Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Lugar de encontro? O antigo Largo da Abegoaria, onde Antero de Quental (1842-1891), no longínquo dia 27 de maio de 1871, proferiu a mais célebre conferência do Casino, que chegou até nós envolta em celebridade, mas também de mito. E se o nosso folhetim é de fantasmas, o jovem poeta vindo dos Açores e celebrizado em Coimbra, pode dizer-se que nessa reflexão o autor quis ser revolucionário; e marcou decisivamente as gerações intelectuais que se lhe seguiram. É verdade que o caso Dreyfus iniciou na Europa o envolvimento dos intelectuais nos debates políticos, temos de lembrar que em Portugal foi a geração dos jovens de Coimbra a rutura na senda dos ventos que vinham da Europa. As Conferências Democráticas prenunciaram um tempo de intervenção social, que o século XX viria a seguir por caminhos múltiplos. E, assim, mais do que a preparação de uma revolução política, com repercussões imediatas, o que Antero de Quental e os seus pretenderam foi um verdadeiro despertar nacional. Hoje sabemos que a influência das Conferências ultrapassou em muito as fronteiras limitadas de um movimento de contestação. Conservadores e progressistas, republicanos e socialistas sofreram a influência desse impulso pedagógico e social que está condensado na magistral conferência. No fundo, há uma nova atitude, que completa as intervenções fundamentais da “Questão Coimbrã”, segundo um pensamento social renovador, que define, política e espiritualmente, um apelo à capacidade criadora dos povos peninsulares. Para trilhar um novo sentido, haveria que apresentar as condições propiciadoras da decadência, o que aconteceu num texto crucial da nossa literatura: “Erguemo-nos hoje a custo, espanhóis e portugueses, desse túmulo onde os nossos grandes erros nos tiveram sepultados: erguemo-nos, mas os restos da mortalha ainda nos embaraçam os passos, e pela palidez dos nossos rostos pode bem ver o mundo de que regiões lúgubres e mortais chegamos ressuscitados”. E deparamo-nos com os fenómenos capitais definidores desse decaimento: “três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do Catolicismo pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas” …
O que estava em causa? Uma nova ideia de cultura: «uma Cultura que punha em causa (segundo Eduardo Lourenço), radicalmente, a tradição cultural portuguesa na sua expressão tridentina, e em última análise católica. O fim trágico de Antero esconde-nos (…) a essência histórica da sua tragédia cultural que não reside no seu conteúdo, mas na sua exceção. Em suma, no seu isolamento. Só para ele era válida – no sentido doloroso e exaltante – a célebre frase da carta de Wilhelm Storck de que a sua geração teria sido a primeira ‘a sair conscientemente dos caminhos da tradição’». Mas essa atitude de rompimento não poderia deixar de ser paradoxal. Afinal, “nada substitui uma religião se não outra em que o sentido da perdida se regenera e se exalta”. A um tempo, há a proposta de uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verberou foi o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente à Europa “pensante e industriosa”. O que estaria em causa teria a ver com a recusa do atraso e do seu fatalismo e de “um destino subalterno e humilhante”. Eis como Antero de Quental e os seus pretenderam um sobressalto geral, sobretudo sabendo que a sociedade portuguesa vivia alheada dessa consciência. A partir de uma atitude atenta ao sagrado e ao religioso, demarcada nitidamente de todo o conformismo: “essa foi a revolução cultural anteriana, bem mais importante que a apologia de uma mera Revolução ideal e idealista que seria menos uma inversão de signos como será a de Nietzsche, ou mesmo de um ateísmo assumido, do que uma nova revolução suscetível de ser para o mundo moderno o que o Cristianismo fora para o mundo antigo”.
Compreende-se que E. Lourenço considere que a única guerra teológico-intelectual válida seja a que opõe Lutero e Erasmo. E, nesta polémica, Antero assumiu claramente o lado do “Elogio da Loucura”, procurando ligar Fé e Razão, e não sacrificando uma à outra. E o pensador micaelense lamentou que a Reforma não tenha podido passar os Pirenéus, fazendo-se, com olhos do seu tempo, e na senda do pensamento revolucionário liberal, como o de Garrett e Herculano, fiel ao ânimo dos bravos do Mindelo, de que seu pai fizera parte. Antero cultiva o drama, Eça usa a sátira e Oliveira Martins afina a crítica histórica pela ironia e pela tragédia. A força transformadora das “Causas” referindo-se a dois outros textos fundadores da modernidade no século XX: o “Ultimatum” de Fernando Pessoa e o “Manifesto Futurista” de José de Almada Negreiros – igualmente definidores de um caminho que tem origem do grito das Conferências Democráticas. E Alexandre Herculano compreendeu bem, apesar de discordar do pendor igualitário da nova geração, mas colocando a liberdade em lugar central, que haveria que reconhecer cultural, social, e politicamente o “lugar da liberdade não apenas de pensar, mas de humanamente respirar e existir”. Antero de Quental exprimiu-o com meridiana clareza. E ainda hoje, seja à porta da Sé Nova de Coimbra, seja no Chiado, seja na cidade do Porto ou em Vila do Conde, esse fantasma poderoso, aqui representado genialmente por Almada Negreiros, continua a guiar os nossos passos.
A «Revista Ocidental» dirigida por Antero de Quental, Jaime Batalha Reis e Oliveira Martins teve uma existência fugaz, de fevereiro a julho de 1875, mas constitui uma referência essencial para a compreensão da chamada Geração de 1870.
VINDO DE SANTA EUFÉMIA Regressado à pátria, vindo das minas de Santa Eufémia, em Espanha, Oliveira Martins vai para o Porto em 1874, para dirigir as obras de construção da linha de caminho-de-ferro do Porto à Póvoa de Varzim, “levantando plantas, traçando perfis, fazendo planos de estações de caminho-de-ferro, estudando pontes, dirigindo e executando trabalhos, tanto de campo como de gabinete, ao lado de dois engenheiros”. Está em contacto estreito com Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, com quem participa ativamente no lançamento em 15 de fevereiro de 1875 da “Revista Ocidental” (com o editor Rovere). Antero avisara um ano antes: “O Batalha lhe escreverá, para lhe comunicar o plano de uma empresa minha e dele, para a qual contamos com a sua coadjuvação. É uma Revista que vamos fundar, cujo projeto o Batalha fica encarregado de compor” (13.4.1873). Havia que continuar o combate social e político, que se exprimira nas Conferências Democráticas e na intervenção política, que deveria assumir uma dimensão ibérica. Importava, por isso, “provocar a reunião de elementos de renascença intelectual da Península e a formação de novas escolas espanhola e portuguesa”. Assim, a nova revista, que teve existência fugaz (de fevereiro a julho de 1875), afirma-se com o objetivo audacioso de suscitar uma reflexão que não se ativesse apenas à dimensão nacional. “Provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas espanhola e portuguesa, é o fim da ‘Revista Ocidental’”. Esta era a justificação constante do programa da nova publicação. E nessa linha, Oliveira Martins escreve de modo eloquente, sob o título de Introdução, o ensaio programático “Os Povos Peninsulares e a Civilização Moderna”, a abrir a revista. É um texto entusiástico e militante, com preocupação histórica, que antecipa a História da Civilização Ibérica. Estava em causa a criação de “um campo ao mesmo tempo vasto e livre, onde todos os homens que mais ou menos proeminentemente representam uma face, um lado, um aspeto, do génio peninsular, hão de vir com a pena arar os fundos sulcos da lavoura intelectual; onde todas as opiniões têm uma voz, todas as tendências um lugar, quando entrem no sistema de opiniões e de tendências, que formam o edifício do Progresso neste século”. E assim segundo o autor, só uma revista como a que se fundara, poderia "representar perante a Europa o génio dos povos que habitam a península ibérica, e dos que, filhos dela, foram acampar na América meridional”. Para tanto, haveria que definir o “génio peninsular ibérico”. Seria escrita nas duas línguas peninsulares, o que lhe asseguraria leitura em Espanha e na América do Sul.
O INCIDENTE COMO EÇÃ DE QUEIROZ Antero, em carta a Oliveira Martins, exprime algum ceticismo: “Quanto ao Socialismo, o Batalha mostra-se receoso um pouco, e recomenda-lhe prudência: V. por certo saberá combinar convenientemente as tintas com que escrever. Eu receio muito mais do Padre Amaro (que é Pigault—Lebrun forrado de Flaubert, como V. irá vendo e pasmando) do que do Socialismo mas o Batalha tem ideias fixas, e algumas bem singulares: diz que o Padre Amaro é uma revolução e não sai daqui” (março 1875). Havia, de facto, razões para preocupação, mas diferentes das que Antero julgava. Eça vai, agastado, proibir a continuação da publicação do Padre Amaro na revista, porque o “borrão” não está revisto e não reconhece a Antero qualquer legitimidade para os reparos feitos (“O Antero é o maior crítico da península mas entende tanto de arte – como eu de mecânica” – 26.2.1875). Mas regressemos ao texto programático de Oliveira Martins. Para definir o génio peninsular ibérico, haveria que salientar a importância de um “sentimento de independência”. E o traço elementar orgânico desse génio peninsular seria o heroísmo. Seria este a dar unidade ao sistema de caracteres nacionais dos “povos espanhóis”. E a “invasão árabe” teria sido a maior fortuna histórica da Península, por lhe ter dado a renovação literária, o sentimento do infinito, que vem do deserto, mas também Córdova e Granada, os eirados da Andaluzia, os frutos de mármore da Alhambra, uma arquitetura, e a compreensão de como o heroísmo cristão que “era ainda sanhudo, feroz, infantil” se pôde tornar tolerante. Mas não estava em causa apenas a arte: também havia Averróis, Ibn-Tophail,, Maimonides e Avicebron, árabes e judeus transmitindo a medicina e a álgebra, mas igualmente Afonso, o Sábio a receber os ensinamentos de alquimia. “A França é uma abelha, a Espanha é uma águia. Tem desta o voo largo, a garra firme e a alvura das penas; a alvura, porque é à Itália misteriosa e fatídica que cabem as negras cores, cores terríveis que obumbram a imaginação medonha do etrusco: a águia negra é imperial e italiana”. Eram, pois, indiscutíveis as qualidades peninsulares, que tinham de ser reconhecidas.
AINDA A CIVILIZAÇÃO IBÉRICA Como acontecerá em História da Civilização Ibérica, estamos perante uma crítica severa relativamente à obra de Henry Thomas Buckle, History of Civilization in England (1857-1865), em especial no tocante à “lenda negra” sobre a civilização peninsular. “Negar redondamente a hombridade peninsular, não surpreende num inglês incapaz de a compreender”. Em lugar do fatalismo e paganismo ultramontanos, havia que reconhecer que a religião conservava em Espanha um carácter humano – Santa Teresa humaniza Jesus “nos delírios do seu amor místico” e as Virgens de Murillo ou de Morales “são belas raparigas que brotam com as flores sob o céu azul da Andaluzia, os santos de Ribera são titãs ou prometeus roídos pelo abutre, não profetas ou sibilas como os de Miguel Ângelo”. O heroísmo ativo que gera o amor da liberdade é, assim, uma característica peninsular por contraponto a um qualquer frio estoico. E “à raça hispano-portuguesa coube o papel grandioso de explorar o mundo”, ao invés da construção do génio saxónio. “Os sentimentos produzidos pelos atos livres do homem não têm aplicação para fenómenos coletivos que estão imediatamente no domínio da necessidade que os determina”. Deste modo, para os povos ibéricos não haveria nem motivo para vergonha nem para exultar de orgulho. Importaria, sim, compreender a realidade, comparando, pesando e avaliando, para aprender a lição… Daí o historiador lembrar que o primitivo sistema colonial dos hispano-portugueses se moldava nas tradições antigas. “Uma esquadra conduzia um exército que, depois duma batalha ganha, impunha um tributo e construía uma fortaleza para manter o senhorio e cobrar o tributo. À sombra da fortaleza comerciavam os conquistadores, e aos lucros da guerra, receita do Estado, juntava-se o lucro comercial, receita privada. Este sistema distinguia-se do das colonizações fenícias ou gregas, no facto de os conquistadores prescindirem do domínio público, sem prescindirem do domínio religioso”. Não se tratava de iberismo (Antero insistia também aí), mas da consideração de uma complementaridade necessária de realidades independentes. O génio peninsular ibérico, como marca de “Revista Ocidental”, era, pois, uma exigência cultural, social e política…
Acaba de ser publicado “Antero, Portugal como Tragédia”, volume VII das Obras Completas de Eduardo Lourenço (Fundação Calouste Gulbenkian, 2019) com prefácio, organização e notas de Ana Maria Almeida Martins. Trata-se de uma obra fundamental, na qual é o grande ensaísta que se apresenta na lógica sequência do grande Mestre que foi Antero de Quental.
GRANDE INTÉRPRETE DE PORTUGAL Falar de Eduardo Lourenço é invocar o grande intérprete de Portugal. E se é um português que fala, o certo é que a sua reflexão abre horizontes, recusando uma visão fechada ou retrospetiva da nossa identidade, abrindo-lhe novas dimensões, não providenciais ou mitológicas, mas capazes de integrar o imaginário crítico num diálogo diacrónico e sincrónico de diversos tempos e culturas. Para o ensaísta, Antero de Quental é a maior referência intelectual portuguesa e o primeiro português que teve uma consciência trágica do destino humano. E assim Antero marcou o começo da nossa modernidade, sendo o seu verdadeiro fundador. As Conferências Democráticas, as Causas da Decadência, mas também o pensamento filosófico são marcos decisivos que se projetam na modernização e na abertura da cultura portuguesa e das culturas de língua portuguesa. Mas Eduardo Lourenço chama-nos a atenção para que não devemos esquecer quantos ainda se opõem a Antero e ao que ele continua a significar: “a visão unanimista da Geração de Setenta que tem nele o seu ícone cultural esconde mal os conflitos e antagonismos, as rivalidades, surdas ou clamadas, que com matéria viva o atravessaram”. E pode dizer-se que este alerta é válido para Antero e para Eduardo Lourenço, uma vez que uma leitura atenta do ensaísmo do autor de “O Labirinto da Saudade” está muito longe de simplificações, quiçá providencialistas, que quer Antero quer Lourenço sempre recusaram. O autor de «Portugal como Destino» é uma personalidade multifacetada que se singulariza pela coerência entre um pensamento independente e uma permanente atenção à sociedade portuguesa, à sua cultura, numa perspetiva ampla, avultando a reflexão sobre uma Europa aberta ao mundo e nunca fechada numa qualquer fortaleza encerrada no egoísmo e no preconceito. Em lugar de alimentar uma ilusão sobre qualquer lusofonia paternalista ou uniformizadora, o ensaísta alerta-nos para a exigência de entendermos a modernidade como um ponto de encontro entre a racionalidade ou o idealismo e a emotividade dramática e poética.
A PROCURA DAS RAÍZES É a imagem e a miragem da lusofonia que têm de ser encaradas a partir da «chama plural» que leva a entender que língua alguma é invenção do povo que a fala, já que é a fala que o inventa. Sob a influência inequívoca de Antero de Quental, como reconheceu em «Poesia e Metafísica», o pensador exprime a sua grande admiração pelo facto de o voluntarismo do autor dos «Sonetos» não abdicar «da referência ética, no sentido mais radical, e esta, por sua vez, só encontra o seu fundamento na referência metafísica e o seu cumprimento como ideal último naquela aspiração que ele designou de “santidade”. Que no final da sua vida a tenha concebido mais sob a forma budista que cristã nada retira à exigência que nela se encarna. A esse título, Antero é o único intelectual comprometido com a ação que não transigiu com o comum espírito do seu tempo. No entanto, «os homens de alta exigência ética e mística – e Antero foi um deles – são sempre um pouco arcaicos» - como salienta, com aguda lucidez, num tempo demasiado carregado de leituras fechadas e definitivas. E se falamos da importância de uma geração que só por ironia pode ser qualificada de vencida, tão grande foi a sua influência, como só acontece para situações absolutamente excecionais, temos ainda de voltar ao facto de ter sido Eduardo Lourenço a ver no «universo» de «Orpheu» o que vai muito para além da circunstância em que se afirmou.
O QUE TÍNHAMOS A PROVAR, PROVÁMOS Mas o ensaísta de «Labirinto da Saudade» é perentório: «Não temos nada que provar. O que tínhamos de provar ao mundo já provámos quando isso era uma novidade e constituía uma ação para a humanidade inteira. Temos sempre este complexo de ser uma pequena nação não tão visível como outras. Mas outras nações também não são visíveis». Não somos melhores ou piores, somos nós mesmos. Portugal é uma série de milagres. Herculano chamou-lhe vontade. «Não se sabe assim como é que há quase mil anos este país pequenino, aqui no canto da Europa, é ainda sujeito do seu próprio destino.». A História é uma batalha cultural, sempre. «A Europa define-se na sua relação com o que não é Europa. Só sabemos o que é Europa quando estamos fora da Europa. Na Europa temos uma experiência normal. É como a experiência de quem está em casa. Há até uma pluralidade de casas que, mais ou menos, têm afinidades entre elas. Isso é a Europa». Mas há ameaças e perigos, e até a indiferença e a acomodação. Falta a normalização connosco próprios. Perante tantos sinais de incerteza persiste uma miragem europeia. Contudo, a Europa fechada definha. Importa tirar lições, procurando caminhos que permitam encontrar a defesa de um pequeno e eficaz núcleo de interesses e valores comuns. Premonitoriamente, em nome da geração nova foi Antero de Quental quem definiu o programa positivo, que nunca poderá ser confundido com qualquer lógica de “vencidismo”. Se dúvidas houvesse, aqui está o corolário lógico da análise das causas da decadência. Só o sentido crítico permitirá retomar um caminho positivo de transformação e de progresso. Para muitos, depois da dureza do discurso, fica a surpresa pela determinação conclusiva. E pode dizer-se que o ensaísmo de Eduardo Lourenço assenta nesta extraordinária visão – que mais atrás se encontra em Garrett e Herculano e que se traduz na vivência dos fatores democráticos na formação de Portugal que o melhor ensaísmo do século XX desenvolveu. É a fidelidade de Antero à memória, é a compreensão da força das raízes, é a exigência da radicalidade crítica da modernidade que aqui se sente: «Meus senhores: há 1800 anos apresentava o mundo romano um singular espetáculo. Uma sociedade gasta, que se aluía (…) ao lado dela, no meio dela, uma sociedade nova, embrionária, só rica de ideias, aspirações e justos sentimentos, sofrendo, padecendo, mas crescendo por entre os padecimentos. A ideia desse mundo novo impõe-se gradualmente ao mundo velho, converte-o, transforma-o: chega um dia em que o elimina, e a Humanidade conta mais uma grande civilização. Chamou-se a isto o Cristianismo. Pois bem, meus senhores: o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno».
Hoje citamos Joaquim de Carvalho, um dos espíritos mais brilhantes da cultura portuguesa do século XX sobre a relação de Antero de Quental com Oliveira Martins: «Em vez de uma amizade que se alimentasse da identidade afetiva, da fusão de duas almas, houve entre os dois fraternos amigos o sentimento de que mutuamente se completavam na diversidade e independência dos seus seres. Perdidas as cartas de Oliveira Martins, não é fácil determinar em que é que Antero lhe foi intelectualmente tributário; sabemos apenas que o historiador deveu ao poeta-filósofo indicações bibliográficas e traduções do alemão, aliás publicamente confessadas no Helenismo e a Civilização Cristã, sendo lícito suspeitar que foi Antero quem o conduziu ao germanismo e lhe sugeriu a leitura de Cournot, cuja influência foi capital na sua conceção filosófica da história, designadamente pela teoria do acaso, uma das grandes teses que opôs à ideologia histórica da geração romântica.
Na ordem positiva, de sugestão de ideias ou de factos, faltam-nos, pois, elementos seguros; porém, se passarmos para a ordem espiritual, o mútuo tributo surge-nos com alguma claridade. Oliveira Martins admirou em Antero o homem moral e o artista, o espírito subtil e amante das ideias coerentes, e o crítico desapaixonado que lhe discutia as ideias, apontava as omissões ou deficiências e apreciava o estilo. A sua influência foi, pois, moral e intelectual; Martins, pelo contrário, foi para Antero o tipo da ação viril, do pensamento pragmático do homem forte capaz de pensar, de querer e de atuar. Como notou António Sérgio num ensaio famoso sobre Martins, o espírito do historiador trabalhava sobre o concreto. Menos especulativo que Antero, com menos experiência e perspicácia da vida interior, surdo, de certo modo, às antíteses dolorosas que ela desperta, excedia-o grandemente no sentido pragmático, na acuidade da visão prática e na formidável capacidade de trabalho ordenado e metódico. Antero cedo o reconheceu, e com espontânea sinceridade lhe confessava que o seu convívio o chamara “à realidade viva, humanamente natural, que por um insensível mas contínuo desvio, o meu temperamento místico tende sempre a afastar-me, em não havendo influências externas que me chamem à razão — e V. é para mim essa razão, a razão... como direi?, a boa razão numa palavra, positiva, real, justa”».
E aproveitemos para ouvir o Poeta micaelense.
À VIRGEM SANTÍSSIMA
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia.
Num sonho todo feito de incerteza, De noturna e indizível ansiedade, É que eu vi teu olhar de piedade E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza, Nem o ardor banal da mocidade... Era outra luz, era outra suavidade, Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura Feita só do perdão, só ternura E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa! Fita-me assim calada, assim chorosa. E deixa-me sonhar a vida inteira!
“Os poetas quando são verdadeiros não morrem” - afirmou, há dias, nos Açores ao “Açoriano Oriental” Eduardo Lourenço, aquando das jornadas realizadas pelo Governo Regional e pela Fundação Calouste Gulbenkian nos 175 anos do nascimento do poeta micaelense Antero de Quental (9.11.07).
O GRANDE MICAELENSE A atualidade de Antero de Quental é algo que merece atenção e cuidado. E a afirmação de Eduardo Lourenço assume uma especial importância, uma vez que Antero compreendeu, como ninguém, que havia uma mitologia cultural portuguesa que chegava ao fim. E assim o poeta, como tem afirmado o ensaísta de O Labirinto da Saudade, “viveu a título pessoal a morte de Deus, como se fosse uma evidência absoluta, e ao mesmo tempo sem poder aceitá-la”. E é a vivência deste paradoxo que torna o poeta uma referência multímoda da nossa cultura e o projeta para uma dimensão universal, em que ele é único no panorama português. De facto, o autor dos Sonetos pôde ser central na genial geração de que participou – tornando-se, ao mesmo tempo, sucessor numa genealogia que atinge a maturidade com Camões e chega a Bocage, Garrett e Herculano, e vai continuar em Pascoaes e na revista “Águia” e em Fernando Pessoa e no “Orpheu”, até aos nossos dias. Estamos, deste modo, num ponto de encontro e numa espécie de placa giratória, definidores da cultura portuguesa como um cadinho de diversas influências. E não por acaso encontramos nesta capacidade de abertura universalista uma das bases da heterodoxia de Eduardo Lourenço. Longe de uma identidade fechada, deparamos com a recusa de um qualquer fatalismo ou de complexos de superioridade ou inferioridade, típicos de culturas ensimesmadas. Se é verdade que sofremos de uma ciclotimia ou bipolaridade ancestral, o certo é que o sentido crítico da geração de 1870 contribuiu decisivamente, num certo tratamento de choque, para a recusa dessa enfermidade estrutural. Afinal, a projeção global da nossa língua (uma das cinco que mais crescerão no próximo século) capaz de ser expressão de várias culturas e fundamento de diversas línguas subsidiárias, como os crioulos, corresponde a essa extraordinária capacidade de integrar poética e culturalmente uma visão abrangente – não ligada a uma qualquer idiossincrasia tribal ou regional. Sem ter exata consciência disso mesmo, o poeta açoriano é, nestes termos, um autêntico símbolo da vocação universalista da cultura portuguesa, que em nada minora a importância do que nos distingue. E Antero de Quental corresponde à vivência desse universalismo cosmopolita, que mais tarde encontraremos em Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Aliás, Tolstoi e Unamuno testemunham, de modo inteiramente insuspeito, sobre a importância do nosso genial poeta. Voltando a Eduardo Lourenço: “a literatura condensa a essência de cada povo, daquilo que ele é e pretende, das vivências que o norteiam e definem”. No caso de Antero e Pessoa, “ambos se dedicaram a olhar o problema da nossa identidade, da nossa figura, da nossa imagem no mundo… Não para os olhos dos outros, mas para os nossos próprios. Isso começou com a geração de 70”. E é esse sentido crítico, a capacidade de realizar a psicanálise mítica do nosso destino que torna essa atitude como crucial no sentido de uma emancipação centrada na compreensão humana e complexa de quem somos.
QUE MITOLOGIA DA SAUDADE? Em carta a António de Azevedo Castelo Branco de 1867, Antero diz que “a rêverie da saudade é para a alma que se deixa envolver nela como hera para os muros que veste e abraça. A princípio é um adorno, uma gala. Mas as raízes vão entrando dia a dia por entre as pedras mais bem ligadas, abrindo-as, deslocando-as. Quando se lhe acode não é mais já do que uma ruína – uma ruína encoberta e protegida por uma ilusão”. Recusa-se, deste modo, uma simplificação melancólica. Mais importante do que o culto de uma ilusão, importaria ir à substância das coisas e inserir o sentimento poético numa compreensão racional. Trata-se de uma demarcação relativamente a Garrett, como modo de superar a contradição entre razão e delírio. Haveria que caldear as tradições com a racionalidade e a procura de um caminho capaz de nos proteger das ilusões. No entanto, o poeta oscilará entre o misticismo e a “lucidez racional” – entre a poesia e a filosofia. E em carta a Oliveira Martins, de 1880, dirá: “é incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, e este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e claro daquela. Que fazer? É evidente que a poesia sai do sentimento e não da razão”. Daí a necessidade que o poeta sente do mundo das ideias – que o leva a centrar-se na reflexão que se traduzirá na publicação do fundamental ensaio “Tendências Gerais da Filosofia da Segunda Metade do Século XIX” (1890), a pedido de Eça de Queiroz para a “Revista de Portugal”. Já em 1885 dissera a Jaime Batalha Reis: “Extrair do pessimismo o otimismo, por um processo racional, tem sido afinal o trabalho da minha vida. Creio que cheguei ao termo e dou a minha Filosofia por completa e acabada. (…) A dita minha Filosofia não é original. É antes uma fusão (não amálgama) do Hegelianismo com a monadologia de Leibniz, dando de si a síntese do idealismo e do espiritualismo num terreno que à 1ª vista se parece com o materialismo. (…) O meu sistema será pois (como todos, no fundo) um ensaio de interpretação do Universo no ponto de vista do espírito moderno, interpretado esse mesmo espírito pela razão crítica. Se conseguir fazer isto satisfatoriamente, não darei por vão o meu esforço”. O pessimismo é, no fundo, um caminho, para que a consciência crítica ilumine a ação. E é da necessidade de não descurar a ligação entre pensamento e ação que resulta o paradoxo de Antero – preocupado com a necessidade de haver ideias, de existir espírito crítico e de ligar o espírito e a intervenção cidadã. Daí a complementaridade que sentia haver entre si e Oliveira Martins, pela necessidade das ideias se traduzirem em consequências práticas. E em maio de 1887 escreve ao seu dileto amigo, alertando: “Vejo-o caminhar para um pessimismo negativo, que não posso aprovar e me contrista”. E, depois de constatar a impossibilidade de penetrarmos absolutamente no problema da existência, vem dizer: “desprezar o mundo, desprezar os homens, ver o vácuo e o tédio como resíduo final de tudo, é o grande pecado do orgulho. Afinal, o que está está bem, o que vai vai bem. A nós o que nos cumpre é descobrir o como e o porquê deste paradoxo universal das coisas – na certeza de que é um divino paradoxo”. Em vez do afastamento do mundo, haveria que compreendê-lo, em nome da justiça. “A filosofia não pode prescindir dos dados da consciência; mas, por outro lado, as aspirações da consciência não podem anular os factos naturais e históricos e positivos” – diz a Ferreira Deusdado em 1888. O divino paradoxo de Antero põe em confronto a consciência e a realidade, a sensibilidade e a razão. E um tal dilema representa a singular atualidade do inesquecível poeta.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Entre as diversas reedições recentes de «Sonetos Completos» de Antero de Quental, registamos a que tem o prefácio de Ana Maria Almeida Martins (Artes e Letras, Ponta Delgada, 2016).
LAPIDAR EPÍGRAFE…
Com inteira razão e oportunidade, a cuidada edição a que nos referimos é antecedida por uma lapidar epígrafe de Eduardo Lourenço, onde este afirma que “não há na nossa literatura, nem mesmo Camões, poeta tão naturalmente universal como Antero de Quental, dada a natureza ideal e intemporal da sua inspiração e o conflito que a alimenta, pura interpelação do espírito sobre si mesmo no meio de um mundo incompreensível”. Não é difícil de explicar esta consideração, que corresponde, antes do mais, ao veemente apelo de Antero, em Coimbra, na questão do Bom Senso e do Bom Gosto, sobre a necessidade de viver com ideias, à exigência da compreensão de que um velho Portugal morria definitivamente, bem como ao espírito das Conferências Democráticas de 1871, cujos promotores pretendiam pôr Portugal ao ritmo da cultura europeia. Nesses momentos, houve a consciência plena que se iniciava um novo capítulo na cultura portuguesa. Antero pensava, de facto, não como se estivesse confinado a uma insularidade periférica (a portuguesa), mas segundo o direito próprio de ser um cidadão e um pensador europeu e do mundo do seu tempo – não limitado às nossas fronteiras. Essa era a preocupação fundamental e a atitude do grupo de jovens intelectuais que antecipou a inexorabilidade de uma presença futura entre as nações civilizadas, com uma forte consciência da evolução e da justiça. Longe de uma realidade confinada ou de qualquer ideia identitária, do que se tratava, neste carácter “naturalmente universal”, era de considerar a humanidade como compreensão das diferenças, dos conflitos, dos interesses e das complementaridades. A racionalidade e a sensibilidade emocional estão, assim, claramente presentes na modernidade da poesia de Antero e dos seus. Oliveira Martins, no fundamental prefácio, fala-nos de “um helenismo coroado por um budismo”, na fórmula usada pelo próprio poeta. Mas o crítico acrescenta: “pobre humanidade, se se visse condenada à coroação budista! Nós europeus, incapazes de nos sujeitarmos ao regime da contemplação inerte, sofreríamos as agonias, experimentaríamos as aflições do poeta que, tendo no peito um coração ativo, tem na cabeça uma imaginação mística, e, para obedecer ao pensamento, tortura o coração, sem poder também esmagá-lo sob o mando da inteligência”.
RAZÃO, IRMÃ DO AMOR E DA JUSTIÇA Afinal, esta mesma tensão é aquela que existe e que sentimos entre os autores e as referências fundamentais da cultura europeia (de Goethe a Shopenhauer). No entanto, em Antero e na geração dita de 1870 do que se tratou foi de abrir novos horizontes – buscando uma visão capaz de superar as limitações e as fragilidades de uma realidade nacional considerada periférica. E assim ouvimos: “Razão, irmã do Amor e da Justiça / Mais uma vez escuta a minha prece. / É a voz dum coração que te apetece, / Duma alma livre só a ti submissa”. Dir-se-á, contudo, que só a morte espreita (“Morte! Irmã do Amor e da Verdade”), mas é mais do que isso, sendo certo que essa perspetiva não tira à visão de conjunto a importância conformadora. E o filósofo “há de aliar à compreensão da nulidade extrínseca das coisas a compreensão da sua excelência intrínseca (diz O.M.); exigindo que o homem seja ativo, porque a atividade é boa por ser indispensável à saúde do espírito, embora os objetos da atividade sejam as mais das vezes írritos e nulos, quando considerados em si próprios e isoladamente”… Aí se apartavam os dois inseparáveis amigos do budismo, indo até ao Inconsciente de Hartmann (“O espetro familiar que anda comigo, / sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto, / Que umas vezes encaro com desgosto / E outras muitas ansioso espreito e sigo”). “É loucura pensar que jamais possamos definir o Absoluto. Cada qual sente-o a seu modo, segundo o seu temperamento, e sábio é aquele que se limita a registar as relações das coisas”. E é nesta relação com o agir – e Antero considerava Oliveira Martins nesse ponto seu complemento natural – que encontramos a capacidade singular de uma geração que lançou sementes de futuro. Daí a consideração do prefaciador: “quem, emergindo dos montões de papelada que as imprensas vomitam diariamente, deitar os olhos sobre estas páginas, e não sentir o deslumbramento que os diamantes produzem, é porque a sua vista se embaciou com o exame dos livros grosseiros em todo o sentido, e a sua língua perdeu o hábito de falar português”.
ANSEIO DE ETERNIDADE Ao recordarmos quem chamou ao poeta maior “santo Antero”, vem à lembrança o que Tolstoi anotou no seu diário no dia 15 de março de 1889 (perante a tradução alemã dos «Sonetos» por Wilhelm Storck, antecedida da carta autobiográfica) concordando o genial russo com Antero sobre o seu conceito de liberdade, apenas plenamente alcançável pela santidade, através da renúncia a todo o egoísmo. Mas, não podemos deixar de lembrar Miguel de Unamuno e o seu “sentimento trágico da vida”, tão chegado a Antero, e só compreensível plenamente em diálogo com essa poesia: “Quental há sido una de las almas más atormentadas por sed de infinito, por el hambre de eternidad. Hay sonetos suyos que vivirán cuanto viva la memoria de las gentes”… E ao invocarmos dois dos maiores escritores de dimensão universal fazemos a demonstração cabal do universalismo anteriano, que o tempo se tem encarregado de confirmar plenamente. A ligação entre Camões, Antero e Pessoa que Eduardo Lourenço tornou inequívoca – confirmada pelos mais significativos poetas contemporâneos, como Ruy Belo e Sophia de Mello Breyner Andresen – projeta-se globalmente. E foi exatamente Ruy Belo quem disse: “Antero foi possivelmente o maior pensador português dos tempos modernos. Não importa que não tenha dito a última palavra, por circunstâncias a que a doença não terá sido alheia. Até o seu silêncio pesa mais do que as palavras de muitos palradores contemporâneos. E quando fala e a sua voz chega até nós, não já com aquele calor que punha nas conversas com os amigos, mas gramaticalmente organizada, travamos conhecimento com um dos momentos mais altos da prosa portuguesa”.
Eduardo Lourenço ensinou-nos que ao contrário do que muitos disseram, a Geração portuguesa de 1870 não foi nem exemplo de decadência, nem sinal de desistência. Pelo contrário, quem ler com atenção a sua obra crítica facilmente encontrará a busca persistente de uma saída positiva baseada na capacidade de regeneração ou de renascença de Portugal.
A CHAVE DA HISTÓRIA A célebre conferência de Antero de Quental no Casino Lisbonense em 1871 sobre as causas da decadência do povos peninsulares constitui, muito mais do que uma intervenção circunstancial, uma chave para o tempo que se seguiu e no qual ainda participamos. Não por acaso, Miguel de Unamuno considerou esse momento como o culminar do “século de ouro português”. É certo que há paradoxos e contradições, mas o que aparece com nitidez é a ideia da procura de fatores democráticos, capazes de mobilizar os cidadãos e de fixar as riquezas… Antero falava de três causas da decadência: Trento, o Absolutismo e as Conquistas. O fechamento religioso, a centralização política protecionista e a dispersão de um império dificilmente governável para um país europeu de dimensão média – tudo isso determinou a incapacidade de criar condições económicas e políticas capazes de assegurar um verdadeiro autogoverno democrático. A verdade é que, no final, do século XIX Portugal tornara-se periférico, pobre e mais distante (como não antes) da economia e da cultura europeias. É esse afastamento dramático que constitui pano de fundo do romance Os Maias ou do dilema de Gonçalo Mendes Ramires em A Ilustre Casa de Ramires… E se o batismo de “Vencidos da Vida” teve o seu quê de irónico, como melhor do que ninguém demonstrou Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português, o certo é que essa marca de decaimento significava a necessidade de partir de uma visão autocrítica para a superação da mediocridade – daí haver, de Alexandre Herculano a Jaime Cortesão, a procura do reencontro com as raízes ancestrais da liberdade e da democracia. O reencontro de Portugal com a democracia e a Europa, no último quartel do século XX e início do século XXI, corresponde assim a uma resposta que confirma que a permanência cultural portuguesa se reforça com a autonomia, com o sentido crítico, a desconstrução dos mitos e com a capacidade inovadora.
OS EFEITOS NEFASTOS DAS CONQUISTAS Herculano e Coelho da Rocha, na linha de pensamento que Antero seguiria no Casino, puseram-nos de sobreaviso relativamente ao sonho e à dispersão imperiais. “As riquezas do Oriente produziram entre os portugueses os mesmos efeitos que em todos os tempos têm feito sentir aos seus conquistadores” – ensinava o professor de Coimbra. “A antiga singeleza foi substituída por um luxo imoderado; este corrompeu os costumes; e a avidez do ouro ocupou o lugar da virtude e do patriotismo. Por outra parte, as longas e perigosas viagens, a guerra e a colonização despovoaram o reino e abriram um vazio que as riquezas não podiam preencher”. É como se voltássemos a ouvir Gil Vicente, Sá de Miranda ou o incompreendido Camões, pela boca do Velho do Restelo… Ao invés da glorificação do passado está aqui o apelo à fixação… Afinal, “a glória de mandar e a vã cobiça” mostraram-se mais poderosas do que o espírito inovador e do que a capacidade de dar novos mundos ao mundo… Oliveira Martins lembrou: “a bordo fomos tudo; em terra apenas pudemos demonstrar o heroísmo do nosso carácter e a incapacidade do nosso domínio”. A orientação para o mar foi ditada pela situação geográfica e pela tradição comercial – menos por uma vocação imperial, daí que os defensores do regresso à “vida simples” e à “fixação” tenham considerado não haver contradição histórica, mas complementaridade de vocações, enfatizando a fixação como complemento do transporte… E Herculano atribuiu, assim, a falta de esforço, crença e patriotismo na crise dinástica de 1580 aos “hábitos de desenfreio, cobiça, ódio e egoísmo que em cada monção carreávamos do Oriente para a Europa”. E um certo providencialismo decorreria da contradição entre os feitos alcançados e a míngua de efeitos duradouros conseguidos.
ENTRE FIXAÇÃO E TRANSPORTE António Sérgio deu coerência a uma genealogia nobre, enaltecida por Herculano: desde a política de independência da primeira dinastia, passando pela justificação do Infante D. Pedro na Carta de Bruges, pelo sentido crítico de Sá de Miranda e de Camões, pelos economistas do século XVII, pelos académicos de setecentos e finalmente por Mouzinho da Silveira… Não por acaso, Oliveira Martins considerou modelar o exemplo do Príncipe Perfeito, como delineador de um plano para a Índia, fundado na criação de uma base económica na Península Ibérica. Ainda que concordasse com Herculano e Antero, estudou a hipótese de uma estratégia global assente na articulação entre a inserção europeia e o melhor aproveitamento dos recursos obtidos na circulação mercantil. A criação de uma base peninsular gorou-se, porém, do mesmo modo que as posições dos economistas do século XVII e a tentativa da atração dos capitais dos judeus e cristãos-novos não tiveram consequência em fixação manufatureira – que a descoberta do ouro do Brasil tornou aparentemente dispensável. O fulgor da corte de D. João V correspondeu à passagem das riquezas pelo transporte, e não a uma consolidação económica e cultural. Daí a evolução do século seguinte. Se é verdade que, desde a primeira geração liberal, de Garrett e Herculano, intelectuais e políticos reivindicaram a aproximação à Europa, sem prejuízo da salvaguarda das especificidades nacionais, o certo é que, entre meados e o fim do século XIX, houve uma clara divergência no tocante ao produto per capita, chegando-se à primeira década do século XX com uma distância não alcançada anteriormente. O PNB per capita português que era de 86% da média dos países desenvolvidos, em 1860, passa para 45% no início do século XX. Isto poderá parecer estranho, quando assistimos a uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. No entanto, o desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de faltar entre nós a fixação, que permitiu no resto da Europa um crescimento muito mais rápido, graças às economias de escala. Tem razão Rui Ramos quando encontra as raízes da condenação dos efeitos das descobertas e das conquistas em Herculano, Antero e Oliveira Martins na ideia de que urgia construir uma “república”, como comunidade de cidadãos patriotas, autónoma e viável, explorando o enraizamento e a “vida simples” baseada nos próprios recursos. Fora da ideia de uma história impossível, como Eduardo Lourenço ensina, trata-se de assumir a herança multifacetada (de Pedro Nunes, Garcia de Orta, Camões, Fernão Mendes Pinto e D. João de Castro) e as suas lições – sendo o regresso ao cais europeu a possibilidade de conciliar a fixação na ampla frente de mar do hemisfério norte com o aproveitamento das virtualidades de um relacionamento global, em geometria variável, designadamente do mundo da língua portuguesa.
“A medicina já não me receita outra coisa senão viagens”
Noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Veneza a muito bela das cidades da Europa Meridional. Veneza aquela a que os italianos sentiam como a soave austero.
Neste livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, este novo texto, híbrido, entre tradução e «transplantação», quando Antero nos diz no ensaio sobre tradução, que, tradução é mais que transplantação, Veneza era plácida, e passaremos sempre a entendê-la não como Thomas George Bonney, a descreveu, mas necessariamente como o resultado de um novo livro de Antero, uma «transplantação» com inúmeros trechos da sua própria autoria.
Assim, Veneza, era a cidade à qual o viajante sempre chegava com a sensação de caminheiro e ali se perfumaria numa preguiça indolente e indolentemente cismava uma cisma entre pombas mansas e a falta de solo; entre o espanto da fisionomia latina, bizantina, ocidental e oriental e enfim maometana.
A importância da situação geográfica e política de Veneza durante toda a Idade-Média foi o que a tornou mediadora inteligente entre civilizações hostis. E continua: Veneza, apesar de decadente, é ainda bela.
Diria que ao ler este livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, esta beleza de Veneza surge-nos muito explicitamente de um monte de ilhas onde assentava a relação com Constantinopla, Egipto, Síria, Creta, Chipre, enfim um Rialto de mãos de génio, sendo o governo nos primeiros séculos pura democracia. Diria que saber que que o Doge era magistrado e não senhor sob pena de o expulsarem ou executarem, é como atesta Antero a consciência de que se vive como perdidos em estados tão grandes, que desconhecemos a coragem que implicava a simples e reduzida cidade ter em si a força criadora e inventiva de um poder e de uma arte tão própria quanto a da arquitetura veneziana.
E, como já dissemos pelas palavras do que lemos
noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Fazem-me sentir estas palavras que só se assim for, se poderá iniciar a razão profunda e até íntima da razão e da elegância de Veneza desta forma ser. Afirma-se que o Canal Grande é para Veneza o que são para Paris a rua Rivoli, o Corso para Roma ou Regent-Street para Londres, e ao espreitarmos por uma gôndola lá está o Palazzo Cavalli ou a poética Ponte dos Suspiros sobre movediço chão, em corredor de ligação à prisão Estado de Veneza. São Marcos fantástico!, magistral!, e a Força e a Justiça em duas mulheres de mármore a ladeá-lo e de cujas mãos o Doge recebia a espada do governo.
E assim se diz também que por toda a parte Veneza é rainha de portas sarracenas e que se entre nela humildemente pois que não há maior contraste que os olhos possam ver. E tantos são os contrastes que noutra parte pareceriam disparatados, filhos de inabilidades, e aqui, aqui harmonizam-se, fundem-se ou o artista medieval não tivesse o sentimento do conjunto. E eis como um dia o artista com a liberdade e o poder da Renascença denuncia a sua energia com Bramante ou com Miguel Ângelo. E não descuida Quental que o mal, o defeito da Renascença, ou antes do movimento saído da Renascença, depois de esgotado o seu impulso primeiro e genial, foi a superstição da antiguidade, das regras clássicas, o culto do convencional.
A destreza com que o gondoleiro maneja o remo chamado fercola por canais estreitíssimos, é admirável, e o encanto do viajante é o desespero do arqueólogo na confusão de estilos ao gosto veneziano que permitem mulher formosa a cada janela rendilhada.
E do livro:
Em Veneza tudo fala do passado, por conseguinte da morte. E o que é a história, essa agitação de efémeros, durante um momento, entre duas eternidades?
É irónico que Antero de Quental nunca tenha visitado a cidade dos doges.
Ainda hoje parte do espólio de Quental se encontra na Biblioteca Marciana de Veneza.
Antero um dos notáveis da nossa literatura.
Para mim, este livro de um cuidado e beleza indizíveis, acolhe em jeito de segredo aquele que sempre soube que o tempo continua a ser o de chegar a Veneza por mar, esse mesmo que muito tem segurado por lá as canções silenciosas que batem à porta do coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Este livro magnífico teve a organização, introdução e notas de Andrea Senior. Giorgia Casara na revisão e Mariana Pinto dos Santos na atualização da grafia e na revisão. A todas agradeço por este magnifico trabalho, e expresso o meu contentamento especial à Pianola Editores por esta luz em 2015.
A terminar as «Tendências Gerais da Filosofia da Segunda metade do Século XIX» (1890), Antero de Quental diz-nos que “a síntese do pensamento moderno, preparada pelos filósofos, tem de ser a obra coletiva da humanidade culta”. É um texto fundamental da história da cultura portuguesa.
O ESPÍRITO DA HUMANIDADE Nesse sentido, salientava Antero, não se pode confundir com “um grande e perfeito sistema, uma impecável civilização dialética; mas será mais e melhor do que isso, um alto ideal comum, um princípio universal de inspiração, falando todas as potências da alma humana, e cada uma na sua língua, acessível e fácil ao coração dos simples, como profundo à penetração das altas inteligências, e tão rico de luzes para a ciência como de estímulos para a consciência”. Tratar-se-ia do espírito da humanidade, nas suas diferenças e complementaridades, que se realiza nas instituições, nos costumes e na vida moral. De facto, a importância de Antero na história da cultura portuguesa liga-se a esta procura universalista – que deve ser vista na encruzilhada entre a herança romântica e a proposta simbolista. O poeta, em carta de 1867 a António de Azevedo Castelo Branco, afirmava que “a rêverie da saudade é para a alma que se deixa envolver nela como a hera para os muros que veste e abraça. A princípio é um adorno, uma gala. Mas as raízes vão entrando dia a dia por entre as pedras mais ligadas, abrindo-as, descolando-as. Quando se lhe acode não é mais já do que uma ruína – uma ruína encoberta e protegida por uma ilusão”. Nuno Júdice, num ensaio de grande interesse, que aqui se glosa, publicado na revista “Colóquio-Letras” (número 185, janeiro de 2014) recorda que nesta consideração estamos perante o conflito anteriano entre razão e delírio. A um tempo, sentimos a atração e a demarcação relativamente à influência romântica de um Garrett. E, em carta a José da Cunha Sampaio, de 1868, temos a recordação de influências antigas: “Byron, o batizador da nossa geração, pôs-nos ao lado dois padrinhos da sua mão, o Desejo e a Paixão; mas Proudhon, o batista da geração futura, dá-lhe outros padrinhos mais seguros, Abstinência e Vontade”.
LIGAR POESIA E FILOSOFIA Do que se trata é de ligar Poesia e Filosofia e, neste particular, Antero de Quental vai desenvolver a sua capacidade criadora entre misticismo e lucidez racional, entre imaginação e razão. Como dirá a João Lobo de Moura: “o essencial, hoje, na Península, não é fazer ciência concreta e fria, para quem ignora os elementos das coisas: é introduzir no espírito público o sentimento moderno e a mesma noção de espírito científico e filosófico” (novembro de 1873). Nuno Júdice salienta, aliás, que, nas primeiras cartas de Antero, há maior nitidez na distinção entre racionalismo filosófico e delírio poético. Mas o tempo foi atenuando essa diferença. Numa carta a Joaquim de Araújo, o poeta elogia os brasileiros que não se limitam em poesia a ser literatos, mas preferem ser verdadeiros apaixonados “arrastados por um fluxo íntimo de sentimentos”. Afinal, há neles “uma sinceridade de inspiração, uma verdade e frescura, uma graça natural de expressão que me encantam” (3.11.1880). Os valores da sinceridade e da paixão caracterizam os “verdadeiros poetas”. E ainda no mesmo ano encontramos a confissão a Oliveira Martins de um certo regresso às origens: “É incrível a desarmonia que há entre a minha razão e o meu sentimento, este, por mais que faça, nunca chega a afinar pelo tom grave e claro daquela. Que fazer? É evidente que a poesia sai do sentimento e não da razão. Aceitemo-nos pois tais como nos fez a natureza. Não se pode exigir ao pinheiro que dê laranjas. Os poetas são como as mulheres: há de se tomar tais e quais, como os defeitos e as qualidades que na sua fatal natureza são inseparáveis”. Mas é na filosofia e pelas ideias que a maturidade criadora se afirma. Daí que Antero se confesse atraído pela Filosofia e pelo seu estudo cada vez mais absorvente. Deste modo, a publicação dos “Sonetos”, graças ao labor do seu dileto amigo Oliveira Martins, corresponde ao fecho de um ciclo de vida – “um documento psicológico”, como as “memórias de uma consciência” (como dirá a Tommaso Cannizzaro, em 24.6-1886). E o poeta confidencia ainda a Carolina Michaelis: “Parece que o estado de inquietação e de luta é que me incendiava e avigorava a imaginação, de sorte que, cessando aquele estado, esfriou ela rapidamente e toda a sua violência se escoou num suspiro. Esse suspiro são os últimos 15 ou 20 sonetos do livro; sem eles, creio que nunca teria publicado aquela coleção”. Aqui está (refere acertadamente N. Júdice) a cabal demonstração de que o poeta seguiu de perto a feitura da reunião dos “Sonetos”, designadamente a ordenação dos poemas, que foi, ao longo do tempo, motivo de polémicas várias…
«SONETOS» COMO ESTRUTURA NARRATIVA Nuno Júdice fala, por isso, de uma estrutura narrativa do volume dos “Sonetos”, com acompanhamento das diversas fases da vida de Antero de Quental, desde o satanismo inicial, de influência romântica e baudelairiana até ao misticismo final – sendo o poema “Na Mão de Deus” uma espécie de intencional fecho de abóboda, que culmina um percurso que a organização procura seguir. Desde o prefácio à ordenação sente-se, assim, uma preocupação de fidelidade ao fraternal amigo por parte de Oliveira Martins. Antero fala mesmo a Wilhelm Storck de “notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão das notas de um diário” – que acompanha “as fases sucessivas da minha vida intelectual e sentimental”. No fundo, o poeta sabe que, para si, mais do que as grandes explicações da ciência, “um profundo mistério continua a envolver o universo que ela acaba de explicar: o mistério das ideias, que é o mistério do que na consciência está para além da sensibilidade, região obscura onde assentam essas explicações”. E é nas “Tendências Gerais”, por onde começámos, texto fundamental, que essa chave se encontra – sentindo o poeta necessidade de pedir ao filósofo o completamento da explicitação do que o sentimento revela talvez melhor do que qualquer outra expressão. Dir-se-á, assim que “Sonetos” e “Tendências” correspondem a duas faces de uma mesma moeda que Antero de Quental quis que ficasse evidente no seu legado intelectual e espiritual para os vindouros. O sentimento e a razão completam-se e são reveladores da capacidade criadora da humanidade e da busca de um princípio universal, “falando todas as potências da alma humana (…) acessível e fácil ao coração dos simples, como profundo à penetração das altas inteligências, e tão rico de luzes para a ciência como de estímulos para a consciência”. O lugar de Antero de Quental na cultura portuguesa é singular e significativo. O poeta afirma a diversidade, impossível de simplificação, assente na coexistência de elementos paradoxais e complementares – misticismo e lucidez racional, imaginação e razão, lirismo e tragédia, poesia e filosofia. E Antero viveu dramaticamente essa coexistência…
Foi um dos sermões do frei Bento Domingues, no Público, que me recordou este poema, uma oração de Santa Catarina de Sena. Pôs-me a pensar na diferença entre inconformista e inconformado. Entre misfit (desadaptado, mal parido) e challenger (desafiante, com fezada)... Entre loosers e winners, entre os que pedem e os que nunca dão. Quem perceberá que, para nós, cristãos, Deus é sempre O mendigo? Rebuscando papeis antigos, dei com essa minha libérrima tradução de Catarina de Sena, que acima te deixo...
Há idades para tudo, até mesmo para as coisas que marcam e nunca esquecem. Isto é, nem tudo em nós envelhece. Sinto-me feliz agora, no preciso instante em que te escrevo, ao perceber que continuo inconformado, sem tampouco me ter tornado inconformista. Ensinaram-me os anos que a demanda íntima de mim, do meu eu-com, não tem de se enraivecer contra a minha circunstância. Quiçá até lhe devo algum carinho, é ela, sempre, que me incita à libertação. É bem manhosa a condição humana... E é vã, vazia, como a própria palavra diz, a vaidade, qualquer vaidade. Olho para a Otahi (sozinha), essa pintura em que Gauguin nos entrega uma jovem mulher de Tahiti, ajoelhada na areia, debruçada, com os cotovelos no chão e a cabeça apoiada nas mãos... Pensossinto que talvez se interrogue como as outras, noutra tela: quem sou, donde venho, para onde vou? Não tenho resposta para ela, qualquer vocação será sempre uma aventura. Apenas sei que também tenho sede. Imagino ainda que ela se vai erguer e caminhar para o mar sem fim. E que, mergulhando, não se irá perder, mas irá cada vez mais fundo, até à luz que está no lado de lá do mundo. Talvez cada um de nós sinta de modo diferente essa mesma vocação, com maior ou menor solidão, com mais ou menos egocentrismo a circunscrever-nos a transcendência. A nossa soledad, a grande soledade daquela água, que sentiu o frade dominicano de Montejunto - o tal que terá descoberto essa palavra saudade - tanto pode ser libertadora, como fatal. Pois que uma é a saudade de Deus, que leva Catarina de Sena às profundas do mar e à sede renovada do deserto, outra a saudade de si, uma perdição interior, como a de Mário de Sá Carneiro: perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim...
Quiçá seja em Antero de Quental que a luta das saudades, o drama da saudade de Deus e da saudade de mim, tem lugar maior e mais frequente. No Prefácio aos Sonetos do seu íntimo amigo, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, a dado passo, observa e cita: E se ainda o dia, a luz, o sol esposo amado, têm o condão de o encher de entusiasmo, é mister desconfiar de um homem mais caprichoso do que todas as mulheres, porque:
Pedindo à forma, em vão, a ideia pura
tropeço, em sombras, na matéria dura
e encontro a imperfeição de quanto existe.
Esta nota é mais constitucionalmente verdadeira. «Seja a terra degredo, o céu destino» diz num ponto; e noutro:
Minha alma, ó Deus, a outros céus aspira:
se um momento a prendeu mortal beleza
é pela eterna pátria que suspira...
Não acreditemos também demasiadamente nisto, porque Deus não passa ainda de uma interrogação:
Pura essência das lágrimas que choro
e sonho dos meus sonhos! Se és verdade,
descobre-te, visão, no céu ao menos!
Mas Antero - que dedicará o seu célebre soneto Na mão de Deus, na sua mão direita, / descansou afinal meu coração... à Senhora Dona Victória de Oliveira Martins - escreve outro, dedicado ao próprio Joaquim Pedro, intitulado Transcendentalismo:
Já sossega, depois de tanta luta,
já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
o bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.
Penetrando, com fronte não enxuta,
no sacrário do templo da Ilusão,
só encontrei, com dor e confusão,
trevas e pó, uma matéria bruta...
Não é no vasto mundo - por imenso
que ele pareça à nossa mocidade -
que a alma sacia o seu desejo intenso...
Na esfera do invisível, do intangível,
sobre desertos, vácuo, soledade,
voa e paira o espírito impassível!
Transcendente, Deus é impassível, não sofre nem passa por nós. Incarnado, permanece connosco, é sofredor e taumaturgo, inquietante e pacificador. A revelação cristã, a descoberta do cristianismo, é esse Deus paradoxal como a condição humana. O desejado repouso final, irrequieto enquanto anseio. Quiçá a prova mais íntima de Deus seja essa insaciabilidade: no deserto saciaste a minha sede, e com nova sede não mataste a sede maior com que, de Ti, fiquei... pedindo à forma, em vão, a ideia pura, tropeço, em sombras, na matéria dura, e encontro a imperfeição de quanto existe... diria Santa Catarina de Quental.