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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 4 a 10 de março de 2024


António Quadros (1923-1993) era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das suas relações com a tradição.


COMPREENDER A HISTÓRIA
Para António Quadros, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude, por exemplo, de Fernando Pessoa, enquanto inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra, sendo uma pessoa atenta à realidade que o cercava, como “homo viator”, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965).


Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade e a riqueza da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram referências que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida metódica foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava a vida, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma atitude transpersonalista, para assumir o reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como domínio, não do poder, mas da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento, do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.


RESPEITAR O PASSADO
«Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido».


Fora de uma mitificação da identidade, o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E António Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia. Portugal precisaria de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim, nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta, parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe. Leia-se, por isso, «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), livro dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas.


AS BIBLIOTECAS DA GULBENKIAN
Refiro o pensamento de António Quadros, para invocar o seu papel de pedagogo e de estudioso da cultura, desde o papel fundamental desempenhado na Fundação Calouste Gulbenkian, até à fundação do IADE (Instituto de Arte e Decoração). E atenho-me em especial às Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, cujas repercussões são de uma importância fundamental. Pode dizer-se que a abertura de horizontes na educação em Portugal se deveu em parte importante a essa missão crucial. Em 1958, por sugestão de Branquinho da   Fonseca foi convidado para integrar os quadros do recém-criado Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, onde ocupou sucessivamente os cargos de Presidente da Comissão de Escolha de Livros, Inspetor-Geral, Diretor-Adjunto (1969) e de Diretor de Serviço depois da morte de Branquinho da Fonseca (1974) e de Domingos Monteiro (1980). Até dezembro de 1974 foram examinadas pelo Serviço 11.499 obras, tendo a Comissão de leitura sido inicialmente dirigida por Domingos Monteiro e constituída por António Quadros e Tomás Kim (Monteiro Grilo), sendo mais tarde composta por Patrícia Joyce, Maria João Vasconcelos, Natércia Freire, Orlando Vitorino e Breda Simões. António Quadros desenvolveu o seu trabalho nas Bibliotecas Itinerantes durante vinte anos, constituindo essa a sua principal atividade profissional. Percorreu o país de norte a sul, o que lhe permitiu um conhecimento circunstanciado do património cultural português, tendo constituído um acervo de imagens, fundamental para o conhecimento da História de Arte portuguesa.


A partir de 1971 assumiu a direção-geral do IADE, sendo docente das cadeiras de História da Arte e de Cultura Portuguesa, o que manteve ininterruptamente até 1992. Acumulou essa função com as de Diretor-adjunto das Bibliotecas Itinerantes, sob a direção de Branquinho da Fonseca, lecionando ainda na Universidade Católica Portuguesa Deontologia da Comunicação. Em 1972 com a demissão de Lima de Freitas como diretor do IADE deixou a direção-adjunta das Bibliotecas, ficando como Inspetor-Geral e vogal da Comissão de Leitura. Após o falecimento de Branquinho da Fonseca, em maio de 1974, António Quadros foi nomeado para exercer interinamente as funções de diretor de serviço das Bibliotecas Itinerantes, o que acontece até 1975, com a nomeação de Domingos Monteiro, regressando ao cargo de Inspetor-Geral. Depois da morte de Domingos Monteiro assumiu de novo o cargo de Diretor do Serviço das Bibliotecas Itinerantes (1980), mas no ano seguinte decidiu reformar-se antecipadamente na Fundação Gulbenkian, dedicando-se à sua obra, mantendo a atividade como diretor e docente do IADE e da Universidade Católica.


Nos domínios em que exerceu atividade, António Quadros demonstrou sempre uma grande coerência, considerando que «o grande problema moderno não é um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». A verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído como império do futuro, não seria uma quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Com as Bibliotecas Itinerantes, a cultura ia até junto das pessoas nos lugares mais recônditos Tratava-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com conhecimento, vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 28 de janeiro a 3 de fevereiro de 2019.

 

 

"A Obra de Leonardo Coimbra no Contexto Cultural da Sua Época" de António Quadros (in “Leonardo Coimbra – Filósofo do Real e do Ideal”, 1985) apresenta-nos a figura do pensador no quadro cultural português contemporâneo – salientado a importância da influência do intelectual.

 

 

UM MOMENTO IMPORTANTE
«A Águia» e a «Renascença Portuguesa» foram uma placa giratória de influências que vamos encontrar em todo o século XX e no melhor dele, apesar das profundas heterogeneidades. Quando se fala de Leonardo Coimbra percebemos que há uma pulsão plural, que se manifesta sobremaneira no educador – para quem a cidadania exigia liberdade de espírito e capacidade criadora. Quando recordamos Pascoaes, temos perante nós o poeta intuitivo, sonhador e interrogador dos mitos. Quando lembramos Jaime Cortesão (talvez a grande sombra tutelar da «Renascença»), percebemos que a poesia e a cidadania se juntam à capacidade de compreender a História – em nome do enigma que o autor de «Fatores Democráticos na Formação de Portugal» procurou incessantemente responder com o «franciscanismo» e a terceira idade de Joaquim de Flora, em nome da marca civilizacional de um «humanismo universalista». No dealbar do movimento, Pascoaes e Proença apresentaram duas leituras diversas, mas que devemos considerar complementares. Pascoaes fala de «provocar por todos os meios de que se serve a inteligência humana o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença prefere «pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista racional e as condições, os recursos e os fins nacionais». São diferentes os dois pontos de vista, mas há uma nítida convergência – daí a palavra Renascença, como ato de reviver e de avançar. A síntese indicou-a Jaime Cortesão: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». De facto, há uma ideia moderna de mobilizar energias, de fazer aparecer forças morais e educativas e de abrir a sociedade ao mundo moderno. É por isso mesmo que a «Renascença» segue as pisadas das tradições liberal e socializante da Geração de 70, relendo-as à luz das preocupações do novo século – e, nesse ponto, como bem viu o próprio Fernando Pessoa, em «A Nova Poesia Portuguesa» (publicado entre Abril e Novembro de 1912 em «A Águia»), Antero de Quental é símbolo da maturidade moderna, que será assumida em termos novíssimos pela geração que criará «Orpheu».

 

UMA ATITUDE FUTURANTE
Leonardo Coimbra (1883-1936) assume uma atitude igualmente dinâmica: “A Democracia não é um estado mas uma tendência; a Democracia não é o código das nossas liberdades, limitando a liberdade dos outros – a Democracia é um permanente esforço para uma melhor justiça e para uma mais completa liberdade, justiça arrancada por um mergulho até ao mais profundo do coração humano, liberdade procurada nos meandros do nosso ser interior, no ponto mais alto da nossa vida, lá nas cumeadas de alma onde se cruza com o branco luar da inteligência que indaga, o arrebol róseo e violeta da bondade universalizante que a tudo e a todos quer cingir e amar”. E se ouvimos o próprio Leonardo, espírito fulgurante, devemos recordar o que dele disse António Quadros, um dos seus discípulos marcantes: “O homem é um ser para a liberdade e a liberdade realiza-se antes de mais nada pelo pensamento, que é uma capacidade individual e resulta do encontro da subjetividade infinita de cada um com os dados de uma experiência pluriforme e singular, insubstituível e intransferível, só em parte comunicável pois se realiza em diversos níveis. O conhecimento nunca o poderá ser em plenitude, se recusar as contribuições de uma gnoseologia aberta e se ao invés se cercar de conceitos positivistas, dando às ciências um conteúdo puramente material, sem relação com o espírito ou com uma verdade transcendente à fenomenologia do sensível”. Do mesmo modo, recorre à monadologia, inspirado em Leibniz, criticando, porém, a ideia de uma harmonia pré-estabelecida, porque contrária à liberdade inerente ao seu criacionismo, bem como à dinâmica comunicacional entre as mónadas. O universo para Leonardo (segundo Pedro Calafate) é criado pelo homem num processo dialógico que o faz chegar a Deus pelo fraterno amor de tudo, e não algo criado de uma vez por todas pela vontade divina. Em última análise Deus é a luz que ilumina a ação criadora do homem. Deus é o Amor que une, e cada consciência é a unidade elementar que pelo amor se move atraído pela «grande Unidade». Por isso, a compreensão é a Unidade e compreender é Amar.

 

A APOSTA NA INSTRUÇÃO
Duas vezes Ministro da Instrução Pública, reformou a Biblioteca Nacional e reorientou o ensino primário. Neste domínio, Leonardo Coimbra teve a maior importância (além da fundação e do magistério na Universidade do Porto, tão incompreendido), já que foi um dos membros dos governos republicanos que aperfeiçoou coerentemente a reforma de 1911 de António José de Almeida, que João de Barros considerou ter sido descaracterizada. Superando tal limitação, a reforma de 10 de Maio de 1919 de Leonardo Coimbra consolidará e completará essa orientação – fundindo os ensinos primário elementar e complementar no ensino primário geral, qualificado como obrigatório, abrangendo 5 anos. Insista-se no pioneirismo da reforma de 1911 quanto à educação infantil, que viria a ser concretizada nos Jardins-Escola João de Deus, segundo o método lançado em 1876 por iniciativa privada, graças à ação do grande poeta, continuada por seu filho João de Deus Ramos. Se o ensino primário foi atentamente tratado, o ensino secundário (de cuja reforma foi encarregue Adolfo Coelho) foi menos considerado. Em 1918 ainda houve uma tentativa algo ambiciosa de reforma liceal no consulado sidonista, com Alfredo de Magalhães, mas sem sucesso. Afinal, “os legisladores republicanos não tiveram, para com o ensino liceal, nenhum rasgo de audácia que de perto ou de longe equivalesse à reforma do ensino primário, embora boa parte desta não fosse além do desejo dos seus redatores” – no dizer de Rómulo de Carvalho. João Camoesas em 1923 ainda lançará a iniciativa de preparar o Estatuto da Educação Pública, para cuja elaboração convida Faria de Vasconcelos, pedagogo fundador da “Seara Nova”. O documento prevê: ensino infantil (dos 3 aos 6 anos), ensino primário, obrigatório, gratuito e em coeducação (dos 7 aos 12, com dois escalões de 3 anos cada) e grau secundário (dos 13 aos 16 anos). Haveria ainda quatro modalidades de educação especial: o curso especial do ensino secundário para acesso ao ensino superior (dos 17 aos 19 anos), o ensino técnico elementar (dos 13 aos 16 anos), o ensino técnico complementar (dos 17 aos 20 anos) e o ensino profissional. Jaime Cortesão dirá que é “não só o mais sério documento político emanado de um governo, dentro da República, como a primeira tentativa de reforma nacional orientada por um espírito democrático”. Também António Sérgio defenderá acaloradamente o documento (“Um dia a nação nos há-de julgar!”). Mas a queda do governo impossibilitou a sua concretização. Não é demais dizer, em suma, que o cidadão Leonardo Coimbra foi dos que mais corajosamente lançaram sementes à terra no sentido de tornar a democracia um lugar de encontro, de respeito, de liberdade e de justiça. Daí a sua atualidade!

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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