e também dizemos São João, São José. O santo é uma pessoa sã em todos os domínios: que cuida da saúde física, moral, espiritual, capaz de sacrificar-se pelo bem, numa relação boa consigo, com os outros, com a natureza, com Deus. Pergunto: ao contrário do que dá a entender a Igreja oficial, que parece canonizar apenas homens e mulheres consagrados, dedicados à religião, não há tantos homens e mulheres e casais verdadeiramente santos, exemplares no seu amor fiel, na educação dos filhos, no trabalho, na relação boa e felicitante com os outros, na relação com Deus?
E a fé é um combate, até para os santos canonizados. O Papa Francisco acaba de escrever uma Exortação Apostólica, “C’est la confiance”, sobre Santa Teresinha do Menino Jesus e não ignorou este seu escrito: “Eu sofria então grandes provas interiores de todo o tipo (até chegar a perguntar-me por vezes se o Céu existia). Quando canto a felicidade do Céu e a eterna posse de Deus, não experiencio a menor alegria, pois canto apenas o que quero crer.”
Neste contexto, permita-se-me um parêntesis: não sou favorável à canonização no sentido oficial corrente do termo. Até porque custa imenso dinheiro — dizem-me que pode chegar a centenas de milhares de euros. E porque se exige um milagre. Ora, não há milagres, porque tudo é milagre: o milagre do ser e de ser. Deus criou o mundo com as suas leis. Deus é infinitamente transcendente e ao mesmo tempo infinitamente presente à sua criação; Ele não está fora, mas dentro; ora, o milagre pressuporia que Deus está fora e, por vezes, vem dentro, e vem a favor de uns e não de outros. E como se saberia que determinado milagre é por causa de um determinado “santo” e não de outro que também aguarda a canonização?
A canonização só faria sentido como declaração de que alguém teve uma vida exemplar como cristão ou cristã.
2.2. No dia 2 de Novembro, celebra-se o dia dos defuntos. E, para muitas pessoas, ainda é importante fazer memória dos mortos. De qualquer modo, já não é como era. De facto, característica essencial desta nossa sociedade é fazer da morte tabu. Disso não se fala.
Não sou de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, de que a própria Igreja se serviu por vezes para atemorizar e exercer poder, mas, quando a morte se torna tabu, há o perigo de cair na banalidade rasante e não colocar as perguntas essenciais. Já não se pensa e cai-se numa sociedade doente. Poderia dar muitos exemplos, mas deixo apenas uma pergunta: Que se passa neste país onde cerca de 9% dos juízes recorrem a drogas: haxixe e cocaína?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 de outubro de 2023
Em contraposição com a Torre de Babel, quando cada um quer ser o dominador de tudo e de todos, num orgulho erguido até ao céu, de tal modo que ninguém se entende, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no Pentecostes — não esquecer que Natália Correia era espírito-santista. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"
Cada vez mais tomamos consciência disso: o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, pois então os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. Portanto, Pentecostes tem de ser todos os dias. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Um autor é grande — e Natália é grande —, quando é fonte de inspiração e iluminação do futuro. Aí está: na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global,... — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática e mesmo trágica, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macroparadigma de desenvolvimento e também das relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista. Não é esse horror que vivemos na e com a Ucrânia? Não está aí, terrível, de consequências catastróficas, outra guerra no Médio Oriente?
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. Quando se pensa no aquecimento global, na ameaça climática, na ameaça nuclear, no fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, nos gastos astronómicos com novos armamentos — anualmente, uns 2 milhões de milhões de euros —, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de um suicídio colectivo.
Numa entrevista recente, um dos intelectuais mais influentes da actualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: “Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.”
Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal — estamos a celebrar os 400 anos do seu nascimento — escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (“le rien et l’infini”). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana, a única verdadeira aspiração, desde o princípio, como se diz no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus pelo orgulho e a dominação de tudo e de todos, construindo uma torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede quando desce em Pentecostes.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 21 de outubro de 2023
Natália Correia, a grande escritora, lutadora pela liberdade, nasceu a 13 de Setembro de 1923. Em sua homenagem, neste seu centenário, fica aí uma breve reflexão.
Estava-se nos anos 1976-1977 e eu, porque era Vice-Presidente do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, residia em Lisboa. Por isso, encontrei-me muitas vezes no famoso Botequim com Natália Correia, que fazia o favor de ser uma querida amiga. Nos inícios da década de oitenta, também fui convidado, como ela e representantes de partidos, pela Embaixada da então República Democrática Alemã para uma visita a Berlim Leste e, se cito este evento, é porque nele pude constatar, frente ao nazismo e ao estalinismo e ao Muro, o empenho de Natália na luta pela liberdade. Depois continuámos a encontrar-nos, uma das vezes até foi num jantar com o grande Vitorino Nemésio. Quando ela morreu, recebi um telefonema na Universidade de Coimbra: “A Natália morreu e tem de vir a Lisboa para dizer umas palavras, umas palavras de despedida, no funeral.” Fui, triste, para essas palavras de despedida, com este final: “’Para onde vão os mortos?’, perguntava o filósofo Bernhard Welte. Para o Silêncio? Para o Nada? É este Nada que a todos espera. Que Nada? Não está, à partida, decidido como deve ser interpretado este Silêncio e este Nada. Trata-se de um silêncio morto ou de um Silêncio vivo, habitado? Trata-se de um nada negativo ou de um Nada enquanto ocultação absoluta do Mistério vivo, como quando dizemos: aqui não vejo nada, mas sabendo que lá pode estar algo e até o essencial? Quando se olha para o Sol, não se vê nada, tal é o excesso de luz. Este nada é pura e simplesmente nada ou, pelo contrário, o Nada experienciado na morte é a figura do Mistério oculto que a tudo dá sentido e fundamento? Natália, foi no Espírito Santo, tal como o entendias, que acendeste a tua luz e cantaste o fogo do teu canto. Natália querida, no mistério da despedida, que agora mais misteriosamente te envolve, seja ainda o Espírito Santo que te guie!”
Ela era espírito-santista e ficou muito contente quando lhe disse que ruah, com múltiplos sentidos: ar, brisa, espírito, força, alento, interioridade, em hebraico é feminino. Lá está a Mátria em vez de Pátria e… Natália Correia vinha dos Açores e viveu o culto do Divino Espírito Santo e os “impérios”, onde um menino é coroado, e as “sopas” do Espírito Santo, quando há comida para todos, conhecidos e desconhecidos, numa fraternidade sem igual…
Por isso, quando se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada e o verdadeiro sentido revolucionário disso, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.
Diz a Bíblia que Javé, Deus, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homem e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada ainda hoje, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris - desmesura - que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se na barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.
Babel e a sua Torre são um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em "povos que se dispersaram por países e línguas, por famílias e nações". Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas e das culturas, que constitui uma riqueza inaudita. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente, gigantesca, contra o desígnio de dominação.
Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna?” (continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 14 de outubro de 2023
1. Quando a Igreja aparece nos meios de comunicação social e mesmo no linguajar habitual, a referência é a Igreja enquanto instituição de poder e a hierarquia: Papa, cardeais, bispos, monsenhores, cónegos, padres... O que pensa a Igreja sobre isto ou aquilo? Esta pergunta está, em princípio, referida à hierarquia: o que pensam a Cúria Romana, os cardeais, os bispos, os padres?...
No entanto, a palavra Igreja/Igrejas apareceu no início do cristianismo para designar a comunidade/comunidades de cristãos e cristãs, baptizados, discípulos de Jesus, que acreditavam no Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, nunca, nem na morte, nos abandona, e todos os homens e mulheres são seus filhos, devendo, por isso, ser tratados como irmãos.
Evidentemente, aumentando o número, teve de haver coordenadores das comunidades — bispos, presbíteros, diáconos. Mas eram servidores — Jesus tinha dito que Ele veio “para servir, não para ser servido” — e não senhores. Foi numa história longa e complexa que foi surgindo a Igreja como instituição de poder, luxo e esplendor, com a hierarquia de um lado e os fiéis do outro, aqueles com todo o poder, os que mandam, e estes como os que obedecem. Uma observação: Não se viu no fim de semana passado, televisões, por exemplo, a exultar com o esplendor de barretes cardinalícios e mitras? Jesus, porém, tinha apelado à simplicidade e disse: “sois todos irmãos”.
2. Poucos dias depois da sua eleição, estive na televisão e disse que Francisco era um cristão, um Papa cristão, e esta era a sua novidade e revolução. Parece-me que esta minha perspectiva se vem confirmando cada vez mais, e a sua confirmação decisiva é a convocação do Sínodo sobre a sinodalidade, cuja primeira sessão se iniciou no passado dia 4, indo até ao dia 29, seguindo-se a segunda sessão em 2024.
Francisco tem sublinhado que o único modo de ser da Igreja no século XXI só pode ser este: “o sinodal”. Que se entende por sinodal? Trata-se de uma palavra de origem grega e significa caminhar juntos. De facto, se, pelo baptismo, somos todos membros da Igreja, então todos devem participar, pois o que é de todos por todos deve ser decidido e assumido.
O documento apresentado para o debate nesta sessão é ele próprio sinodal. De facto, é o resultado de todo um processo. Começou em 2021 nas dioceses de todo o mundo e todos os católicos foram convocados a pronunciar-se, daí resultando documentos das conferências episcopais. Houve um segundo momento: foram convocadas as assembleias continentais, e surgiram os respectivos textos finais. E aí está o texto final, o “instrumento de trabalho” para o Sínodo, onde se sublinha “o apelo claro a superar uma visão que reserva só para os ministros ordenados (bispos, presbíteros, diáconos) toda a função activa na Igreja, reduzindo a participação dos baptizados a uma colaboração subordinada”, e se advoga “uma concepção ministerial da Igreja no seu conjunto”, com o reconhecimento da “dignidade baptismal” como eixo de toda a participação na Igreja.
Trata-se de um documento com muitas perguntas, algumas verdadeiramente revolucionárias, pois colocam a Igreja perante uma autêntica revolução, revolução que começa logo por, pela primeira vez, um Sínodo dos Bispos contar com padres, religiosos e religiosas e leigos, homens e mulheres, com direito a voz e voto. Exemplos:
“Que medidas concretas são necessárias para chegar às pessoas que se sentem excluídas da Igreja por causa da afectividade e sexualidade (por exemplo, divorciados recasados, pessoas LGBTQ+, etc.)?” Aqui, permito-me confessar que, assumindo toda a responsabilidade naquela situação concreta, não hesitei em dar, numa celebração adequada, uma bênção a um casal de lésbicas.
Face à tragédia brutal da pedofilia, vem ao debate a urgência de criar “uma cultura de prevenção de todo o tipo de abusos”, e a pergunta: Não deverá haver também na Igreja “separação de poderes, órgãos de supervisão independentes?”.
“A maior parte das Assembleias continentais e as sínteses de numerosas Conferências episcopais pedem que se considere de novo a questão do acesso das mulheres ao diaconado. É possível colocar a questão e de que modo?”. Aqui, pergunto eu como foi possível ignorar a pergunta pela ordenação presbiteral e episcopal das mulheres. Um escândalo.
No contexto dos ministérios ordenados, é inevitável a pergunta pelo celibato opcional e pela ordenação de homens casados. Mais: “É possível que, sobretudo em lugares onde o número de ministros ordenados é muito reduzido, os leigos possam assumir o papel de responsáveis pela comunidade? Que implicações tem isto na compreensão do ministério ordenado?” E “como deve evoluir o papel do Bispo de Roma e o exercício do primado numa Igreja sinodal?” Aí está uma questão essencial, quando é necessário aprofundar a sinodalidade com as outras Igrejas cristãs, num compromisso ecuménico renovado.
No contexto de um mundo globalizado e da urgência do combate por um mundo justo e em paz e de todas as questões levantadas pelas novas tecnologias, como não convocar para “gestos de reconciliação e de paz com outras religiões”, no aprofundamento do diálogo inter-religioso?
3. Quando há quem clama: “Heresia!”, só se pode esperar que Francisco se mantenha em funções até 2025 para estabelecer o “documento final” do Sínodo que não permita voltar atrás.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 7 de outubro de 2023
Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco.
4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.
Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henri Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”.
Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “pensa-se nas vantagens, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam: a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”
5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.
Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “a guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”
E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da actualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.” É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”
6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.
Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma como Papa foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”: abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.
7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.
Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”
Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja.
8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.
Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente, “calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”
9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.
Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “o homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.
10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.
Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.
N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 de agosto de 2023
Na sequência da Jornada Mundial da Juventude, ficam aí algumas reflexões a partir de um livro de Francisco, “Os ruego en nombre de Dios. Por un futuro de esperanza” (Peço-vos em nome de Deus. Por um futuro de esperança). Soube que, entretanto, foi traduzido para português, na Editorial Presença: “O que Vos Peço, em Nome de Deus”. São dez pedidos.
Francisco, antes de referir esses pedidos, começa por apresentar a sua relação pessoal com Deus: “Uma relação como a de qualquer homem, muito humana”, acrescentando: “uma relação com Deus é boa quando avança de acordo com a idade, quando não se fica na infância e é aberta.” Confessa que nem sempre entende e há momentos de obscuridade: “Por vezes estou calado e deixo que Ele fale, que se faça sentir. É uma relação de convivência. Por vezes não o compreendo, tem os seus modos de proceder.” Mas o que sente é amor por Deus, acrescentando: “Não podes amar a Deus, se não te sentes amado.”
Para compreender os pedidos, adverte que é necessário entender que “mais do que numa época de mudanças encontramo-nos numa mudança de época.” E cita Bertrand Russell: “Entender o mundo actual como é e não como desejaríamos que fosse é o início da sabedoria.”
Vêm então os pedidos. “Peço-vos que me acompanheis a fazer juntos estes dez pedidos em nome de Deus.”
1. Em nome de Deus peço que se erradique na Igreja a cultura dos abusos.
Já aqui escrevi que, para mim, a Inquisição e a pedofilia por parte do clero são a pior catástrofe da Igreja. Francisco lembra que um caso é por si “uma monstruosidade”. Escreve: “As consequências dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis duram anos nas vítimas. Refiro-me a este crime como um homicídio psicológico, porque podem ter consequências irreparáveis na sua saúde mental”, causando “danos físicos, psicológicos e espirituais.”
Não há qualquer desculpa no facto de desgraçadamente os abusos serem um fenómeno historicamente presente em todas as culturas e sociedades e até o maior número acontecer nas famílias; de facto, “cometido por membros da Igreja não é só um crime atroz, é uma ofensa a Deus”.
“Uma das nossas maiores faltas, talvez a mais grave, foi não tomar em conta os relatos e denúncias das vítimas.” Trata-se não só de um pecado, mas de um crime, que se tem o dever de denunciar, colaborando com as autoridades civis. “Neste sentido, acrescenta, já em 2016 estabelecemos que a negligência em casos de abusos é causa para a destituição de bispos.”
Na recente visita a Portugal, Francisco recebeu 13 vítimas, ouviu-as, abraçou-as uma a uma, vergando-se à sua dor. O preceito inquestionável é: “Tolerância zero”, sem esquecer, evidentemente, “o princípio de in dubio pro reo, que não pode ser deixado de lado nem sequer para este tipo de delitos atrozes.”
2. Em nome de Deus peço que protejamos a casa comum.
Penso que, face às catástrofes, incêndios, tempestades, com mortes e consequências desastrosas que se sucedem, até os mais cépticos começam a tomar consciência de que são inegáveis as mudanças climáticas inauditas e a destruição massiva dos ecossistemas, colocando o planeta sob ameaça.
O Papa Francisco tem bem consciência disso, de tal maneira que, se não fosse por muitos outros — tantos, tantos — motivos, ficaria na História pela publicação da sua encíclica “Laudato Sí”, onde surge de modo claro o conceito de “ecologia integral”. “O nosso planeta está em perigo. Nos últimos decénios vivemos sob um sistema voraz, que não só empurrou para as margens do descarte milhões de seres humanos, mas também expôs a limites nunca antes vistos a nossa casa comum, a Mãe Terra.”
É preciso pôr termo a um paradigma socioeconómico baseado na ganância, na avidez, no lucro sem limites para alguns, descartando a outra maior parte e agredindo o ambiente, que está a chegar a limites irreparáveis. Viemos da natureza, que existiu durante a maior parte do tempo sem nós e que, se não mudarmos de rumo, pode acabar connosco. É preciso tomar consciência de que contra este modelo de depredação, “não há planeta B”.
Francisco é consequente, advertindo: “Mas também devemos prestar atenção a posições que defendem a natureza e, ao mesmo tempo, promovem o aborto ou a pena de morte.”
3. Em nome de Deus peço uma comunicação que combata as fake news e evite os discursos de ódio.
“Estamos todos obrigados a realizar uma cultura que combata as denominadas fake news ou notícias falsas, que evite os discursos de ódio e se desenvolva num quadro tecnológico que defenda os mais desprotegidos.”
Nunca houve tantas formas de comunicação e informação. As novas tecnologias permitem-no, mas, como tudo o que é humano, é necessário tomar consciência das suas vantagens e aproveitá-las ao mesmo tempo que se impõe perceber os seus perigos e ameaças e evitá-los. Aí estão os discursos de ódio, a calúnia e difamações, os aproveitamentos para enganos de pederastia, o linchamento mediático de pessoas e do seu bom nome, alienação com o uso obsessivo das redes sociais e a ilusão dos likes...
Nunca estivemos tão conectados e cada vez são mais as solidões. É urgente perceber que a comunicação virtual não pode substituir as relações e encontros presenciais. Francisco: “Que protecção podemos assegurar às crianças e aos jovens para que este novo mundo não atente contra o seu crescimento são e a sua vivência tranquila da meninice?”
(Continua...)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 de agosto de 2023