Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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MELANCOLIA DE UM ALEGRETTO… por Camilo Martins de Oliveira
Diz Eduardo Lourenço: "o que eu sou como ser mortal (o que todos somos) está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia". Diz-se que Pio XII, na agonia da sua morte, pediu para ouvir como companheiro de viagem esse segundo andamento da sinfonia de Beethoven. Escuto-o agora, em cálida tarde de sábado, enquanto me passeio por leituras... E surge-me a interrogação de Paul Gauguin, pintada em ilha perdida do Pacífico, quase nos antípodas de nós: "quem somos, donde vimos, para onde vamos?"
No percurso da leitura, deparo com dois títulos no El País: "Era como estar en una pelicula" e, páginas adiante,"Espacios libres de niños/ los hoteles y restaurantes solo para adultos experimentan um polémico auge/ la crisis acelera esta opción minoritária/ que el sector abraza para captar clientes". O primeiro título refere-se ao tiroteio mortífero num cinema de Denver; o segundo nem precisa de esclarecimento. Ambos, afinal, traduzem fatores culturais da crise em que mergulhámos. Assim, apesar de doutorando em neurociências, o jovem Holmes "assumiu-se", na estreia de mais um filme de Batman, como mais um herói da violência indiscriminada que, todos os dias, apetitosamente nos é servida pela "comunicação social"... Porque a exploração da fraqueza, do mimetismo, da debilidade mental dá lucro aos que vendem!
Também as crianças, como as coisas bonitas do passado e tantas do presente, todas essas que queremos livres, construtivas e fraternas, já são, ao que parece, obstáculo ao lucro... Talvez não fosse mau lembrar que esquecer os outros, a pessoa humana -- que é real -- por essa ideia matemática e abstrata que é o dinheiro, é, muito simplesmente, uma estupidez.
TERRA DOS HOMENS…
Nos anos 30 do século passado, meditando sobre o avião que pilotava, o desenvolvimento das máquinas e o advento de uma nova era técnica, Antoine de Saint-Éxupéry escrevia (cf. «Terre des Homme», III – L’Avion): "Só agora começamos a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir. Tudo à nossa volta mudou tão depressa: relações humanas, condições de trabalho, costumes. A nossa própria psicologia foi abalada nas suas mais íntimas fundações. As noções de separação, de ausência, de distância, de regresso, embora mantenham os mesmos nomes, já não contêm as mesmas realidades. Para apanhar o mundo de hoje, usamos uma linguagem estabelecida para o mundo de ontem. E a vida do passado parece corresponder melhor à nossa natureza pela simples razão de que corresponde melhor à nossa linguagem"...
Em 1990, Jacques Le Rider publicava nas PUF o seu "Modernité viennoise et crise d´identité (1890-1938)", onde defendia que a modernidade vienense se tornou " numa das nossas referências estéticas e intelectuais mais importantes", por ter pensado a modernidade "como premonição do fim de um mundo". Situando-o no tempo, vemos como o movimento modernista vienense baliza uma crise que despoletou a queda das grandes monarquias da Europa central, os processos de industrialização e colonização aceleradas, as revoluções socialistas e anarco-sindicalistas, e os conflitos e vexames inerentes a tudo isso e que conduziram à hecatombe da 2ª Grande Guerra.
Para Jacques Le Rider, Schoenberg, Schiele, Musil, Freud, Wittgenstein, todos "os criadores vienenses refletiram de modo crítico a sua condição de homem moderno,feita simultaneamente de euforia e mal-estar..." Mas essa criatividade deveu-se "à imigração e à diversidade étnica, não à homogeneidade nacional..." Assim, Le Rider atribui à incapacidade política de pensar essa coexistência o fim do "modelo muito elaborado da pluralidade nacional, linguística, étnica e cultural no centro da Europa". Quero hoje começar a refletir sobre a crise presente e sobre a nossa interrogação da Europa. Não numa perspetiva economicista, nem à luz dominante da prioridade dada à política financeira. Mas antes partindo da consideração do povo, dos povos europeus de hoje, e dos desafios a que terá de responder para começar "a habitar esta casa nova que nem sequer acabámos de construir".
Aliás, a casa dos homens está sempre em construção, pois das pessoas que nascem, vivem e morrem, ela é feita. Da Jerusalém Celeste à Torre de Babel, do monaquismo às comunidades hippies, por constituições de estados e convenções internacionais, vamos tentando... Temos de olhar para a Europa de hoje, tal como se situa num mundo em globalização, em que as tecnologias de comunicação e transporte tornam o longínquo imediato e próximo e vão confrontando o sentimento de si com entidades várias e a tentação mimética de misturar tudo. A miscigenação étnica e cultural é hoje um fenómeno crescentemente generalizado e frequente. Mas também gera receios, desconfianças, racismo, fanatismos. Por isso mesmo, se torna tão importante que cada um se compreenda melhor a si, cada pessoa, cada povo, cada cultura. A consciência informada e limpa da própria identidade é condição prévia do convívio e do diálogo, e estes são participação e partilha, não são eliminação.
Fala-se do inglês como língua universal e há quem pretenda que as línguas nacionais ou os dialetos regionais não têm razão de existir num mundo global. Mas o inglês que funciona como língua franca é também um inglês que se destila, filtra e empobrece e, por vezes, já pouco tem de inglês clássico, ou pouco a ver com a cultura anglo-saxónica (que não é só a dos negócios) Quantos dos nossos "CEO", que fazem "statements" com três palavras de inglês para duas de português, conseguirão ler Shakespeare no original? Deverão por isso os anglófonos castiços abandonar o vate ou todos nós esquecê-lo? Ou não deveremos nós, portugueses, conhecer melhor, como diria Eça, "o nosso Camões"?
Na Europa de hoje vivem - e são europeus, tal como os afro-americanos são americanos e não já africanos, e isto não só por imposição legal ou reconhecimento de um direito, mas culturalmente - gentes de variadas origens étnicas, geográficas e culturais. Basta ver na televisão jogos entre seleções nacionais europeias de futebol ou atletismo para disso nos apercebermos, ou, mais simplesmente, sair à rua. Cada um deles deverá ter uma dupla função: a de aprender bem a língua do país que os acolheu (ou já a seus pais e avós) e, com a língua, ir apreendendo uma cultura enquanto visão e modo de estar no mundo e na vida; mas também, porque o modo vive e evolui no tempo, enriquecer essa cultura e essa língua com a contribuição do seu pensamento, sentimento e discurso. Afinal, como qualquer de nós. E não têm a língua e cultura lusíadas sido enriquecidas pelas literaturas brasileira e afro-lusófonas?
Em próxima oportunidade, poderemos falar na importância das chamadas humanidades na construção da casa que todos teremos de habitar. Teremos de perceber como a preservação da memória histórica e a transmissão da língua viva são fatores de entendimento, de diálogo e de convívio.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.07.2012 neste blogue.
Na noite de 31 de julho de 1944, ele, Antoine de Saint Exupéry descolou de uma base aérea na Córsega e não voltou.
Uma mulher relatou ter visto um acidente de avião
“Não sei se o transporte de um saco de correio vale o risco de uma vida humana, mas o importante é saber se o homem que esses valores formam é ou não um belo tipo de homem” Antoine
Este homem, este escritor, este filósofo ensinou-nos como ninguém até que ponto nós somos “da nossa infância, como de um país.”
Sempre lerei o Petit Prince como quem interpreta crónicas do céu, intangíveis como as casas feitas para a felicidade, tão noivas de guerras, tão mãos nas mãos para nunca caírem, tão jardineiras sim, e tão dentro de mim que não sei viver fora do amor, e tal como Antoine nunca falei, agi ou escrevi sem ser por amor.
E o “Principezinho”, neste livro de todo o sempre, a voltar a cada dia para que eu esqueça o medo de o perder, antes da certeza inequívoca de me poder esquecer que já fui criança, e que conheço a solidão, e muito pelo julgamento dos pensamentos adultos se atropelarem, pois que afinal, nem sempre entendi os arcanjos no caminho que procuro.
E acrescentou Antoine que sofria
“Porque não há verdade clara para dar aos homens.”
E dizia
"e eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Os principezinhos das lendas não eram, em nada, diferentes dele."
Por todas as perfeitas comunhões, queria dar-te Antoine de Saint Exupéry, alguma coisa esplêndida. Aceita assim esta toalha de renda feita pelas mãos da minha avó, essa mesma que, na capela ou na mesa das ceias do amor, nela tem escrito que se não morre «contra», morre-se «por».
E como me ouviste, respondeste
“É tão misterioso, o país das lágrimas!”
E tantos tesouros desses tenho debaixo da terra! E tão de boa vontade aceito adormecer, pois eis que aprendi a contar contigo.
Assim disse um dia ao meu amor: exponho-me aos riscos mortais, aqui do meu cockpit onde aprendi que nunca de mim partirás: “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz.” Já decorei o teu primeiro olhar e quero muito acreditar na nossa paz para o resto dos nossos dias.
Muitas vezes são as que peço que me esperes lá onde me é necessário adiar o momento do reencontro. É que me é impossível ficar na retaguarda sem assumir o risco. Não me é possível não regar a rosa, não regar a intimidade dos laços ou viver sem poesia.
E fico de vela a estas certezas.
Apprivoise-moi ! Si tu m’apprivoises, nous aurons besoin l’un de l’autre.
Antoine não voava tanto quanto desejava, dizia-se que a única coisa de que gostava, era de se perder no céu, para nele traçar estradas e deixar de recear não ter vivido depois da sua infância.
A infância? O nosso reservatório de paz? A chávena de café quente na terra de um lar e que Consuelo lhe daria, em qualquer altura da vida e sempre, e sobretudo, se a seu lado pudesse recortar papéis e dobrá-los como aviões para depois os lançar ao céu do terraço do amor infinito de ambos.
O essencial é invisível aos olhos.
E neste momento já Antoine era o marido de Consuelo e ela era já o que o seu marido lhe chamava: “a raiz da minha paz”.
E no entanto Antoine bem sabia que sublimava o sonho e que aquele encontro de almas nas areias não se passaria liso e plano nas ruas de Paris.
E escrevia Saint Exupéry:
J’accepte la mort. Ce n’est pas le risque que j’accepte. Ce n’est pas le combat que j’accepte. C’est la mort. J’ai appris une grande vérité. La guerre ce n’est pas l’acceptation du risque. Ce n’est pas l’acceptation du combat. C’est à certaines heures, pour le combattant, l’acceptation pure et simple de la mort.
Il tomba doucement comme tombe un arbre
Oração que Consuelo deve dizer todas as noites: “Senhor, não vos canseis muito (fazei-me simplesmente como eu sou. (…) Senhor, que ele morra antes de mim, porque ele tem aquele ar de ser muito sólido mas sente uma grande angústia quando já não me ouve fazer barulho em casa. Senhor, poupai-o, principalmente à angústia. Fazei com que eu faça sempre barulho em casa, ainda que de vez em quando tenha de partir alguma coisa (…) porque ele fez em mim a sua vida. Protegei. Senhor, a nossa casa. Vossa Consuelo. Amen.”
E pode não haver verdade clara para dar aos homens, pode um saco de correio não valer o risco de uma vida, mas já te tenho escrito muitas cartas portadoras de muitas pressas, e um escritor guerreiro como tu, tem, de certeza, nessa eternidade, a caixa mágica que abre o mundo e volta para desenhar principezinhos em toda a parte, mas
Tu as décidé de partir. Va-t’en.
Car elle ne voulait pas qu’il la vît pleurer. C’était une fleur tellement orgueilleuse…
Teresa Bracinha Vieira
Obs. Este texto foi publicado neste blogue em 2013. A republicação ou a vénia à intemporalidade da obra de Exupery: eis.
Para começar esta em consonância com coisas que, em carta anterior te disse, Princesa, traduzo-te um trecho, quiçá algo longo, do capítulo XXVII do Pilote de Guerre do nosso já amigo Antoine de Saint-Exupéry. Mas creio também que nos ajudará a perceber porque é que alguns sages dizem que o cristianismo não é um humanismo... Sabes? Penso que é, talvez transcendental, pela pessoa de Cristo com duas naturezas, a divina e a humana. Afinal, conceitos e palavras valem sobretudo pelo sentido que lhes atribuímos... Sabemos bem que o cristianismo não é panteísta, nem os santos que inspiram devoções e cultos cristãos são deuses ; nem sequer budas. Mas não negaremos que o Novo Testamento está cheio de referências à humanidade nova, chamada à união com Deus pelo sacrifício e ressurreição de Jesus Cristo, o Novo Adão, de cujo corpo todos somos membros. Posso até dizer que o cristianismo é um humanismo resgatado e preparado para um mundo novo. E, no final de contas, é certamente a religião que professa a humanidade de Deus. A tal ponto, que até nos leva a perceber que já no Antigo Testamento o Deus Único do povo judeu vai surgindo no quotidiano dos homens.
Os trechos que abaixo traduzo são todos respigados do penúltimo capítulo do Pilote de Guerre, o XXVIII. No seu conjunto, constituem, mais do que o cerne da meditação proposta pelo autor do livro, quiçá uma summa do pensarsentir de Antoine de Saint-Exupéry :
Estraguei tudo. Delapidei a herança. Deixei apodrecer a noção de homem (humano).
Para salvar esse culto de um príncipe contemplado através dos indivíduos, e a alta qualidade das relações que esse culto fundava, a minha civilização tinha, todavia, gasto uma energia e um génio consideráveis. Todos os esforços do «humanismo» se consagraram a esse objectivo. O humanismo escolheu para sua exclusiva missão iluminar e perpetuar a primazia do homem sobre o indivíduo. O humanismo apregoou o homem.
Mas quando se trata de falar sobre o homem, torna-se incómoda a linguagem. Diferencia-se o homem dos homens. Não se diz nada de essencial sobre a catedral, se se falar só das pedras. E nada de essencial se diz do homem, se se procurar defini-lo por qualidades de homem. Assim sendo, o humanismo laborou em direcção a uma barreira. Procurou encontrar a noção de homem por uma argumentação lógica e moral, e a transportá-lo assim para as consciências.
Não há explicação verbal capaz de substituir a contemplação. A unidade do ser não é transportável pelas palavras. Se quisesse ensinar a homens, cuja civilização o ignorasse, o amor de uma pátria ou de uma terra própria, não disporia de qualquer argumento para os comover. O que compõe uma terra nossa são campos, pastagens, e gado. Cada um, e todos juntos, têm por função enriquecer. E todavia, na terra nossa, algo escapa à análise dos materiais, já que há proprietários que, por amor à sua terra, se arruinariam para salvá-la. É pois pelo contrário esse «algo» que enobrece com particular qualidade os materiais. Estes tornam-se gado de uma terra, prados de uma terra, campos de uma terra...
Assim também nos tornamos no homem de uma pátria, dum ofício, duma civilização, de uma religião. Mas antes de nos reclamarmos de tais seres, convém fundá-los em nós. Pois que linguagem alguma transportará o sentimento da pátria até onde ele não estiver. Só por actos fundaremos em nós o ser que reclamamos. Um ser não pertence ao império da linguagem, mas ao dos actos. O nosso humanismo menosprezou os actos. Falhou em sua tentativa.
[Apenas este parêntese, Princesa de mim, para te lembrar ditos antigos, máximas e propósitos de vida, que ouvíamos na infância, tais como : Res non verba. Ou, já jovens crescidos, aqueles rasgos de divertidas observações queirosianas, em que, por exemplo, se comparavam profissões de fé patrioteiras a declarações de amor declamadas "a uma espanhola barata".]
Eis que o acto essencial recebe aqui um nome : é o sacrifício.
Sacrifício não significa nem amputação nem penitência. É essencialmente um acto. É um dom de si mesmo ao ser que se pretende reclamar. Só compreenderá o que é uma terra sua aquele que lhe tiver sacrificado uma parte de si, tiver lutado para a salvar, e esforçado por torna-la mais bela. Então lhe virá o amor da sua terra. A nossa terra não é uma soma de interesses, e será errado pensá-lo. É a soma dos dons.
Enquanto a minha civilização se apoiou em Deus, conseguiu salvar essa noção do sacrifício que fundava Deus no coração do homem (humano). O humanismo menosprezou o papel essencial do sacrifício. Pretendeu transportar o homem (humano) por palavras e não por actos.
Estas palavras foram sendo escritas pelo capitão piloto aviador Antoine de Saint-Exupéry, no activo, nos primeiros anos da segunda grande guerra. Reflectem actos efectivos, e sobre eles pensamsentem. O seu avião foi finamente abatido sobre o mar, em missão de reconhecimento, já próximo do fim da guerra. E desapareceu. Mas recordo-o sempre, ao ler este passo da 1ª Carta de São João : «Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte." Na verdade, é do ensinamento, não só de São João, mas da própria essência do cristianismo : já que nenhum de nós viu Deus, não poderemos então dizer que amamos a Deus, que ninguém vê (ou o Homem, conceito abstracto), se não amarmos os indivíduos que são nossos irmãos.
Aliás, vou confidenciar-te, Princesa de mim, uma experiência íntima que tenho vindo a viver, ao longo do ano que passa. Parece-me que o amor fraterno é como que um adiantamento do nosso encontro final com Deus. Neste sentido, é um verdadeiro acto de fé, pois é substância das coisas que esperamos. Venho perdendo, como sabes, a companhia física de muitos amigos, cujos corpos são cremados ou enterrados. Acabo, agora mesmo, enquanto te escrevo, de saber que morreu o meu querido amigo João Maria Torre do Valle, exímio guitarrista, que tantas vezes, e em tantas partes do mundo, com sua guitarra portuguesa e a companhia da viola de fado do Fernando Alvim, me acompanhou quando eu cantava. Também falávamos muito, desde os tempos da Faculdade de Direito de Lisboa, de outros temas, e esses diálogos ainda não morreram. Acontece-me agarrar no telefone para falar ao Gaëtan, meu irmão de sangue, morto há quase dois meses, ou ao João de Deus ou ao Nuno Lorena.. e a muitos outros que a morte nos tirou da vista - alguns há quinze anos, como o António Luciano Sousa Franco, ou mais ou menos, como o Francisco Sá Carneiro, o Magalhães Mota, o Rogério Martins ou o Vítor Wengorovius. Todavia diferentes entre si, a cada um deles e muitos outros, e outras, me ligaram laços de profunda amizade, dessa tal que a liberdade e o gosto do diálogo edificam dentro de nós e em nós permanece para sempre. Ainda há dias, quando deveria fazer anos a Maria Benedita, falei com o Gonçalo, viúvo e triste, mas sustentado por essa presença invisível do amor, que é muito mais do que memória. E também ele me confidenciou que nunca apagava das suas listas os números de telefone dos amigos por agora longe do alcance das nossas redes de comunicação...
Todos individualmente reconhecidos e amados. Todos vivos na nossa humanidade comum, a tal que mora no coração de Deus.
É ao Pilote de Guerre que vou buscar as formulações transparentes do peculiar pensamento humanista de Antoine de Saint-Exupéry que seguidamente - e prosseguindo reflexões encetadas em cartas anteriores - para ti traduzo :
Escorregámos - por falta de método eficaz - da humanidade que assentava no ser humano, para este formigueiro que assenta na soma dos indivíduos.
Que tínhamos para opor às religiões do Estado ou de massas? Que acontecera à nossa grande imagem do ser humano nascido de Deus? Já se tornara dificilmente reconhecível através de um vocabulário que se esvaziara da sua substância.
A pouco e pouco, esquecendo o humano, limitámos a nossa moral aos problemas do indivíduo. Exigimos que ele não lesasse o outro indivíduo. A cada pedra que ela não lesasse outra pedra. E é certo que não se lesam entre si quando estão a monte num campo. Mas lesam a catedral que teriam fundado e que, em retorno, teria fundado o próprio significado deles.
Eis um trecho de manifesto anti-individualista. Mas, na verdade, o conceito de indivíduo, em Saint-Exupéry, pode parecer ambíguo, pois se o respeito do homem [do humano] não implica prosternação degradante perante a mediocridade do indivíduo, a estupidez ou a ignorância, para a sua formação cristã, que evoca, o exercício da caridade, por exemplo, nunca é uma homenagem prestada à mediocridade, à estupidez ou à ignorância. O médico tinha o dever de empenhar a vida nos cuidados ao pestífero mais ordinário. Servia Deus. Nem se amesquinhava pela noite insone passada à cabeceira de um ladrão. A minha civilização, herdeira de Deus, assim tornou a caridade num dom ao homem através do indivíduo. No fundo, o que se pretende afirmar é que cada um de nós, sendo indivíduo, deve ser preservado do individualismo, precisamente para não ser destruído como pessoa humana.
Curiosamente, o papa Francisco - que não sei de terá lido o nosso Saint.-Ex (pois que tal santo não consta do calendário nem do catálogo santoral) - tem vindo a pregar uma cruzada (perdoa-me, Princesa de mim, o antiquado conceito e suas quaisquer consonâncias menos abonatórias, e concordemos em que, tomada sem malícia, é iniciativa louvável num apóstolo) de combate ao individualismo reinante, assim lucidamente vislumbrando a ameaça em que o mesmo se tornou para a saúde mental, cultural e social, e para a democracia idealmente entendida e desejada. Vem o Papa, incansavelmente, lembrando às gentes que não há salvação possível à margem da sorte de tantos indivíduos, que vão sendo esquecidos ou abandonados, São nossos irmãos na humanidade de Deus. Pessoalmente, pensossinto que o mais arrepiante, nesses dramas do ostracismo dos migrantes, ou refugiados sem nada, é os mesmos, ainda por cima, apenas serem sintomas da crescente generalização da desumanidade nas sociedades hodiernas mais abastadas. Como esquecer que o desenvolvimento e difusão de novas tecnologias se vem processando, cada vez mais, pela concentração do poder financeiro seu condutor, e à custa da subjectiva alienação dos utentes em jogos, falsas notícias, postiças ilusões? Ou, talvez pior ainda, pela sua objectiva alienação do discernimento e da liberdade próprios nas garras de poderes políticos que controlam a identidade e a vida de cada indivíduo... Profética, sem dúvida, essa frase de Sint-Ex :
Bastas vezes te escrevi que estas cartas não são, nem tampouco pretendem ser, sermões ou tratados. São fios de uma conversa que vamos pensando e sentindo, em companhia e partilha. O que a seguir te proponho, a partir de curtas citações do Pilote de Guerre, são pistas para reflexões sobre certos aspectos das nossas sociedades hodiernas : igualdade e identidade, liberdade e respeito próprio, fraternidade e diferença.
O enunciado dos valores que sustentam (deveriam sustentar) a própria ideia de democracia - e a respectiva realização social e política - é sobejamente badalado: liberdade, igualdade, fraternidade. Aliás, com várias condicionantes e limitações, tal trilogia já inspirara, muito antes da Revolução Francesa, diferentes utopias, tentativas, ou simples aspirações, de organização social e constituição política. Sou tentado a dizer, Princesa de mim, que o mais recorrente obstáculo à boa realização e progresso de tais projectos terá sido a insistente interferência de certos sentimentos ou preconceitos de superioridade comparativa, de identificações consagradas, de rigorosa estruturação das sociedades pelo ordenamento de classes, com mais propensão ao definitivo gerador de entidade, do que à mobilidade de transições geradoras de inovação e justiça. A universal aspiração da humanidade ao seu próprio autorreconhecimento, em coexistência e convívio fraternos, foi-se todavia mantendo - creio, Princesa, por essa misteriosa força a que já chamei, noutras cartas, a original e compulsiva perseverança do ser no ser. E tal mensagem ontológica foi sendo lembrada pela boa nova evangélica, apesar dos todos muitos desvios e atentados contra ela perpetrados pelas igrejas cristãs (ou por tal conhecidas), sobretudo sempre que mais se deixaram cair nas tentações do clericalismo, do sectarismo, e do fanatismo de um deus sem irmãos.
Para melhor entendimento de alguns problemas ou simples tricas que, hoje em dia, afectam o funcionamento e o próprio desabrochar das nossa democracias, ajudar-nos-á certamente, Princesa de mim, um olhar mais atento sobre o panorama recente da evolução das aspirações sociais, fundamentalmente sobre o que dantes era e depois tem vindo a ser a cultura das suas raízes e da sua flora. Tal exercício assemelha-se quiçá ao dos maiores cultores da ficção literária, às análises que esses escritores fazem de tanto pensarsentir particular, para delas, afinal, ressaltarem o substrato universal. Por outro lado, e aqui entre nós, talvez também nos surpreendamos a sorrir (com alguma malícia?) ao pensar baixinho : "Cá se fazem, cá se pagam!" Mas vamos lá às máximas morais de Antoine de Saint-Exupéry : «Escorregámos - por falta de método eficaz - dessa humanidade que assentava no ser humano, para este formigueiro que assenta na soma dos indivíduos».
É fácil fundar a ordem de uma sociedade sobre a submissão de cada um a regras fixas. É fácil modelar um homem cego que se submeta, sem protestar, a um mestre ou um corão. Mas é completamente diferente e mais elevado conseguir que, para libertar o ser humano, ele saiba reinar sobre si mesmo.
Mas o que é libertar? Se se libertar, num deserto, um homem que nada sofre ou experimenta, que significará a sua liberdade? Só há liberdade para «alguém» que vá a qualquer lado. Libertar aquele homem seria ensinar-lhe a sede e traçar-lhe um caminho que leve a um poço. Só então se lhe proporiam as diligências que já fariam sentido. Libertar uma pedra nada significa se não houver gravidade. Pois que, apenas livre, a pedra não irá a parte alguma.
Ora, a minha civilização procurou fundar as relações humanas sobre o culto do homem para além do indivíduo, a fim de que o comportamento de cada um para consigo mesmo ou para com outrem já não fosse mais conformismo cego aos usos do formigueiro, mas livre exercício do amor...
... Assim claramente compreendo, a esta luz, o significado da liberdade. É a liberdade do crescimento de uma árvore no campo de forças da sua semente. É o clima da ascensão do homem. É semelhante a um vento favorável. Só pela graça do vento são livres os veleiros no mar.
Um homem assim construído disporia dos poderes da árvore. E quanto espaço não cobriria com as sua raízes! Que massa humana não absorveria para a fazer desabrochar ao sol!
[Trechos traduzidos do capítulo XXVI do Pilote de Guerre. As alternâncias entre as traduções do original homme (homem, no sentido global de ser humano) por homem ou humano são sempre arbitrariedades minhas].