Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
António Manuel Couto Viana (1923-2010) comemoraria cem anos e invocamos a pedagogia da cultura popular e a preocupação especial que teve com os mais jovens e com a importância do teatro no ensino.
PEDAGOGO DA CULTURA POPULAR
Celebra-se o centenário de um poeta e homem de teatro, que influenciou decisivamente muitas gerações de jovens nos anos cinquenta e sessenta. António Manuel Couto Viana foi, antes de tudo, um pedagogo da cultura popular portuguesa. Pode dizer-se que foi esse seu papel de ativo educador através da leitura e do teatro que deixou uma marca indelével. Filho de um português e de mãe aragonesa, cultivou sempre as suas raízes galaico portuguesas e minhotas. Poeta, dramaturgo, ensaísta, memorialista e tradutor, fez os seus estudos no seu Minho e em Lisboa. Desde sempre foi um entusiasta do teatro, como a arte que melhor permite ligar a criatividade popular e a necessidade da cultura, tendo recebido de seu avô, com suas irmãs, em herança o Teatro Sá de Miranda de Braga. Cedo começou a colaborar no Teatro Estúdio do Salitre, como ator, cenógrafo e encenador (1948-1950), sendo ainda um dos animadores do Teatro de Ensaio do Monumental (1952), bem como diretor do Teatro do Gerifalto (1956-1960) – onde também estiveram Cecília Guimarães, Henriqueta Maya, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro. Participou na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade (1961-1965). Como ator, encenador e mestre da arte de dizer e de representar, encenou na televisão portuguesa (RTP) espetáculos de teatro e animou conversas e programas, com grande repercussão entre o público de todas as idades, mas especialmente entre os jovens, atraindo uma nova geração de atores e artistas para a arte de Talma. Lecionou no Liceu D. Leonor e foi membro do Conselho de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Estreou-se na escrita em 1948 com o livro de poemas O Avestruz Lírico, muito bem recebido pela crítica. Foi autor de mais de uma centena de obras escritas.
ATIVIDADE INTENSA DE PROMOÇÃO DA CULTURA
De 1950 a 1954, dirigiu com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo as folhas de poesia Távola Redonda, e em 1956-1957 a revista de cultura Graal, participando na revista Tempo Presente em 1959-1961. A sua obra poética procurou reabilitar as tradições líricas populares e um certo culto do passado e da paisagem. Além da poesia e do teatro, dedicou-se à literatura infantil, a partir dos principais autores europeus e dos romanceiros portugueses antigos, estudando-a em ensaios, escrevendo e traduzindo livros destinados aos mais jovens. Dirigiu o Camarada (1949-1951). Uma boa parte da sua atividade teatral como ator, encenador e autor dirigiu-se também aos jovens e às crianças, o que se relaciona com a sua obra poética onde perpassam marcas dos temas dos contos tradicionais. A referência ao Gerifalto, que marcou o mais importante grupo que animou, tem a ver com a simbologia de uma ave semelhante ao falcão, que representava a altivez e a valentia. Couto Viana está representado nas principais antologias de poesia portuguesa, e os seus poemas foram traduzidos para castelhano por Angel Crespo e para inglês por Joan R. Longland. Foi em 1960 premiado com o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, além de um conjunto dos principais galardões relativos à poesia e ao conto.
Um dos seus poemas mais célebres, publicado em “Versos de Caracacá”, intitula-se “A Maçã”, que recordamos: «Na relva cheia de pó, / cai uma maçã pequena / que ao ver-se tão suja e só/começa a chorar de pena. / O galo do catavento, / temendo alguma desgraça, / pára logo o movimento / e pergunta: - O que se passa? / - Quero ver o Mundo! – diz / a maçã, a soluçar. / - O escaravelho é feliz, / pois tem patas para andar! / / De um alto ramo pendente / via o Sol, o Céu, a estrela / com gatos e cães e gente. / Mas, no chão, não vejo nada! / Eu tenho uma rica ideia! / - diz o galo (e bate as asas). / - Dou-te esta noite boleia / para veres gentes e casas. / E assim fez. Voa da igreja, / põe às costas a maçã / que vê tudo o que deseja / até ao romper da manhã. / - Olha outro galo tão lindo, / a voar! – Maçã pateta! – / responde-lhe o galo, rindo. / - Aquilo é uma borboleta! // Olha uma casa amarela! / Desço até ela. Já está! / Espreita pela janela / e diz-me o que vês por lá. / - Vejo uvas numa taça – / diz a maçã. - Por favor, / chega-te mais à vidraça, / para eu espreitar melhor. / E a maçã pôde, assim, ver, / sobre a toalha engomada, / o garfo, a faca, a colher. / Viu tudo e ficou cansada. // O galo regressou à sua / torre da igreja aldeã / para, aí, contar à Lua / a viagem da maçã. //E a maçã muito contente, / diz, na relva, para consigo: / - Vi o Mundo, finalmente! / E o galo é meu amigo!»
O CULTO DAS TRADIÇÕES
Como afirmou um dia sobre o Alto Minho: «A família toda foi uma apaixonada pela sua terra, que é encantadora: meu pai, um etnólogo, um homem que fez o ressurgimento do trajo à lavradeira (aquilo a que se chama «trajo à minhota», mas que é apenas do concelho de Viana do Castelo) e escreveu sobre Viana; minha irmã mais velha também tinha uma grande paixão por Viana e escreveu muito sobre ela e o mesmo com a minha outra irmã... O Luís d’Oliveira Guimarães dizia que o meu pai amava tanto a própria terra que até a usava no nome (Couto Viana). Eu identifico-me com a cidade e tenho recebido dela um carinho e uma admiração muito grandes – recentemente foi edificada a Biblioteca Municipal de Viana, que tem quatro salas: a sala Camões, a sala Fernando Pessoa, a sala José Saramago e a sala Couto Viana; sou cidadão de mérito da cidade; a Câmara Municipal tem publicado muitos livros meus de poesia e ensaio. A cidade tem correspondido ao meu amor”. Esta referência significa que a obra de António Manuel Couto Viana procura ligar, a partir da poesia, a literatura, a língua e a procura da compreensão da cultura como ponto de encontro entre as gerações – numa verdadeira noção de património cultural como realidade viva. Assim, a leitura da sua obra constitui um ensinamento permanente sobre o cadinho complexo e heterogéneo que vai construindo a língua portuguesa – de Camões a Eça de Queiroz, passando por Vieira e Garrett, por Sá de Miranda e Antero, sem esquecer os antigos trovadores, de que o poeta se considerava seguidor. Um pedagogo da cultura popular não poderia ser outra coisa do que um ouvinte fiel das tradições e leitor atento da melhor língua erudita.
Alguns dirão, erradamente, que o galo é uma invenção relativamente recente, vinda de uma lenda, talvez seiscentista ou setecentista, de um galo que salvou um condenado injustamente ou de uma descoberta tardia nas feiras de Entre-Douro-e-Minho. O “nosso“ galo de Barcelos, que Joana Vasconcelos estilizou e enriqueceu decorativamente, tornando-o ainda mais simbólico de nós mesmos, vem inequivocamente do nosso fundo céltico – esse fundo que António Pedro sentia no âmago de si mesmo e que o levava a gostar de gaitas de foles e das cores garridas que Amadeo de Souza Cardoso tão bem soube transmitir nas suas telas inesquecíveis e irrepetíveis. O gal de Portugal não engana. Aí está o elemento indo-europeu que nos liga aos Gálatas, do Médio Oriente à Turquia, à Galicia polaca, ao País de Gales, aos Gauleses, à Galiza – todos irmãos. É verdade que Leitão de Barros, António Manuel Couto Viana e Artur Maciel foram em busca de um símbolo popular – encontrando-o e enriquecendo-o com cores fortes e corações ilustrativos de mil afetos. No entanto, já Rocha Peixoto, no século XIX, nos fala do ”Galo de apito”, que ainda se encontra nas feiras e que tem a ver com a forte simbologia de quem anuncia, na aurora, o novo dia e um novo tempo. O nosso inconfundível galo insere-se na tradição dos druidas, no diálogo com o Oriente e a China, mas também na simbologia cristã de S. Pedro. O galo é arauto da luz do sol, mas sinal da verdade e da fidelidade. Tendo sido redescoberto nas feiras de Entre-Douro-e-Minho e pintado com as cores fortes que conhecemos, é o revelador de um amorável coração, do amor como contentamento descontente da lavra camoniana, mas também da saudade como lembrança e desejo e de magníficos ágapes, banquetes de amor e amizade, que encontram a sua origem na mais afetuosa das palavras gregas. Culturalmente, o galo significa ainda o cadinho que nos caracteriza neste lugar onde a terra se acaba e o mar começa, Finisterra. O Galo liga a cultura popular e a cultura erudita – e liga o presente ao passado e ao futuro. Naturalismo e espiritualismo aqui se encontram como no-lo ensinou Pascoaes. Tradição e modernidade estão aqui. Os azulejos portugueses são, afinal, reminiscência do Oriente! Os múltiplos caminhos do mundo que os portugueses foram trilhando levaram os nossos símbolos até às Índias, a África, ao Brasil.… O tema da identidade cultural exige a compreensão de que só a abertura e o diálogo, a relação fecunda entre a herança e a memória, o entendimento dinâmico de património podem permitir o desenvolvimento de uma cultura de paz e de respeito mútuo. A identidade que cristaliza morre. A memória que se centra exclusivamente no passado mítico torna-se pobre, ensimesmada e ressentida. A herança que não se fortalece com a criação contemporânea e com um permanente renascer crítico dissipa-se. A referência da utopia de Tomás Morus é-nos trazida por um marinheiro português. A ideia da viagem à Índia ou de passar para além da Taprobana corresponde a um apelo à aventura criadora e criticamente reconstituidora dos mitos. E mais. Como podemos entender o Candomblé e a religiosidade sincrética – reunindo animismo e tradição cristã – que liga o Senhor do Bonfim à corte dos orixás, tão presentes desde S. João Baptista de Ajudá a Salvador da Baía? Oxalá, o grande Senhor de Todos, e Iemanjá, a Deusa do Mar, dominam esse Olimpo. E o galo é a ave de batalha, o anunciador de bons augúrios.
E hoje recordamos António Manuel Couto Viana:
Queres cantar fados, ler sinas Por ruas tortas, escusas? Ou tens pretensões mais finas? - Não me esperem nas esquinas: Não marco encontros a musas.
Cantem outros a desgraça Em quadras fáceis, banais, Cheias de mofo e de traça: Soluços de fim de raça, Com vinho, amor, ódios, ais.
E dos parques silenciosos De estátuas, buxo e luar, Cresçam sonetos cheirosos, Requintados, vaporosos Qual uma renda de altar.
Para mim basta o que tenho: Umas rimas sem valia, Mas próprias, do meu amanho; Minha colheita, meu ganho - Poesia! Poesia!