Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A palavra eu acredito nela Na sua pedra rugosa na sua superfície De astro inominável como o fogo A palavra eu acredito na sua sombra Na sua medida singular Na sua circunferência exacta quando arde Na vida com seus animais urbanos Evolando-se os animais no verbo escuro Acreditar no infinitivo lodo do seu jogo E não permanecer na sua cegueira incerta A poesia quando se rende ao real literal Ausente da vida que a perfura A palavra eu acredito nela e na sua luz secreta Entre o seu fazer e o ser dita na leitura
in A Sombra no Limite, 2004
I believe in the word...
I believe in the word Its rugged stone its surface Star as unnamable as fire I believe in its shadow Its singular measure Its exact circumference as it burns In life with its urban animals Animals vanishing in the verb’s darkness To believe in the infinite swamp of its sport And not dwell in uncertain blindness Poetry surrendering to literal reality Absent from the piercing life I believe the word, its secret light Between its making and its telling as it is read
A leitura da última obra de António Carlos Cortez, Voltar a Ler – Alguma Crítica Reunida (Sobre Poesia, Educação e Outros Ensaios)(Gradiva, 2019), permite-nos tomar contacto com um conjunto polifacetado de textos, com uma sólida complementaridade e uma coerência que merecem ser elogiadas.
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA E DA LITERATURA Alguém que já se afirmou como poeta, surge neste livro, essencialmente, como crítico, como pedagogo e como cidadão preocupado com a vida cultural. Tive o grande gosto de participar na apresentação pública do livro, com o autor, Lídia Jorge e Isabel Soares, e pudemos partilhar em análises sucintas o sentido crítico e pedagógico que António Carlos Cortez empresta aos textos que agora reúne, produzidos em colóquios, jornais e revistas, e que, em boa hora, vêm a lume num tomo que é mais do que uma reunião de participações avulsas, já que nos revela não só uma panóplia de diversos autores relevantes do nosso panorama literário, mas também uma análise crítica sobre o reconhecimento da importância da leitura e da literatura no tempo atual. Dir-se-ia, assim, que o “voltar a ler” tem um triplo significado: como releitura de textos publicados pelo autor ao longo do tempo; como apelo à reflexão e ao tempo da crítica, num momento tão dado à superficialidade e ao imediatismo; e como uma séria invetiva contra a mediocridade e contra o esquecimento e a indiferença relativamente ao livro e à leitura. Começando por falar-nos da urgência da literatura, António Carlos Cortez divide o livro em três partes: sobre os ensaístas, sobre voltar a ler (a propósito de poetas portugueses modernos e contemporâneos) e sobre educação e cultura. Estamos perante um rol muito rico, em que os ensaístas e os poetas nos levam a compreender o que António Ramos Rosa nos ensina; “a significação de um poema especificamente moderno depende tanto dele como de nós e que é precisamente desta colaboração profunda entre criador e leitor que uma significação pode surgir e atualizar-se”. E quando se fala do poema, podemos facilmente chegar ao ensaio, que participa da mesma força criadora e do mesmo sentido crítico relativamente à urgência da literatura. De facto, “um crítico literário ‘tem de ser um homem total, um homem de convicções e de princípios, e com conhecimento e experiência de vida’, diz-nos T.S. Eliot (…) e é por se falar de literatura e, transversalmente, de Humanismo ou de valor das Humanidades, que estes textos podem ser lidos como partilha dessas convicções e princípios, propondo ao leitor uma espécie de pacto ou de aperto de mão que define a própria relação entre quem lê e aquele que é lido”.
TEMAS E AUTORES Texto a texto, encontramos referências de memória e de vida, num permanente apelo aos textos e aos seus ritmos: Antero de Quental, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Mário Dionísio, Sophia de Mello Breyner, David Mourão-Ferreira, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade… Mas chegamos ainda a Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Ruy Belo, Herberto Helder, João Rui de Sousa, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina. E ainda encontramos naturalmente, como numa encruzilhada luminosa da República das Letras: Camões, Vasco Graça Moura, Eduardo Lourenço, Vítor Aguiar e Silva, Cleonice Berardinelli, Manuel Gusmão, Fernando Cabral Martins, Richard Zenith ou Paula Morão… E sente-se a cada passo a lição de Jacinto do Prado Coelho ou de Jorge de Sena, expressa por Fernando J.B. Martinho: “um dado acontecimento literário na diacronia da nossa historicidade tem sempre de ser compreendido à luz de um quadro mais vivo de marcos e referências”. O poeta e o ensaísta não estão sós, o mundo e a vida alimentam-nos, o que permite entender a pergunta bem presente na torre de Montaigne: Que sais-je? Uma pergunta, mais do que respostas - é esse quadro vivo que o autor procura desvendar, não a partir de elucubrações fantasiosas, mas sim segundo uma compreensão rigorosa dos textos. Que é a crítica senão o respeito escrupuloso pelo dito e pelo escrito? Afinal, qual é a melhor pedagogia das humanidades senão o apelo à leitura direta dos originais sem a falsificação dos intermediários ou dos resumistas… E chegamos à necessária pedagogia. Vítor Manuel de Aguiar e Silva ensina-nos que “é o texto poético que deve concentrar a relação ensino-aprendizagem nas aulas de língua materna, dando às crianças e jovens a memória histórica que lhes falta”. Não é preciso dizer muito mais, sendo que, no entanto, aqui está dito o que é mais difícil na função motivadora do mestre em humanidades. Não se trata de fechar a literatura sobre si mesma ou sobre simplificações, mas de abrir horizontes para vários saberes – entendendo o que Eliot dizia sobre o conhecimento perdido na informação, e a sabedoria perdida no conhecimento. Sophia insistia que não podemos distinguir as redondilhas de um alexandrino se não entendermos o movimento e o número, a arte e a ciência. Eduardo Lourenço, fio de Ariadne vigilante, afirma-nos por isso que “a poesia é a realidade enigmática e luminescente como a Esfinge ou como a face de um antigo deus”. E não se trata de um jogo de palavras, mas da compreensão exata de que só a visão crítica dos mitos nos permite perceber a relação entre vida e destino. E o poético “é o inefável que procura concretizar-se pela ação artística, espelho da História”. Daí a tentativa de Lourenço para construir “a dialética mítica da poesia moderna portuguesa”, subjacente à psicanálise do destino português. E assim a “Mensagem” de Pessoa passou a ter de ser lida de outro modo, como um Espelho mágico decifrador de estranhos enigmas…
LER E VOLTAR A LER E eis-nos chegados a Antero de Quental, supremo interrogador dos nossos enigmas. Pode dizer-se que em Voltar a Ler a referência central pode ser esta carta do genial poeta a Jaime Magalhães de Lima: “A natureza tinha-me talhado para romântico descabelado, pessimista, satânico, que sei eu? Mas tinha-me dado, ao mesmo tempo, por singular contradição, razão e sentimento moral para muito mais e melhor. Daí o conflito, a guerra civil, a luta interior. Essa luta foi a minha vida, e é o que explica a aparente singularidade (que reconheço ser grande) e a esterilidade dela. O que venceu em mim foi a razão e o sentimento moral; mas a imaginação e a paixão, embora vencidas, não se submeteram. Ora não é essa a razão, mas a imaginação e a paixão que fazem o poeta (…) os últimos vinte sonetos do meu livrinho são uma coisa nova, a nota cristalina duma poesia nova, de verdadeira poesia (ouso dizê-lo) do futuro”. O percurso biográfico, o caminho do poeta confirma como a literatura é chave da arte de aprender. De facto, a poesia concilia palavra e pensamento, sendo para Antero (com a sua tragédia) “a possibilidade de viver” uma “partícula de pó das estrelas num paraíso perdido que só a Poesia, suprema arte pode tornar real”… Eis por que razão António Carlos Cortez tem razão no apelo fundamental que faz: “Discutindo-se o lugar do livro na escola, raramente se diz o que muitos sabem: a única estratégia de combate contra a ‘nova ignorância’ (no fundo velha, se virmos bem…) passa por trazer de novo o livro para a Escola e a Universidade…”
Guilherme d'Oliveira Martins
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