Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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ATORES, ENCENADORES (VI) A COMPANHIA REY COLAÇO-ROBLES MONTEIRO: QUALIDADE E LONGEVIDADE por Duarte Ivo Cruz
Num meio cultural e profissional tão instável como é o teatro-espetáculo português, merece destaque a continuidade e a capacidade de renovação da Companhia Rey Colaço- Robles Monteiro, designadamente na sua longa permanência, ação cultural e capacidade de renovação, a nível de elencos e a nível de repertório, o que nem sempre é reconhecido.
A longevidade tem destas coisas e então, num meio, repita-se, instável como é por definição o teatro, e em particular entre nós, mais se fez e faz notar o quase meio século de atuação da empresa. Mas refiro aqui a empresa como tal: pois a própria Amélia Rey Colaço ainda nos anos 80 participou em Portalegre num espetáculo de homenagem a José Régio.
Por seu lado, Robles Monteiro faleceu em 1958: já anos antes deixara de exercer a atividade de ator, mas numa primeira fase duradoura da Companhia integrou os elencos e encenou numerosíssimas peças do repertório, com destaque também para autores portugueses, e designadamente Ramada Curto.
É evidente que tão longa permanência em cena implicou necessariamente desigualdades de atuação e assimetrias no conjunto da obra cultural exigível a uma companhia oficial. E isso envolve tanto os aspetos de repertório como de elenco. Mas hoje não restarão duvidas acerca da qualidade global dos sucessivos elencos da Empresa Rey Colaço – Robles Monteiro e da relevância que, tantas e tantas vezes assumiu na revelação e atualização de repertório – e isto, tanto no âmbito da dramaturgia portuguesa como da dramaturgia universal.
Amélia estreou-se em 1917 no então chamado Teatro Republica, (São Luiz), com uma peça então relevante, “Marianela” do dramaturgo espanhol Benito Pérez Galdós. Gloria Bastos e Ana Isabel P. T. de Vasconcelos situam o sucesso no contexto do espetáculo teatral da época:
“Mas talvez a revelação mais significativa tenha sido a de Amélia Rey Colaço, cuja estreia no Republica com a peça Marianela foi desde logo saudada calorosamente pelo público e pela crítica”. E remetem para Vitor Pavão dos Santos: “demonstrou ser uma atriz diferente de todas as outras, aliando a um talento e cultura invulgares, métodos de representação verdadeiramente modernos” (cfr. G. Bastos e A.I .Vasconcelos in “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira República” ed. MNT 2004 pag.146: V. P. Santos in “A Companhia Rey-Colaço – Robles Monteiro” ed. MNT 1987 pág. 4).
A companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, constituída como tal em 1923, instala-se pois no D. Maria II em 1929 como companhia oficial e lá se mantem-se até 1964, quando o incendio que quase destruiu o teatro (e que neste momento é invocado numa exposição de fotografias no próprio D. Maria II) remeteu a companhia para o Teatro Avenida. E em 1967 o Avenida arde! A companhia passa então para o Capitólio até 1970, depois para o Trindade e por muito pouco tempo, para o São Luiz. Extingue-se em 1974.
O repertório clássico teve momentos muito altos. Recordo, entre tantos mais, um “Tartufo”, um inolvidável “Romeu e Julieta”, ou o “Macbeth” que estava em cena na noite o incendio e foi reposto no Avenida, mas antes apresentado num espetáculo no Coliseu, em que toda a classe profissional e intelectual da época se reuniu no palco.
Mas importa agora referir a qualidade do repertório moderno, ao longo de todos estes anos, e particularmente, a sucessiva atualização que foi praticado, tarefa por vezes complicada, dada a época e as circunstâncias.
Se reportarmos a 1934 encontramos o escândalo de publico que foi a estreia dos “Gladiadores” de Alfredo Cortez, peça iniciática de um certo expressionismo ainda hoje escasso na história do teatro português. E nessa linha de modernidade, encontramos estreias - mais ou menos compreendidas e aplaudidas - de toda uma época e de uma geração que vai de Carlos Selvagem a Ramada Curto, ambos com dezenas de peças, de Virgínia Vitorino a Romeu Correia e José Régio, a Bernardo Santareno e Luis Francisco Rebello entre tantos mais. Encontramos também Pirandello (estreia mundial de “A Volupia da Honra” com a presença do autor), Lorca, Eugene O’Neill mas também Albert Camus, Marcel Pagnol, Ionesco, Cocteau, Harold Pinter (“Feliz Aniversário”), Durrenmatt (“Visita da Velha Senhora”), Edward Albee (“Equilíbrio Instável”) ou Slamowir Mrozeck (“Tango”). E em muitas delas, Amélia marcou o seu talento de atriz.
E finalmente: a concessão do teatro nacional obrigava à programação de clássicos portugueses. Nem sempre esta clausula contratual atingia objetivos de atualização das encenações e dos espetáculos em si: mas eram sempre de grande qualidade e garantiam, sobretudo a um púbico escolar, o contacto com os clássicos portugueses em cena, que é onde eles devem ser vistos e estudados…
Não entramos na lista de atores que trabalharam na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ou dos cenógrafos e figurinistas, com destaque aqui para Almada. Mas referimos apenas Mariana Rey Monteiro, filha de Amélia e de Robles – e ela própria grande atriz.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 14.01.15 neste blogue.
UMA QUESTÃO DE TÁXIS… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa:
Estou desde domingo em Lisboa, vim passar a semana com o Alberto e a tua irmã. Cheguei cansado da viagem, não parei naqueles quinze dias de Japão, e a paragem em Paris não chegou para me desvanecer o "jet-lag". Imagina que esta noite tive um sonho estranho. Estava em Tokyo, apanhei um táxi na Aoyama-dori, ia jantar com os Sakai, ali para as bandas de Jiyugaoka. Conheço o percurso, pois a rua, como tantas em Tokyo, não tem nome, mas sei desembrulhar algum japonês para explicar ao taxista por onde seguir: "masugu", "hidari ni magaté kudasai", "ano... aré migi desu!". Mas, repentinamente, ao chegarmos a Omoté-Sandô, já não estávamos na Aoyama-dori: íamos pela avenida de Roma fora, já perto da praça de Londres, em Lisboa! O bom do motorista entra em pânico, vendo todos os carros a circular pela direita e só ele pela esquerda. E eu mergulho em angústia quando, por detrás da igreja de S. João de Deus, o táxi pára num beco que termina numa capoeira. O sonho acaba comigo, interdito, imóvel, a ver o motorista pegar num saco de grãos de milho e ir lançá-los às galinhas, cacarejando como elas. Ocorreu-me Pascal: "Je ne sais qui m’a mis au monde, ni ce que c’est que le monde, ni que moi-même; je suis dans une ignorance terrible de toutes choses; je ne sais ce que c´est que mon corps, que mes sens, que mon âme et que cette partie même de moi qui pense ce que je dis, qui fait réflexion sur tout et sur elle-même, et ne se connaît non plus que tout le reste"... Jean Guitton cita este texto para afirmar, numa nota biográfica introdutória a uma edição das "Pensées" de Pascal: "Toda a vida dele é uma tentativa desesperada, até à morte, para tentar compreender". O facto de sofrer de um mal congénito - que recorrentemente lhe trazia tremuras e perturbações intestinais e, quando criança, fobias histéricas (à água ou à aproximação dos pais um do outro) tê-lo-á empurrado para esse desespero de querer tudo entender... É curioso observar como Pascal, desde pequeno, se interessou pela geometria e pela aritmética, pela física e pela matemática. Deixou-nos ensaios sobre os corpos cónicos, o triângulo aritmético, o vácuo, o equilíbrio dos licores ou a gravidade da massa do ar. Foi considerado, por Leibniz, "um dos melhores espíritos do século". A investigação científica, que nunca abandonou, não o desviou, todavia, do recurso ao que estimava serem, pelo percurso da sua conversão religiosa, outros meios de acesso ao conhecimento.
Daí a sua crítica de Descartes: "Não posso perdoar a Descartes: ele bem quisera, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus; mas não conseguiu impedir-se de O levar a dar um piparote para pôr o mundo em movimento; desde então, já não sabe o que fazer de Deus... A ciência das coisas exteriores não me consolará da ignorância da moral no tempo da aflição; mas a ciência dos costumes consolar-me-á sempre da ignorância das ciências exteriores". Pessoalmente, penso que Pascal esteve mais perto dos jansenistas, afetivamente - até porque a sua irmã Jacqueline, que lhe era tão querida, professara em Port-Royal - do que, teologicamente, do jansenismo. Mas é inegável que "pensassente", na tradição de Sto. Agostinho, de modo próximo do flamengo Jansenius, bispo de Ypres, no seu "Augustinus". A conversão do homem, escravizado pelo prazer, corrompido pela concupiscência, só é possível pela graça agente de Deus que, sem destruir o livre arbítrio humano, não o submete necessariamente. Conhecida por "tese da graça eficaz", opõe-se à "tese da graça suficiente", defendida, na esteira de Molina, pelos jesuítas coevos de Pascal, que afirma a ineficácia da graça sem participação do livre arbítrio. Deixemos a teólogos escolásticos as argumentações de diferenças e oposições. Creio que, em Pascal, a religião é sobretudo um exercício de abertura mística à operação da Graça. Pois que, "se não nos devemos admirar por ver pessoas simples acreditarem sem raciocinarem", também é verdade que "a maior das verdades cristãs é o amor da verdade". São aparentemente muitos os paradoxos em Pascal. Mas são os nossos, os da nossa condição. Os "Pensamentos" são uma obra incompleta, até desligada: Pascal ia-os anotando em folhas de papel, riscava depois uns, corrigia outros...ou, ainda, cortava as folhas em tiras, para separar ideias, e perfurava-as depois, de modo a poder arquivá-las diferentemente ligadas por um cordel. Numa dessas seleções, reunida sob o título "divertimento", escreve: "A nossa natureza está no movimento; o inteiro repouso é a morte... Condição do homem: inconstância, aborrecimento, inquietação... Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto fosse menos divertido, como os santos e Deus... A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e todavia é a maior das nossas misérias. Porque é o que nos impede principalmente de pensar em nós, e o que insensivelmente nos perde. Sem isso estaríamos no aborrecimento, e esse aborrecimento empurrar-nos-ia a procurar um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento agrada-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.” Este homem, filho da nobreza de toga - não histórica, mas de ciência e cargos remunerados - fez amigos em meios muito diversos, desde a alta nobreza aos intelectuais, dos boémios aos religiosos confessos. Morreu aos trinta e nove anos, deixando obra: para além dos ensaios científicos e dos "Pensamentos", muito disto só postumamente publicado, escreveu em colaboração, ou redigiu a maior parte dos textos que compõem os "Écrits des Curés de Paris" e a "Lettre d’un avocat au Parlement à un de ses amis", que, aliás, dão continuidade às suas "Provinciales", nas polémicas com os jesuítas. As cartas ao provincial dos jesuítas,"Les Provinciales", são assinadas por Louis de Montalgue que, alhures, o próprio Pascal trata como outra pessoa, tal como fará com Amos Detonville que, relativamente aos seus trabalhos matemáticos para o "concours de la roulette, que ele abre, assinará a " Lettre à M. de Carcavy"; o mesmo fará com Salomon de Tultie, autor da "Apologie de la réligion chrétienne". Nenhum deles é simplesmente um pseudónimo: Pascal imagina-os e cria-os como personalidades distintas dele mesmo. São heterónimos, são outras pessoas. Recentemente, na sequência daquela antologia que o Adolfo Casais Monteiro publicou no Brasil - e de que te oferecerei um exemplar, que me fora cedido pelo Alberto - fala-se muito, aqui em Portugal, do poeta Fernando Pessoa e dos seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis Talvez venha a ser uma das maiores revelações literárias do nosso século...Tenho-me interessado por ele, fascina-me esse tal desespero de uma procura de si. Como em Pascal. Por mim, vou-me hoje contentando com a luz acolhedora de Lisboa, que aqui no jardim ilumina as minhas leituras e a procura de ti, que esta carta é. Afinal, sempre procurei, em mim e na minha relação a ti, um caminho para que te sentisses bem... E o amor talvez seja esse querer bem, um caminho com curvas e alguns enganos, mas que segue procurando. Será isso a fidelidade. Esta, tão funda, que até ti me trouxe, num táxi que apanhei em Tokyo, se perdeu em Lisboa, e acabou por embarcar Pascal e Fernando Pessoa".
Desde que li e traduzi esta carta de Camilo Maria, só ando de táxi!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 06.09.13 neste blogue.
1 - No mundo latino, não há sacra imagem mais reproduzida e mais divulgada. Nessa divisão, normalmente situada ao fundo de longos e desabridos corredores, a que no século XIX e em grande parte do século XX, se chamou casa de jantar, a burguesia e a pequena-burguesia, mesmo quando maçónicas ou jacobinas, entronizaram, quase sempre, gravuras, litografias ou, nas casas de pior gosto, horrendos baixos-relevos esmaltados ou pintados, reproduzindo o cenáculo davinciano pendurado sobre o aparador com torcidinhos. Nenhuma dessas reproduções reproduzia a pintura de Leonardo, como ela estava ou como ela era à época da sua mais intensa popularidade. Bem cedo depois de ter sido pintada (1495-1497), "L'Ultima Cena" já começara a obscurecer-se. Em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca". Mas a fama de Leonardo era tamanha, tamanha era a reputação da "tavola" pintada no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, que, na primeira metade do século XVI, já se multiplicavam as cópias a óleo de discípulos do Mestre, como Solari ou Luini. A mais famosa dessas cópias data de 1625, quando o cardeal Federico Borromeo a encomendou a um tal Vespino, para que a "reliquiae fugiente" da "Ceia" ficasse para a posteridade.
Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.
Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da conceção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objetivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma ação definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de atos e reações mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra." Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projetou, como se luz fosse de um projetor cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.
2 - Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjetivando. É que até eu, e até ao dia 11 de novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia ação)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exatos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.
3 - Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia". Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas. Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?" Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação. Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz. Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.
João Bénard da Costa 14 de novembro de 2003, in Público
ATORES, ENCENADORES (V) DOIS EXEMPLOS DA TRANSIÇÃO DO SÉCULO por Duarte Ivo Cruz
Vimos no artigo anterior o papel essencial de Garrett na estruturação do teatro português, através da reforma de 1836. Nesse diploma, encomendado, recorde-se, por Passos Manuel e transformado em Portaria assinada por D. Maria II em 15 de novembro de 1836, estava prevista a criação de uma Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional: e referia-se especificamente no texto legal a necessidade de construção de um edifício, mas também, a estruturação de uma companhia que garantisse certa estabilidade e uma base de ação cultural ao teatro português, na dupla dimensão de espetáculo mas também de criação dramatúrgica.
Trata-se do que viria a ser e ainda hoje felizmente é, apesar do incendio devastador de 1964, o Teatro de D. Maria II.
Demorou a execução deste ponto específico do programa de Garrett. Foi criada uma “sociedade de capitalistas” que teve no Conde de Farrobo o primeiro subscritor. O processo arrastou-se: mas em 13 de abril de 1846 sobe à cena, no Teatro de D. Maria II, com foros de grande acontecimento cultural e urbano, uma peça hoje completamente esquecida: “Álvaro Gonçalves, o Magriço ou dos Doze de Ingraterra” de Jacinto Aguiar Loureiro, este tão esquecido como a peça… Em qualquer caso, vem dessa época, com óbvia oscilação de qualidade e continuidade, uma ação referencial na história moderna do teatro português.
E aqui, há que evocar alguns atores que marcaram não só a continuidade cultural e profissional do teatro em si, como, através de mais de um século, a própria criação dramatúrgica e arte do espetáculo em Portugal. Assim, encontramos por exemplo uma continuidade de décadas na companhia inicialmente denominada Rosas e Brazão, que se manteria no D. Maria II, com óbvias alterações de elencos e também, a partir de certa altura, da própria constituição societária e artística, e que constituiu a base artística de uma notável transição, a nível de artistas de cena e de dramaturgos, do teatro romântico para o teatro realista-naturalista.
É que, com alternâncias óbvias dada a instabilidade da profissão e da exploração teatral, encontramos, na época e em certos casos, como veremos adiante, quase até aos nossos dias, uma continuidade e permanência no Teatro D. Maria II desde finais do século XIX meados do século XX.
Veja-se a carreira de Eduardo Brazão. Ingressa em 1875 no D. Maria, onde se mantem até 1898, integrando a Companhia Rosas e Brazão, “uma das mais célebres e ilustres de toda a história do teatro português” escreveu Luiz Francisco Rebello (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 110). Prosseguiu uma carreira relevante de ator e encenador. E saliento o destaque na revelação, encenação e interpretação de autores portugueses, numa abrangência que o coloca na primeira linha da renovação da dramaturgia na transição do romantismo para o realismo: D. João da Câmara, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach – eram os dramaturgos modernos da época. Brazão voltaria mais tarde intermitentemente, ao D. Maria II.
E no D. Maria II fez grande parte da carreira a grande atriz Palmira Bastos que, com talento indiscutível, marcou, durante décadas o meio teatral português. Estreou-se em 1890, com 15 anos, no Teatro da rua dos Condes, que já aqui evocamos. Em 1894, recém-casada com Sousa Bastos, também muitas vezes aqui citado como autor do “Diccionário do Theatro Português” (1908) inicia uma carreira de atriz-cantora de opereta que a leva em tournée ao Brasil. Percorreu depois as principais companhias portuguesas.
Em 1931 ingressa na Companhia Rey Colaço Robles Monteiro: e aí, com uma breve interrupção em 1936/37, mantem-se em atividade destacada até ao incendio de 1964. Mas ainda trabalhou em 1966, tendo falecido no ano seguinte. Cito o protagonismo em “As Arvores Morrem de Pé” de Alexandre Casona, creio que o ultima grande papel que desempenhou com uma energia que ficou na memória do jovem crítico que na altura eu era…
E cito também alguns dos dramaturgos portugueses seus contemporâneos que Palmira Bastos estreou ou interpretou: Olga Alves Guerra, Vasco Mendonça Alves, Virgínia Vitorino, Ramada Curto, Júlio Dantas, Costa Ferreira, Joaquim Paço d’Arcos, Augusto de Castro…
Esteve em cena até aos 89 anos. E sobre ela escreveu, numa prosa muito da época, D. João da Câmara, o que só por si atesta a longevidade da carreira: “Foi brilhante a sua aurora e no carro triunfal, mais rápido do que Apolo, no tempo que dura um relâmpago, trepou até ao Zénite e por lá se deixou ficar”!
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 07.01.15 neste blogue.
VAMOS INDO… LEMBRANÇA DE ANNA, SOROR… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Menina de mim:
És pequenina hoje, não digo idade, porque a idade é um passeio que as almas não percorrem. Mas rompeste a escuridão inicial das águas, donde nascemos todos, como o universo. O espírito de Deus pairava sobre as águas, a terra era vazia e vaga e Deus disse: Que a luz seja! E a luz surgiu. E S. João dirá: "No princípio era o Verbo"... Nasces, luz do meu coração, no ano em que abriu os olhos essa Marguerite Antoinette Jeanne Marie Ghislaine, filha de Michel Creenewerck de Crayencour e de Fernande de Cartier de Marchienne, minha parente ainda, ali das bandas de Namur. Conhecem-na hoje por Marguerite Yourcenar. E por esses escritos - "Mémoires d’Hadrien" e "L’Oeuvre au Noir" - que a levarão um dia à fama universal. Mas é de "Anna, Soror..." que te venho falar hoje. "Nascera em Nápoles, em 1575, por detrás das espessas muralhas do forte de Sant´Elmo, de que seu pai era governador..." A novela escrita, abandonada, retomada por Marguerite Yourcenar, conta vidas e mortes várias, de antepassados parentes, mais teus do que meus, dos Crayencour certamente. Mudou-lhes os nomes, as nossas famílias têm hoje, afinal, os apelidos e títulos que as últimas conveniências guardaram, e as memórias guardadas para novas conveniências...se vierem! "Anna Soror..." é uma meditação sobre a linhagem e o incesto, sobre a devoção à paixão de um deus incarnado e o espinho agudo do amor humano, sobre a condição de quem se debate entre um horizonte além e um impulso imediatamente poderoso. De Anna se apodera o ideal indefinido e incerto de Séneca e Platão - que Valentine, a mãe de ambos, Anna e Miguel, lhes lia - e, ainda, o da entrega religiosa ao ciúme de um cristo crucificado... Tudo o que, no interior das defesas do forte de Sant´Elmo, a faça afastar de si e dos seus desejos. Ela mais não quer, verdadeiramente, do que quedar-se, ali, a forças que lhe dão forma. Quando se descobre e se entrega ao amor do irmão - quando ele mesmo não resiste mais a essa força sem data nem explicação possível, mas que já o empurrou também para a aventura militar em que vai encontrar a morte - Anna sabe que, por muitos anos que viva, já morreu. Marguerite Yourcenar confessa que esse texto, escrito quando tinha apenas 22 anos, é o que menos modificações sofreu, para edição posterior, de todos os que escreveu na juventude. Li algures - ou talvez lhe tenha ouvido dizer - que o amor de Anna e Miguel (Miguel é um nome recorrente no ramo ítalo-espanhol da família dela, como Camilo na nossa) - "entre “Pietàs” desoladas, “Marias-das-Sete-Espadas”, santas “cantando pela boca das suas feridas”, no fundo de igrejas sombrias e douradas que são para eles o enquadramento familiar da infância e um supremo asilo"... Marguerite sentiu, na Nápoles "espanhola" do século XVI, profundamente, o contraste entre o sol lúdico da canção livre e a autoridade tão negra dos Filipes da Contra-Reforma. Anna aceitará, depois de ter acompanhado Dom Álvaro, seu pai, no exílio da Flandres - a que o dever de obediência ao rei católico o obrigou - o casamento com um francês flamengo, cujo nome quero esquecer, ao serviço dos Habsburgos de Espanha. A recomendação de sua mãe, na sua hora derradeira, “Quoi qu’il advienne n’arrivez jamais à vous haïr”, determinará a fuga de Miguel para a morte em combate pela cristandade, e a constância de Anna. Diz Marguerite: "A noção social do interdito e a noção cristã da culpa fundiram-se nessa chama que dura toda a vida". Alhures, disse ela que, no exercício da escrita, se lembrara da narrativa bíblica do incesto dos filhos de David, Amnon e Tamar, no 2º livro dos Reis. Naquele tempo, ela lera a Bíblia na versão de S. Jerónimo - ou "vulgata" latina - em que os dois livros de Samuel, mais os dois dos Reis, se incorporavam no conjunto chamado dos Reis ou dos Reinos. Essa história é narrada no 2º de Samuel, nas edições de hoje. Pessoalmente, acho-a curiosa: não me parece que haja nela uma intenção de apontar o incesto fraterno, mas, claramente, uma condenação da violação. O livro do Levítico, que costumo chamar livro dos interditos, até pela literalidade de tantos tabus e proibições que ainda hoje tentam impor rabinos judeus e imãs muçulmanos - para não falarmos de "mensageiros católicos" que não terão meditado o evangelho - inclui o incesto nos crimes contra a família merecedores de castigos radicais. O Deuterenómio insistirá nas normas reguladoras das relações sexuais no seu contexto familiar e social. Recordo que, num qualquer dia em que falávamos de Donnizetti e da sua ópera "Dom Sébastien, Roi de Portugal", a última do compositor, o Alberto me disse que o desgraçado rei concentrara em si mazelas e fraquezas, por força da consanguinidade de casamentos endogâmicos: tivera pai e mãe, como todos nós, e quatro avós, mas também só quatro bisavós. Melhor teria sido se fossem, estes, oito... No relato bíblico do 2º livro de Samuel, o rei David, "quando soube daquela história, irritou-se muito, mas não quis penalizar o seu filho Amnon, porque era o seu primogénito. Quanto a Absalão (irmão de Amnon e Tamar), esse não falou mais com Amnon, pela violência que infligira à sua irmã"... Quando, antes do estupro, Amnon, pela manha aconselhada por Yononadab, sobrinho de David, alcançou o momento oportuno para dizer a Tamar “Vem! Deita-te comigo, minha irmã!”, ela respondeu-lhe: “Não, meu irmão, não me violentes, porque não é assim que se age em Israel, não cometas essa infâmia!. Para onde irei eu com a minha vergonha? E tu serias um infame em Israel! Agora, fala com o rei: ele não recusará dar-me a ti. “Mas ele não quis ouvi-la, dominou-a e, com violência, deitou-se com ela." Há aqui uma exceção ao interdito do incesto. Ao longo da História e, transversalmente, por civilizações e culturas, encontramos interdições e revogações (ou, melhor, derrogações) delas. O casamento endogâmico até de papas católicos recebeu bênçãos, ainda que com algum cuidado na ponderação dos graus de parentesco, não fosse a necessidade política ofender demais o que seria o "direito natural"... Entre os egípcios antigos, foram frequentes as uniões de faraós de sucessivas dinastias com suas irmãs. Todos conhecemos, já no período helenístico do Egipto, o matrimónio da do "nariz que mandou na história", Cleópatra VI, com seu irmão Ptolomeu XIII. Não deu grande resultado. Tudo isto me conduz à etnologia, à demanda antropológica de Claude Lévi-Strauss, no seu "Les Structures élémentaires de la parenté", sobretudo a essa interrogação da fronteira entre a Natureza e a Cultura: "O carácter primitivo e irredutível da definição do parentesco resulta imediatamente da existência universal da proibição do incesto... ...Um sistema de parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou consanguinidade entre os indivíduos; não existe senão na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de facto"... Penso, cada vez mais profundamente, que a abordagem da cultura, ou das culturas vigentes, em que as pessoas vivem, é a achega necessária - aos homens de boa vontade e à Igreja - para uma compreensão adequada de muitas interrogações, reclamações e manifestações geradoras de conflitos e clivagens sociais, que por aí cada vez mais se veem. A transumância do homem é a cultura..." Mas foi, ou não foi? Jesus que disse que não é impuro o que no homem entra, mas o que dele sai?"
A tradução de cartas do Marquês de Sarolea à Princesa... dele!... vai-me entretendo. Para bem, espero.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 03.09.13 neste blogue.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA CEM OLHOS PARA RUBENS
1. Nas Metamorfoses (Livro I, 584-750) narrou Ovídio a história de Io, a bela ninfa da Tessália pela qual Júpiter se apaixonou. Para conseguir os seus intentos, tomou, dessa vez, a forma de uma nuvem, que obscureceu por completo o bosque onde se escondera a virgem que daria a felicidade a quem quer que a possuísse. Mas Júpiter, como se sabe, era casado com a ciumentíssima Juno, que por demais conhecia os ardis do marido e a sua divina propensão para infidelidades conjugais. Do alto do Olimpo, espantou-se que o fulgor do dia se transformasse em noite e suspeitou do que a nuvem ocultava.
Rapidamente, precipitou-se para a terra e dissipou as névoas. Júpiter, também já habituado às costumeiras interrupções da consorte, só teve tempo para metamorfosear Io numa bezerra, que, da sua primitiva forma, só conservou a formosura. Juno não se deixou enganar pelo bicho nem pelo rabo de fora. Com doces falas gabou-lhe as formas e pediu a Júpiter que lha desse. O deus debateu-se entre o amor e o pudor. Percebeu que recusar a vitelinha à mulher e irmã, era revelar que ela era mais do que tenra vitela. Deu-lha.
Nem era questão de levar o animal para o Olimpo. Mas deixá-la a pastar era tentar acima das suas forças, o senhor que, com o seu cetro, rege o universo. Por isso a confiou ao centauro Argos, o monstro de cem olhos, de que só dois se cerravam no sono, deixando os outros noventa e oito bem abertos. E, como os olhos lhe cobriam toda a cabeça, quer Io estivesse diante dele, quer estivesse atrás, sempre a via e sempre a vigiava. O rei dos deuses não aguentou uma tal separação. Mandou chamar Mercúrio, o filho da mais luminosa das Plêiades, e ordenou-lhe que, com os seus cantos e a sua flauta, adormentasse Argos e o matasse. Mercúrio teve muito que cantar e contar. Mesmo quando conseguiu fazer cair as pálpebras sobre cinquenta olhos, os outros cinquenta continuavam zelosos. Mas, por fim, o monstro adormeceu e logo Mercúrio lhe cortou a cabeça. Mal o soube, Juno voltou a descer dos céus e retirou, um por um, os olhos mortos de Argos, colocando-os nas caudas e nas asas da ave que a personifica: os míticos pavões. Depois, em tremenda ira, subiu para o seu carro e, sob a forma de um moscardo, perseguiu a rival por todo o oriente e todos os rios do oriente, até chegar ao Nilo. Junto ao rio dos rios, finalmente a alcançou e ia matá-la, quando Io soltou um longo lamento, misto de mugido e lágrimas, suplicando a Júpiter que pusesse fim ao seu penar. Júpiter condoeu-se e jurou à mulher que nunca mais, no futuro, a doce ninfa seria para ela motivo de dor. Amansada a cólera da deusa, a desventurada recuperou a forma humana e "o cândido esplendor da sua beleza". Mais tarde deu à luz Epáfos e Ovídio conclui dizendo que "agora é uma deusa, venerada pelas multidões em vestes de linho e em todas as cidades se erguem templos dedicados a Io". Muitos séculos depois, Galileu deu o nome de Io ao maior dos satélites de Júpiter, o único que, por ter um movimento de rotação rigorosamente igual ao seu movimento de translação, tem sempre voltada para ele a mesma face.
2. Como mil outras das Metamorfoses de Ovídio, a história de Io foi representada mil vezes. Ou abraçada por Júpiter, em êxtase envolvida pela nuvem. Ou, já transformada em bezerra, triste de morrer. Ou na cena em que Juno pede ao marido que lhe dê o animal. Ou junto ao Argos de tantos olhos fixos nela. Ou no episódio da morte de Argos. Mas a mais avassaladora das representações é a de Rubens, que agora vi em Génova, no que, para mim, foi o momento supremo da exposição L' Età di Rubens (ver Público, 16 de junho).
É um quadro imenso (2 metros e 49 de altura por 2 metros e 96 de largura) onde, aparentemente, Io não está representada. Aliás, o quadro chama-se Juno e Argos e o que vemos é o momento em que a deusa reveste os seus pavões com os cem olhos de Argos. Á primeira vista, o que se impõe é, do lado esquerdo, um pavão colossal, com as asas todas abertas em leque e, do lado direito, a deusa de peitos desnudados e com um vestido encarnadíssimo até aos pés. Levantou-se do seu carro e, com uma outra mulher, igualmente de peito nu, está concentrada em algo que só algum tempo depois chama a nossa atenção. Antes de vermos "a ação", reparamos também no soberbo corpo nu de Argos, já sem cabeça, e com a carne tingida pela morte, jacente no chão aos pés da deusa, que não olha para ele. Diz-se que, para pintar esse corpo possante, expressivamente revolto numa última torsão, Rubens se inspirou no desenho de Tizio de Miguel Ângelo, hoje em Windsor, na coleção da Rainha.
De modo que temos a gigantesca e violácea plumagem de um dos pavões (na tela, há dois), ocupando cerca de metade do quadro, rodeada por três "putti" nus que lhe colocam nas asas os olhos do monstro. Temos os dois altíssimos vultos femininos, ligeiramente descentrados, um todo púrpura e outro todo azul. Atravessando tudo, um segundo pavão, tão dilatado em comprimento quanto o outro o é em largura (as asas todas fechadas, a cauda enorme, e virando-nos o olhar, ao contrario do seu par). E em baixo - única representação masculina - o corpo decepado de Argos. Duas volutas perfeitas e uma espiral que envolve os corpos e os pavões, como uma rajada de vento, vento inexistente. Mas afinal que fazem as deusas e para onde olha o pavão que nos vira as costas? De mais perto, e com alguma atenção, repara-se que a deusa azul (com os cabelos tão louros quanto os de Juno são negros) tem no colo a cabeça enegrecidíssima de Argos e com a mão direita lhe retira, com infinda mansuetude, os cem olhos da lenda. Com a mão esquerda, Juno colhe os olhos, segurando um deles entre o anelar e o dedo grande. Na mão direita, já estão depostos três outros olhos de Argos, que irá colocar, como outras tantas jóias, no atentíssimo pavão de face oculta. Talvez que, depois de já terem dado às crianças os cinquenta olhos que tanto ufanam o pavão de asas abertas, estejam agora a retirar os outros cinquenta, para os colocar no pavão - fêmea, que espera a sua vez. Há ainda o arco-íris no céu, nuvens escuras revoltas (reminiscência dos episódios anteriores do mito, reminiscências de Júpiter) e uma brisa agita os véus das divindades. Mas falta falar do mais importante. À direita do quadro, segurando o manto de arminho de Juno, há um terceiro vulto feminino, de quem só vemos a cabeça dourada e os cabelos bem agitados pelo tal vento ausente - presente. Não olha para as outras mulheres, não parece ver o que estão a fazer, não olha para o corpo nu de Argos, mas também não nos olha a nós. Com alguma aflição, olha em frente, mas com uma frontalidade indefinida, como se não quisesse ver mais ou como já quisesse ver outra coisa. Alguns comentadores tem identificado essa figura com Io, uma Io já com forma humana, acorrentada ao carro de Juno ou aproveitando-se da distracção desta para iniciar a sua bosfórica fuga.
Seja como for, essa figura só cabeça (inversa da de Argos, só corpo) confere ao quadro um mistério indecifrável e que nenhuma passagem das Metamorfoses esclarece. Ou estará ela a ser puxada para trás, de novo para as nuvens e para o arco-íris, ou seja, de novo, para o abraço de Júpiter?
3. Há muito tempo que me ensinaram a ver que as robustas figuras de Rubens não têm peso e que, ao contrário do que parece, todas são puxadas para cima e mal pisam a terra. Em Juno e Argos, esse movimento ascendente, tão brando que é quase impalpável, atinge o cume no corpo retorcido de Argos e nos cabelos ondulantes da suposta Io. Se a pintura representa uma ação minuciosa (os olhos retirados como pinças da cabeça de Argos) o que temos diante de nós é a ação mais ampla, a ação mais grandiosa. São os cem olhos que cobrem o pavão macho e lhe dão majestade absoluta. São as torrentes de cores, desde as da carne rósea das crianças e das deusas até à carne escura de Argos, desde a gigantesca mancha encarnada do manto de Juno até ao ouro que cerca a cabeça de Io. Mais ou menos pela mesma altura em que Rubens pintou esta tela (datada pelos historiadores dos anos 30 do Séc. XVII, no fim da vida do pintor) Poussin, seu contracampo francês, escreveu: "Sabemos que existem duas maneiras de ver os objetos: uma, é, muito simplesmente, vê-los; outra, é observá-los atentamente". Este quadro pode ver-se de qualquer dessas maneiras. Como é que os gregos chamavam a Argos? Argos Panoptes (o que tudo vê). Do panoptismo de Rubens, este é um dos exemplos mais admiráveis. Ninguém nos olha (as deusas têm mesmo os olhos baixos, quase semi-cerrados) mas só há olhos diante de nós. Os cem olhos de Argos, metamorfoseados nos cem olhos dos pavões e nos cem olhos que, para ver Rubens, nos são pedidos.
4. Este quadro, agora emprestado a Génova pelo Museu da Fundação Wallraf-Richartz de Colónia, esteve em Génova entre 1630 (mais coisa menos coisa) e 1805. Nessa data, o levaram para Inglaterra, onde o acharam de um realismo demasiado cru para ser exposto. Depois, andou perdido, segundo alguns até afogado. Reapareceu na Alemanha em 1894. Voltou agora a Génova (cerca de duzentos anos depois) como vários dos Rubens da exposição.
Outros olhos que não estes (os olhos de Brigida Spinola Doria) são o ex-libris da capital da cultura e figuram na capa do catálogo. Para a semana vo-los mostrarei. Mas os olhos onde os meus olhos ficaram foram os olhos de Juno e Argos, na parede do fundo de uma das maiores salas do Palazzo Ducale. Lá, onde entre dois pavões panóticos, se descobre ainda uma restéa de céu, de azul muito claro e de nuvens tão levemente ruborizadas como os rostos das deusas impassíveis.
ATORES, ENCENADORES (IV) GARRETT ATOR por Duarte Ivo Cruz
Podemos dizer que o teatro português inicia a sua modernização com Garrett? De certo modo, sim: porque o romantismo nasce com ele, prolonga-se por um excesso ultrarromântico ao longo do século XIX e só atinge as portas do realismo duro e puro com “Os Velhos” de D. João da Câmara, em 1893… muito embora: a genialidade de Garrett faz adivinhar, em certas peças e em certas cenas e ainda na copiosa análise e teorização estético-dramática que produziu, os novos caminhos do teatro português.
E mais ainda: Garrett assume uma posição transversal na arte global do teatro. Foi o grande dramaturgo que se conhece, e foi-o desde a juventude. Mas foi também, na solicitação que lhe é feita, em 1836, por Passos Manoel, o verdadeiro inovador (modernizador?) da estrutura teatral portuguesa, através da reforma que elaborou e que abrange com um extraordinário sentido de modernidade, a estrutura compósita e complexa da arte do teatro, nas suas componentes: o ensino, o espetáculo, a formação de atores, o estímulo à produção dramatúrgica, a criação de espaços/edifícios e até a intervenção do Estado – e tudo isto, repita-se, em 1836, e numa globalidade que em rigor dura até hoje.
E senão, vejamos rapidamente o que integra a reforma estrutural de Garrett consubstanciada em três diplomas legais:
Portaria de 28 de setembro de 1836 – encarrega Garrett de apresentar “um plano para a fundação e organização de um teatro nacional”;
Relatório datado de 12 de novembro de 1836, assinado por Garrett;
E finalmente, Portaria de 15 de novembro de 1836, assinada por D. Maria II e referendada por Passos Manoel, criando as bases da reforma do teatro português na sua globalidade: Inspeção Geral de Teatros e Espetáculos Teatrais, Sociedade para a Fundação de um Teatro Nacional, Criação do Conservatório Geral de Arte Dramática, Criação de uma Companhia Nacional Concursos do Conservatório, Proteção dos Direitos Autorais, Politica de Subsídios.
Tudo isto foi concebido e redigido por Garrett, que aliás não se poupa a autoelogios. E realmente, todas estas instituições com as óbvias modernizações e alterações duram até hoje!
E mais: ao rever a dramaturgia de Garrett, e não necessitamos de nos concentrar apenas no 2º ato de Frei Luís de Sousa, encontra-se uma modernidade que a faz antecipar décadas e estéticas e até pragmáticas teatrais.
Ora bem: será interessante lembrar que Garrett foi ator e encenador, passe a carga modernista deste último termo. E desde muito cedo. Assim em 1819, vemo-lo em Coimbra, escolar de Leis como então se dizia, a dirigir ensaios da sua primeira peça completa, “Mérope”, ainda marcada por um estilo clássico anterior à renovação romântica. Não foi representada na altura, mas Garrett por essa época já se lançava numa primeira versão de “Amor e Pátria”, que viria a dar a “D. Filipa de Vilhena”.
Em 1821 intervém como ator no “Catão”, levado à cena no Teatro do Bairro Alto. E surge também no elenco do “Imprompeto de Sintra”, peça representada em 8 de abril de 1822 “na Quinta do Cabeço em Sintra”. E entretanto, em Coimbra, são referenciadas intervenções suas, declamando versos ou interpretando pequenos papéis em récitas.
E refere-se agora o garrettiano “Auto de Gil Vicente”: Teófilo Braga escreveu que “o próprio autor teve de ensaiar no Teatro do Salitre, vencendo a rudez dos atores, foi apresentado em 15 de agosto de 1838, quando estava mais acesa a luta da reação de carlistas contra setembristas; a impressão do público foi de deslumbramento”.
E mais acrescenta Teófilo: “No Teatro da Quinta do Pinheiro, junto a Sete Rios, pertencente a Duarte de Sá, fez-se em 4 de julho de 1843 a memorável primeira representação de “Frei Luís de Sousa”; aí brilhou com o seu extraordinário talento D. Emília Krus, desempenhando o papel de D. Madalena de Vilhena; o próprio Garrett sujeitou-se a representar o personagem do escudeiro velho Telmo Pais. A esta representação assistiu Alexandre Herculano e chorou”. (cfr. Teófilo Braga e também Gomes de Amorim “Garrett- Memórias Biográficas” 1881-1884)
Mas é Teófilo quem o diz! E mais acrescenta que o “Frei Luís de Sousa” só em 1850 seria representado no Teatro D. Maria II. (cfr. Teófilo Braga “Dois Monumentos”).
Hernâni Cidade analisa detalhadamente o teatro de Garrett. E sobre o “Frei Luís de Sousa” considera que o mais relevante “é a introdução, entre os elementos constitutivos da peça, daquela figura de Telmo, com a sua fé sebastianista, que é a do povo contemporâneo” fazendo um paralelismo entre “a crença no regresso de D. Sebastião (e) a crença no regresso de D. João de Portugal” (in “Século XIX – A Revolução Cultural em Portugal e Alguns dos seus Mestres” 1985 págs. 27). De notar que a peça foi escrita por Garrett retido em casa devido a uma “forte canelada”, tal como refere o amigo Gomes de Amorim, que gaba o acidente!... (in “Garrett- Memórias Biográficas – vol. III pág. 67).
Vasco Graça Moura relaciona a modernidade do “Frei Luis de Sousa” com a “interrogação do próprio destino nacional” que surgirá designadamente em Oliveira Martins, em Pessoa e em Eduardo Lourenço, expressamente citados (in “Colóquios tão simples, desfigurações” na revista Camões - janeiro/março 1999 pág. 62).
E finalmente: Annabela Rita, num estudo muito recente, estabelece uma correlação entre obras e figuras referenciais na história e na literatura: “D. Madalena e Maria, cada uma debruçada sobre a sua dupla, em que parecem literalmente geradas: a Inês de Castro camoniana e a Menina e Moça (1554) de Bernardim Ribeiro, respetivamente” (cfr. “Luz e Sombras do Cânone Literário” 2014 pág. 188).
Veremos a partir daqui, os atores e encenadores que surgem na transição dos séculos XIX/XX.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 31.12.14 neste blogue.
Estou novamente em Paris, conto desta vez com a companhia do Alberto, que veio a negócios. Gosto dele, da sua grande alegria de viver, como dessa melancolia tão portuguesa que sempre me lembra o cair da tarde em dias sem vento, no fim do Verão. Falei-lhe de ti, de como me habitas o coração, com a insistência que tão bem diz esse verso do Rilke: "Wie soll Ich meine Seele halten dass Sie nicht an deine rührt?"E ele logo veio com um sentimento português: "Saudade...sabes o que é a saudade? Escuta:" Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe... ...Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, pela ventura, a que me fez ser leda. Mas depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha." Assim escreveu Bernardim Ribeiro, no século XVI. Já no século XIII, reza uma crónica que um frade dominicano, de regresso ao seu convento no alto de Montejunto, se lembrou da água pura que ali o saciara e "sentiu grande soledade daquela água"...É isso a saudade: é estar sozinho de alguém, e a solidão só se sente quando uma presença não nos larga." Sejamos ambos portugueses, pelo tempo deste segredo que te digo: sinto grande saudade de ti, porque me habitas. Pensossinto-te fora do tempo, do lugar e da memória. És. Assim descubro que te amo essencialmente. Não te pensossinto em função da beleza, da idade, do teu modo de ser ou da tua história. Mas tão só pela ternura que me descobriste imensa e me inunda. Para mim és, todos os dias, o amor que desperta, a alegria intensa e inesperada da revelação. "É no invisível que se produz o essencial", disse Jacques Maritain sobre a sua relação com Raïssa, mulher da sua vida, mesmo depois de morta, com quem se casou aos vinte anos e se converteu ao catolicismo. Com quem viveu sempre uma intimidade em que se confundiam, mesmo - ainda ou talvez mais - depois de se terem feito voto de castidade. Penso muitas vezes neles, quando me lembro de nós e deste amor a que a renúncia dá uma dimensão intangível. Mas tenho pensado nos Maritain, também pela necessidade que senti de algum regresso a S. Tomás de Aquino. Quem os acompanhou na escalada espiritual e intelectual da conversão foi um dominicano, francês e monárquico, o padre Clérissac, que mereceu de Raïssa esta referência tão sentida e tão bonita: "Caiu sobre nós, e recebemo-lo - o Jacques e eu - o olhar estrelado e penetrante de dois olhos profundos, cheios de segredo e de conhecimento, e diante desses olhos nos sentimos totalmente novos e totalmente ignorantes". Todos os dias peço a Deus que refaça em mim essa alegria de me sentir novo por me saber ignorante e querer aprender. Seguindo o conselho do padre Clérissac quando sugeriu a Summa Theologica para aproximação racional dos Maritain à fé que procuravam: "Não andemos mais depressa do que Deus. É da nossa sede e do nosso vazio que Ele precisa, não da nossa plenitude". Curiosamente, é a judia Raïssa que entrará primeiro por S.Tomás: "Esta primeira leitura da Suma Teológica foi para mim um dom muito puro. Recebi, uma vez por todas, a certeza das verdades primeiras acerca da inteligência, e a alegria de ver esta suficientemente forte para conduzir até ao seio da noite estrelada da fé os princípios da razão. Recebia o que podia receber segundo a minha fraca capacidade, mas com plenitude. Os problemas tinham desaparecido - como acontece no tempo da felicidade - para reaparecerem mais tarde. Mas mais tarde não me caberia, a mim, aplicar-me, mas ao Jacques, filósofo por vocação...Recordo o meu primeiro encontro com o casal e Vera, a irmã de Raïssa, que compunha aquela comunidade monástico-familiar a três. Tinha eu vinte e poucos anos, e embasbacava perante aquela gente cheia de rigor tomista e misticismo religioso, mas que acompanhava Satie e Stravinsky, Diaghilev e Rouault, e era amiga de Cocteau e Chagal. Voltei a vê-los, quase trinta anos depois, já Jacques Maritain terminara a sua missão de embaixador de França junto da Santa Sé, em Paris, precisamente com o Stravinsky e o Cocteau, por ocasião dum Oedipus Rex no Théâtre des Champs Élysées. A Raïssa, como sabes, era de origem russa, Oumançoff era o seu apelido de solteira. Quando, muito novinha ainda, iniciara os seus estudos em Mariopol, junto ao Mar Negro, interessou-se muito pela literatura russa. Foi ela quem, pela primeira vez, me falou de Pushkin. E, por ser melómana, me referiu as óperas russas cujos libretos se inspiraram em obras do grande poeta, aliás com os mesmos títulos: "A Dama de Espadas" e "Eugénio Oneguin" de Tchaikovsky, "Boris Goudonov" de Mussorgsky. Através de conhecidos do Alberto, pudémos assistir a ensaios desta, na Salle Wagram, sob a direção de André Cluytens, com o Boris Christoff e o coro dos seus compatriotas búlgaros da Ópera Nacional de Sofia. Como sabes, esta ópera tem seis versões musicais: duas do próprio compositor, duas do Rimsky-Korsakoff, uma do Shostakovitch e ainda outra arranjada por dois americanos para o MET. Ouvimos a segunda versão do Rimsky, que é a mais repetida. Voltei a lembrar-me de Shakespeare - que Pushkin muito admirava - não só pelo modo de composição do drama em sucessivos quadros (ou cenas) como em "Macbeth", mas pela história contada que, mesmo com fundamento na "História do Império Russo" de Nikolai Karamzin, é muito semelhante à de "King Richard the Third" do dramaturgo inglês. Lembras-te de termos assistido, em Londres, a um inesquecível Ricardo III pelo Lawrence Oliver? Claro que te lembras, porque é mesmo inesquecível! Deixo-te esse monólogo do rei que vai morrer: "What do I fear? Myself? There´s none else by. / Richard loves Richard; that is, I am I. / Is there a murderer here? No - yes, I am. Then fly. What, from myself? Great reason why - / Lest I revenge. What, myself upon myself!”. Continuo, mas traduzindo, sem cuidados de rimas, métricas ou tónicas. Só pela força do texto, porque, fraco embora, sei que a maravilha do espírito é não ter dono. "Com pena me amo. Por que razão? Por algum bem que eu mesmo a mim me tenha feito? Ai, não! Infelizmente, antes mais me detesto pelos odiosos feitos que eu mesmo cometi! Sou um vilão; e ainda minto, não sou. Tolo, de ti falas bem. Tolo, não te vanglories. A minha consciência tinha milhares de línguas diversas, e cada língua em si traz ditos diferentes, e cada dito me condena como vilão. Perjúrio, perjúrio ao mais alto grau; assassínio, impiedoso assassínio, ao nível mais sujo; todos pecado, todos a cada passo cometidos, juntos na barreira, todos gritando "Culpado! culpado! Desespero. Nenhuma criatura me ama; e se morrer nenhuma alma terá piedade de mim: e porque haveriam de ter, já que eu mesmo em mim não tenho piedade para mim?". Boris Goudonov, no fim, ainda suplica perdão... Talvez por virtude desse cristianismo ortodoxo que tanto acredita na intercessão do povo fiel, dos monges, dos santos e dos anjos. Aqui tens, minha Renúncia de mim, nascida, como Vénus, deusa do amor, do mar de contradições e paradoxos da vida, a diferença entre tormento e sofrimento: tormento é tormenta, tempestade, revolução, morte, incomunicabilidade; o sofrimento é paixão e compaixão, aceita-se como semente que germina. Aqui, no Georges V, fazem-me sempre o favor de instalarem um gira-discos no meu quarto. Talvez adormeça, mas vou ouvindo a "Paixão segundo S. Mateus" de Bach. Sei que dormirei em paz, porque, no fundo do meu coração, sempre trémulo e fiel, ficarei escutando esse paradoxo inicial da nossa condição humana. E que Deus nos veja, pois mais não posso." Confesso que hesitei em publicar esta carta de Camilo Maria. Outras tenho traduzidas, e também não sei...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 30.08.13 neste blogue.
A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA SOPHIA: MEMÓRIA – 2 DE JULHO DE 2004
1 - Começa a ser sina. De cada vez que me afasto, em peregrinações minhas longamente preparadas, toca o telemóvel com uma notícia terrível. Munique, agosto de 2002, Cumes, maio de 2003, Génova, julho de 2004. Mortes ou outras coisas que sabemos. Sabia que iam acontecer. Esperava-as. Mas não ali, onde parecem tão súbitas, tão sozinhas, tão desamparadas como se eu não fizesse falta nenhuma. "Por isso eu escrevi" - escreveu-me Sophia há mais de sete anos - "Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo." E esse poema continua: "Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e nos separa." É isso que faz mais medo: a mentira, a separação. Já não vale a batota das palavras.
2 - Era o dia - aqui o recordei - em que passaram cem anos sobre a morte de Tchekov. A seguir a um almoço muito tardio numa fruste esplanada de madeira, subi e desci ruas quentes e íngremes até uma igrejinha românica (fundada no século VII, reconstruída no século XII) chamada Santa Maria di Castello. Lá, num claustro evanescente, está pintado um fresco representando a Anunciação. Data de 1451 e é obra de um tal Justo da Alemanha (sic) de quem nunca ouvira falar. Sob ogivas, um grande arco de volta inteira cobre o Pai e o Espírito Santo, no tecto de um espaçoso quarto. A Virgem, de pé, de manto azulíssimo e mãos cruzadas sobre o peito, está à direita, submissíssima. À esquerda, o arcanjo, dourado e muito mais volumoso, dá-lhe o Avé. Mas reparei que, ao fundo, do lado de Maria, existe um lava-louças. Da torneira salta um peixe. No fundo da bacia, meia de água, jaz outro peixe, morto. A simbologia crística do peixe é conhecida. Mas nunca a tinha visto figurada assim, em recapitulação tão elíptica e tão envolvente.
Não havia mais ninguém. Mas, quando me vinha embora, apareceu um padre. Perguntei-lhe se não haveria reproduções. Disse-me que sim e pedi-lhe duas, uma para mim e outra para oferecer. Deu-mas e recusou qualquer pagamento. Da igreja desci até ao Vico dei Giustiniani. Virei à direita, depois à esquerda e cheguei ao Duomo, consagrado a São Lourenço, que, segundo a lenda, teria sido assado vivo naquele local ("Virem-me do outro lado, que eu deste já estou assado"). A fachada, construída entre os séculos XIII e XV, em mármore policromado, é magnífica. O interior, muito modificado, bastante mais pesado. Depois, desci para o bairro medieval e para o porto. Ao fim da tarde, o calor horrível começou a abrandar e perdi-me nas ruas estreitíssimas e de casas altíssimas, onde só havia sombra. Foi nelas que, pela primeira vez, me lembrei conscientemente de Sophia e daquele poema (do "Mar Novo") que se chama "Marinheiro sem Mar", e que é sempre um dos meus favoritos dela. "Todas as cidades são navios / Carregados de cães uivando à lua / Carregados de anões e mortos frios." E mais adiante (deve ser um dos poemas mais longos de Sophia, que, em toda a história da literatura portuguesa, ninguém excedeu no verso curto): "E sobe por escadas escondidas / E vira por ruas sem nome / Pela própria escuridão conduzido / Com pupilas transparentes e de vidro / Vai nos contínuos corredores / Onde os polvos da sombra o estrangulam / E as luzes como peixes voadores / O alucinam." Foi a pensar em Sophia que cheguei, já começava a entardecer, à Piazza San Matteo, a mais bela e perfeita praça de Génova, onde as casas de Branca Doria ("'lo credo' diss'io lui, 'che tu m'inganni; ché Branca Doria non mori unquanche/ e mangia e bee e dorme e veste panni'", disse Dante ao irmão Alberigo no Canto XXXIII do "Inferno", antes de amaldiçoar os genoveses, "uomini diversi") de Lamba Doria (vencedor da batalha de Curzola) e de Domenicaccio Doria abrem alas de rosa e branco para o verde pálido da Igreja de San Matteo e dos mosaicos da fachada dela. "Como é estranho não saber", disse Sophia no último verso dos nove "Poemas de um Livro Destruído", poemas que Sophia conservou inéditos por mais de vinte anos. Ali, sentado no chão, nos degraus da casa de Lamba Doria, em frente da igreja (já fechada) eu julgava saber alguma coisa. Suadíssimo, descamisadíssimo, sentia uma grande paz e não havia vivalma ao meu redor. Por isso, apanhei um susto quando o telefone tocou (esqueço-me sempre de o desligar). Uma espécie de mau presságio. Mas era um banal recado da Cinemateca, pormenores de programação. Estranhei não me irritar com a interrupção e, enquanto olhava, (olhava sempre) mantive uma longa conversa, com instruções para mudar o filme A para o dia Z e o filme Z para o dia B. Tudo muito calmo, muito quotidiano, como se estivesse à secretária da Barata Salgueiro. Depois de desligar, deixei-me ainda ficar muito tempo por ali, muito longe de maldizer os genoveses ou de pensar no Cócito. Nenhuma vontade de fazer mal a alguém por cortesia. Se houvesse na praça um restaurante, tinha jantado por ali, para ver como a noite lhe ficava. Não havia e por isso dei ordem às pernas para o que lhes queria: regressar ao hotel, tomar um bom banho, mudar de roupa e voltar a sair para jantar bem.
3 -Foi quando cheguei ao hotel, bastante esfalfado, já tinha na mão a chave do quarto, que o telefone voltou a tocar. Desta vez, nenhum sobressalto nem nenhuma surpresa. Era o meu genro Pedro. Demorei uns segundos a reparar no tom grave da voz. A Maria, filha da Sophia, tinha telefonado a pedir que me avisassem, que eu gostava de saber. Desisti dos meus planos e fiquei no hotel, numa grande casa de jantar quase deserta. Tentei falar com a Maria ou com os irmãos, mas não consegui. Também não consegui falar com a pessoa em quem mais pensava. Começaram, sim, a falar gentes dos jornais, a pedir comentários, "depoimentos" (o que eu odeio os jornalistas nessas alturas!). Inevitavelmente, pensei no poema de que toda a gente se lembrou quando ela foi morta. E ouvi-a distintamente, como no velho disco de 45 rotações que havia lá em casa, dizer: "Outros amarão as coisas que eu amei." Estúpida vaidade, ou o contrário disso, pensei que, naquela tarde em Génova, 2 de julho de 2004, eu teria sido um dos primeiros desses outros, pois que certamente Sophia amou, ou teria amado, o fresco do claustro de Santa Maria di Castello ou a Piazza San Matteo, se acaso os viu, se acaso os visse.
4 - Mas será verdade, como Sophia tão fundamente acreditou, que tudo continuará "como se eu não estivesse morta"? "Será o mesmo brilho, a mesma festa / Será o mesmo jardim à minha porta"? Vezes sem conta discuti isso com Sophia. Para ela, "sempre a poesia foi uma perseguição do real". Quando recordou a "maçã enorme e vermelha" "poisada em cima de uma mesa", "num quarto em frente do mar" (e era a coisa mais antiga de que ela se lembrava), não recordou "nada de fantástico" "nada de imaginário". "Era a própria presença do real que eu descobria." Por isso, cem vezes ou mais, na sua poesia, associada à morte, surge essa crença na continuidade do real, independentemente dela ou de qualquer humano. "Também morre o florir de mil pomares / E se quebram as ondas no oceano." Ou: "Um dia quebrarei todas as pontes / Que ligam o meu ser, vivo e total / À agitação do mundo do irreal / E calma subirei até às fontes." Cito ao acaso, de memória. Podia citar mil poemas em que ela diz o mesmo. Mas para mim (e a questão é filosófica e tão velha como os primeiros filósofos) esse radical realismo é-me estranho. Sophia ou Génova, para não sair do tema desta crónica, só são ou foram reais quando e enquanto me foram aparições. "Quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" não estou nada certo que Sophia e Génova continuem como continuam hoje, porque eu estou vivo e eu me lembro delas. Um amigo observou-me um dia, a propósito de uma destas crónicas do PÚBLICO sobre Itália (era sobre Lecce), que eu não escrevia sobre Lecce escrevia sobre mim, como se, perdido eu, Lecce deixasse de poder ser vista como eu a vira. Tem toda a razão. Foi assim e é assim. Sem mim, não sei de eu. Isto não significa - muito ao contrário - que eu não acredite na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna, amém. Esta crónica, bem lida, é um dos múltiplos sinais. Mas só a fé que tenho em não desaparecer me faz acreditar que ninguém ou nada do que amei desaparecerá também. Se eu fosse ateu, poderia repetir, sem remorso ou vacilação, o "après moi le déluge". Não concebo qualquer real independente de mim. Como não concebo que o Kouros do Egeu seja para mais alguém, como foi para Sophia, "Sorriso sem costura / Inocência de caule / Retrato nu do liso." É verdade? É. Tão, tão verdade. Mas ninguém nunca mais inventará esses seis substantivos ligados por um único adjectivo. O mais longe que vou é ao que Sophia escreveu no mágico poema chamado "Veneza", do livro "Ilhas".
"Dentro deste quarto um outro quarto Como um Carpaccio nas ruas de Veneza Segunda imagem sussurro de surpresa E um pouco assim são as ruas de Veneza Em fundo glauco de laguna ou vidro E um pouco assim em nossa vida o duplo Espelho sem perdão do não vivido Caminha destinado a ser perdido
5 - Acima falei dos nove "Poemas de um Livro Destruído", que, escritos entre "Coral" e "No Tempo Dividido" (ou seja, entre 1950 e 1954, tinha Sophia trinta e poucos anos) só foram inseridos em 1985 na segunda edição do último desses livros. Sophia falou-me deles em 1969 ou em 1970 e disse-me que lhe faziam um medo enorme, porque lhe pareciam alheios, sendo dela como se não fossem dela. Pedi-lhe que me escrevesse aquele que começa com "Não procures verdade no que sabes" e, desde esse dia, guardo esse poema ao lado das imagens mais minhas, como o retrato dela em Agrigento que o Alberto lhe tirou. Em Génova, naquela noite, ouvia a voz dela, ouvia os poemas dela ditos por ela, e via-a a ela e à poesia dela. Tudo tão real quanto fantástico. Como ela o foi, como ela o é. Mesmo quando nada restar da poesia dela, mais do que um verso ou um fragmento. Não foi só isso que nos ficou de tantos poetas da Grécia antiga? Mas, porque outros os amaram como alguns amaram Sophia, esse resto é quanto basta. Porque "a arte é filha da memória". Sophia, eu lembro-me.
ATORES, ENCENADORES (III) O TEATRO NA CORTE E NA RUA (SÉCS. XVIII-XIX) por Duarte Ivo Cruz
Poderá falar-se já em encenadores, no teatro português do século XVIII? A expressão será prematura quanto a encenadores tal como hoje os entendemos: mas a profissionalização do espetáculo teatral a partir dos finais de 700, com forte incidência no inicio dos anos de 800, implica, isso sim, a existência de uma atividade de direção de cena e de espetáculo. E da mesma forma, e aí sem a menor duvida e com ampla documentação, ocorre a proliferação de atores e de autores.
Refiro aqui sobretudo o chamado teatro de cordel, expressão de um espetáculo popular que invadiu as ruas de Lisboa na época, com para cima de 1500 títulos, de que restam algo como 500 a 600 edições, de uma boa centena de autores: e a expressão deriva da venda ambulante dessas peças, tal como as identifica Nicolau Tolentino de Almeida na sátira “O Bilhar”.
“Todos os versos leu da Estátua Equestre/ E todos os formosos Entremezes/ Que no Arsenal ao vago caminhante/ Se vendem a cavalo num barbante”.
Ou a nota que assinala a venda ao publico da “Comédia Nova intitulada A Amizade em Lance” editada por um tal António Gomes em 1794:
“Na mão de Romão José, cego, na esquina das rua dos Padres de São Domingos no Rossio, voltando para a Praça da Figueira, ou em sua casa”…
São pois dezenas de atores e centenas de peças. Mas o que aqui nos importa é assinalar que este movimento, em tudo preparatório da grande renovação romântica do teatro português impulsionada por Garrett, como veremos mais tarde, teve nestes dramaturgos, hoje mais ou menos esquecidos, e nestes atores, um prenúncio extremamente significativo, da renovação cénica e do espetáculo em Portugal.
E sobretudo porque o movimento se assim se pode chamar, coexiste com a exigência literária – e não tanto cénica, note-se bem – do chamado Teatro da Arcádia Lusitana ou Olissiponense, fundada em 1756 e prolongada até ao século XIX através da Nova Arcádia: mas o movimento marca muito mais pela analise teórica, expressa em numerosíssimos “prólogos” “discursos” e dissertações sobre a arte do teatro. E afinal, a produção, que varia entre as duas peças de Correia Garção, as de Domingos dos Reis Quita, ou as largas dezenas de Manuel de Figueiredo, entre outros, debatidas em colóquios pelo Árcades “identificados” por pseudónimos latinos, ficam quase sempre aquém de uma verdadeira expressão de espetáculo que o teatro deve necessariamente conter. E alguns como que fazem a transição: assim, José Manuel Rodrigues da Costa, em cerca de 15 peças, de certo modo partilha a exigência da Arcádia com a popularidade do cordel.
Importa ainda referir que esta expressão teatral mais literária do que cénica tem um único precedente de qualidade e relevo, António José da Silva – o Judeu, cujas tragédias de forte expressão barroca, escritas na primeira metade do século XVIII, ficam aquém, numa visão contemporânea do teatro espetáculo, da comédia dramática – as ainda hoje notáveis “Guerras do Alecrim e Mangerona” (1737)…Veja-se este diálogo:
“D. Fuas – Aonde vás, tirana? Procuras acaso o teu amante? Oh, murcha seja a tua manjerona. Que como planta venenosa me tem morto/ D. Nise – Homem do demónio ou quem quer que és, que em negra hora te vi e amei, que desconfianças são essas? Que amante é esse, que quem me andas aqui apurando a paciência, e sem quê, nem para quê, descompondo a minha mangerona?/ D. Fuas – Pois quem era aquele que saiu da caixa a dizer-te mil colóquios? / D. Nise – Que sei eu quem era? Salvo fosse… Mas retira-te que aí vem gente”.
E a comédia de costumes segue nesta ambiguidade de posições e confrontações. Em qualquer caso, o que quero agora referir é que o teatro de cordel marca a afirmação profissional da arte do espetáculo, através de centenas de atrizes e atores que ao longo sobretudo da segunda metade do século XVIII “preparam” a profissionalização e a formação académica que em 1836 Garrett e Paços Manoel consagram na reforma do teatro português. E alguns desses autores ainda hoje merecem destaque.
Faço aqui uma evocação de Nicolau Luis da Silva, o qual, ao longo da segunda metade do século XVIII, fez representar sobretudo no Teatro do bairro Alto, centenas de traduções e adaptações, mas, ao que se saiba hoje, apenas uma peça original sua, “OS Marido Peraltas e as Mulheres Sagazes”. Inocêncio F. da Silva transcreve, no Dicionário Bibliográfico Português”, uma descrição contemporânea de Nicolau Luis:
“Morava no fim da rua da Rosa, toucado com uma cabeleira de grande rabicho, que ninguém viu na rua senão embuçado em capote de baetão de toda a roda, notável pelo desalinho e desmazelo do seu vestuário, trazendo consigo um grande cão de água, que o acompanhava sempre, e sorvendo repetidas pitadas de simone, com toda a placidez e majestade catedrática”… E quem eram os atores que representavam estas peças? Alguns nomes ficaram para a História: António José de Penha, Francisca Eugénia, Vitorino José Leite, Joana Inácio da Piedade, e tantos mais.
Garrett ainda apanhou esta geração: mas a ele se deve, como veremos a seguir, a “modernização romântica” de atores, encenadores e salas, de peças, dramas e comédias.
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 24.12.14 neste blogue.