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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

DESCONFINAR A IGREJA. 2

 

1. Quem está interessado na Igreja, seja por razões de fé, religiosas, ou simplesmente históricas, é com certeza assaltado pela pergunta: o que se passa? De facto, os dados estão aí, clamorosos. Concretamente na Europa e em países como a França, a Espanha, os Países Baixos, a própria Irlanda, para não falar na República Checa, onde 80% dos habitantes se confessam ateus, a prática religiosa cai vertiginosamente, sobretudo entre os jovens, sendo dramática de ano para ano a diminuição do número de baptismos, de casamentos..., os seminários esvaziam-se, o clero envelhece...

 

O que se passa? Há razões exteriores à Igreja e outras de que ela própria é responsável. Vivemos numa sociedade que vive da imediatidade e do prazer, num consumismo devorador, que afastou do seu horizonte as perguntas essenciais, metafísico-religiosas, menosprezando a questão do sentido, do sentido último, esperando fundamentalmente respostas da tecnociência e das novas tecnologias. Mergulhados no mundo da imanência, a transcendência desaparece.

 

Mas as responsabilidades da própria Igreja não podem ser ignoradas. Como é patente a quem não queira fugir à verdade e à lucidez. A fé viva começa sempre com uma experiência de encontro. Jesus fez uma experiência avassaladora de Deus como Pai-Mãe, amor incondicional. A partir dela, anunciou o Reino de Deus, que é o reino da fraternidade, da alegria, da esperança, da liberdade, o reino das bem-aventuranças. Os camponeses pobres, todos os explorados, as mulheres oprimidas, os que lutavam pela vida contra a fome, a opressão, a doença, os pecadores públicos, os perdidos, escutaram a sua proclamação de libertação salvadora. Porque, lá no mais fundo, os seres humanos vivem da experiência negativa de contraste: há o que não pode ser, porque anula a vida, e o que deve ser, para que a vida ganhe sentido. Jesus anunciava o que deve ser: quem acreditava nele encontrava a salvação. Evidentemente, essa mensagem incomodou muitos que viviam de oprimir os outros, a começar pelos sacerdotes do Templo, que exploravam em nome da religião. Ameaçados pelo perigo que o Deus salvador de Jesus constituía, condenaram-no à morte, fazendo coligação com os interesses imperiais de Roma. E Jesus foi crucificado.

 

Aparentemente, era o fim. O enigma histórico do cristianismo é precisamente este: o que é que aconteceu para que os discípulos, que, desiludidos, se tinham dispersado, voltando aos seus ofícios, se reunissem outra vez e fossem anunciar, expondo a própria vida, pois morreram por isso? Reflectindo sobre tudo o que tinha acontecido, sobre a vida de Jesus e também a sua morte, o que o movia, o modo como se relacionava com Deus..., foram fazendo a experiência avassaladora de fé, de que aquele Jesus, o crucificado, está vivo em Deus para sempre, como esperança e promessa para todos: Deus não o deixou abandonado à morte. Ele é o Vivente.

 

Também Paulo fez essa mesma experiência e, de perseguidor, tornou-se Apóstolo. Fez milhares e milhares de quilómetros (vinte mil?), para levar o Evangelho a todos. E trabalhava para não ficar pesado a ninguém e para não pensarem que vivia disso.  Foi perseguido e morto. Mas a sua experiência marcou a História. O que vale um morto crucificado? Nada. Pelo contrário, pertence à lixeira do mundo. Então, se Deus não abandonou Jesus à morte, mas o ressuscitou, é porque está com ele e com a sua causa, a causa dos seres humanos, é ele que tem razão. Se Deus está com ele, o crucificado, ele vale e, se ele vale, todos valem. Por isso, “Já não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, todos são um só em Cristo.” Já ninguém se lembra de que é aqui que fermenta a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos? Esta foi a mensagem mais libertadora da História, para esta vida e para a eternidade. Agora, a existência ergue-se com sentido final, nesta proclamação de Jesus, como sublinhou o filósofo Ernst Bloch: “Eu sou a Ressurreição e a Vida”. E: “Sois todos irmãos”. Pela primeira vez na História, quando um senhor se convertia, participava na Eucaristia, sentando-se na mesma mesa que o seu escravo. Para Deus, todos têm valor, valor infinito, de filhos e filhas.

 

Esta é a Igreja dos começos, quando os cristãos o eram verdadeiramente, a partir desta experiência. Comunidades cristãs fraternas.

 

Depois, lentamente, foi o que se sabe. A Igreja tornou-se uma instituição de poder, cada vez mais poderosa e centralizada, imperial. Lá está o famoso Dictatus Papae, de Gregório VII: “Só o Romano Pontífice é digno de usar insígnias imperiais”. Daí, seguiu-se a corte, o fausto, vestimentas de luxo, títulos e dignidades: Eminência, Excelência Reverendíssima, Monsenhor... Nas celebrações da Eucaristia, com os chamados pontificais, ninguém minimamente atento poderia já reconhecer a memória da Última Ceia. Numa Igreja que discrimina as mulheres, não é possível reconhecer Jesus, que as incluiu em igualdade e ternura. E não é Jesus que está na base de uma Igreja com duas classes: o clero que manda e os leigos que apenas obedecem.

 

2. O Papa Francisco vem chamando a atenção para o “desafio” de “compreender o que Deus nos está a dizer nesta pandemia”. “Porque pior do que esta crise é o drama de desaproveitá-la, enclausurando-nos dentro de nós próprios.” Urge a abertura a “uma Igreja em saída”, desconfinada de dogmas estéreis, clericalismos, tradições fossilizadas, ritualismos mortos, que não transmitem vida. Para isso, só há um caminho: cada cristão voltar a fazer uma experiência pessoal de encontro com Cristo e o seu Evangelho. Continua.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 4 JUL 2020

A PANDEMIA. ONDE ESTÁ DEUS?

 

A Universidade de Viena investigou a relação da religiosidade com a pandemia. Os resultados mostraram que as pessoas mais religiosas utilizam estratégias mais activas para dominar a crise. Enquanto as pessoas menos religiosas tendem a reprimi-la ou a negá-la, as mais religiosas procuram apoio social e lidam com ela de modo mais forte, mais optimista e com mais serenidade.

 

São dados significativos. Não houve, creio, nenhum estudo sobre o outro lado, mas estou convencido de que dele resultaria que muitos, esmagados pela pandemia, pelo sofrimento, se perguntaram: Onde está Deus?

 

A História é um autêntico calvário. Hegel referiu-se-lhe como um Schlachtbank: um açougue, um matadouro. E lá está o famoso dilema de Epicuro: Deus tem de ser todo-poderoso e infinitamente bom. Ou Deus pôde evitar o mal e não quis, e não é bom; ou quis e não pôde, e não é omnipotente. Ou quis e pôde; então, donde vem o mal?

 

Mesmo teólogos de renome sentiram-se atenazados pelo dilema, de tal modo que alguns, como J. Moltmann, falaram de um Deus impotente, que sofre connosco; outros, como R. Guardini, chegaram a exclamar que “pediriam contas” a Deus pelo sofrimento dos inocentes, Karl Rahner disse que, “num tribunal humano, não sairia absolvido”, Karl Barth afirmou que, no Jardim das Oliveiras, quando Jesus rezava, suando sangue, Deus “se portou como Judas”, e Urs von Balthasar disse que “se deve falar de uma descarga de ira de Deus sobre aquele que lutava no Jardim das Oliveiras.” Nestas posições, a pergunta ergue-se talvez ainda mais veemente: acreditar como e para quê num Deus irado ou impotente?

 

A Filosofia e a Teologia ficarão historicamente devedoras ao filósofo-teólogo Andrés Torres Queiruga por ter desfeito o preconceito em que assenta o dilema (ver a sua obra marcante: Repensar o mal). De facto, como escreveu, “enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia acabar com todo o mal do mundo, se quisesse, ninguém pode crer na bondade de Deus, sem se ver obrigado a negar o seu poder; ninguém acreditaria na bondade de um cientista insigne que, podendo acabar hoje com os estragos do coronavírus, não quisesse fazê-lo, por altos e ocultos que fossem os seus motivos.”

 

O crente, nomeadamente o crente cristão, acredita no Deus Pai-Mãe, infinitamente poderoso e bondade infinita, que ama os seus filhos e filhas e só quer o seu maior bem. Donde vem o mal? Do mundo, que é finito e no qual há inevitavelmente mal. Não é possível um mundo finito, em evolução, perfeito e sem mal, porque isso  é uma contradição; como se não pode reivindicar a autonomia criatural da liberdade humana finita e a perfeição. “Afirmar hoje que Deus não é bom ou omnipotente, porque não cria um mundo perfeito, é o mesmo que argumentar que não o é, porque não quer criar círculos-quadrados ou não pode fazer ferros-de-madeira.” A primeira coisa que é, portanto, preciso clarificar é que o mundo produz mal, o finito não pode ser perfeito, tem falhas, carências, nele haverá choques, becos sem saída...

 

Desfeito o equívoco de um mundo finito perfeito e sem mal, avança-se para uma ponerologia (do grego, ponerós, mau): tratar do mal, antes de qualquer referência a Deus. De facto, o mal atinge a todos, crentes e não crentes, todos sofrem ao nascer, todos passam pela dor, todos morrem. E devemos todos estar unidos solidariamente na defesa da vida e na procura do real alívio do sofrimento de todos. A pergunta, agora, é outra: se o mal é inevitável, porque é que Deus criou o mundo? “Não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não sou pessimista: creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade: todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso, continuamos a trazer filhos ao mundo.”

 

Aqui, começa a pisteodiceia (de pistis e dikê, justificação da fé). Há diferentes pisteodiceias, pois todos, ateus, agnósticos, crentes, têm de enfrentar-se com o mal e cada um tem, dentro de uma cosmovisão, a sua resposta para o problema, a sua fé. O crente religioso crê e pensa que é razoável crer em Deus e até pode perguntar, com o famoso teólogo Hans Küng: “O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!” E crê que Deus não teria criado o mundo, se não fosse possível libertar-nos do mal. O que se passa é que o que não é possível num dado momento pode sê-lo mais tarde. A mãe sabe matemática, mas não pode ensinar matemática ao seu bebé enquanto bebé; fá-lo-á mais tarde. Alguém pode conceber-se a aparecer já adulto no mundo? A realidade é processual, e o crente em Deus como Amor e Anti-mal espera a salvação definitiva e plena para lá da morte.

 

Aqui, ergue-se outra objecção: depois da morte, não continuamos finitos? Os crentes confiam em Deus e podem mostrar, com razões, que a salvação eterna não é contraditória, pelo contrário. Sim, a pessoa é finita, mas com uma abertura infinita. Este é o mistério do Homem. Nunca estamos acabados, nenhum ser humano morre definitivamente feito. Não há nada finito que possa preencher a abertura humana, não há nada finito que possa realizar a nossa capacidade de conhecer e amar. Esta é a possibilidade que se abre ao crente a partir da fé: já para lá dos limites do espaço e do tempo, Deus mesmo entrega-se-nos nesta abertura infinita e finalmente seremos nós com Ele e nEle.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 JUN 2020

AS MARAVILHAS DE PORTUGAL

 

1. Evidentemente, fico contente e aplaudo o equilíbrio do défice, a descida do desemprego, alguma subida concretamente dos salários e pensões mais debilitados, o elogio estrangeiro ao desempenho do país em domínios económico-financeiros... Significa isto a minha completa sintonia com a aparente euforia nacional? Infelizmente, não.

 

2. E não sintonizo porquê? As razões são múltiplas e não posso elencá-las todas. Ficam aí algumas, um pouco desajeitadamente e correndo o risco de transgredir o preceito do “ne sutor ultra crepidam” (o sapateiro não deve ir além da sandália).

 

2.1. Mesmo do ponto de vista económico-financeiro, desconfio da afirmação de que chegou o fim da austeridade. Porquê? Vejo, por exemplo, o preço dos combustíveis, a carga de impostos e taxas e mais taxas, não sem sublinhar que os impostos indirectos são os mais injustos, porque cegos, atingindo tanto os ricos como os remediados ou os pura e simplesmente pobres... E, quanto ao futuro, receio o abalo que acontecerá com a subida dos juros e se alguma crise internacional chegar (já se sabe do abrandamento do crescimento económico da União Europeia no próximo ano)... Há uma almofada suficientemente sólida de suporte? De qualquer forma, a dívida toda (pública, das empresas, das famílias...) está em 700 mil milhões de euros (será que li bem?). E os portugueses não poupam, porque se criou a percepção de que tudo está sob controlo, e desculpam-se também com o facto de não valer a pena ou até ser prejudicial, ao pensar no que os Bancos cobram e, depois, as pessoas ainda se lembram de que vários Bancos faliram e, até agora, não aconteceu nada, excepto que os contribuintes vão ter de continuar a pagar... O turismo permanecerá com a força do presente? Que investimentos se tem feito? Que planos para tempos de crise? O crescimento da economia tem derivado sobretudo da procura interna, e os portugueses até se endividam para consumos dispensáveis e viagens. E não sofrem de eleitoralismo algumas medidas, cedendo às exigências das várias funções do Estado, dentro do fascínio causado pela tal percepção de que a situação económico-financeira está como nunca? E as famosas cativações?... E quem pensa no tsunami demográfico?

 

2.2. Incomoda-me sumamente a falta de racionalidade no país. Exemplos simples. Como foi possível chegar à situação inacreditável da CP, sem comboios?! E o aeroporto de Lisboa? Diz-se, e é verdade, que os portugueses trabalham mais horas do que os alemães. Mas o problema não é esse, o problema é a produtividade. Perto de onde vivo, há uma pequena estrada de muito movimento que esteve com o trânsito atrapalhado durante meses, porque tiveram de esburacá-la várias vezes, para meter mais isto ou aquilo; com racionalidade, far-se-ia tudo de uma só vez. Na minha terra, arranjaram a estrada no ano passado e já está cheia de buracos. Aliás, até nas auto-estradas há buracos, que eu nunca vi, por exemplo, na Alemanha, onde as intempéries de frio e neve são mais duras. Julgo que a situação também tem a ver com o seguinte: na mentalidade alemã, o que é bom para a Alemanha os alemães consideram-no bom para eles, mesmo individualmente considerados; no caso dos portugueses, não há a ideia de que o que é bom para Portugal é bom para cada um, e, por isso, cada um procura arranjar-se como pode, e aí está a corrupção: por exemplo, um milímetro de alcatrão a menos em milhares de quilómetros de estrada é muito dinheiro... E “desvia-se” dinheiro descaradamente em muitos lados: veja-se, mais uma vez a título de exemplo, o que aconteceu em Pedrógão, não se sabendo ainda muito bem para onde foi o dinheiro da generosidade dos portugueses, para não citar outras aldrabices. E há promessas e mais promessas para isto e para aquilo, quase para todos, e o problema, depois, é cumpri-las. Fica-se à espera de Godot... Onde está a honra?

 

2.3. E há o laxismo no cumprimento da lei. Está lá bem escrito, com imagem e tudo, que é proibido passear com o cão, mas lá andam os donos com os cães a produzir, para gáudio deles, doses maciças de cocó, que não limpam. E ai de quem ousasse chamar a atenção! Também é proibido andar de bicicleta, mas elas voam até nos passadiços, para aborrecimento dos peões, que querem andar calmamente, sem ser perturbados. Qual é a percentagem de condutores que dão os respectivos sinais quando mudam de direcção na estrada? Vejo, junto da minha casa, agentes da polícia a passear, fardados, passando ao lado de carros estacionados, apesar do sinal de proibição bem visível... Já estive para dizer-lhes que mandassem retirar o sinal de proibição, pois, se se pode não cumprir ali a lei na presença da polícia, porque é que se há-de cumprir nos outros sítios? Para fomentar o laxismo e, com o tempo, preparar a revolta: programas de televisão absolutamente estúpidos e deletérios e os extremismos confusionistas sobre as chamadas questões fracturantes, as relações entre sexo e género e pessoas e animais... E o exemplo inacreditável de políticos que faltam descaradamente às sessões do Parlamento? E as regalias e privilégios auto-concedidos? Leio que subvenções vitalícias para políticos custam 7,17 milhões de euros e a lista continua em segredo, que extras quase duplicam o salário dos deputados (no ano passado, o Estado terá gasto mais de 3 milhões só a cobrir deslocações feitas – ir e vir para casa ou trabalho político no seu círculo eleitoral), para não falar no caso dos deputados insulares... E, em geral, os portugueses não temos a cultura do trabalho, do dever e do mérito, e instalou-se a mentalidade do encosto ao Estado...

 

2.4. E há alguma falência do que é estruturante.

 

Neste domínio, o que se passa com o caso de Tancos é simplesmente rocambolesco e inacreditável, pois trata-se de algo que tem a ver com a soberania.

 

Quer se queira quer não, quanto à Justiça, para lá de ser lenta e, por isso, pouco eficaz, se se ler e ouvir a opinião pública, constata-se o pior: que foi atingida pelo véu de alguma desconfiança.

 

Quanto à saúde: quem frequenta hospitais fica abismado com as filas intermináveis... Os meios de comunicação social apontam para situações de autêntico caos. Ai dos pobres!

 

A educação: no estado que se sabe. Quanto aos conteúdos, não entendo o constante experimentalismo; será que não é possível estabelecer programas com um mínimo de estabilidade, para ser possível uma correcta avaliação, sem esquecer que a educação pertence à coluna vertebral de um país? Quanto aos professores, gostava de chamar a atenção para a instabilidade em que vivem: há antigos alunos meus da Universidade que andam há anos e anos a saltar de escola em escola, percorrendo o país de norte a sul, o que causa imensa perturbação para eles e para os alunos. Veja-se: nem podem constituir família nem ter filhos, e a desmotivação instala-se e a incompetência aumenta. Não há solução para isto? Quanto ao ensino superior, é preciso combater a estagnação e gostava de dizer que, em vez de se baixar as propinas para todos, era mais razoável atribuir bolsas para os mais frágeis economicamente, mas capazes. Aplaudo que se pense em acabar com elas e em encontrar mais possibilidades para que o maior número possível de jovens possa frequentar o ensino superior. E é necessário apoiar harmonicamente tanto as ciências ditas exactas e as tecnologias como as ciências humanas, pois, sem ética e humanismo, para onde pode levar-nos o progresso técnico?

 

3. Há um conjunto de questões que precisam urgentemente de um consenso mínimo nacional, com duração suficiente para a sua avaliação, referentes à educação, à justiça, à saúde, à segurança social. Para evitar o sobressalto constante.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 17 NOV 2018

"LIKAI-VOS" UNS AOS OUTROS

 

Quem nunca assistiu, num restaurante, por exemplo, a esta cena de estátuas: o pai a dedar num smartphone, a mãe a dedar noutro smartphone e cada um dos filhos pequenos a fazer o mesmo, eventualmente até a mandar mensagens uns aos outros? É nisto que estamos... Por isso, fiquei muito contente quando, há dias, num jantar em casa de um casal amigo, reparei que, à mesa, está proibido o dedar, porque aí não há telemóvel; às refeições, os miúdos adolescentes falam e contam histórias e estórias e desabafam e os pais riem com eles e vão dizendo o que pode ser sumamente útil para a vida de todos... Se há visitas de outros miúdos, são avisados... de que ali os telemóveis ficam à distância...

 

Vou constatando que, na sociedade da comunicação, há imensa incomunicação. Porque uma coisa é a comunicação formal instrumental e outra coisa é a comunicação na presença, com as suas emoções: a emoção da palavra nas suas tonalidades, o sorriso, as lágrimas, o toque, os silêncios...

 

Na era da comunicação, tanta gente só! Só, naquele sentido de sozinho e abandonado, não tendo ninguém com quem conversar, desabafar, dando e ouvindo uma palavra de conforto, de dúvida, de afago. Ao contrário da outra solidão, a exigida para construir uma obra, preparar um discurso, ler textos clássicos, daqueles que fundam a humanidade e lhe dão futuro, esta é uma solidão mortal. Há médicos de família que me dizem que muitos, concretamente pessoas idosas, os procuram apenas para isso: para terem alguém com quem trocar umas palavras e poderem exorcizar a solidão.

 

Também por isso, se eu fosse pároco, havia de pôr em marcha uma experiência que tive numa paróquia de Paris, quando era lá estudante. Havia uma “salle d’accueil” (sala de acolhimento), onde voluntários (médicos, psicólogos, mães e pais de família..., sempre com a indicação dos respectivos nomes e profissões) davam umas horas semanais de acolhimento às pessoas que vinham. A mim, que também constava, apareceu-me uma vez um senhor que me disse: “Só lhe peço o favor de me ouvir e que me não interrompa”, o que eu fiz. No fim de uma hora e tal, ele acabou e disse-me: “Não sabe quanto me ajudou, nunca o esquecerei”. E foi-se embora e eu não sei quem é, mas também me lembro dele.

 

A solidão pode até acontecer e acontece no meio do barulho ensurdecedor do tsunami da informação e das rajadas de opiniões e insultos e fake news, acoutados na cobardia da impunidade e do anonimato das redes sociais, que se tornaram frequentemente um campo de batalha de bárbaros, analfabetos e achistas...

 

A questão é, a um dado momento, a cisão entre a existência virtual e a existência real. Li, recentemente, num belo livro do jesuíta J. M. Rodríguez Olaizola, “Bailar con la soledad”, a história de José Ángel, um homem de Vigo, que vivia no meio do lixo, vítima da síndrome de Diógenes, que o levou a isolar-se da família, vizinhos e conhecidos.

 

mesmo assim, tinha uma vida activa e popular no Facebook, onde contava com 3.544 amigos e 361 seguidores, dando opiniões sobre a actualidade, desde a actualidade espanhola às questões do meio ambiente... Só passados vários dias é que uma mulher de Tenerife, a 1. 677 quilómetros de distância, estranhando um silêncio prolongado, deu pela sua falta e contactou a polícia, que, passado algum tempo, encontrou o corpo. Aí está o drama: a possibilidade de o mundo virtual se tornar o refúgio de gente só. Já Zygmunt Bauman, em “Amor líquido”, tinha prevenido com razão: “Parece que o sucesso fundamental da proximidade virtual é ter feito a diferença entre as comunicações e as relações. ‘Estar conectado’ é mais económico do que ‘estar relacionado’ mas também menos proveitoso na construção de vínculos e na sua conservação”.

 

Outra ameaça do virtual é a busca desenfreada da popularidade nas redes sociais, através da pressão de obter uma chusma de like e seguidores..., com as consequentes  ilusões e desilusões. Rodríguez Olaizola dá três exemplos.

 

Há pouco tempo, o cantor Ed Sheeran, um das artistas com mais êxito dos últimos anos, anunciou que abandonava a rede social Twitter, porque não aguentava a quantidade de comentários negativos que recebia de pessoas que não o conheciam mas o odiavam. “Um só comentário é suficiente para me estragar o dia”. Comenta o jesuíta: “A pressão amor-ódio  nas redes é demasiado exigente para muitos. Inclusive para quem é maioritariamente aceite.”

 

No outro extremo, em Novembro de 2015, a modelo Essena O’Neill, famosa pelas suas fotografias no Instagram, com centenas de milhares de seguidores e fabulosos contratos publicitários, anunciou que abandonava a rede. Não porque era rejeitada, mas por causa do excesso de aceitação: isso exigia-lhe demasiado tempo na preparação das fotos, no estudo das imagens... Declarou que tinha tomado consciência de que esse escaparate não era a vida real, mas tão-só uma ficção orientada para a aprovação,  para que chovessem os “like”... O preço, chegou a dizer, é “a tua vida e a tua auto-estima”.

 

A 20 de Setembro de 2017, uma conhecida influencer — assim se chama, como diz a palavra, quem, graças à sua relevância nas redes sociais, influencia, com as suas opiniões, imagens ou actividade, uma enorme quantidade de pessoas —, suicidou-se. Chamava-se Celia Fuentes. Pergunta-se: como é que se explica que uma jovem tão popular, com futuro e com uma vida aparentemente perfeita, tenha posto fim à vida? O jesuíta resume: “A ficção de uma vida ideal enquanto na vida real havia solidão e sensação de fracasso. A solidão de uma vida construída apenas para aparentar”. “Tudo é mentira”, foram as últimas palavras da jovem no seu WhatsApp.

 

Por isso, digo, a partir de um título que recebo de empréstimo da revista Philosophie magazine: “Likai-vos uns aos outros”, ponde muitos  like (gosto) uns aos outros. Mas tende cuidado!

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 22 SET 2018