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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Da releitura que vou fazendo, em vale de lençóis, de A Dance to the Music of Time, de Anthony Powell, apontei, na passada semana, uns trechos do 2º volume, A Buyer´s Market, que te traduzo:

 

   Imaginava outrora a vida dividida em compartimentos separados, nos quais introduzia, por exemplo, abstrações aos pares, como prazer e dor, amor e ódio, amizade e hostilidade, e também termos mais materiais, como trabalho e jogo. De acordo com tal conceito, aceite sem preconceito, pelo menos aparentemente, por pessoas díspares, profissão ou ofício são coisas totalmente diferentes de "lazer". Tal ilusão (posto que, mais tarde, assim vim a considerar esse ponto de vista) estava estreitamente ligada a outro conceito, segundo o qual a vida penetra indefinidamente em novas zonas de experiência, enquanto que qualquer nova relação nos introduz quase sempre num mundo desconhecido, com os seus acasos e os seus encantos. Mas torna-se claro, à medida que o tempo passa, como esses mundos ditos diferentes na realidade se aproximam, se não uns dos outros, pelo menos de um modelo comum a todos; de tal modo que, afinal, a sua diversidade - se é que ela verdadeiramente existe - acaba por parecer quase impercetível, exceto nos seus aspetos grosseiros e exteriores, e nos parece mesmo inconcebível na sua figuração antecedente, como relação de causa a efeito. Por outras palavras: quase todos os habitantes desses impérios aparentemente autónomos se revelam definitiva e estreitamente ligados entre eles. E assim, o amor e o ódio, a amizade e a hostilidade, ganham um aspeto menos nitidamente definido e parecem amiúde possuir características das quais o mínimo que se pode dizer é que entre elas há numerosas parecenças, enquanto o trabalho e os divertimentos se fundem completamente num complexo tecido de prazer e aborrecimento.

 

   Se tiveres gosto nisso, Princesa de mim, poderemos ambos discorrer sobre este trecho duma saga romanceada, completa há mais de setenta anos. Para já, creio recordar-me de que o mesmo autor disse, alhures, que quando encontramos outra pessoa, sobretudo se essa relação tiver alguma carga amorosa, nos debatemos a nadar entre duas águas: naquela em que vislumbramos a pessoa real, e na que nos promete a sua imagem ideal. [Powell não o disse tal e qual, mas assim, pobre de mim, pensossinto]. Mais ou menos opostas ou cinzeladoras, tais visões podem suceder-se, a entreter a razão, no percurso desse comboio de corda que chamamos coração, como diria Pessoa; ou, para nosso cansaço, quiçá desespero, confrontam-se entre si, sem que saibamos bem, aliás, se não irão, finalmente, cair no poço egoísta e alheio do nosso esquecimento... Seja como for, Pascal tinha razão quando teimava em que o coração tem razões que a razão desconhece. Ora, acontece ser igualmente certo que a razão teima em esconder, ao coração, as suas razões. Talvez para dele não ter que ouvir as razões que prefere obscuras.

 

   Mas, afinal, serão razão e coração assim tão diferentes ou, melhor ainda, tão dificilmente comunicantes? [Faço-te esta pergunta, Princesa de mim, numa época em que se descobrem e estudam os neurónios dos nossos intestinos...] Um exame, atento e sem preconceitos, das relações humanas talvez nos possa ajudar a entender melhor como a personalidade de cada pessoa, e a sua vulnerabilidade à mudança circunstancial, são certamente função da dialética entre aquilo que é chamado coração e o que se chama razão. Poderá tal parecer paradoxal mas, na realidade, só paradoxalmente o ser humano pensassente. Os signos do zodíaco são todos diferentes, mas todos têm, em comum, serem sinais de contradição.

 

   Começo, com intenção mais profunda, por te citar o exemplo curioso do atleta Braima Dabó, cidadão da Guiné-Bissau, que estuda em Portugal e concorreu na prova dos 5000 metros dos últimos campeonatos mundiais de atletismo. Antes de se precipitar para a meta, foi ele o samaritano que ajudou e carregou um concorrente que, exausto, caíra na pista. Comovido, não comento. Tampouco especularei sobre o caso, ou o tema, que muito respeito e melhor meditação me merece. Apenas observo que talvez seja um exemplo raro, infelizmente, duma atitude tão humana e, para quem deva assim considera-la, tão evangélica. Tal como a Manuela Silva, competentíssima economista agora falecida, procurou sempre que o percurso da sua vida se fosse aproximando cada vez mais do espírito do Evangelho, e muito conscientemente da celebração da dignidade humana - ou de filhos de Deus - na atenção e na justiça a prestar aos pobres. No muito que a vi dizer, defender e fazer, não consigo separar a obra do coração da obra do pensamento: ambos se uniam em operações de radical inspiração personalista, espiritual. Nem sempre discernível nos planos e cursos de gestão da nossa "Católica".

 

   Voltando a motivações mais prosaicas e correntes, pensossinto muitas vezes em ilusões ou confusões de amores surtas de impulsos de piedade (e carência) ou de interesse (e sujeição). Todos nós conhecemos histórias de amores e matrimónios falhados pela insistência em vincular vidas na sequência de momentos de crise ou abandono dumas, de períodos de fasto ou de fortaleza doutras. Mas a necessidade de carinho e apoio sentida por uma, e a disponibilidade de outra para prestação de socorro, ainda que possam estar na origem de duradoura relação de entrega mútua, nunca serão suficientes nem sequer necessárias à sua formação e fortalecimento. Seja qual for a graça ou gratuidade de que se revistam, essa não é a mesma que o amor conjugal ou a companhia duma vida partilhada exigem. Tal como (ou menos ainda) a conjunção de interesses patrimoniais não será necessariamente a base ou a tessitura duma vida em comum.

 

   A graça do amor humano que sustenta um casal ou uma parelha, curiosamente, estará até mais próxima da que alimenta uma vocação religiosa ao percurso duma vida entregue à contemplação orante ou ao serviço ativo de Deus. Em ambas as situações - amor humano e vocação religiosa -, o amor que se entrega é intrinsecamente gratuito, não sabe quanto custa, nem tal calcula ou pergunta. Mas na sua misteriosa origem ele não é, em boa verdade, movido por qualquer pretexto, facto ou pretensão que o impulsionem: é uma opção exclusiva e zelosa, à imagem do que Jesus tantas vezes repete, nos evangelhos, sobre a rutura radical exigida a quem deseja o Reino de Deus. Já me aconteceu interrogar-me sobre a partilha como generosidade e comunhão e, paradoxalmente, como divisão e separação. Por disparatado que possa parecer o que seguidamente digo, é verdade que o amor é partilha, no sentido de entrega e união, mas há amores, ou modos do mesmo amor, que não se podem partilhar, não por obra do diabo, daquele que divide e separa, mas por vocação do Deus zeloso, ciumento, que é o nosso. Falo, por exemplo, da monogamia do amor humano e da entrega religiosa exclusiva. [Abro aqui este breve parêntese para sublinhar o que já bastas vezes tenho repetido : o exercício, a capacidade de exercício, de serviços ou ministérios eclesiais não deveriam ser considerados nem confundidos com vocações à vida religiosa exclusiva, já que são funções comunitárias que, não só não implicam necessariamente a renúncia a condições normais da vida humana (por voto ou obrigatoriedade de castidade e pobreza, por exemplo), como ainda se realizam no seio e em serviço de comunidades eclesiais, e em comunhão visível, que exclui qualquer separação ou segmentação.]

 

   Definindo então o paradoxo que tento descrever-te, Princesa de mim, dir-te-ei que a vocação universal da condição humana é a busca da verdade, que eu aqui quero entender como a visão da unidade fundamental de todas as coisas. E afinal, pergunto-me se, no fundo, não será isso também que Anthony Powell quer exprimir no texto que acima traduzi. E ocorrem-me agora os dois primeiros parágrafos do romance da Agustina intitulado Joia de Família (primeiro da trilogia O Princípio da Incerteza). Esse primeiro capítulo chama-se, significativamente para mim, neste momento, Exame Pré-Natal: 

 

   Não se escreve melhor porque se escreveu muito. Às vezes vou surpreender nas páginas antigas assinadas pelo meu punho um tom perfeito em que a imaginação ronda como uma madrinha incapaz de envelhecer e de perder a razão. A razão é a mesma, a coberto das longas provações das deceções, da experiência, de tudo.

 

   Mas, se há um progresso na arte de escrever, ele deriva de um solitário voto de castidade talvez. De reduzir a um simples detalhe o coração humano, fora das suas obrigações de palpitações e de vida. 

 

   Acontece-me interrogar panoramas de vida social que conheço para descortinar como foi possível enaltecer tanto paixões estrondosas mas efémeras, tal como aprovar o arranjo de casamentos por interesses patrimoniais ou relacionais de famílias, com a bênção de autoridades eclesiásticas.

 

  Talvez outro parágrafo de A Dance to the Music of Time do Powell nos proponha uma reflexão consequente da proposta acima. Traduzo:

 

   No decurso da vida, certas etapas podem ser comparadas ao bilhar russo que jogamos em mesinhas verdes cujo ventre esconde, em secretas profundezas, um alçapão que cede e se fecha ao fim de, creio eu, um quarto de hora. Assim que tal alçapão funciona, as bolas brancas e a vermelha deixam de voltar ao tabuleiro para poderem ser jogadas e todos os pontos contam a dobrar. Talvez se deva ver aí um símbolo da vida humana. Por razões às vezes inexplicáveis na altura própria, ocorre que certos acontecimentos subitamente se revestem de um sentido até então insuspeito: mesmo antes de sabermos exatamente o que se passa, a vida parece finalmente ter começado para nós, e desde logo, recém conscientes de uma mudança, descemos a louca velocidade, levados por irresistível movimento, as escorregadias avenidas da eternidade.

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Hoje, comecei a reler os doze volumes de A Dance to the Music of Time de Anthony Powell. É obra de ficção, mas alimentada por um olhar atento, minucioso e crítico - e aliás, por tudo isso, amistoso - sobre a sociedade inglesa, de 1914 a 1970. Não sendo, portanto, obra historiográfica, é contudo uma crónica de vidas e comportamentos coevos do autor. Chamemos-lhe registo subjetivo - se assim entenderes, Princesa de mim - apesar de tal apelido me parecer redundante, posto que tudo o que dizemos ou escrevemos, inventado, estudado ou copiado, é, necessariamente, um tantinho subjetivo. Essa obra maior de Powell tem sido diferentemente apreciada pela crítica, como por exemplo nos testemunham, quer os elogios de seu amigo (desde os tempos de Oxford) Evelyn Waugh, quer as grandes reservas de outro amigo, e também celebrado escritor como Waugh, o V.S. Naipaul. Também em França, muitos o comparam a Marcel Proust, talvez porque o compasso do tempo vá marcando labirintos da memória (?). Mas acho-os diferentes. Seja como for, A Dance to the Music of Time tem, pelo menos, o mérito de nos levar a observar de mais perto a high society inglesa, ainda que pelos olhos de um dos seus membros. Nascido em 1905, numa família de tradição militar, e com fortes relações à alta aristocracia, o seu autor frequentou as grandes escolas, como Eton e Oxford, mas ainda recusou a nobilitação que lhe foi proposta por Sua Majestade britânica. Isto é: esteve sempre dentro e fora, como qualquer cavalheiro que preze a própria independência. Assim também outros e outras, chamem-se simplesmente Richard Jones ou, elegantemente, Georgiana Spencer... Ou sejam simples cidadãos, por vezes perdidos nos labirintos mais ou menos enigmáticos do seu tempo e seus modos. Para tua meditação, em pleno século XXI, sobre as contradições e turbulências que surpreendem a circunstância do nosso pensarsentir, e nos confundem, traduzo-te um trecho de S. Zizek em La naturaleza no existe (Mirando al Sesgo, Paidós, Buenos aires, 1991):

 

  Um autêntico ecologista horroriza-se com jardins perfeitos e canteiros limpos. Eis o que realmente mais teme, o seu pior pesadelo: um verde prado agradável, um terreno de que se fez desaparecer o lixo. Creio que uma sociedade ecológica idealmente equilibrada (para usar um termo que os ambientalistas usam) seria um espaço totalmente caótico, de que o lixo não teria sido segregado, mas fosse simplesmente um elemento da paisagem.

  

   À medida que me vou, com o peso da idade, debruçando um pouco mais sobre o mundo terrenal (assim lhe chamaria Gil Vicente), nossa circunstância, e também examinando, mais curiosa e misericordiosamente, as perspetivas, passadas e presentes, pelas quais o fui olhando (e talvez julgando)... vou percebendo melhor algo que frequentemente me demorou na reflexão. Certamente te lembrarás, Princesa de mim, de como, já há muito tempo, me fui tentando a amar a imperfeição. Porque, na verdade, o amor nunca é possível quando apenas idealizamos o objeto dele, esquecendo que este, pessoa ou outra qualquer existência, está, pela própria natureza da sua presente condição, necessariamente inacabada. Só sabendo aceitar tal condição necessária poderemos começar a amar algo como se de nós se tratasse. Porque então entendemos também que somos igualmente imperfeitos, e que o caminho para a perfeição (a que também se chama santidade, bondade, beleza) apenas se percorre em verdade e partilha, pela participação dos seres humanos na obra de Deus. Se olharmos bem para toda a simbologia, e designadamente a cristã medieva, compreenderemos como tudo não é apenas aquilo que vemos, ouvimos ou alcançamos: é isso, sim, certamente e pela medida em que o progresso científico no lo vai descobrindo. Mas é também o seu acabamento, a sua realização plena, a perfeição com que tudo e cada coisa está inscrita no coração de Deus, e nos espera. Até esse dia em que deixaremos de conhecer tudo apenas pelo espelho deste mundo, nesta vida terrenal, mas tudo veremos na sua plenitude. Bem sei que há algo de platónico em mim. Será amor?

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira