Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
No centenário de Mário Soares lembramos a amizade com António Alçada Baptista e a fundação de “O Tempo e o Modo”.
Regresso sempre com muito gosto ao magnífico diálogo biográfico sobre uma vida plena entre Maria João Avillez e Mário Soares, agora reeditado pela Imprensa Nacional. E permito-me recordar o momento em que o futuro Presidente da República integrou o corpo da revista “O Tempo e o Modo”. Foi um momento especial, em que se nota uma certa premonição sobre a institucionalização da democracia. Aliás, a capa do primeiro número da revista é um raro prenúncio do futuro de liberdade que onze anos depois se tornou realidade. Mas comecemos pelo início dessa história, citando o próprio Mário Soares… “Só conheci o Senhor D. António (Bispo do Porto) (…) quando ele se encontrava já no exílio, em Roma, para participar no Concílio Vaticano II. Depois vim a encontrá-lo em Lourdes e, mais tarde em Tormes, perto de Salamanca. Mas isto já no consulado de Marcelo Caetano. Logo que apareceram os chamados ‘católicos progressistas’, compreendi a sua enorme importância política para o combate a um regime que se reclamava do catolicismo e que, pelo menos na sua fase inicial, tivera a bênção da Igreja. Nessa época, tive grande contacto com o Francisco Lino Neto, que conheci durante a campanha de Delgado. Antes, havia já conhecido o Francisco Sousa Tavares, a Sophia, o padre Felicidade Alves. O António Alçada Baptista, conheci-o quando era ainda proprietário da Livraria Morais, e tive contactos com ele desde os tempos em que era advogado. (…) Achei que o corte de setores significativos da Igreja portuguesa com o regime salazarista tinha uma enorme importância estratégica, porque retirava ao regime o seu principal argumento: dizer que a Oposição Democrática era constituída tão-só por comunistas e por velhos republicanos ultrapassados que, por despeito faziam o jogo dos comunistas”. De facto, no princípio dos anos sessenta, algo muda, é o tempo do Concílio Vaticano II, sob o signo renovador do grande Papa João XXIII. E um dia, conta Mário Soares, António Alçada pergunta-lhe se queria participar numa revista de cultura que desejava fundar, “O Tempo e o Modo”. “Não hesitei um momento, apesar da minha posição de ‘laico, republicano e socialista’, que ele conhecia. Disse logo que sim”. Nesse tempo, tentou empurrar o grupo fundador no sentido da democracia cristã. Falou com Giorgio La Pira, síndaco de Florença, e outros democratas-cristãos, mas sem sucesso. “Se os católicos tivessem ajudado pelo seu lado, teria sido muito mais rápido e fácil. Não quiseram, por razões de coerência ideológica, que, aliás, compreendo”. Se tivesse havido esse passo, teriam sido criadas outras condições para um abalo mais rápido da situação. Francisco Sousa Tavares foi o único que compreendeu a ideia de Mário Soares, ele que se envolvera no golpe da Sé com Jorge de Sena. Mas nessa altura ainda era monárquico, “o que atrapalhava um pouco as coisas”. Mesmo assim, entrou em contacto com o grupo de monárquicos democratas, desiludidos com o fracasso do Integralismo Lusitano, cujos melhores acabaram todos anti-salazaristas confessos, de Luís Almeida Braga a Vieira de Almeida – estabelecendo-se ainda a grande amizade com Gonçalo Ribeiro Telles.
Para Soares, o fundamental desse encontro e dessa abertura era dar credibilidade à Oposição Democrática, alargando-a para além do que Manuel de Lucena designava como um “grupo de velhos”, dividido entre o “reviralho da baixa” e a “social-democracia”. Havia que levar a água ao seu moinho, sentindo-se satisfeito por estar no grupo de “O Tempo e o Modo” – “janela aberta para outra geração e outra realidade”. E Nuno Bragança compreendeu bem esse entendimento. Porém. se alguns amigos o acusavam de andar “metido com os católicos”, Mário Soares respondia: “Não se preocupem! Sei o que quero e o que estou a fazer”. E Francisco Salgado Zenha concordava inteiramente. Em 1963, houve uma violenta diatribe que envolveu Sottomayor Cardia, então ainda no PC, contra uma “aliança encapotada” entre os católicos e a social-democracia, mas tudo seria passageiro e a coerência de Mário Soares não saiu abalada. E Cardia entraria no PS. Ficou, contudo, sempre uma profunda admiração e amizade com António Alçada – “uma figura humana encantadora e um grande escritor. A política sempre o interessou secundariamente, como mero imperativo ético. (…) arruinou-se alegremente, com a Livraria Morais, O Tempo e o Modo e a revista Concilium. Mas realizou uma obra extraordinária! (…) A par de Lino Neto, de Teotónio Pereira e de Sousa Tavares, desempenhou um papel corajoso e importantíssimo na tentativa de separar a Igreja do salazarismo. Como, décadas antes, tinham ensaiado os irmãos Alves Correia, o grupo Metanoia, com Ferreira da Costa e João Sá da Costa e o Professor Vieira da Luz, entre outros”. Quando realizou a entrevista com Marcelo Caetano, foi criticado e incompreendido. “Não foi grave, mas pagou-o caro, depois do 25 de abril. Alguns apressados ‘revolucionários’ voltaram-lhe então a cara, com muito mais oportunismo do que convicção. Sempre o estimei muito e tive ocasião, nessa época difícil, de lho demonstrar. Consolidámos então uma amizade muito grande, que perdura (estava-se no ano de 1996), e a que, pelo meu lado, se junta a admiração muito sincera pelo Homem, pelo maravilhoso contador de histórias e pelo escritor”. Sou pessoalmente testemunha disto mesmo sem qualquer dúvida.
No primeiro número de “O Tempo e o Modo” (janeiro de 1963), Mário Soares tratou do tema “Oliveira Martins e a Questão do Regime”. Mais do que um ensaio histórico, tratou-se de situar a génese do republicanismo em 1910, perante a crise do final do regime monárquico. Não poderiam, porém, confundir-se os aspetos ideológicos dessa conjuntura com as novas circunstâncias perante o salazarismo. Por isso, salientou a proximidade socializante de António Sérgio e Oliveira Martins, demarcada de uma lógica jacobina. Contudo, Mário Soares pensava na conjuntura do início dos anos sessenta, com a guerra colonial a despontar, a questão social a desenvolver-se e a renovação religiosa a ter lugar – como salientei a propósito de D. Alexandre Nascimento. Por isso, distinguia a diferença dos tempos e considerava as razões que levaram à vitória republicana, perante a incipiência socialista. “Só a história (que está por fazer!) das ideias vistas no seu contexto económico e social, nos poderia dar resposta para este problema” (quem teria razão sobre a resposta à crise do regime do princípio do século XX – Oliveira Martins, Antero e Eça contra Teófilo Braga ou Junqueiro?). “No entanto, apenas como solução provisória – seja-me lícito chamar a atenção (dizia M. Soares) para o seguinte facto sintomático: a adesão popular inegável que encontrou a doutrinação republicana, especialmente a partir do centenário de Camões, em 1880 – adesão que sobretudo avulta em confronto com o fraco eco que respondeu, mesmo nas massas operárias, às aspirações socialistas dos nebulosos doutrinários do século XIX! Não nos inculca esta fácil constatação – que resulta, aliás, de dados incontroversos – o problema da viabilidade do socialismo numa sociedade retrógrada como a do nosso século XIX e o da sua difícil articulação aos anseios mal definidos e às necessidades vitais do português comum?” E havia que compreender a existência de diversas correntes republicanas, devendo ficar claro que a questão do regime se tornava num “autêntico problema de sobrevivência nacional. É condição prévia de qualquer esforço renovador”. Nestes termos, a escolha da “questão do regime” para tema era um alerta para a urgência da construção da democracia, representada pela tentativa da geração de 1870, e em particular de Oliveira Martins para a criação de uma vida nova. A alusão histórica funcionava como uma verdadeira metáfora para os novos tempos, sem criar suspeitas para a censura, que tão duramente atingiria a nova revista. E o ponto de encontro para esse debate era uma iniciativa de ideias que abria caminhos novos, em nome de uma Oposição democrática plural, onde havia, além das oposições tradicionais, católicos inconformistas, que punham em causa o eurocentrismo e chamavam a atenção para a descolonização e para a autodeterminação e independência dos povos africanos, que davam importância ao Estado Social e aos movimentos emancipadores da sociedade e que estavam distantes do velho anticlericalismo. Aliás, a finalizar o texto que referimos, uma nota desenvolvida citava Bernardino Machado sobre a necessidade da tolerância em matéria religiosa. Por outro lado, a presença de um jovem dirigente estudantil, como Jorge Sampaio (também ele futuro Presidente da República), com o título inequivocamente atual, “Em torno da Universidade”, não poderia ser mais significativa. A renovação geracional era (e é) fundamental e a prioridade educativa exigia-se.
Assim, a presença de Mário Soares é, a vários títulos, marcante, como o tempo viria a demonstrar amplamente. Se politicamente a construção da democracia resultou de um compromisso complexo a partir do Movimento da Forças Armadas e do seu desenvolvimento e consolidação, tornando o 25 de abril uma data emblemática (que Francisco Sousa Tavares comparou ao primeiro de dezembro de 1640, do alto da guarita do Largo do Carmo), incompreensível sem o entendimento do processo dinâmico que se lhe seguiu e que permitiu a aprovação da Constituição da República fruto de dois grandes compromissos, envolvendo as Forças Armadas (e lembramos a coerência de Ernesto Melo Antunes) e os partidos políticos, que levaram ao respeito escrupuloso, apesar das naturais vicissitudes, por uma transição do poder militar para o poder civil democrático. Como dizia o primeiro editorial da revista, “o mal-estar geral e não localizado” existente entendia-se “como um estado de crise de consciência coletiva, mas partimos certos de que não enunciaremos todas as perguntas, nem estamos seguros de que as respostas que daremos serão as melhores”. A participação de Mário Soares e Salgado Zenha nesse projeto, que, seguindo a lição de Emmanuel Mounier, deveria envolver crentes e não crentes, constituiu uma espécie de premonição e de profecia – antecipando a institucionalização de uma democracia plural centrada numa cidadania inclusiva pela qual tantos cidadãos se bateram em nome, afinal, do que Mário Soares designou como uma questão de sobrevivência nacional.
“António Alçada Baptista – Tempo Afetuoso – Homenagem ao Escritor e Amigo de Todos Nós” (CNC – Presença) é um repositório essencial que nos permite recordar um inesquecível amigo.
AS SUAS HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS Era absolutamente extraordinário ouvir as suas histórias, fruto de uma memória prodigiosa para fixar os pormenores, os sinais, os significados e os sentidos. Um conhecido episódio passado com o Padre Anchieta era um bom exemplo. "Com urgência para regressar a uma aldeia, pediu aos carregadores para irem depressa". Com três dias de marchas forçadas, os índios sentaram-se a descansar, e o Padre não compreendeu a paragem, mas eles explicaram: "temos vindo depressa demais e a nossa alma ficou lá para trás. Temos de esperar que ela regresse". Há mil outros casos, como o daquela senhora que procurava uma rua, próximo do Bairro Alto e, perante a indicação do António, disse: "todos sabem tudo, cada um sabe o que sabe". Houve ainda um livro que nunca chegou a ver a luz do dia. Chamar-se-ia “Histórias de Maus – Elementos para uma Anti-hagiografia”. Não sei o que o António esperaria escrever. Tratava-se da descoberta dos sentimentos e ressentimentos que unem e dividem as pessoas. Afinal, como disse Frei Bento Domingues, António Alçada foi o nosso melhor cultor da “teologia narrativa”. Por isso, gostava de invocar o conto enigmático em “El Aleph” de Jorge Luís Borges “Os Teólogos”, em que Aureliano e João de Panónia, o ortodoxo e o herege, se encontram perante Deus no julgamento final, descobrindo que, para a insondável Providência, os dois inimigos, o aborrecedor e o aborrecido, o acusador e a vítima formavam uma única pessoa… Para António, a razão seria sempre insuficiente. Falta-nos tempo para as coisas essenciais, e ficamo-nos pela superfície, por medo ou preguiça. Em “O Riso de Deus”, lemos: “Hoje já não posso ouvir falar em dialética, em competição, em vencer na vida, porque acho que é com nomes desses que se tem tentado encobrir o projeto sempre adiado de descobrir como saber usar a nossa liberdade e, com ela, implantar no mundo o lugar do homem”. E Domingos Lobo, com a sabedoria vinda da velha Goa, diz a Francisco, ao descer a Avenida: “Sabe, a Europa é o continente da dúvida e nós, lá no Oriente, estamos presos pela fé. Eu não sei ainda bem se são as dúvidas se as certezas que fazem mover o mundo”.
TEOLOGIA DA FELICIDADE Percebe-se que o escritor se admire por não haver uma "teologia da felicidade" (ou “da ternura”, segundo Heinrich Böll), facto tanto mais estranho quanto um dos apelos "que resume e engrandece o Evangelho, é a proposta de felicidade contida nas Bem-Aventuranças: - Felizes aqueles que…" E como escreveu Martin Buber: “Deus não me pedirá contas por eu não ter sido Francisco de Assis ou mesmo Jesus Cristo. Deus vai-me pedir contas por eu não ter sido completa e intensamente Martin Buber”. Praticante ativo da “aristocracia do comportamento”, António acreditava na coerência, na generosidade, na dúvida serena, na procura do sentido da dignidade humana - demarcando-se dos "sentimentos que infetam o espírito do tempo: a culpabilidade dos ricos e o ressentimento dos pobres". E sentimos a recordação do Padre António Magalhães, seu professor em Santo Tirso, pedagogo da liberdade. "Andava por ali. Amigo de Leonardo Coimbra e Pascoaes, de Casais Monteiro e José Marinho, foi quem primeiro me aceitou e me animou a olhar interrogativamente para o homem e para o mundo.". E há a sombra de Lanza del Vasto: "eu tenho de passar pelo amor dos outros para chegar à minha serenidade e creio que a caridade é mais importante do que a sabedoria". "Viver é a obra de arte". José Cardoso Pires desejava reencontrar o "pássaro migrador rodeado de amigos" e disse dele que "a amizade sem humor não sabe ser tolerante" e "sempre que nos lembramos do muito que fez pela liberdade cultural e religiosa deste país, vemo-lo outra vez jovem a sorrir-nos de longe, num convite à aventura de pensar". Procurando compreender a realidade humana que nos cerca, dizia com Jean-Marie Domenach: "é preciso saber em que tipo de conhecimento está assente a nossa ignorância". E num domingo nublado, em que fomos ao Convento dos Capuchos em Sintra, com Domenach, Helena e Alberto Vaz da Silva, recordámos na rude simplicidade do lugar essa ignorância de que o conhecimento e a razão se alimentam… E outro amigo comum, Edgar Morin, pedia-nos, com Montaigne, uma cabeça bem feita, mais do que bem cheia… Helena, cuja luminosidade enriquecia a amizade, dizia que há poucas coisas adquiridas e que o mais importante está em aprofundar o relacionamento entre as pessoas, e os seus saberes.
UM AMIGO DO CORAÇÃO Alexandre O'Neill, amigo cúmplice de sempre, confessou que gostaria de escrever “Das tias em António Alçada Baptista”. Por isso, “Tia Suzana, Meu Amor” (1989) foi-lhe dedicado, com "um sussurro de saudade". As tias eram uma metáfora, como verdadeira introdução ao universo feminino. Em entrevista a Inês Pedrosa, António disse que o universo feminino se distingue por "uma história de generosidade, uma história dos afetos, uma história de procura de sentido de vida, de apreciação poética da vida, de perceção solidária, de solidariedade com as dores e os sofrimentos"… "Repara que o Evangelho não nos manda amar a humanidade, mas o próximo. É que a humanidade é uma abstração" - disse-lhe Lanza del Vasto. Fernão Mendes Pinto e as suas mil peripécias voluntárias e involuntárias revelavam muito melhor o inesperado sentido da vida do que alguém que se leve muito a sério. O “Quincas Berro d'Água”, de Jorge Amado, apesar de parecer um caso de compaixão, desperta para a esperança e para o gosto de viver. Como a poesia de Alexandre O'Neill: "é tempo de unir o mesmo gesto/ o real e o sonho…/É tempo de acordar nas trevas do real/ na desolada promessa/ do dia verdadeiro".
Na “Peregrinação Interior” (I, 1971; II, 1982), as aventuras de Sandokan e de Texas Jack levam a imaginação a amar intensamente as pessoas. E a epopeia de “O Tempo e o Modo” iniciada em 1963, merece lembrança. No terramoto político de 1958 (candidatura de Delgado, carta do Bispo do Porto), António Alçada deita mãos à obra na editora Moraes. Com os amigos João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Alberto Vaz da Silva, Nuno de Bragança e José Domingos de Morais concretiza uma revista de "pensamento e ação", aberta e crítica, como em Espanha os “Cuadernos para el Dialogo”, de Joaquín Ruiz-Giménez. Mário Soares, Francisco Salgado Zenha e Jorge Sampaio apoiam a iniciativa, conscientes da importância do diálogo com os católicos. E António usa eufemismos, que hoje nos fazem sorrir, falando, em vez de "instituições democráticas", em "instituições que pressupõem uma certa dialética". A censura não dava tréguas contra os perigosos "peixinhos vermelhos em pia de água benta". A modernidade reclamava Jorge de Sena, Vergílio Ferreira Agustina Bessa Luís, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo ou até António Sérgio. Eduardo Lourenço diz que "é para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce" (n.º 6, junho 1963). Ao projeto da revista somam-se, por ocasião do Vaticano II, a revista “Concilium”, bem como a colaboração com o Congresso para a Liberdade da Cultura de Pierre Emmanuel. Era a sociedade portuguesa que se abria, denunciando a “desordem estabelecida”. E, se dúvidas houvesse, valem "os depoimentos das gerações que nos seguiram, para quem essa aventura foi um acontecimento referência que acordou alguns e confortou outros perante um tempo carregado de dúvidas e inquietações". De acordo com o saber náutico sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. Era preciso que alguém ficasse do outro lado, mesmo incompreendido. Assim como assim… Como diz a tia Suzana: "Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas”.
“Tia Suzana, Meu Amor” de António Alçada Baptista (Presença, 1989) mostra-nos como o mundo e a vida se caracterizam e desenvolvem através dos sentimentos e dos afetos e que a compreensão do sentido obriga-nos a entender o mistério do amor.
AMOR, SERENIDADE E PAZ René Dubos disse um dia que "as descobertas que condicionarão o futuro não hão de vir do conhecimento do que se passa na célula, na bioquímica, na ciência ou na técnica, mas daquilo que nos ajude a compreender os mecanismos centrais que condicionam a afetividade". O amor, a serenidade e a paz têm de ser cultivados. Mas como integrar tudo isso nas nossas relações para que "a violência, a astúcia e a agressividade não sejam moeda de troca das relações humanas"? O valor dos afetos permite a passagem lenta e segura da natureza à cultura… E no entanto, perante o cenário de guerra, de incerteza e de violência, que nos rodeia, somos levados a descrer. Eis, por que razão Edgar Morin apela, do alto de um século de vida, para que acordemos da terrível letargia que corrompe o mundo e a vida. "Repara que o Evangelho não nos manda amar a humanidade, mas o próximo. E isto porque a humanidade é uma abstração" - disse Lanza del Vasto, um dia, a António Alçada Batista. E o certo é que de tanto se falar de crise, quase nos esquecemos do que devemos fazer para compreender quem está connosco e da necessidade de combater a indiferença. Mais importante do que os tratados de edificação moral é a vida prática e os exemplos colhidos nela, o saber de experiências feito. O anti-herói Fernão Mendes Pinto e as suas mil peripécias, voluntárias e involuntárias revelam muito melhor o inesperado sentido da vida do que a tentação de nos levarmos demasiado a sério. O Quincas Berro d'Água de Jorge Amado, apesar de parecer aos nossos olhos de europeus um caso de compaixão, desperta-nos para a esperança e para o gosto de viver. E a poesia de Alexandre O'Neill dá-nos o outro lado da realidade, com ironia e non sense, em nome da busca muito séria de sentido - "é tempo de unir o mesmo gesto/ o real e o sonho…/É tempo de acordar nas trevas do real/ na desolada promessa/ do dia verdadeiro".
LEMBRAR UM MUNDO DE AVENTURAS António Alçada Baptista recordava, tantas vezes, a lembrança das aventuras de Sandokan ou de Texas Jack, porque é bom que tenhamos a cabeça povoada de imaginárias aventuras, as mesmas que nos levam a compreender e a amar intensamente as pessoas. Por isso, costumava dizer: "tenho a certeza que Kierkegaard não teria escrito “O Desespero Humano” se tivesse nascido na Bahia, nem o Jorge Amado o Quincas Berro d'Água se fosse dinamarquês". E Eduardo Lourenço diz que "é para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce" (“O Tempo e o Modo”, n.º6, Junho 1963). Eis a chave da cultura como criação e da compreensão dos sinais dos tempos, em nome do respeito da dignidade humana. Devemos remar contra a maré. Esse o sentido da obrigação de compreender e conhecer o mundo e a vida. Segundo um cuidado saber náutico, António Alçada sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. É sempre indispensável que alguém fique do outro lado, mesmo que as incompreensões continuem. Assim como assim… Por isso, tantas vezes foi incompreendido. E a verdade é que só deixaremos de ser sonâmbulos (na expressão de Broch) se nos dispusermos a fazer da liberdade e do bem comum os indicadores estáveis das nossas bússolas. Assim, o autor da “Peregrinação Interior”, em vez dos banquetes de sabedoria pura, contrapunha o diálogo dos afetos, com elevação e inteligência, seguindo a lição de Denis de Rougemont. Afinal, é de sabedoria que se trata. Por isso, invocava Borges: "Creo que un dia mereceremos que no haya gobiernos". E insistia: precisamos de o merecer. E oiçamos a romanesca tia Suzana: "Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas. Uma palavra verdadeira pode ser um milagre: é a solidão derrotada". Apesar das suas depressões cíclicas, a verdade é que foi sempre a busca das palavras (e das pessoas que as proferem e que buscam nelas sentido) que ocupou António Alçada, para nos levar à compreensão do tempo e do mundo. Como nos disse, temos de ter o cuidado de compreender que “a verdadeira relação com Deus – como Deus é um ser superior, e os que se dedicam a isso, seres superiores”, não pode limitar-se às ideias, aos silogismos, às lógicas, às abstrações, porque uma teologia abstrata é uma idolatria.
COMPREENDER A CULTURA Compreender a cultura? Mas não é a cultura a capacidade de melhor entender a humanidade? Eis que temos de ser claros! Edgar Morin volta a apontar-nos o caminho: «Só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. (…) E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, é urgente pensar o futuro. (…) É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas e modos de pensar e de se comportar, que são hoje necessários». Uma celebração, qualquer que seja, centrada apenas no passado torna-se vazia e inútil. Compreender a cultura é procurar perceber o tempo e o futuro, mas sobretudo entender que, longe das idolatrias, devemos cuidar da dignidade do ser.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Lembramos hoje a revista “O Tempo e o Modo”, invocando António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, a propósito de um texto fundamental sobre o Concílio Vaticano II. Não pode ficar sem referência especial, no mundo das ideias, a partida de Frei Mateus Cardoso Peres, O.P. (1933-2020), pelo que representou a sua personalidade e pela obra que nos deixou.
UM TEXTO PREMONITÓRIO Conheci-o bem por razões familiares e tenho pela sua vida e obra uma grande admiração. Devo lembrar que o grupo de que fez parte dos “católicos inconformistas” integrou alguns dos meus grandes amigos, como António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva e João Bénard da Costa – num conjunto mais vasto de quem sempre estive próximo, entre os quais se contam Pedro Tamen, Maria Isabel Bénard da Costa, Nuno Bragança, Ruy Belo, M.S. Lourenço, Manuel Lucena, Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Falo da Aventura da Morais, de “O Tempo e o Modo”, da revista “Concilium”, do Centro Cultural de Cinema (CCC) e do Centro Nacional de Cultura. E se há quem obrigue a considerar com o maior cuidado a expressão de Ruy Belo sobre “Os Vencidos do Catolicismo” é exatamente Frei Mateus. Com efeito, o tempo passou e não devemos esquecer que o célebre poema abria já a porta relativamente aos exatos termos do que representa essa geração. “Nós que perdemos na luta da fé / não é que no mais fundo não creiamos / mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos”… O poeta bem conhecia a origem oitocentista da designação dos “vencidos da vida”, e sabia que o tempo os tornaria vencedores, não no sentido temporal, mas no sentido das ideias e da essência do espírito. Há trajetórias diferenciadas, é certo, mas há também que entender os frutos de longo prazo que foram lançados… “Victus sed victor” – e porque há quem continue a resistir ao entendimento sobre os sinais dos tempos, a verdade é que continua atual esse combate sereno e persistente não por uma Igreja triunfante, mas por um caminho cristão de respeito mútuo e de dignidade. Não esqueço, há muitos anos, um convite que Frei Mateus me fez para ir falar a Fátima à comunidade dominicana sobre pluralismo e tolerância. Lá estivemos, uma tarde de Primavera, e não esqueço as estimulantes reflexões de outro saudoso amigo, Frei José Augusto Mourão. Longe de orientações fechadas, eis que ficou uma pergunta, mais do que quaisquer respostas: como lidar com os intolerantes? Como distinguir a tolerância, enquanto respeito e não indiferença, a intolerância e as pessoas intolerantes? E o tema continua na ordem do dia. Frei Mateus era um intelectual rigoroso mas estimulante, avesso às simplificações. Com ele sabíamos que a dignidade humana exige procura, e que o diálogo só vale a pena se for trabalhoso… Sempre nos ensinou, por isso, que a teologia obriga a conhecimento e a ir além da superficialidade – o “aggiornamento” obrigaria, pois, a tempo e a reflexão. Daí a importância dos célebres colóquios para assinantes da “Conciluim”: refletindo sobre e com Schillebeeckx, Chenu, Congar ou Balthasar… Leia-se, por isso, um texto fundamental e premonitório publicado no nº 32, de “O Tempo e o Modo”, de novembro de 1965, intitulado “A 4ª Sessão, o Concílio e a Igreja”. É um artigo histórico. Assina-o Manuel Frade, pseudónimo de Frei Mateus Peres, apropriado para evitar mal-entendidos. Aí encontramos a defesa de uma fraternidade colegial conciliar, a crítica de alguma excessiva prudência papal e a defesa da necessidade de retirar consequências no tocante à liberdade de consciência e à liberdade religiosa… “Permanece problemático saber se o homem do nosso tempo sentirá, face a este documento (sobre liberdade religiosa), a Igreja francamente simpática ao respeito devido à liberdade religiosa dos não-católicos e se se convencerá de que ela renunciou de uma vez para sempre ao imperialismo doutrinal, para enveredar por caminhos de diálogo, de fraternidade, de serviço”. Já quanto ao importante esquema 13 (que se tornaria a constituição “Gaudium et Spes”), salientando a sua importância, temia que lhe pudesse faltar “simplicidade, clareza e força, (…), para poder ajudar os mais desesperados”. E dava um exemplo: “o esquema quando trata da guerra e paz, condena o uso das armas atómicas mas não a sua posse, o que é sancionar as armas de dissuasão, os orçamentos militares, a guerra fria”…
O TEMA DO CELIBATO Por outro lado, as orientações sobre a vida sacerdotal, designadamente quanto ao celibato, deveriam ter merecido mais atenção, mas foram subtraídas pelo Papa à discussão da Assembleia… Ontem como hoje, o velho tema persiste, e o autor não deixava de colocar o dedo na ferida. E afirmava: “Seria talvez mais eficaz e mais puro, em vez da avalanche de textos equilibrados, sensatos e timoratos, propor ao mundo, em toda a sua inteireza, uma bela linguagem profética, que não pretendesse solucionar os problemas à luz da moral atual, mas que lançasse os espíritos para maiores exigências, experiências mais radicais. Estamos confiantes que essa linguagem seria útil, certos de que as dificuldades são mais frequentemente superadas do que resolvidas e de que ela iria em cheio atingir aqueles que mais desesperadamente estão à espera, mesmo inconscientemente, da Igreja de Cristo. O Concílio apareceria então como verdadeiro acontecimento espiritual, no sentido mais nobre do termo, concretização do “amor pela humanidade” na palavra já citada de Paulo VI, da intuição genial de João XXIII”. E acrescentava que a mensagem poderia não tocar o homem da rua, por ser superficial e faltar-lhe novidade. E, citando Charles Péguy, sem o dizer, afirmava que seria melhor ser mais “místico” e menos “político”. De qualquer modo, para Frei Mateus, os esquemas sobre a liturgia e sobre o ecumenismo eram muito bons e muito positivos… Sobre as relações com o mundo as dificuldades eram naturalmente maiores, e não podemos esquecer o que ocorreu entre o naufrágio do primitivo esquema 17 e o esforço titânico de João XXIII, com a encíclica “Pacem in Terris”, para dar sentido a uma relação positiva e transformadora da Igreja no mundo, no sentido de uma cultura de paz… Esta expressão crítica dá-nos boa nota sobre a extraordinária independência de espírito do pregador e sobre o seu empenhamento na renovação da Igreja. No entanto, havia “toda uma série de textos conciliares (…) preciosamente válidos e que nos dizem muitas coisas muito úteis. Em certo sentido podemos dizer que ao pós-concilio caberá decidir da sorte do Concílio”. Assim tem acontecido, como sempre ocorre na História. “Se os textos forem bem aproveitados nas suas facetas positivas, se se mantiverem bem vivos o espírito e o clima do Concílio no seu pendor mais corajoso, a Igreja nas suas múltiplas manifestações locais, poderá conhecer uma certa transformação, condição indispensável de um certo tipo de diálogo com o mundo”… Frei Mateus conhecia as audácias de S. Tomás de Aquino, bem distantes de qualquer lógica conformista. E quando relemos este texto, vem à memória esse lado saudavelmente crítico…
António Alçada Baptista: um olhar para a frente e para trás, todos unos e porque o que late é latente, está no muito fundo esta saudade.
António Alçada, António Alfredo da Fonseca Alçada Tavares Baptista faria um outro aniversário ontem, dia 29 de janeiro. Será sempre um privilégio lembrá-lo.
E falávamos também tanto, do reter e do libertar, do devolver à terra e ao céu o que lhes pertence, falávamos dos lugares dos fragmentos e da-nesga-porta-do-meio, que nos escapa tantas vezes, e afinal por onde quase tudo se vê. Sobretudo o amor e a gentileza.
Tentávamos, afinal, por palavras, em diversos campos de tensão, serenar naquele equilíbrio do pólo-a-pólo, que lhes desse uma instância de totalidade, e ali sossegassem as palavras dos pensamentos; e ali sossegássemos longe, bem longe da intranquilidade.
As secretárias do António Alçada eram um mundo aparentemente de caos de papéis e livros e lugar de algumas fotografias. Nessas secretárias, as letras nos papéis rabiscadas por ele, eram todas livros por escrever, assim o senti sempre, num reflexo de muitos reflexos do Autor.
Estão para aí uns livros, estão sim senhora, dizia num sorriso de ternura olhando para os papéis, um dia escrevo-os de rajada. Mentira! Não sei se terei tempo. De resto ando numa fase em que os acontecimentos aborrecem-me, “Les événements m’ennuient”- como dizia o Valéry.
António era também Autor testemunha, desde o palimpsesto ao livro. Ele escrevia num silêncio escutado lá do torreão do exprimir do Escritor e duvidava da mão que escrevia, se acaso se alheava por tempo demais, olhando o rio.
Os recessos, os recantos, recuam-me. Sei que também é assim a natureza do envelhecer e olha que estranho!, não me perturba acontecer-me isto.
Para mim o António foi um horizonte, foi um defronte. Desconhecerei sempre se a sua terna tolerância foi demasiado indulgente às minhas perguntas e aos meus silêncios.
Sei que num 29 de janeiro o ajudei numa limpeza de prateleiras. Os livros voavam e o António dizia-me, a rir como um miúdo
Estou no episódio! Estou no episódio!
Enfim, porque o que late é latente, está no muito fundo esta saudade do António Alçada.
O CÉLEBRE CASO DA NÃO PRODUÇÃO DE PORCOS… 28 de março de 2019
O António Alçada Baptista era um contador de histórias inesgotável. Estar-se com ele era sempre um deleite, uma vez que se passava sempre um tempo fantástico… E gostava muito de contar o que aqui vou recordar, e que é a ilustração suprema do analfabetismo da tecnocracia. Millor Fernandes dizia, aliás, que «a economia compreende toda a atividade do mundo. Mas nenhuma atividade do mundo compreende a economia». E o António dizia por outras palavras isto mesmo.
Por isso, recordo o célebre caso da não criação de porcos. Tudo partia da existência de um mirífico subsídio por cabeça para a não criação de porcos. Quantos desses apoios não conhecemos nós, em várias circunstâncias e por múltiplas razões? A história tinha a ver com o requerimento feito por um pobre agricultor a um distante Ministro. Basta ler a parte final para entender tudo. Oiçamos. «Excelência. Estes porcos que não criaremos teriam comido 10 mil sacas de trigo. Ora, assegurando-nos que o governo indemnizará igualmente os agricultores que não cultivem o trigo.
Nesta ordem de ideias, poderemos esperar que nos deem qualquer coisa pelas sacas de trigo que não serão cultivadas para os porcos que não criaremos. Ficar-vos-emos extraordinariamente reconhecidos se nos responder o mais rapidamente possível, porquanto julgamos que esta época do ano será a melhor para a não criação de porcos e, por isso, gostaríamos de começar quanto antes. Queira Vossa Excelência, Senhor Ministro, receber os protestos da maior consideração. P.S. – Excelência. Não obstante o exposto poderemos engordar 10 ou 12 porcos só para nós, sem que isso venha a perturbar a nossa não-criação de porcos? Queremos assegurar que esses animais não entrarão no mercado e não significam mais do que a maneira de termos um pouco de toucinho e presunto para o inverno». O exemplo é extraordinário. Rio-me comigo mesmo quando lembro o gozo sentido pelo António a contar este episódio, e todos nós a ver um funcionariozinho de pala e mangas de alpaca e receber a missiva e a tentar responder-lhe com toda compostura …
E corri à estante para reler o Alexandre O’Neill, amigo do peito do António, que insistiu sempre que se davam bem porque nunca se levaram demasiado a sério…
«Ó Portugal, se fosses só três sílabas, linda vista para o mar, Minho verde, Algarve de cal, jerico rapando o espinhaço da terra, surdo e miudinho, moinho a braços com um vento testarudo, mas embolado e, afinal, amigo, se fosses só o sal, o sol, o sul, o ladino pardal, o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha, a desancada varina, o plumitivo ladrilhado de lindos adjetivos, a muda queixa amendoada duns olhos pestanítidos, se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos, o ferrugento cão asmático das praias, o grilo engaiolado, a grila no lábio, o calendário na parede, o emblema na lapela, ó Portugal, se fosses só três sílabas de plástico, que era mais barato!
*
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos, rendeiras de Viana, toureiros da Golegã, não há «papo-de-anjo» que seja o meu derriço, galo que cante a cores na minha prateleira, alvura arrendada para o meu devaneio, bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço. Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, golpe até ao osso, fome sem entretém, perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes, rocim engraxado, feira cabisbaixa, meu remorso, meu remorso de todos nós... »
Diz-se que o tempo sempre se anuncia e com ele se intui o que se pode e o que se não vai poder nunca. É uma espécie de condenação definitiva que se admite de uma forma ou de outra.
E o que fazer do conhecimento dos olhos quando de frente para nós despertam cheios de imensidades e medos e perfumes que se deixam cair entre lençóis por estrear?
Não há que procurar razões, nem sentá-las em sofá que as sossegue. O território tem a força do aço e a sua violação implicações fortíssimas na vida-a-vida que se diz não perceber, não designando essa afirmação real estado.
E hesita-se mais e uma vez mais ou, nem se hesita, recusa-se o que em sonho desperto nos mantém aptos a acreditar que porventura um dia será diferente.
A lógica é excessivamente familiar e reduz sempre a metade qualquer coisa por nascer.
Assim e de outras formas se aceita ser clandestino junto e para além da fogueira que, quando perto ou por tão perto e de tão perto, se fecham os olhos com a ajuda das mãos porque tão perto é demais.
O silêncio mais profundo apodera-se de nós, quando a possibilidade é o calar, num brutal movimento de fogo.
Um dia, um dia de país não esperado, todos os obstáculos são vantagens e enfim de súbito, de jorro, de esperança desalmada, tudo acontece. A densidade é tão segura quanto a dimensão da clareira que ora se permite. O sentido último da vida faz sentido por instantes: ao rubro.
Só o tempo é esquivo. Essoutro coto de vela.
E, antes que alguma ausência se sobreponha, antes que outro antes faça face ao que se vive, antes que o futuro possa não acontecer e antes que eu mais não possa, deixa que te diga
Meu Amor
Teresa Bracinha Vieira
Publicado pelo António Alçada Baptista na Revista Máxima em 1999
Obs. Em 2006/07? Tive oportunidade de ver uma retrospetiva de Palermo no Kunsthalle Düsseldorf. Fiquei sensível ao seu trabalho e tento saber até onde vai a minha curiosidade desde então. Daí esta escolha de hoje, e, que seja bem recebida também no site de Alçada Baptista já que foi a seu pedido que escrevi este texto há 19 anos sobre o tempo e o amor.
É altura de partir o calor, o bom calor de julho e o de agosto que dantes esvaziava o Chiado. O calor dos desejos dos sorvetes e dos refrescos, o calor que amolece o cérebro e o asfalto, o calor das toilettes em desalinho e o recordar das histórias imensas do António Alçada.
Estávamos ambos sentados no Largo do Camões a registar o que por ali fulgia em agosto e, na sequência de falarmos em publicações de livros com empurrões de quem tem os ditos conhecimentos e os exerce em função de trocas, e o António diz-me - no meio de um «ó que óptimo gelado este.»
Sabes Teresa, um dia aconteceu-me uma fantástica. Não é que o diretor do jornal x, bem conhecido como sabes, escreveu-me uma delicadíssima carta a convidar-me para escrever uma coluna semanal nesse jornal, e depois de me deixar clara a honra que seria para o Jornal se eu aceitasse, acresceu
«E saiba V. Exa que nada terá de pagar por isso.»
E entupimos ambos o engolir do gelado e rimos tanto que bamboleámos os gelados no ar de jeito a que os não perdêssemos na totalidade espraiados no chão.
E mais calmos continuámos a dialogar sobre o futuro próximo de setembro e das saídas dos livros no Natal fazendo apostas em quem os iria lançar nas respetivas apresentações explicando as razões das pressões nas escolhas. E assim o país das dignidades de todas as ordens e de todas as vacinas, nada pergunta ou perguntava que fizesse ou pudesse fazer estranhar. Concluíamos. Também achávamos que cavaleiros e comendadores ansiavam pelo Inverno, de modo a que usassem os mantos por baixo do pardessus, sobretudo quando atravessavam a Rua dos Retroseiros e uma leva de vento lhes enfunasse as insígnias.
E aguardávamos setembro. Já tínhamos ido ao Vau estar com o Mário que enviava carro a Lisboa para levar o Alçada até ao Algarve e este por sua vez, por duas vezes me levou a mim também. E assim sendo setembro aproximava-se com o conselho do António:
Teresa, querida Teresa, nunca passes uma camisa a um homem. Dás cabo dele e de ti. Ambos se habituam a uma espécie de filoxera dos sentimentos.
As relações de sexo podem ser vividas enquanto somos novos, mas os encontros de amor exigem maturidade, quase ausência de desejo. Gosto de estar aqui contigo, fazer festas no teu corpo já cheio de tempo, apetece-me beijar-te porque estou a beijar a tua história pessoal, aquilo que viveste, as tuas alegrias e as tuas dores. É nestas coisas que sinto que envelhecer é uma arte e que o amor só se vive plenamente quando o desejo já não comanda o nosso encontro mas sim aquilo que somos e a qualidade da nossa relação. Quando casei tu eras nova, mas nunca consegui estar contigo como estou agora.
(…) Volto à mesma. Temos que mudar a vida e isso não se consegue com revoluções. Consegue-se por outra forma de olharmos uns para os outros.
António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença
- Hoje não sei se é da minha idade, mas o que mais me separa dos outros é a natureza das suas aspirações. Eles não querem nada do que eu quero. Mas devo dizer-te que isso já não me preocupa muito. Aliás, já poucas coisas me preocupam nem mesmo a maneira de encarar a morte. Mas por outro lado sinto que os outros fazem parte da minha condição terrena.
António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença
António Alçada Baptista, a ternura, a delicadeza num projeto de vida diferente em permanente respeito pelo misterioso. Este meu padrinho de casamento, este meu padrinho DE MUNDO, bem me ensinou a acenar SEMPRE àquela natureza que era a única chave de entrada e de saída AO CERNE DO SER.