Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“A Intimidade de Um Intelectual Indomável” é o subtítulo da Fotobiografia de António José Saraiva, da autoria de António Manuel P. Saraiva, José António Saraiva e Pedro António P. Saraiva (Gradiva, 2021).
A MARCA DO INCONFORMISMO
O percurso de um dos intelectuais mais importantes da segunda metade do século XX português constitui excelente oportunidade para conhecermos um pensamento complexo, cuja coerência significa uma permanente busca de razões de ser para a história portuguesa, com recusa de conclusões adquiridas. O inconformismo é uma marca indelével que, longe de significar hesitação, representa a clara compreensão de que os factos históricos não têm explicações unívocas, resultando sempre de uma confluência de fatores contraditórios e heterogéneos. Deste modo, percebemos que o caminho de António José Saraiva é de permanente exigência, com aproximações e distanciamentos relativamente a autores e explicações, em resultado de um sentido crítico apurado, essência do fenómeno cultural e da sua compreensão. Ser “intelectual indomável” significa, assim, colocar o pensamento como bussola para uma caminhada capaz de conciliar a liberdade de espírito e o rigor na análise dos acontecimentos. E o irmão, José Hermano Saraiva, revela-nos uma explicação: “a ideia que ele escreveu na minha fita de formatura: quando tiveres encontrado enfim uma verdade, rasga-a e procura outra verdade melhor”. Ao seguirmos a obra de António José Saraiva, encontramos na dissertação de licenciatura o tema da poesia de Bernardim Ribeiro (1938) e no doutoramento em Filologia Românica a referência a Gil Vicente e ao fim do teatro medieval (1942) e em ambos encontramos a originalidade e a relevância das considerações do jovem investigador, em temas cruciais na afirmação da cultura portuguesa. No Liceu Gil Vicente fora aluno de Fidelino de Figueiredo e em 1940 travara conhecimento com Óscar Lopes, seu companheiro na empresa referencial da “História da Literatura Portuguesa”, a partir de 1949 – “vademécum” de muitas gerações na compreensão da nossa identidade literária. Quando hoje lemos textos de 1946 como “As Ideias de Eça de Queirós” ou “Para a História da Cultura Portugal” notamos já uma evidente maturidade, que prossegue não só em “A Escola, Problema Central da Nação”, mas igualmente em “A Evolução do Teatro de Garrett”, em “A Obra de Júlio Dinis e a sua Época” e sobretudo no fundamental “Herculano e o Liberalismo em Portugal – Os Problemas morais e culturais da instauração do regime”. Seguir a produção intelectual do jovem professor é, desta forma, extremamente atraente, uma vez que, apesar das referências ideológicas, nunca perdemos o extremo rigor no lidar com os acontecimentos e a consideração de uma rica dialética crítica, que recusa as explicações unívocas ou simplificadoras. Aliás, a perenidade da obra fica a dever-se a esse permanente viés crítico que tantas vezes corrige as naturais tentações simplificadoras. Dir-se-ia que a fidelidade ao mestre Herculano constitui uma marca que dá atualidade e coerência ao historiador e ao pensador. Quando lemos “O Caprichismo Polémico do Senhor António Sérgio” notamos, é certo, o espírito do tempo e a circunstância política, mas o tempo veio a corrigir a influência ideológica, de que Saraiva ao longo do tempo se soube libertar, como confessará no final da vida. É muito rica a lista dos temas que ocupam o cientista social e o pedagogo, cujo percurso é afetado pelas opções políticas – militância partidária na oposição, apoio à candidatura de Norton de Matos, proibição de ensinar no ensino oficial e prisão por motivos políticos.
TEMAS APAIXONANTES
Os temas estudados não são neutros. A Idade Média portuguesa até à crise social do século XIV, a importância de Fernão Lopes, a Inquisição em Portugal, Fernão Mendes Pinto ou a Sátira Picaresca da Ideologia Senhorial, Luís de Camões, a Ressaca do Renascimento, o “Dicionário Crítico da Algumas Ideias e Palavras Correntes” constituem reflexões ricas, nas quais se nota a preocupação pela prevalência de uma opção de independência e liberdade, nem sempre corretamente compreendidas. Impedido de ensinar em Portugal, exila-se em França no final dos anos cinquenta, integrando a equipa de Marcel Bataillon, e chega a preparar a ida para o Brasil, o que se torna impossível em virtude da ocorrência do golpe militar de 1964. Em 1966 retoma o estatuto de investigador em Paris, no CNRS, por proposta de Fernand Braudel, assistindo aos acontecimentos de maio de 1968, que merecem a sua análise, em muitos pontos se revelará premonitória. Quando obtém um lugar na Universidade de Amesterdão (1970) publica “Maio e a Crise da Civilização Burguesa”, que suscita acesa polémica. Regressado a Portugal em 1975, assume funções na Universidade Nova de Lisboa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, prosseguindo uma muito ativa intervenção literária: “Épica Medieval” (1979), “O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira e Outros Autores Barrocos”, “Filhos de Saturno – Escritos sobre o Tempo que Passa” (1980), “A Cultura em Portugal” (2 volumes) e “O Crepúsculo da Idade Média” (1988).
PENSAMENTO INDOMÁVEL
Fiel ao pensamento indomável, conheci pessoalmente António José Saraiva, quando escreveu e publicou “A Tertúlia Ocidental” (1990), obra de maturidade, de quem tão bem conhecia os homens de 1870, a ponto de poder escrever sobre eles um genial romance. E um dia disse-me que, sem demonstração histórica, era mais cinematográfico que tenha sido José Fontana a apresentar Oliveira Martins a Antero. Por outro lado, a chave da “Ilustre Casa” não era o colonialismo, mas a atração pelo desconhecido. E recordava «As Minas de Salomão», onde Gonçalo foi buscar motivo de inspiração. Ao contrário de Fradique, a geração coimbrã de Antero e dos seus acreditava numa outra relação entre a liberdade e a igualdade, diferente da romântica. A. J. Saraiva considerara em “As Ideias de E.Q.”, o fradiquismo como «uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais». Eça deparar-se-ia com a dificuldade de combater a mediocridade e a plutocracia. E ter-se-ia desinteressado. O próprio «esforçado Oliveira Martins» acabaria a cultivar a «flor da arte» ou outras flores. Seria uma evasão… Os anos passaram, o ensaísta continuou a estudar e a pensar, como inesgotável crítico. E em «A Tertúlia» recusou «uma súmula de clichés então reinantes» sobre a geração de 1870. O certo é que importaria dar uma especial atenção à afirmação de Eça no prefácio a «Azulejos» de Bernardo Pindela: «A arte é tudo, e tudo o mais é nada». O perigo da ilusão perturbava quem ainda acreditava na ação e na política. É certo que Eça dissera a Luís de Magalhães: «Não se deixe levar pelas teorias abomináveis do amigo Oliveira Martins sobre a sinceridade da emoção». Não poderia esquecer-se a fórmula «sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia». O paradoxo tinha como polos não apenas a ação e a indiferença, mas também a vontade e a arte. E Saraiva concluía: «Hoje as ideias de Eça de Queiroz (que não são exatamente as que lhe atribuímos em 1945) aparecem-nos principalmente como temas de arte, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são pretextos para cartas».
António José Saraiva disse um dia que «todas as fronteiras são culturais». As fronteiras funcionam como linhas de distinção e de aproximação, que delimitam as identidades. «O que separa as nações é a nacionalidade, não são os rios nem os montes. Estes podem favorecer a defesa ou a expansão de uma nação mas não podem criá-la». O ensaísta falava (num texto de 1971, republicado em Crónicas, organização de Maria José Saraiva, p. 369) das nossas raízes e fronteiras, encontrando a origem de Portugal num «processo orgânico de cruzamento e integração de dois focos de autonomia dentro da Hispânia, os quais existiam já antes da ocupação romana» – um galego e outro lusitano. O resultado foi uma fusão, «tão perfeita que este novo ser cultural tem resistido de forma homogénea» a diversas investidas externas ao longo dos séculos. Fomo-nos afirmando perante as dificuldades, em sucessivos estados de necessidade. Desenganem-se os que julgam que as incertezas de hoje são inéditas.
A língua e a cultura geradas no ocidente peninsular demonstram como a nossa identidade se fez não exclusivamente por um ato político de vontade, mas também graças a condições próprias que têm perdurado ao longo do tempo. E são significativos os exemplos dados pelo escritor ligados à formação de Portugal, como fatores de afirmação de autonomia e de resposta aos desafios históricos mais exigentes e problemáticos - desde o condado de Coimbra do moçárabe Sesnando (1064-92) ou da resistência dos senhores de Portucale, no território que é hoje o de Entre Douro e Minho, passando pela nomeação de Raimundo de Borgonha como «senhor de Coimbra e do resto da Galiza» e depois pela designação de Henrique de Borgonha como senhor de Coimbra e de Portugal, numa evolução incerta, entre dois mundos políticos diferentes, com fronteiras oscilantes, entre os reinos cristãos e a influência muçulmana e islâmica , até à criação do reino de Afonso Henriques e ao início da consolidação de Portugal como resultado da convergência entre as influências atlântica e mediterrânica do ocidente peninsular.
Assim A.J. Saraiva procurou sustentar e justificar, completando o raciocínio de Alexandre Herculano, que «a velha língua em que Afonso Henriques aprendeu a falar a língua dos senhores e campónios da Galiza e dos guerrilheiros da Beiras teve um destino raro e privilegiado. Foi por ela que os galego-portugueses se sentiram diferentes dos castelhanos muito antes de Afonso Henriques ter assentado a capital do reino de Portugal em Coimbra, que já fora do estado do conde Sesnando» (op. cit., p.430). E deste modo a realidade cultural portuguesa apresenta origens anteriores à fundação do Estado português. Esta ideia de fronteira cultural e linguística não impede, porém, António José Saraiva de afirmar que «os valores dominantes da cultura portuguesa são hispânicos», gerados na «guerra comum da chamada reconquista» - ainda que o português nunca tivesse sido um dialeto do castelhano.. Eis como as fronteiras culturais distinguem e aproximam. «A hombridade, a honra cavaleiresca, que depois se contaminou a todas as camadas sociais, a liberdade individual que roça pelo anarquismo e que se combinou durante muito tempo com o valor da lealdade ao rei, que era uma ligação pessoal, com direitos e deveres, e que nunca se confundiu com a mera submissão passiva a uma tirania não abstrata, são comuns a Portugal, Leão, Galiza e Castela» (p.535). É o que o autor designa por «hispanidade de Portugal», expressão que suscitou incompreensões, mas que, para Saraiva, mais não significava do que o reconhecimento de um facto, incapaz de comprometer a distinção cultural e a independência. No fundo, Portugal não se afirma plenamente a não ser através da compreensão de que as fronteiras culturais peninsulares levam à tomada de consciência de uma herança comum, que permite a abertura de diversos caminhos e identidades, que se fortalecem pela complementaridade e não pela fragmentação.
A semente galega construiu a originalidade cultural portuguesa. Em 1147, quando Afonso Henriques chegou a Lisboa, falava-se na cidade um romance hispânico, moçárabe, que depois cedeu perante o galaico-português. E assim o idioma português faz-se numa convergência de norte para sul e de sul para norte – daí que as palavras arábicas se tenham espalhado por todo o território ocidental. A poesia dos trovadores é tão galega como portuguesa e Afonso X, o Sábio, é antepassado da nossa própria língua. Fernão Lopes, Gil Vicente e Camões são expoentes da cultura hispânica num sentido amplo e esse facto não impediu o pendor nacional dos seus temas, a começar no empenhamento do autor da Crónica de D. João I na defesa da causa nacional, como portuguesa, insuspeita de qualquer ideia de subalternidade ou de conciliação em relação a Castela. E veja-se que D. Quixote salva na sua biblioteca dois livros assaz portugueses, Amadis de Gaula e Palmeirim de Inglaterra. No entanto, para AJS, Eça de Queirós e Fernando Pessoa foram mais claramente portugueses, nos seus temas e modos de os tratar. Afinal, há diferenças que nos distinguem, desde a teatralidade castelhana ao intimismo galaico-português, desde o contraste de Castela ao sombreado de Portugal, desde o distinto e redundante da língua do centro peninsular aos meios-tons, elipses e sílabas mudas do português. «El Cristo español está siempre en su papel trágico» - dizia Unamuno, citando o nosso Guerra Junqueiro – enquanto «el Cristo português anda por costas y prados y montañas, jugando com la gente del pueblo, se ríe com ellos, merienda, y de vez en cuando, para llenar su papel, se cuelga un rato de la cruz». Nada disso permite falar de divórcio ou de separação. Há uma raiz cultural comum que dá lugar a sensibilidades diferentes e a uma distinção, que resulta da singular convergência que caracteriza a nossa identidade. Por mais suspicácia que haja, o certo é que existe uma base comum de que partimos, sendo diferentes…
António José Saraiva, cujo centenário ocorre a 31 de dezembro, é uma referência fundamental na história da cultura portuguesa – sobre a qual refletiu intensamente, sempre com inteligência e sentido crítico.
O ESPÍRITO DO TEMPO…
António José Saraiva sofreu influências do espírito do tempo, mas teve a grande argúcia de compreender a complexidade na evolução da sociedade e da cultura. O intelectual foi evoluindo, sendo um caso especial na procura de novas respostas aos problemas essenciais que foi encontrando. Foi sempre inconformista – mesmo nos momentos mais marcados. Não é possível, assim, compreender a cultura portuguesa, numa visão panorâmica, sem ler e estudar a sua obra, rica e polifacetada. Como afirmou em 1946, “desde o século XVI sucede-se uma série de tentativas para enraizar entre nós uma cultura que se malogram umas atrás de outras. A história da cultura em Portugal não apresenta um desenvolvimento seguido e consequente, mas estratifica-se em secções independentes: é uma série de irrupções descontínuas, não tem uma linha diretriz interna” (Para a História da Cultura em Portugal, volume I). Esta tendência não significa que não haja bons exemplos, no entanto há ausência de regularidade, o que leva amiúde à repetição e ao decaimento, que obrigam, tantas vezes, a recomeçar quase tudo de novo, com perda de energias. Faltou elite universitária. Houve um baixo nível da massa e as condições técnico-económicas desta foram frágeis… Deste modo, no caso português, os géneros literários ressentiram-se dessas circunstâncias – no longo prazo, o teatro, o romance não têm a pujança permanente que o lirismo individual apresenta. Há atrofia dos géneros que dependem de um público largo, que falta, e existe hipertrofia dos géneros compreende-se a seguir a Bernardim, ao Cancioneiro Geral e ao lirismo trovadoresco. Fernão Lopes é um génio singularíssimo. Gil Vicente representa a tensão entre o espírito tradicionalista e as transformações externas que se impunham. E importa ainda lembrar que há uma cultura dos letrados e das cortes portuguesas nesse tempo profundamente hispânica e peninsular… A literatura dos Descobrimentos e dos séculos seguintes será outra coisa. Se AJS dedicou uma parte importante do seu labor científico à literatura, a verdade é que procurou sempre ir mais além. “A literatura é a primeira tentativa de definição de problemas que a ciência determina com mais exatidão”. E essa preocupação levará o nosso autor a evoluir nas suas ideias de uma aproximação nítida ao materialismo histórico até uma perspetiva centrada num pensamento crítico liberal-social.
INTERROGAR SEMPRE A CULTURA
Nos últimos anos de vida, o mestre vai estar empenhado numa revisão do que escrevera. Para definir as épocas da cultura portuguesa sugeria quatro critérios: a perspetiva mítica; a relação entre topo e base, considerando os aspetos económicos e políticos; a pertença ao sistema cultural europeu-ocidental (depois da citada prevalência do peninsular); e o valor de cada época no signo linguístico e no discurso. Nesta lógica, é muito interessante a leitura dos diversos textos publicados em 1980, sob o título Filhos de Saturno – Escritos sobre o tempo que passa. São, de facto, fruto do tempo estas reflexões que correspondem ao tratamento dos temas e problemas que preocupavam o intelectual. Os textos de 1974 (desde “Cravo de Maio flor da liberdade”) e 1975 são muito marcados pela esperança e pela crítica (de quem tinha autoridade para a fazer) sobre os caminhos e os perigos da democracia nascente. E a cada passo, lemos, uma simbiose entre o espírito sistemático, a necessidade de cultivar a liberdade crítica e o apelo ao despertar das consciências para uma cidadania ativa. O artigo do “Diário de Notícias” intitulado “O 25 de Abril e a História” (de janeiro de 1979) sobre a descolonização suscitaria polémica acesa e foi ponto de partida para um debate apaixonado no Centro Nacional de Cultura, que serviu de base a um dossiê fundamental da revista “Raiz e Utopia” – aliás fundada por AJS e prosseguida por Helena Vaz da Silva. Hoje, ressalvadas as distâncias, mas conhecendo os dramas da história das últimas décadas, compreendemos a posição assumida – e temos de saudar a coragem e a hombridade de quem considerava, na linha dos homens de A Tertúlia Ocidental, que só com ideias e com a audácia de as exprimir poderemos avançar.
IRONIA PERFURANTE
Interrogador da identidade portuguesa, considerava que nos habita um espírito de ilhéu, “oscilando entre a aventura fora e a passividade dentro, ou ainda, vivendo a aventura pela imaginação, sem sair do mesmo lugar”. O português inferiorizar-se-ia, “refugiando-se numa autoironia perfurante, como a de Eça de Queirós, ou numa autocrítica flageladora da sua própria história, como em Oliveira Martins; ora incha o peito para desafiar o mundo ou para o conduzir…”. Trata-se da ciclotimia de Eduardo Lourenço em O Labirinto da Saudade – bem enfatizada por Ernesto Rodrigues na introdução a Filhos de Saturno. É o humor de Rafael Bordalo Pinheiro com Zé Povinho entre a chacota e a autoironia, que leva ao sarcástico “Panegírico do oportunista”, sobre os perigos do conformista e do competente talentoso que singram pela adaptação às circunstâncias. Mas há ainda a “dificuldade de ser” do português, a misteriosa coita (“gosto de ser triste”), talvez agravada pela subalternidade da Corte na Aldeia nos sessenta anos filipinos, e presente na dualidade entre “desafio triunfante e dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo” (E. Lourenço), já visível na crítica de Gil Vicente. Leia-se o ensaio perscrutante sobre o sebastianismo (“Loucura e História”) e compreenda-se como AJS admirou a Geração de 1870 como exemplo de uma crítica consequente baseada nas ideias, não derrotista ou niilista, não caída na tentação do fatalismo. Pensa, assim, como Sophia, “que a nossa crise é antes de mais uma crise moral. É essa que está na raiz de todas”. E em carta a Óscar Lopes é claríssimo: “A verdadeira revolução terá que ser espiritual. O homem é agora feito por e para o mercado (…); o que é preciso é que o mercado seja feito para o homem”. E dirá ainda: “a ‘idade da abundância’ é, na realidade, a mercantilização total da vida, a destruição de todos os valores que não se transformem em moeda”. Quando conheci pessoalmente AJS estava embrenhado em A Tertúlia Ocidental (Gradiva, 1990). Tendo estudado Antero, Oliveira Martins e Eça de Queirós, procurou neles uma síntese desafiante para hoje. E admirando Oliveira Martins, dizia: “considerava os seus livros como preparatórios eficazes de uma ação política em que apostou a sua vida. Ele não distinguia os dois planos: o da narração e o da ação, o dos símbolos e o da prática. Procedia como se o passado não fosse um cortejo de máscaras com o seu compasso próprio mas sim como se o passado fosse o antes do presente marchando ao mesmo passo e como se o presente fosse a continuação do passado, estando a diferença entre ambos unicamente na distância a que se encontram do observador”. Eis a síntese do que procurou!