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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


LEMBRANÇA DO BLOC-NOTES…
por Camilo Martins de Oliveira


"Cumpridas as exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, eis-me em Bordéus, donde seguirei para Paris. Já que por cá passei, aproveito para dar um salto às "landes" e ver "en su sitio" o François (Mauriac). Independentissimamente bravo, quase anarca no exercício da inteligência, simultaneamente cheio e a esvaziar-se da revolta contra si e a sua condição, enorme na sua sinceridade reprimida, maior ainda nesse modo sublime do amor dos outros que é o de não mentir a ninguém. Não falámos de literatura, nem sequer do drama íntimo que é a vivência da fé pela consciência alerta da condição humana. Falámos de Pierre Mendès-France e de um jovem tecnocrata cristão, vindo da JOC e do movimento "La Vie Nouvelle", discípulo político do republicano laico que Mendès é: Jacques Delors. A admiração de Mauriac por Mendès-France é patente. Lembras-te do que ele proclamou depois da sua derrota política em 1958? "O nosso Pierre Mendès-France não precisa da tribuna parlamentar para nos dizer a verdade: esse nobre destino continua. Saúdo-o aqui com admiração, afeto e respeito". O republicano laico, descendente de judeus portugueses, aliás cristãos novos já miscigenados de cristãos velhos, contou, desde junho de 1954, com o apoio caloroso do Nobel da Literatura, filho fiel da burguesia católica das "landes", discípulo de Barrès e do catolicismo social: "Desejo apaixonadamente que Pierre Mendès-France reponha este velho país a flutuar. É preciso que este governo dure o tempo necessário à salvação da nação. Trazemos debaixo de olho aqueles que juraram a sua perdição...". Escolhido pelo presidente René Coty para substituir, em Matignon, o primeiro-ministro Laniel, cujo governo caíra um mês depois do desastre de Dien Bien Phu, Mendès vai procurar desenvolver um socialismo humanista, com uma política financeira de inspiração keynesiana, ainda que com algumas correções, aliás já expostas no seu "La science économique et l´action". A esse respeito, Jacques Delors comentaria mais tarde: "Nunca devemos esquecer que ele não era simplesmente um economista, nem simplesmente um homem cheio de ideal, nem simplesmente um homem preocupado com a eficácia, mas esses três ao mesmo tempo..." A experiência foi-se abortando com o clima político da 4ª República, e terminou com o regresso vitorioso de De Gaulle em 1958. Curiosamente, o François mostrou-me esta tarde o que escrevera no Figaro Littéraire de 29 de dezembro de 1966: "Digo a esses amigos de Pierre Mendès-France (PMF): o que sempre pensei e continuo a pensar é que a conjunção de PMF e de De Gaulle teria sido a coisa mais feliz que poderia ter acontecido à nação. A impossibilidade disso está inscrita na própria natureza de PMF, nessa inflexibilidade que faz a grandeza dele, mas que também fez o seu destino e o condenou a não servir - a não ser por uma ação toda espiritual. Contudo, PMF está muito mais próximo de De Gaulle, serei até tentado a dizer que infinitamente mais próximo, do que de Mitterrand, de Guy Mollet ou dos chefes comunistas. De Gaulle e Mendès, cada um de seu lado, fizeram da França uma ideia que, no fundo, e seja o que for que disto pensem, é a mesma: uma França independente no século e nos céus, e senhora de independência e liberdade para todos os povos..." Facto é que "wishfull thinking" não leva a nada: em democracia, os líderes carismáticos são meteoros, porque ela, como a praticamos, é uma forma revista do feudalismo antigo, no que tinha de mais pernicioso. Ao sentido moral, esse que aponta para o bem da pátria e conduz à procura do interesse geral, sobretudo dos mais necessitados, sobrepõe-se a ganância dos grupos de interesses e das suas forças organizadas em partidos, sindicatos, clubes e manifestações... O mal que deitará a perder a nossa civilização é essa miopia do ganho material. Não percebermos que o apregoado crescimento do PIB não é desenvolvimento económico e social, pois este se deverá construir conscientemente pela participação de todos no esforço comum e nos rendimentos provenientes. As nossas democracias sociais são um adiamento da consciência moral, uma simbiose entre a ganância avara do capital e a ganância reivindicativa e invejosa do sindicalismo. Ora isso não é um projeto social. Não é um humanismo, pois este só se orienta por valores que sejam objetivos definidos pela consciência de que o homem é, necessariamente, um ser em relação com os outros. Não sei se as doutrinas que por aí se ensinam e divulgam podem servir. Penso que não poderemos prescindir do sentido do outro e do diálogo. Admiro a pugnacidade do François, e a sinceridade da sua fé cristã. O desassombro com que desafia o que, para um burguês instalado, são bens já adquiridos. Mas parece-me ouvi-lo dizer, parafraseando Flaubert: "Thérèse Desqueyroux c´est moi"... A noite está calma e tão quieta que só mexe o tremeluzir das estrelas. Longe estão, e nós tão longe delas. Recordo, contigo no coração, aqueles serões tropicais, no imenso terraço aberto ao infinito percetível dos céus da casa da tua irmã, em que o nosso Alberto, acompanhado pelas guitarras do Nobre e do Videira - que com ele tinham sido rapazes idealistas em Coimbra - cantava: "Ó estrelinha do norte, espera por mim, que eu já vou! Alumia o meu caminho, já que o luar me enganou!" Lembras-te? Porque será que, com o avançar da idade, a mesma estrela nos chama? Mas vemo-la melhor, talvez, cerrando mansamente os olhos..." Trinta anos depois da morte de Camilo Maria, li numa biografia francesa de Pierre Mendès-France, que o genealogista português Bivar Guerra situara a origem do apelido no doutor Luís Mendes da Franca, filho de Pedro Mendes Ribeiro e de Isabel da Franca. Foi o Dr. Luís oficial do Santo Ofício... E teria sido Francisco, seu filho natural e ourives de ofício que, ao casar-se, no sec. XVI, com Antónia Freire, de reconhecida origem marrana, determinou o exílio de sua família e, em França, o passo de Mendes da Franca para Mendès-France. Si non e vero e bene trovato... Mas a consciência da sua condição de judeu, meio século depois de Dreyfus, e em tempo de holocausto, nunca largou Pierre Mendès-France.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 03.05.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (II) 


1. Como alguns se lembrarão, estava perto do Taj Mahal quando, tarde e a más horas, soube da morte de João Paulo I, por tão pouco tempo meu quinto Papa.


De lá segui para as Pirâmides e para o Egipto, mas não foi entre faraós que soube do Papa posto em vez do Papa morto. Já tinha regressado à pátria, findo o meu mês de orientes, quando apareceu fumo branco por Karol Wojtyla, que, como o seu efémero predecessor, escolheu dois nomes e os mesmos dois nomes: João Paulo II. Tinha 58 anos e era o mais novo Papa desde 1846 e desde a eleição de Pio IX com 54 anos. Esse Pio IX que morrera cem anos antes da eleição de João Paulo II (a 7 de fevereiro de 1878) e fora o pontífice de mais longo reinado na história da Igreja (32 anos), se não contar a incerta duração do papado de S. Pedro. João Paulo II, que reinaria 27 anos, seguiu-os de perto.


Mas, em 1978, a grande novidade não foi a "tenra" idade do novo Papa, mas a sua nacionalidade. Pela primeira vez, desde 1523, ou seja, durante 455 anos, o Papa não era italiano e pela primeira vez, em quase dois mil anos de Igreja, o Papa era polaco. Com Wojtyla acabou uma era, que, em categorias adaptadas da história geral para a história da Igreja por Cristiani, no monumental Tu Es Petrus, correspondem à Idade Moderna (1447-1870) e à Idade Contemporânea (1870-1978). Desde o fim do Cisma do Ocidente até ao "ano dos três papas", dos 55 pontífices que se sentaram no trono de S. Pedro durante cerca de 540 anos, apenas dois não foram italianos: o aragonês Calisto III (Papa de 1455 a 1458, que, apesar das suas origens, gerou os italianíssimos Borgia) e o holandês Adriano VI, o tal que pontificou entre 1522 e 1523 e que tanto contrastou com os Medici que o precederam e lhe sucederam (Leão X e Clemente VII) em desgosto pelas artes e pelos ofícios. Mas isso já são outras conversas, pois que nenhum deles foi Papa das minhas vidas, embora nos renascentistas me tenha ficado muito da melhor parte delas. Das outras e desta.


2. "O ano dos três papas" (Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II) foi expressão corrente para o ano de 1978. Às vezes, penso em como teria vivido esse ano um amadíssimo amigo meu, poeta de 35 Poemas, que partiu deste mundo e destes papas em 1968, dez anos antes do ano trino. Digo-o porque, em 1963, quando morreu João XXIII, ele viveu premonitoriamente a febre papal que em 78 já subira uns pontinhos e em 2005 entrou no delírio a que se assistiu. Foi ele o primeiro a inventar a expressão "totopapa", enviando-me, e a outros amigos comuns, antes e durante o conclave, listas de probabilidades com os nomes que os eleitos escolheriam, caso viessem a ser os contemplados.


Dentre os inúmeros cartões retangulares que me mandou, escritos a tinta encarnada, copiei estes: Probabilidades (Flos Florum)


1 - Siri (Pio XIII, de que Deus nos guarde)
2 - Montini (Pio XIII, João XXIV ou Leão XIV que: vá lá com Deus)
3 - Lercaro (João XXIV - Deus queira)
4 - Confalonieri (João XXIV, Bento XVI ou Clemente XV, que talvez Deus queira)
Hipóteses desvairadas más
1 - Ottaviani (Alexandre IX, Calisto IV, Anastácio V ou Júlio IV)
2 - Larraona (Anastácio V)
3 - Marella (Bonifácio X)
4 - Cerejeira (Urbano IX)


Na altura, todos nos ríamos com estes totopapas, que ele corrigia, emendava e voltava a enviar. Mas a realidade excede sempre a ficção: tanto na morte de João Paulo II, como na eleição de Bento XVI, televisões e jornais ultrapassaram em excentricidade e delírio o meu amigo das "profundidades intactas". Muitos dos cardeais já nem sei quem são, como esse Lercaro que, pelos vistos, era o favorito dele. Não previu nenhum Paulo VI, mas previu um Bento XVI, que seria - se tivesse sido - o cardeal Confalonieri, "que talvez Deus queira".


Em 1963, no interior de círculos muito restritos e - vá lá - muito especiais, vivia-se assim a eleição de um papa, guardando segredo para os não iniciados que já suspeitavam da nossa sanidade mental, mesmo sem saberem destes desvarios. Quem nos diria - quem me diria? - que 42 anos depois, milhões viveriam momentos desses em delírio ainda maior, imaginando papas hindus, argentinos, chineses e até (como sempre) portugueses?


Tudo - tamanha mudança! - talvez se deva a esse Papa polaco que, entre 1978 e 2005, fez mais pelo pope system do que todos os seus antecessores reunidos. E volto a 1978.


3. Estou a começar a dizer mal de João Paulo II, ou, como alguns já lhe chamam, de S. João Paulo Magnus? Não estou. Quando foi do Jubileu dele, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo em que disse o que pensava e penso dele, exaltando sobretudo o homem da fé.


Escrevi então e mantenho: "Não é o "Papa da minha vida", no sentido em que o foram, dos que conheci, João XXIII ou João Paulo I. Não é o Papa que me dê mais esperança ou que eu ame mais do que os outros. Mas tudo o que me separa dele de nada conta quando o vejo - sobretudo nos últimos anos - dar um tamanho testemunho que só consigo explicar pelo inexplicável mistério da Fé." Acima citei a idade com que foi entronizado. Mas parecia muito mais novo, respirando saúde física por todos os poros, o que muitos atribuíam a um passado de desportista. Três anos depois - apenas três anos dessa imagem pletórica - o atentado da Praça de São Pedro fez esse Papa de 60 anos envelhecer 20 em poucos meses. De então para cá, a pujança original quase que se esqueceu e o "atleta" deu lugar a um velhinho, atacado por mil doenças, até, no fim, mal se conseguir mexer ou falar.


Alguns lhe censuraram - velada ou abertamente - o lugar que deu, na sua própria biografia, ao dia 13 de maio de 1981, em que quase se realizou a sarcástica profecia de Buñuel no filme La Voie Lactée. Mas não é muito fácil compreender como é que se deu tal mudança num homem. Não é a questão da sobrevivência, pois que outros têm recuperado de coisas ainda piores. É a consciência, não proclamada, mas crescentemente interiorizada, de que a sua salvação teve e tem um sentido e que esse sentido só podia ser desvelado com a crescente transfiguração do corpo quebrado num corpo oferecido. Muito e muito se há-de escrever - pressinto-o - sobre os vários sentidos a dar a essa maceração. Por um lado, há a "papolatria" ou os riscos dela, tão temida nos anos 60 e tão escancaradamente recuperada nesta viragem de séculos. Mas reduzir à papolatria o calvário de João Paulo II é perder a dimensão fundamental dele. Falou-se do seu imenso carisma, do seu imenso magnetismo. Que querem dizer essas palavras? Quem saiba que explique e João Paulo II nunca explicou. Acreditou, não só com toda a sua alma (expressão já de si incompreensível), mas com todo o seu corpo e, como só este lhe podia ser imagem, fez dele o grande plano para um mistério insondável. Por agora - e por mais algum tempo - se falará ainda e muito do Papa que venceu o comunismo, sob o qual viveu desde os 25 anos. Mas não faltam nos textos papais - antes e depois da queda do Muro - advertências ainda mais graves contra a sociedade permissiva e libertária que era, aparentemente, a grande inimiga dos chamados "socialismos reais". Qual o significado da sua presença junto a Fidel em Cuba, tão estranho, por parte de um, como por parte de outro? Qual o sentido das suas mil viagens? Qual o sentido dos "estádios cheios e das igrejas vazias"? Qual o sentido do seu altivo moralismo? Porque o aplaudiam milhões de jovens que depois não fundavam famílias de 14 filhos, como nos tempos de Maria Teresa da Áustria, ou nem sequer se precipitavam para os ter, como nos tempos da geração dele? Quanto mais medito na ação deste Papa, mais ela me parece paradoxal, mas de um paradoxo que não desafia a razão, antes a busca. Por isso, grande parte do mistério de João Paulo II só será percebido com a passagem do tempo e com os pontificados que se seguirem ao deste Papa tão tirolês quanto carpático ou, se se preferir, tão terra a terra, como céu a céu.


4. Sabe-se como foi recebida a eleição de Bento XVI, conhecem-se os juízos que já se fizeram. Mas não se tem reparado muito (ou então sou eu que tenho andado muito distraído) que ao turbilhão de abril (velório e exéquias de João Paulo II, conclave, etc.) se seguiu um estranho e agudo silêncio. Ouve-se Bach no Vaticano (talvez pela primeira vez).


Perguntam-me o que penso. Pensei mal, quando pensei depressa e me vieram dizer que Ratzinger era o novo Papa. Agora espero para pensar. Bento XVI já não é Ratzinger. É o meu sétimo Papa. Seja minha a solidão deste silêncio, como escreveu o poeta dos 35 Poemas, e dos trinta e cinco cardeais.


por João Bénard da Costa

20 de maio de 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


ONDE SE FALA DE PIERRE DE BRANTÔME
por Camilo Martins de Oliveira 

"Regressado à Europa, lá fui às exéquias da tia Ana Adelaide Eugénia, que teimou em esconder os seus últimos anos no Périgord, onde também decidiu que aí deveria ser dado à terra o seu corpo mortal. Casta, penso eu, terá morrido. Mas ficará por elucidar a razão do tão forte desejo de terminar seus dias naquele casarão às portas de Saint Crépin, bem vizinho de Brantôme que deu nome ao autor de tantos discursos sobre as damas, incluindo os "Discours sur l’amour des dames vieilles et come aucunes l’ayment autant que les jeunes"... Passei pelo túmulo de Pierre de Bourdeilles, Sieur de Brantôme, que pouco terá combatido em armas, mas muito deixou escrito, um tal como o seu coevo e quase vizinho Michel de Montaigne. Traduzo-te, Princesa tão augusta do meu coração, umas linhas do epitáfio que lhe deixou uma sobrinha: "Fez a sua primeira aprendizagem das armas sob esse grande Capitão Francisco de Lorena, Duque de Guyze (…) e em nada degenerou da virtude dos seus antepassados, mas se achou em muitas guerras e combates arriscados tanto em França como em países estrangeiros: mesmo o Rei de Portugal Dom Sebastião, honrando o seu valor (…) o fez cavaleiro da sua Ordem chamada o Hábito de Christo...". Foi este Brantôme um notável contador de memórias, ao ponto de me ser difícil, lendo-as, duvidar da sua veracidade. Fidalgo da câmara dos reis Carlos IX e Henrique III de França, foi quando o último dos Valois lhe negou provimento no cargo régio que ocupava, no Périgord, depois da morte de seu irmão mais velho, para o atribuir ao seu sobrinho filho deste, que Pierre de Bourdeilles atira ao Sena a simbólica chave de ouro de camareiro do rei, e se retira para as suas terras, onde passará trinta anos a escrever. Os vários livros que constituem o seu "Recueil des Dames", vão desde crónicas da vida e obras de rainhas de França, Navarra e Espanha, até memórias e contos exemplares de senhoras de todas as idades, viúvas, casadas e solteiras, a maioria das quais se moveram no tempo e na atmosfera erótica e frívola da corte dos Valois. Brantôme é um observador amoral e impenitente, condescendente consigo e com todas elas. Essa nossa juventude hodierna  -  que tanto se gaba e compraz na "sua" revolução sexual dos anos 60  -  não faz ideia de que, nessa viragem do século XVI para o XVII, um fidalgo francês escrevia, com agrado geral e larga aceitação, sobre: "les dames qui font l´amour et leurs maris cocus"; "le sujet qui compte plus en amour, ou le toucher, ou la vue, ou la parole; la beauté de la belle jambe et la vertu qu´elle a; les femmes mariées, les veuves et les filles, à savoir desquelles les unes sont plus chaudes à l´amour que les autres"; "qu´il ne faut jamais parler mal des dames et la conséquence qui en vient"; " que les belles et honnêtes dames aiment les vaillants hommes, et les braves hommes aiment les dames courageuses"... Saboreie-se o conto do que lhe disse, na corte de Espanha, uma senhora idosa, "muito honesta e bela", sobre o amor carnal na terceira idade: "Quanto à picada da carne, não deve pensar-se que só pela morte dela nos curamos, mesmo que pareça que à idade ela repugne. Até porque toda a mulher bela se ama extremamente, e amando-se não o faz por ela mas para outrem; e em nada se parece com Narciso que, por tolo que era, amado de si e de si mesmo enamorado, aborrecia todos os demais amores".  E o nosso Brantôme comenta o dito, num parágrafo que serviria de guião a um ousado filme do nosso tempo: "A mulher bela não é de modo algum assim (narcísica) .Tal como ouvi contar, de uma belíssima Dama que, amando-se e agradando-se muito, muitas vezes só e consigo, no seu leito se punha toda nua, e em todas as posturas se contemplava, se admirava e mirava lascivamente, maldizendo-se por se ter votado a um só que não era digno de corpo tão belo, entendendo que seu marido em nada era igual a ela, e que finalmente se acendeu tanto com tais contemplações e visões, que disse adeus à sua castidade e ao seu voto matrimonial, e fez amor e servidor novo. " Vivia-se numa época em que, pelo contrário, o Grão-Duque de Florença, ao casar-se com Cristina de Lorena, manifestou o seu espanto por tê-la achado virgem! Mas se Pierre de Bourdeilles condescendia com os apetites naturais da carne feminina, também contraditoriamente sentia com veneradora devoção os exemplos opostos. Sintomático é este passo em que nos fala da infanta Dona Maria de Portugal que, diz-me o Alberto, o grande Camões tanto admirou e, talvez, desesperadamente tivesse amado ("Num tão alto lugar de tanto preço,/ este meu pensamento posto vejo,/ que desfalece nele inda o desejo,/ vendo quanto por mim o desmereço."): "Vi a Infanta de Portugal... ...morreu menina e virgem aos sessenta anos de idade ou mais. Não por falta de grandeza porque era grande em tudo; nem por falta de bens... ...nem por falta de dons da natureza, porque a vi em Lisboa, com quarenta e cinco anos de idade, uma muito bela e agradável menina, de boa graça e belo aspeto, doce agradável, e que bem merecia um marido a ela igual em tudo. Cortez mesmo para connosco, Franceses. Posso dizê-lo por ter falado com ela muitas vezes e em privado. O falecido Senhor grande Prior de Lorena... ...quando esteve, por uns dias, em Lisboa, visitou-a e viu-a todos os dias. Ela recebeu-o muito cortesmente e teve gosto na sua companhia e deu-lhe muitos belos presentes... ...que ele amava por amor da Dama, da qual se tinha enamorado. E creio que ela não o amava menos, e de boa vontade teria por ele rompido o seu nó virginal; mas só pelo casamento,entenda-se,porque era uma muito sage e virtuosa Princesa". Assim o Senhor de Brantôme - que sempre se inclinaria para o gabanço das proezas do "seu" Francisco de Lorena - aqui o deu por derrotado pela virtude de uma Senhora... Tal como eu, Camilo Maria, venero a tua e talvez lhe obedeça.". E assim acaba esta carta em duas partes, pela qual o Marquês de Sarolea, antes do Périgord, me levou ao "Chez Pierre" e ao cemitério de Aoyma ali defronte. A onde, anos mais tarde, tantas vezes fui acolhido, mais do que como cliente, como amigo. Para deleite do meu paladar irreverente e rebuscado, o Pierre Prigent cozinhava bochechas de atum, pés de porco e molejo de vitela. Em Tokyo! Retribuía-lhe conforme podia, levando lá guitarristas e fadistas de passagem para jantares de epopeia, que mantinham o restaurante  - cheio de japoneses conviventes e deliciados com o nosso lusitano exotismo - aberto até de madrugada!


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 26.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS MEUS SETE PAPAS (I)


1. Agora que isto acalmou um bom bocado, quer em matéria de papas quer em matéria de vigílias, posso dar-me ao luxo de desfiar, nos meus romanizados rosários, contas dos papas da minha vida e de os relembrar um a um, entre arminhos e solidéus, sédias gestatórias ou detidas. Setenta anos, sete papas. Muitos anos? Não há dúvida. Muitos papas? Assim agora não me parece ou me aparece, mas a uma média de dez anos por papa, pode ser que as aparências iludam. Embora eu tenha vivido o terceiro pontificado mais longo de que a Igreja conserva memória (João Paulo II) e um dos pontificados mais curtos dos últimos sete séculos (João Paulo I).


2. A bem dizer, o meu primeiro Papa Papa de mim não foi, embora o dr. Freud, que morreu sete meses e dezasseis dias depois dele, me tenha querido ensinar, sem grande resultado, que foi o Papa de que o meu inconsciente mais ouviu falar. Refiro-me a Pio XI, o Papa Ratti, que reinava em Roma quando eu nasci e morreu, três dias depois de eu fazer quatro anos, a 10 de fevereiro de 1939, aos 81 anos. Aos quatro anos, alguém se lembra de papas? Acreditem-me ou não, se não me lembro dele, lembro-me muito bem (vá-se lá saber porquê) do dia da morte dele. Era à hora de almoço. Eu estava em casa de uns tios postiços que moravam no mesmo prédio do que eu, no segundo andar que ficava por baixo da casa da minha avó. Na casa de jantar, havia uma telefonia, dessas com ponteiro, olho luminoso verde e lãzinha branca a aconchegar os baixos. E foi da dita, ou na dita, que deram a notícia da morte do Papa. Não devo ter prestado atenção, pois o que recordo é a voz acaciana do meu velho tio (com idade para ser meu avô) a dizer-me solenemente: "Morreu o Santo Padre." Talvez tenha ficado confundido com a ideia de os santos morrerem. Talvez não associasse padres a santos, de tanto ouvir dizer que os padres ralhavam. Talvez outra razão qualquer. Mas a morte de Pio XI chegou-me em direto. Mais tarde, já grandinho ou já velhote, o Papa que queria que o futuro o conhecesse como "o Papa da Ação Católica", o papa da Mit Brennender Sorge e da Non Abbiamo Bisogno, o Papa que "tarde, demasiado tarde na vida", descobriu que as ameaças à Igreja não vinham só de um lado, e que as do lado oposto não eram menos fortes, esse Papa, Pio XI, dizia eu, olhei-o sempre com particular afeto. A paz de Cristo no Reino de Cristo. Seis meses depois da morte dele, findo um pontificado de dezassete anos (1922-1939) começou a guerra do diabo.


3. Não me lembro de ninguém me ter dito que a 2 de março desse mesmo ano, ao fim de três escrutínios e no primeiro dia de conclave (coisa que há trezentos anos não acontecia), o cardeal Pocelli, que nesse mesmo dia completava 63 anos, fora eleito e tomara o nome de Pio XII. As minhas primeiras imagens dele, ascético e severo, remontam aos dias em que Roma deixou de ser cidade aberta e houve igrejas bombardeadas. Pio XII deixou então o Vaticano para consolar os feridos e chorar os mortos. Quando a guerra acabou, gregos e troianos louvaram o Pastor Angelicus e a sua ação em favor da paz. Em 1950, ex cathedra, num Ano Santo a que só não fui pela maldição de uma bruxa, proclamou o Dogma da Assunção de Maria e, aos 15 anos, extasiei-me, mais do que me interroguei, com essa solene afirmação da infalibilidade papal, a primeira (e a única) desde os tempos de Pio IX.
Depois, ele foi o Papa dos meus anos de brasa, os anos da Ação Católica. Formei-me com a Divino Afflante Spiritu, que relançou os estudos bíblicos, ou com a Mediator Dei sobre a renovação da liturgia. Morreu, diz-se, ouvindo a Sétima Sinfonia de Beethoven, que amava mais do que as outras e Jorge de Sena dedicou-lhe um belíssimo poema na Fidelidade: "Como de Vós, meu Deus, me fio em tudo / mesmo no mal que consentis que eu faça / por ser-Vos indiferente, ou não ser mal / ou ser convosco um bem que eu não conheço." Foi a 9 de outubro de 1958 e soube da notícia no mesmo dia em que soube que ia ser pai pela primeira vez. Para mim, morrera mais do que o meu primeiro Papa. Morrera o meu único Papa. O Papa por antonomásia.


4. Foi assim com algum escândalo (obviamente, o escândalo admissível num crente então fiel e obediente à Igreja) que, a 28 de outubro, soube que fora eleito Papa o cardeal Roncalli, quase a completar 77 anos, ou seja, muito mais perto das idades com que morreram Pio XI (81) e Pio XII (82) do que das idades com que tinham sido eleitos, em papados sensivelmente com a mesma duração. Um amigo meu deu voz ao que eu sentia: "Os cardeais terão mesmo ouvido o Espírito Santo ao escolherem um Papa de transição?" (era a explicação mais correta para a surpresa da escolha: após dois pontificados longos e fortes, um pontificado breve que servisse para pensar no futuro). A primeira surpresa veio com a escolha do nome de João XXIII, recuperado a um anti-Papa de 1410 a 1415 e que ninguém usara mais desde o século XV. Depois vieram todas, todas as surpresas desse papado inacreditável: a convocação do Concílio, a inauguração do Concílio, a Mater et Magistra a Pacem in Terris. O bom Papa João. Repararam bem quão estranho é chamar bom a um Papa? Mas foi com esse cognome que ele ficou, tão amado pelos não crentes como pelos crentes ou mais ainda pelos primeiros do que por muitos segundos. Vivi, sob ele, os mais exultantes anos do meu catolicismo. Não chegaram a ser cinco. João XXIII morreu a 3 de junho de 1963, aos 81 anos.


5. Já quando Pio XII morreu, eles haviam sido os mais "papabile". Refiro-me aos cardeais Alfredo Ottaviani e Giovanni Montini. O primeiro era chefe do Santo Ofício e acusavam-no de reacionarismo. O segundo, arcebispo de Milão, com fama de homem aberto ao novo e ao moderno. "Cantemos ao Senhor um Cântico novo." Os dois voltaram a ser falados em 1963. O que eu rezei para um Papa chamado Montini! E ele chegou, sob o nome de Paulo VI, a 21 de junho, com 65 anos. Foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu tinha apenas 28 anos! E o nome do Papa era o nome do Apóstolo das Gentes.
Poucos meses depois, já se falava de "fundo Roncalli, forma Pacelli", contrastando a rigidez do novo Papa com a bonomia do seu antecessor. Mas o Concílio continuava, começavam as viagens papais (a histórica peregrinação à Terra Santa em janeiro de 1964) e foi a continuidade muito mais que a rutura que eu li na encíclica Ecclesiam Suam de agosto de 1964. Lembro-me que o meu elogio ao texto papal, nas páginas de O Tempo e o Modo, me valeu uma resposta zangada de um amigo ex-católico, então muito mais à esquerda do que eu. Ele, que, agora muito mais à direita, manda para braços anglicanos todos os "protestantes" (mesmo os mais silenciosos) à eleição de Ratzinger, acusava-me então de poetizar e lembrava-me que ao contrário do que dizia o alemão Novalis (compatriota de Ratzinger) o mais poético podia não ser o mais verdadeiro.
Paulo VI na ONU, em 1965. Mas, bruscamente, fez há muito pouco tempo trinta e oito anos, Paulo VI em Fátima, recebido por Salazar. Foi a única vez que vi um Papa. Foi o único Papa que eu vi. Não em Fátima, mas junto ao Mosteiro da Batalha, quando de Fátima ele regressava em carro aberto, olhos imensamente azuis, como nunca até esse dia eu os supusera. Por esses anos, por esses tempos, mudou muito a imagem pretérita de Pio XII, quando os silêncios do Vaticano perante a Alemanha nazi começaram a ser muito falados. Pio XII devia ter falado? Paulo VI devia ter recusado vir a Portugal? Essa questão - ou essas questões - ainda hoje as não resolvi dentro de mim. Se os olharmos como chefes institucionais (e a Igreja é uma instituição), eles defenderam-na como a deviam ter defendido, sem atrevimentos inauditos e sem riscos temerários para a unidade que lhes cabia preservar. Mas se os olharmos como pastores do povo de Deus (e a Igreja é o povo de Deus) por que temeram se o próprio Cristo garantiu a Pedro que as portas do Inferno nunca prevaleceriam contra as da Igreja? E foi no tempo do Papa que eu mais "elegi" que eu cheguei à conclusão que o sumo pontífice não podia ser um modernizador mas um contemporizador, não podia ser uma Antígona mas um Creonte (para recuperar uma imagem antiga). Podia escandalizar intelectuais impacientes como eu, mas não mansos ou feros pobres de espírito. Em 68, com a encíclica Humanae Vitae, Paulo VI enfrentou de peito aberto a revolução sexual nesse ano triunfante. Católicos insurgiram-se por todo o mundo, numa contestação inédita. Quem mudará? Eu, por certo, mudei, nesses últimos dez anos do pontificado de Paulo VI. Octogesima Adveniens? Mas 80 anos depois da Rerum Novarum, onde estavam as coisas novas? Onde estão hoje, em que a Humanae Vitae é menos contestada do que os seus contestatários de 68? Talvez por isso esse Papa seja, na minha memória, o mais amargurado e o mais torturado dos papas da minha vida. Por que é que pensar nele me faz pensar na morte?


6. Estava em casa diante da televisão, quando, em agosto de 1978, pouco depois da morte de Paulo VI, aos 81 anos e com quinze de pontificado, nos foi anunciado novo magnum gaudium. Contra todas as previsões, apareceu-me como Papa João Paulo I, Albino Luciani, patriarca de Veneza (como João XXIII) aos 65 anos. Nunca me esquecerei da alegria - infantil ou angélica - com que surgiu à varanda e com que deu a primeira bênção. Foi o primeiro Papa a usar dois nomes, em dupla homenagem aos seus mais imediatos antecessores. À época escrevia crónicas no Diário de Notícias. E o meu texto sobre a eleição de João Paulo I foi tão delirante que Mário Mesquita (à época diretor do jornal) se espantou com a minha inabalável fé (fé de um ex-católico) no Espírito Santo, que escolhera para Papa o papa do Pinocchio. Depois fui até aos Japões e pensei mais em budistas, à Sylvia Sidney, do que em papas. Já no regresso, no aeroporto de Nova Deli, vindo do Taj-Mahal, folheei um jornal. Numa página interior, em corpo pequeno, falava-se da morte do Papa. "Meu Deus" - pensei eu - "como este jornal é antigo, o Papa já morreu há quase dois meses." Quando li a notícia, percebi. Quem morrera a 28 de setembro, depois de um pontificado de 34 dias, fora esse mesmo João Paulo I, de que eu esperava nem sei bem o quê, mas sei quanto. Nunca acreditei na tese absurda do assassinato. Mas acredito que Deus, às vezes, atravessa muito depressa a vida dos homens. (continua)


por João Bénard da Costa

13 de maio de 2005 in Público

ANTOLOGIA

  


NO IMPERIAL EM TOKYO…
por Camilo Martins de Oliveira


"Estou em Tokyo, apenas de passagem para o aeroporto onde embarcarei a caminho de Londres. Por Anchorage, no Alaska, pela rota polar que rodeia o interdito espaço aéreo soviético. De Londres até Paris e ao Périgord, logo verei. Por enquanto, interrompo com pena esta estadia no Japão, pelas razões de família que já conhecerás. E esta carta já levará selo francês: ir-te-ei escrevendo... Alojo-me aqui no Imperial, não tanto pela proximidade do comércio e animação de Ginza, nem do palácio imperial e daquela parada exterior em que Hirohito passava tropas em revista. Mas sensível à memória do antigo Imperial Hotel que o Frank Lloyd Wright desenhou e aqui se construiu... Ainda lhe visitei os vestígios - que respiram ares do seu génio - na Meijimura, lá para as bandas de Nagoya. Outro tempo, outro ambiente, uma lembrança... e aqueles tijolos compactos, como os da estação central de Tokyo, que tanto me dizem da nossa antiga Flandres, a que hoje chamam Bélgica (como nos tempos dos nossos Duques de Borgonha) e Países Baixos... O Imperial do "Franck" (à americana) tinha a solidez do barro e a sobriedade clara dos espaços da nossa memória. Sentirias, minha Princesa de mim, o que (abstratamente?) penso. Fui jantar "Chez Pierre", ali mesmo defronte do cemitério de Aoyama. Gosto do lugar, da comida e do "chef": Pierre Prigent, bretão e padeiro de formação. Veio para o Japão em 1970, para o pavilhão francês na Exposição Universal de Osaka, e por cá ficou. Creio que se aperfeiçoou em pastelaria com o "grande" André Lecomte e assim se famliarizou com os segredos culinários da gastronomia francesa. Tal como o seu mestre - e um colega, o André Pachon, este vindo de Carcassonne - casou-se com uma japonesa e lançou-se por conta própria no negócio de restauração francesa no Império do Sol Nascente. Diferenciando, todavia a sua proposta: procurou oferecer gastronomia de qualidade, mas caracteristicamente familiar, amiga. Nas minhas estadias em Tokyo, só ali me sinto bem, acompanhado, quando almoço ou janto sozinho. O Pierre "pertence" a uma família da Bretanha (o apelido é raro e torna-os pertinentes) com olimpíadas próprias: de quatro em quatro anos, reúnem-se, algures em França, muitos dos cinco mil portadores do apelido comum, para uma missa (em catedral histórica) e um arraial. É bonito e explica muita coisa. Inclusive esta de um jovem padeiro bretão que atravessa meio mundo, constitui família com uma japonesa, tem os filhos mestiços, bilingues e participantes em verdades antigas de ambos os lados, felizes e lindos, como só a comunhão dos seres humanos pode ser. No seu restaurante, que decorou com madeiras de móveis e portas de carvalho, herdadas de pais e avós da Bretanha - e de cerâmicas tão autenticamente castiças que falam ao universo - o Pierre está atento a tudo, sempre de bata branca, com os seus "discípulos" japoneses a esmerarem-se em cozinhados e no serviço à francesa, com a verdade enternecedora do brio japonês. Há universos assim, em que as fronteiras não são, nem nunca poderão ser, as de quaisquer preconceitos. Mas, se surgirem, serão apenas as da diferença entre o querer ou não querer bem-fazer... Perguntou-me hoje se, na mudança do toldo que lhe protege a varanda do restaurante, deveria mudar ou acrescentar algo ao banal "Chez Pierre". Disse-lhe que o único acrescento verdadeiro e plausível seria, já que estamos em frente de um cemitério com tão promissoras iguarias: "Aux Clés du Paradis..." Poucas vezes terei dito, na vida, coisa tão acertada. O cemitério de Aoyama é um parque frondoso, com alamedas longas de cerejeiras do Japão, das tais que genialmente florescem na Primavera, mas nunca dão fruto... (no caso de um cemitério, até geneticamente se compreenderá). O fruto delas é a flor. E é a alegria das centenas de festejantes das "sakura" (cerejeiras em flor), os "castiços" que ali, anualmente, estendem, sob as árvores, os seus tapetes, e dispõem e saboreiam petiscos sazonais e festivos,"saké" e cerveja. Tal celebração realiza-se pela flor da primavera, pela alegria da vida e por esse segredo que nos habita e se chama esperança. Não necessariamente num cemitério, o mais das vezes, até, noutros lugares. Mas aqui, neste local que é sacramento de repouso eterno, a esperança e a alegria da festa ganham, para o ocidental escatológico que sou, um sentido novo.
Vê tu bem, Princesa de mim, como os outros, por misterioso modo, nos ensinam, tantas vezes, as "nossas" verdades...". Conheci, quase duas décadas depois de Camilo Maria, o inolvidável Pierre Prigent e o seu "Chez". Mais de uma década depois da minha partida do Japão, ainda nos escrevemos todos os anos, e vou sabendo dos casamentos e vocações da prole Prigent nipo-francesa, da filha que prestou serviço na Índia com Teresa de Calcutá e depois se casou e vive católica na muçulmana Malásia, com mais" prigentinhos" que o avô vai acarinhando. Não os verei, mas vejo-os todos os dias. Parafraseando Pascal: o coração tem olhos que a vista desconhece.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 19.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS ANOS DE MÁRIO SOARES


1 -
 Quando, em 1940, restauraram os chamados "Painéis de S. Vicente" (…) alguém observou certas semelhanças entre um dos rostos do hipotético "Painel dos Pescadores" e o semblante do Dr. Oliveira Salazar. Ao que se contava (sobre os Painéis não juro nada), quem reparou não resistiu a mandar dar uma "mãozinha" e pediu ao restaurador que retocasse a figura por forma a tornar a parecença mais sensível. Quando eu era criança e me mostravam os Painéis, o suposto Salazar era uma atração quase idêntica ao suposto Infante D. Henrique. Se a história só tem interesse em termos hagiográficos, como manifestação do culto da personalidade, não deixa de ser verdade que Salazar, paramentado à século XV, não destoaria nos Painéis. Ele bem podia ter figurado - se fosse já nascido- entre os 58 personagens que se apertam em torno da imagem duplicada do santo. Não lhe faltava a "malinconia", a austeridade, a severidade, a solenidade, até a rudeza. Se, um dia, se vierem a identificar, com rigor, os protagonistas e figurantes dos Painéis, não me espantava nada que me viessem dizer que um avoengo do homem de Santa Comba se conta entre eles. Falei de Salazar, por causa da história que contei. Se se pensar em Vasco Gonçalves ou em Cunhal, em Freitas do Amaral ou em Cavaco, também os podemos ver prefigurados nessas tábuas. Um há, contudo, que absolutamente, não descende dos vultos dos Painéis. Esse é aquele que se chama Mário Soares e que, na próxima terça-feira, 7 de dezembro, completa 80 anos. Porque é menos português do que os outros? Muito pelo contrário, poucos, como Mário Soares, serão tão retintamente portugueses e tão inseparáveis do nosso passado e do nosso presente. Mas é de outra família. O Vicente de quem descende não é o tristérrimo santo que nos Painéis é figura central. É o Vicente da Barca e dos Almocreves, do Juiz da Beira e dos Farelos, que passa por fundador do nosso teatro. 


Nos tempos em que andei pelo Convento de Jesus a cursar Histórico-Filosóficas - Mário Soares também por lá andou -, o prof. Delfim Santos, ao explicar-nos as diferenças entre os tipos caracterológicos EAS (Emotivo-Ativo-Secundário), os chamados "apaixonados", e EAP (Emotivo-Ativo-Primário) os chamados "coléricos", costumava dar como exemplo dos primeiros Salazar, e como exemplo dos segundos, Francisco da Cunha Leal, então (era isto em 1955 ou 1956) o vulto mais conhecido da oposição democrática. Para grande escândalo das minhas colegas marxistas, via nessa oposição caracterial parte da razão das suas oposições políticas. Nunca conheci pessoalmente Cunha Leal, mas não tenho qualquer dúvida de que, se Mário Soares, nesses anos, já fosse famoso, Delfim Santos teria tido um bem melhor exemplo de antagonismo visceral, não desfazendo nos viscerais antagonismos ideológicos. 


Para tudo resumir: a melancolia e o pessimismo lusitanos nunca pegaram em Mário Soares. Para quase todos nós, a contrição. Para ele, o júbilo. É dos raros políticos nossos de quem nunca ouvimos o fado do sacrifício, ou o fardo do dever. Fados e fardos não são com ele. Sacrifícios, ainda menos. Lembro-me de uma hora mais amarga (não lhe faltaram) em que eu o lamentei. Respondeu-me rápido: " Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele." E ele soube sempre confundir hábito com habitação. Ou, como escreveu algures Carlos Queiroz: "Só na nossa cama / É que se dorme bem / Só dorme quem ama / a cama que tem."


2 -
 Quando eu "acordei" para a política (maio de 1958, campanha do general Humberto Delgado), Mário Soares, embora já com vasto "curriculum" político para um homem de 33 anos, era ainda, para o "vulgo" em que eu me situava, um nome relativamente desconhecido. Só o vim conhecer pessoalmente em 1962 e em circunstâncias que nada tiveram de político. Eu era, à época, professor eventual do Liceu Camões, e Rui Grácio, que eu tinha substituído no ano anterior no Liceu Francês, escreveu-me a dizer que Mário Soares procurava um professor de História para o Colégio Moderno (então dirigido pelo pai dele) e que lhe sugerira o meu nome.


Fui visitá-lo. Entre os 27 e os 37 anos, dez anos são grande diferença, que senti mais acentuada pela pose "diretorial" com que Soares me recebeu. Ele conhecia bem o meu "curriculum" de "católico progressista" do grupo da Morais e do António Alçada (de quem era muito amigo) e conhecia até, como vim a verificar pelo decorrer da conversa, o meu "curriculum" como professor errático, com três anos de inexperiência.


Mas não procurou "pontes". Fez-me um interrogatório cerrado (meramente pedagógico) que me deixou pouco à vontade. Fiquei com a impressão de que não me ia entender com aquele homem (impressão que foi prevalecente durante coisa de vinte anos) e declinei o convite em que ele não insistiu. Se relato este insignificante episódio, é para salientar dois outros traços da personalidade de Soares que o futuro tão largamente confirmou: a autoridade natural, que três anos depois (em 1965) o catapultou para líder da oposição não comunista e o gosto de jogar ao gato e ao rato, quando lhe aparecia pela frente alguém com mais olhos que barriga. Mal sabia eu "que ce n'était qu'un début". Dois meses depois, quando o grupo fundador de "O Tempo e o Modo" decidiu abrir-se a não católicos, o António Alçada avançou imediatamente com os nomes de Mário Soares e Salgado Zenha, com quem julgava mais fácil estabelecer o famoso "diálogo" crentes-não crentes. Assim nós achámos todos (depois daquela história da "Avé-Maria" que eu tornei célebre) no conselho consultivo da revista, onde também tinham assento, além dos católicos da Morais, os jovens expoentes da crise universitária desse ano: Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, etc. Nessa altura, aprendi, depressa e muito, as clivagens entre esses vários grupos: o que era a ASP (Ação Socialista Portuguesa), como desconfiava dela a geração de 62, em tempos do MAR (Movimento de Ação Revolucionária), e como havia mais medos de um conluio "democrata-cristão" (nós) e "sociais-democratas" (Soares-Zenha) do que de quem guardava domingos e dias santos de guarda. Aprendi a admirar, em Soares, a diplomacia e o otimismo. Quando se tratava de engolir coisas que eu queria fazer passar, como "primado do espiritual" ou "primado da pessoa humana", Soares deixava essas guerras ao quezilento Zenha e distanciava-se ironicamente delas. Muito mais do que as reuniões, até altas horas da noite, interessavam-lhe os convívios ao jantar ou, depois das ditas, de que era o grande animador. O regime estava sempre a acabar. "Não dura até ao fim do ano", foi uma frase que invariavelmente lhe ouvi, entre 1963 e 1974. À 12ª vez acertou. Outras vezes, eram histórias heroicas da oposição, em Nelas ou em Vila Pouca de Aguiar.


"Tínhamos connosco todas as forças vivas da terra." "Oh, dr. Bénard" - interrompia, sarcástico, Salgado Zenha - "o que o dr. Mário Soares chama 'forças vivas' era um farmacêutico e um notário que se borravam de medo de cada vez que ouviam falar da PIDE." Quem não tinha medo da PIDE era ele, apesar das oito ou nove prisões que já contava. Eu já conhecia, de ouvir contar, os míticos silêncios de Cunhal e a célebre história da inofensiva chave, que se recusou a identificar durante doze dias de tortura do sono. "Para perceberem que eu não falo nunca." Soares escolhera a tática inversa. Preso, falava sem cessar, mas nunca ninguém o apanhou numa palavra que não devesse ser dita. Resistiu até a uma acareação com um denunciante, que acabou com este a desdizer-se e a pedir-lhe desculpa por ter inventado uma história que era mais do que verdadeira. Quando o deixavam isolado na cela durante meses, ocupava o tempo a escrever romances. "Quando me mandaram cá para fora, estava tão entretido, que até me apeteceu pedir-lhes que me deixassem acabar o capítulo." Algumas vezes me passou pela cabeça que aquele homem viria a ser Presidente da República? Nunca. E no entanto... E, no entanto, há um instantâneo que eu nunca mais esqueci e me está tão gravado na memória como se fosse ontem. Foi em 1964, no Cinema Europa, ali a Campo de Ourique, por ocasião de um festival de cinema qualquer. Eu estava à porta da sala e, de repente, algo me fez olhar para a entrada.


Mário Soares vinha a entrar, vagarosamente, acompanhado por alguns amigos, vestindo um sobretudo de pelo de camelo. Não se passou nada de especial, a maior parte dos presentes nem sequer o conhecia. Mas eu disse ao Nuno de Bragança: "Parece que chegou o Presidente da República." E no entanto... A despedida que Salazar lhe preparou, em 1968, quando o exilou para São Tomé, com a carga pidesca sobre quem ousara despedir-se dele (foi a única vez que fui sovado pela polícia, com requintes de humilhação) mostrava que o ditador estava menos distraído do que eu e media melhor a perigosidade daquele homem, que regressou, meses depois, quando o outro caiu da cadeira abaixo. Em 1969, andámos às bulhas entre a CEUD a CDE.


Vi-o tão duro a atacar como magnânimo a esquecer. Como é que ele dizia? "Enquanto o regime durar não tenho inimigos à direita; depois, não terei inimigos à esquerda." Ou era ao contrário? Já não me lembro bem, mas tanto faz. Ele mudou sempre, mas foi sempre o mesmo. "Mudar só não mudam os burros", foi outra frase dele. O resto é conhecido. Em 1985, findas muitas desavenças, aceitei, desde a primeira hora, integrar a Comissão de Honra dele e vi-o a passar de candidato dos dez por cento a vencedor, em janeiro de 1986. Aos 61 anos, chegava ao lugar em que eu o vira, por uns segundos, em 1964. E foram dez anos de uma gloriosa presidência, jubilosamente vivida. Da última vez que falei com ele, citou-me um adversário que, fulo com ele, começou por protestar elevada consideração pelo pai da nossa democracia e - continuou Soares - "desfiou aquelas balelas todas". Balelas? Quando um homem chega aos 80 anos e fez o que ele fez, dele e do país, e viveu o que ele viveu, ele e o país, "balelas" só mesmo na boca dele. Parabéns, Mário Soares! Todos, sempre, lhe deveremos tudo. Mesmo os que não o sabem.


por João Bénard da Costa
3 de dezembro 2004, Público

ANTOLOGIA


EFEITO DE UM SAKÉ QUENTE…
por Camilo Martins de Oliveira


Camilo Maria esteve no Japão, em duas estadias relativamente longas, mais de dez anos antes de mim. Apanhou um Japão esforçado, a tentar redimir-se do que simultaneamente sentia como o erro e a culpa da guerra que, ao gosto napoleónico (?), as elites militares da era Showa tinham insistido em chamar "pan-asiática". E, mais ainda, um povo que, por educação e tradição, valorizava a comunhão com a sua natureza e os seus antepassados. E, por esse sentimento profundo de pertença e dívida (que é motivo de dádiva), conseguia encher a consciência de brio, isto é, da vontade de bem fazer - ou fazer bem - o que nos é confiado. Reside, neste fundo solidário da alma, a receita secreta, única, de tantos êxitos do Japão. E, no apagamento possível (?) dessa consciência do dever solidário (que é dádiva), na eventualidade de se trocar a comunhão com o nosso sentido de nós e dos outros (que é a responsabilidade), de se "substituir o valor pelo preço", talvez se venha a desenhar a perda dos frutos, pois não há frutos sem árvore. O Japão da era Meiji (1867-1912) é uma força nova no concerto das nações, sai de dois séculos e meio de relações cortadas com o mundo para um deslumbramento na emulação das potências ocidentais... E consegue, logo em 1905, ser a primeira potência asiática a vencer, em guerra, uma potência europeia (o Império Russo). "Moderniza-se", mas rasga a alma. Entre os que insistem na necessidade de ser tão "desenvolvidos" e fortes como os "maiores" (ocidentais) e proceder em tudo como eles (inclusive em pretensões colonizadoras de outros povos), e os que defendem a preservação da alma e do modo nipónico, está o drama de muitos intelectuais e populares que, intuindo a duração e a demora, procuram um equilíbrio naquele momento impossível. A "modernização" comanda a industrialização e urbanização de territórios e pessoas, o enquadramento social e ético tradicional vai perder-se...  Finalmente, goradas as expectativas "liberais" da era Taisho (1912-1923), chegará a hora fatídica em que forças reunidas num "complexo militaro-industrial" (que os EUA voltariam a reconhecer, no seu próprio caso, depois da tal guerra), poderão desencadear a barbárie que sabemos. Como Camilo Maria observou, numa das suas cartas à Princesa de..., é comovente e perturbante essa contradição (conflito?) da alma japonesa, entre o "giri" e o "ninjo"… A novela de "O médico e o monstro", de Stevenson, é pós-iluminista e romântica, coloca tudo no âmbito dos sentimentos pessoais, como se a consciência fosse um universo individualista. A consciência japonesa, como aqui falamos dela, está inicialmente dividida, não entre o mal e o bem - como nós moralmente os separamos - mas entre mim e a minha circunstância (terá o grande Ortega sonhado com isto? Ele me perdoe!). Por convenção tradicional, isto é, por uma sistematização da educação que, na oscilação das épocas e dos regimes - e imponentemente desde o século XVII - sempre procurou normalizar as gentes, as classes e comportamentos delas, o "giri" foi condicionante. Camilo Maria definiu-o - e bem - como sendo "a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com as normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido"... Para mim, é admirável, mais do que a obrigação do "giri", o milagre da sobrevivência do "ninjo" que tão bem se expressa nas obras dos artífices e artesãos japoneses. Volto a Camilo Maria: "A arte, o "design" japonês, minha Princesa de mim, distinguem-se por uma intuição da assimetria. Na natureza, tudo é como é, e a arte não tem de a violentar. O olhar do artista contempla, não embeleza. Tenta perceber, no gesto com que desenha ou molda, a essência mutante e permanente das coisas. O Verbo que criou o mundo não é lógico. O logos é inicial, criador e sempre amante. A arte é um caminho de conversão. A obra de arte é o fruto da transformação do amador na cousa amada. Nós, os ocidentais, não resistimos à tentação edénica da pressa em explicar tudo. Por isso reduzimos tudo à nossa imagem e semelhança.  Tenho visitado museus e exposições... Mas nada me dá o gosto, sentido na alma, tão livre e enorme, como o de olhar para uma peça rudimentar de cerâmica, bambu ou pano, na tenda de um artesão de Kyoto. Esses homens e mulheres acolhem-me sem pressa nem objetivo, apenas com um sorriso tão discreto que só pode estar na alma, e comigo contemplam o misterioso encontro de mãos humanas com a natureza. E é no reconhecimento desse encontro que reside a alegria e o valor sem preço daquela obra. Só um silêncio comungado pode celebrar esse entendimento íntimo. Assim também te sinto no silêncio infinitamente secreto do coração, quando à noite rezo e dou graças a Deus por sentir tão bem tantas coisas que não sei explicar. Aconchego-me-te neste mistério". Numa folha solta, talvez perdida de um maço de apontamentos sobre o gosto japonês, encontrei este manuscrito do Marquês de Sarolea, onde se fala de um célebre restaurante tradicional de Kyoto, o Waranji-ya, onde também já tive o prazer de um delicado jantar: "Se me pusesse agora a escrever sobre estética japonesa, parece-me que anteporia às minhas considerações um trecho do "Iniei Raisan" (o elogio da sombra) do Junichiro Tanizaki. Ocorreu-me há pouco, enquanto saboreava, em cerâmica do século XVIII, o meu jantar no Waranji-ya. Reza assim: "Quando substituíram a lâmpada elétrica em forma de lanterna por uma candeia ainda mais escura, e pude então observar as travessas e as tijelas à luz vacilante da chama, descobri, nos reflexos das lacas, profundos e espessos como os de um lago, um encanto novo e todo diferente. E soube que se os nossos antepassados tinham descoberto esse unto que tem por nome "laca" e se tinham deixado enfeitiçar pelas cores e o lustro dos utensílios dele revestidos, isso não fora fruto do acaso..." Inspirado, pedi também que, na minha sala, substituíssem a lanterna elétrica pela candeia antiga. E ganhei uma experiência estética nova, até na contemplação da gravura ao gosto chinês, do vaso de barro e do arranjo de flores dispostos no "toko no ma". E lembrei-me do Georges de la Tour, do Menino que alumia, com uma vela segura por sua mão, o S. José carpinteiro que prepara o madeiro da crucifixão... Será, quiçá, efeito do "saké" quente que me ajuda a abrir memórias e, por vezes, as confunde. Sorrio, pensando nessa verdade que Bernanos tão bem disse em "La Joie": Tudo é graça!"


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 16.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A BÍBLIA DOS JERÓNIMOS 


1. "Sometimes, there is God. But so quickly", diz Blanche DuBois na peça de Tennessee Williams "A Streetcar Named Desire", da única vez que lhe parece acontecer uma coisa boa. No meio de todas estas coisas tão pretas, tive essa sensação, na semana passada, na Torre do Tombo, quando fui assistir ao lançamento de "A Bíblia dos Jerónimos", edição da Bertrand e da Franco Maria Ricci. Assim, caída do céu aos trambolhões, apareceu naquele espaço uma obra magnífica, que só de ouvido ouvira e em que nunca tinha posto os olhos em vida minha. Os meus exageros habituais? Já vamos conversar, mas deixem-me que vos diga que o próprio cardeal-patriarca, que presidiu à sessão, foi o primeiro a falar de "êxtase". E certamente pesou bem a palavra e certamente não a empregou em vão. Se o quiserem comprovar, aproveitem o Natal para pedir ao Menino Jesus que vos ponha o livro no sapatinho, passe a publicidade com que neste caso posso bem. 


Por falar em publicidade, é bem possível que algumas mentes maledicentes reparem, ou vos façam reparar, que, nestas minhas casas encantadas, já me encantei cinco vezes com Franco Maria Ricci, proporção que nem Manoel de Oliveira bate. Sosseguem que tenho os bolsos vazios e não é por usar fato novo. Da revista - "FMR", como bem saberão os meus mais fiéis leitores - sou apenas um simples assinante e nem sempre bem tratado, pois que, se há crítica a fazer-lhe, é o tempo que demora a cá chegar e os frequentes atrasos na expedição. Das duas co-edições com a Bertrand - os "Presépios de Machado de Castro" no ano passado, "A Bíblia dos Jerónimos" neste - não receio que me desmintam ou que achem que estou a fazer fretes a alguém (para os favores que lhe devo, como dizia a outra, ainda mais desgraçada do que a Blanche DuBois) se disser que são os dois mais belos livros de arte algumas vez publicados em Portugal. Nada fazia prever que o fossem, o que dilata a minha sensação de milagre e a minha convicção de que às vezes - raríssimas é certo - há divinas surpresas neste país. Neste caso, tão inesperado que, ainda há pouquíssimo tempo, confundi nesta coluna a Bíblia em causa com um hipotético Atlas de D. Manuel que só existiu na minha imaginação. Corrigido o erro, já posso passar ao assunto sem mais preâmbulos.


2. O que é "A Bíblia dos Jerónimos"? Se comprarem o livro, terão muito mais informação do que a que vou resumir, pois não lhe faltam eruditos ensaios que são a única fonte do meu saber. Mas estou aqui para vo-la anunciar e não para fazer de sabichão, que, na matéria, estou longe de ser. "A Bíblia dos Jerónimos" é uma série de sete livros de iluminuras - "in hoc ornatissimo volumine" - (oito, se lhe acrescentarmos as "Sentenças" de Pedro Lombardo, que a completam artística e historicamente) em que, em 3060 folhas de pergaminho, um vasto número de copistas inscreveu o texto bíblico, acompanhado por "postilhas" ou "explanações" de Nicolau de Lira (1270?-1349) que passa por ser "o comentador da Sagrada Escritura mais importante do seu tempo e aquele que maior influência exerceu nos dois séculos posteriores" (cito Arnaldo Pinto Cardoso no estudo "Texto, conteúdo e decoração", inserido na edição de que vos falo). 


Se é enorme o valor histórico e exegético desta "Bíblia" (escrita em latim), o que mais deslumbra quem lhe deite a vista são as iluminuras que a ilustram, obra do florentino Vante Gabriel d'Attavante (1452-1517), um dos mais famosos - senão o mais famoso - dos miniaturistas daquela cidade. "Da oficina de Attavante" - cito agora o Prof. Martim de Albuquerque, autor de outro grande estudo da obra agora editada - "saíram as realizações mais sumptuosas da iluminura renascentista italiana - a Bíblia do Duque de Urbino e dos Jerónimos, o Missal de Thomas James, Bispo de Dol, e numerosas obras para o rei da Hungria Mathias Corvino. Attavante, ele próprio, tem sido apontado como fazendo parte da escola de Verrochio e influenciado por Ghirlandaio". Vasari gabou-lhe a "graziosissima grazia" e o prodigioso colorido ("i colori non possono essere piúi belli"). Ao que aprendi, discute-se ainda quem encomendou à oficina de Attavante a fabulosa "Bíblia", mas o que é certo é que ela foi manuscrita e iluminada para D. Manuel I, entre 1495 e 1497. Além das armas portuguesas e das múltiplas referências ao rei Venturoso, a esfera armilar é um dos ícones da obra. Na posse de D. Manuel se conservou até à sua morte, tendo sido legada por testamento de 1517 (D. Manuel morreu em 1521) ao Convento dos Jerónimos. "Item mando que se de ao Mosteiro de N. Senhora de Bellem a Custódia que fez Gil Vicente para a dita Caza, e a Cruz Grande, que esta em meu thesouro, que fez o dito Gil Vicente, e asyi as Bíblias escritas de pena, que andam em minha guardaroupa as quais são guarnecidas de prata e cobertas de veludo carmesim." Nos Jerónimos, jazeu a Bíblia de Jerusalém, de 1521 a 1807. Não se conhecem muitos encómios acerca dela (as exceções são Francisco de Holanda e D. António Caetano de Sousa) e tudo o que sabe, pelo último, é que, antes de 1737, foi a obra reencadernada, substituindo-se o veludo pelo marroquim. Mas muita gente devia saber que um tal tesouro estava nesta Lisboa, a que, no mesmo século XVIII, o Cavaleiro de Oliveira chamava "fermosa estrebaria". D. João VI não achou azado levá-la para o Brasil, quando nos despojou de muito mais do que o terramoto das costas largas. Mais informado foi Junot, que, mal chegado a Lisboa, pediu logo para ver a "Bíblia". Recusou-a o Dom Abade. Mas se não cedeu às boas, cedeu às más. Em agosto de 1808 já a tinha, e com ele a levou para França. De Junot passou à viúva, a célebre Duquesa de Abrantès e esta recusou-se a restituí-la, alegando que eram bens dos filhos. Valeu-nos a monarquia de julho e os favores de Luís XVIII, que a comprou a Laura Junot pela soma - à época fabulosa - de 80.000 francos e a devolveu a Portugal, em 1815. Mas os Jerónimos, que tinham guardado a "Bíblia" por quase trezentos anos e que, por isso, justamente lhe deram o nome por que é e foi conhecida, não a chegaram a conservar sequer por mais vinte. Em 1833, chegada a hora do Mata-Frades e da extinção das ordens religiosas, passou a "Bíblia" para as mãos do Estado, que, com a Custódia e outras iguarias, a guardou na Casa da Moeda. Em 1839, aportou por fim à Torre do Tombo, já sem as guarnições nem a prata, provavelmente fundidas como moeda para os liberais. Na segunda metade do século XIX, e no principio do século XX, começaram os eruditos e os curiosos a estudá-la e a manuseá-la e espalhou-se pelo mundo (muito menos por Portugal) a fama que possuíamos um livro de iluminuras "ao qual nenhum outro se pode comparar". Estabeleceu-se o juízo que a "Bíblia dos Jerónimos", com a de Frederico de Montefeltro (esse Frederico do nariz adunco, terror da Mónica e amor de Piero Della Francesca) eram "as duas obras mais monumentais da oficina de Attavante" (Peragallo).


3. Mas livros - sobretudo desta qualidade e deste valor - têm sorte muito mais ingrata do que estátuas, quadros, desenhos ou pinturas. Compreensivelmente, não se põem obras destas nas mãos das turbas, nem mesmo dos filhos de algo, sem boas qualificações profissionais. Assim, a lenda e os factos misturavam-se num juízo sobre a lendária "Bíblia". Acresce que somos bastante desconfiados de valores próprios, mais propensos a minimizá-los ou a esquecê-los que a acreditarmos em esmola grande. Ao longo da vida, ouvi, de tempos a tempos, loas sobre o preciosíssimo incunábulo. Mas, mais que as nozes, foram as vozes de quem dizia que o manto diáfano também cobria uma realidade mais crua, ou pelo menos relativamente vulgar face a obras congéneres. O grande mérito desta edição é acabar com essa lenda invertida. Pela primeira vez, mais de cinco séculos depois de ter sido copiada e miniaturada, a "Bíblia dos Jerónimos" está acessível, senão, como é evidente, na sua integralidade, através das suas páginas mais belas, sobretudo das oito páginas de grandes iluminuras com que abre cada volume (os "incipit"). E, como Franco Maria Ricci não deixa créditos por mãos alheias e Massimo Listri, que fotografou as iluminuras, é um génio, a obra agora editada, com grande profusão de pormenores e ampliação de muitas das imagens, permite uma visão que nem os próprios originais nos dão com igual esplendor. Pude fazer a experiência: durante alguns dias, coincidindo com o lançamento do livro, a Torre do Tombo expôs os oito volumes aos olhos dos simples mortais. Aberta nalgumas páginas mais esplendorosas, e convenientemente protegidas por vitrinas resistentes, eram fabulosas de ver, mas não nos davam (pelo menos a mim não me deram) a fulgurante beleza das reproduções da edição. Quem quiser "ver" (no mais amplo sentido do mais amplo verbo) as iluminuras florentinas de "A Bíblia dos Jerónimos", "vê-as" melhor no livro de 2004 do que nos fólios de 1495. Às vezes, a reprodutibilidade das obras de arte permite milagres destes.


4. Para acabar, fico-me com o frontispício direito do volume V (Livro do Profeta Ezequiel e Livro dos Macabeus) "S. Jerónimo no estúdio entre dois frades". O chapéu cardinalício pendurado na parede. O quadro que representa a Virgem e o Menino, rodeados por um anjo verde e por um anjo branco. O leão sossegadíssimo e silentíssimo aos pés do Santo e fronteiro a ele. O relógio e a ampulheta. A janelinha entreaberta para uma paisagem meiguíssima e azul. A parede cobáltica contra o encarnado do manto de Jerónimo. A concentração do escriba, cinzelando e escrevendo. Ghirlandaio? Pollaiuollo? Verrochio? Filippino Lippi? Mais belos não são certamente. O apogeu do Renascimento está também nestes oito volumes, sem dúvida a única obra de arte que o representa em Portugal.


por João Bénard da Costa

17 de dezembro 2004, Público

ANTOLOGIA

  


UM INESPERADO BARROCO…
por Camilo Martins de Oliveira


"Ma Petite Princesse,
À ton âge, tu t’imagines, encore et usque ad pulverem, ma Petite Princesse... É simples e enternecedora esta verdade: a melhor expressão de um amor maior é um diminuitivo! A intimidade do que se sente no fundo do coração desconhece a grandiloquência. Na memória de um crente - e de tantos incréus! - não há lembrança mais doce do que a do Deus Menino. Nem oração em boca de mulher poderá ser mais cheia de graça do que a da rendição de Maria ao Menino soprado no seu ventre... A fundação da nossa religião é a ternura carinhosa de Deus, que somos convidados a partilhar. O amor é manso, debruça-se sobre o outro, não violenta nem conquista, apenas acolhe e é acolhido. Os japoneses têm uma palavra curiosa: "amae". Significará a vocação da dependência, ou o desejo inato dela. Tem a mesma raiz etimológica de "amai", que significa doce, doçura. Há quem pretenda - como o psiquiatra Tadeo Doi - que essa vocação para a dependência é como um desejo de regresso da criança à união inicial com sua mãe, e que se traduz por uma expressão que evoca a nostalgia de uma intimidade tornada sensível, após o nascimento, pela doçura do leite materno. "Amae" será então um desejo vindo da antiguidade da infância, a recusa do desamparo que, afinal, mais não é do que um modo da orfandade. A forma verbal de "amae" é "amaeru", que poderemos traduzir por desejar depender do amor dos outros. O que S. Paulo diz do amor: que "é paciente, é amável (…) tudo encobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta" - eis o que o japonês menino (mesmo já crescido e a diminuir para velho) deseja encontrar. Nem que tenha de se servir de truques ou manhas infantis: curiosamente, o mesmo verbo "amaeru" também quer dizer "ser mimado, portar-se como um bebé"... Para o Doutor Doi, o conceito de "amae" é chave para o entendimento da confrontação de "giri" e "ninjo" que, aliás, é o tema fulcral do romance "A Bailarina", de Ôgai Mori (1862-1922), um dos textos fundadores da moderna literatura japonesa. Conta-nos a história do grande amor do autor (médico militar de alta patente e pertencente à elite do império Meiji) e de uma bailarina que conheceu na Alemanha, onde estudava a cultura e civilização do Ocidente. Convidou-a a vir ter com ele ao Japão, para se casarem, mas por pressão familiar e social obrigou-se, em consciência, a renunciar a esse compromisso do coração. Prevaleceu o "giri", a obrigação de se comportar, para com os seus círculos familiares e sociais, de acordo com normas de reciprocidade, fidelidade e obediência, seja qual for o sacrifício exigido. Explicam-se assim comportamentos como os dos pilotos suicidas ("kamikaze" ou ventos dos espíritos), ou os suicídios rituais ("seppuku" ou "harakiri") pela morte, derrota ou vergonha do senhor ou mestre. Ou ainda, a troca obrigatória e, muitas vezes, normalizada e até ritualizada de favores - que nós ocidentais tendencialmente consideramos corrupção... O "ninjo" que, neste caso, saiu vencido, é esse universo de sentimentos de simpatia, compaixão, afeto ou submissão do coração - o amor humano que, diria Tadeo Doi, nasce nessa dependência inicial da criança e da mãe e se vai reproduzindo com amigos, amantes, família, no decurso das vidas. O amor é um menino pequenino que nos enche o coração. Voltei hoje ao Byodoin, onde já não ia há mais de uma década. Fica um pouco afastado de Kyoto, mas é talvez a obra-prima da arquitetura do budismo da Terra Pura no período Heian (794 a 1160 ou 85). Foi Yorimichi Fujiwara - na altura "kampaku", ou 1º Conselheiro do imperador - que iniciou, em 1052 a construção do templo no sítio de uma casa de recreio de seu pai, prática aliás repetida por outros, inclusive pelos "shogun" Ashikaga, no séc. XV/XVI, com a edificação ou transformação em templos dos pavilhões "Ginkakuji" e "Kinkakuji" (prateado e dourado). Mas falo-te no Byodoin, por essa orientação do budismo Mahayana (da Porta Larga) que se apelidava de Terra Pura, e foi adotada pelas seitas Shingon e Tendai. O Buda aí venerado e invocado é o Amida ou Amitaba, cuja estátua está neste templo guardada no "shumidan" do pavilhão da Fénix, e tem 3 metros de altura, sentado. Todo ele é de madeira laqueada a ouro, e o rosto pacífico e quase feminino ilumina-se diariamente, a hora variável conforme a incidência do sol, que penetra por uma larga escotilha, aberta na parede sul. O "milagre" da iluminação de Amitaba Tatagata é visível, de fora do pavilhão, para quem estiver na margem sul do lago artificial aos pés do edifício do templo cujo desenho evoca uma fénix pousada, abrindo, extensas, as suas asas... O culto de Amida, como tantos outros votos e devoções na prática budista, não é uniforme: pode ficar-se pela contemplação da pureza que resultará da libertação das coisas mundanas, ou poderá crer e esperar no salvador que receberá todos na sua Terra Pura (e esta foi a crença, iniciada na China, que predominou na era Heian), ou ainda como uma salvação que libertará e acolherá todos mesmo os mais pecadores. No Byodoin, em sala anexa ao "shumidan", somos envolvidos por representações esculpidas, ao gosto, diria eu, do barroco europeu (este, cinco séculos depois), de apsaras, seres celestes que, como os anjos da nossa tradição, evoluem sobre nuvens, tangendo, percutindo, soprando vários instrumentos de sonora - e, esperemos, melodiosa - música. Rodeiam o Buda, e exultam com as suas virtudes. Por isso, haverá quem lhes chame bobisatvas. Santos, diríamos nós, que chegaram ao Nirvana. Tudo isto é "kawai" (japonês), "cute" (inglês), "mignon" (francês), precioso - dirão os meridionais - como um Menino... Por isso me despeço de Vossa Alteza, minha Princesa de mim, com esta diminuta banalidade "brusseler": au revoir, "chouke" (mon petit choux)."  Traduzo: até à vista, minha couvezinha, diria Camilo Maria em português.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 12.04.13 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
RECANTOS DE NATAL


1. Na província não neva (o poeta é um fingidor) e, mesmo que nevasse, nunca passei um Natal na província. Também nunca passei um Natal na neve ou com neve. Confesso que tenho alguma inveja. Um Natal, como esse da Judy Garland em "Meet Me in St. Louis", com muitos bonecos de neve e a dita a bater leve, levemente. "Have yourself a merry little Christmas". Também a mim, o Natal, em províncias technicoloridas e lares aconchegados, me faz sonhar saudades. Mas não se pode ter tudo. Sobretudo não se deve ser mal agradecido. Os meus natais lisboetas e sintrenses já dão pano para mangas, atravessando quatro - ou cinco - gerações felizes, ou imaginariamente felizes, em noites de tantíssimos anos, de tanta gente que já dos meus olhos se apartou ou que os aos meus olhos começa a aportar. Quantos foram? Horror, a lembrança das datas? Horror não é palavra que rime com os meus Natais nem com as minhas lembranças. Dos antiquíssimos que recordo, era eu dos mais crianças, aos recentíssimos, sou eu dos mais velhos, a sucessão é boazissimamente boa e o Natal fica-me bem como bem eu me fico nele. Por isso, não esperem de mim conversas de maldição à sociedade de consumo, de raiva à paganização, de mentira às famílias, conversas "desmistificadoras". Natal de manhãzinha ou de noite dentro, de rabanadas e de perus, de missas do galo e de presépios, de sapatinhos ou de chaminés, de tudo conheci e de todos vivi. E não os troco por nada.


2. Ao princípio (estou a falar dos anos 40 e muito poucos picos) a véspera do Natal era só isso: a véspera do Natal, a ansiosa espera pelo dia seguinte. O Menino Jesus ia nascer à meia-noite, quando eu estivesse a dormir, e ia descer dos céus "pela abaixo chaminé", para me deixar no sapatinho todos os presentes que eu desejava ter.
Os crescidos não me deixavam entrar nas salas em que se sussurravam segredos e mistérios. Depois de jantar, antes de me deitar, dois rituais fatalmente sucedâneos, deixavam-me finalmente entrar na sala grande para depor junto à lareira o famoso sapato. 
Crianças dormem como anjos? Nessa noite, não era bem assim. Acordava muitas vezes, à espera de ouvir, lá longe, os passos do Menino carregadinho de prendas. Às vezes, ia jurar que o ouvia. Mas tinham-me catequizado devidamente. Não sei se a tia que me contou todos os contos já me tinha contado o do Barba Azul. Sei é que, na minha memória ou na minha imaginação, o que me aconteceria, se acaso ousasse levantar-me e ir lá ver, era o mesmo que aconteceu às mulheres do Barba Azul quando entraram no quarto proibido. Não só ficaria manchado para sempre, como os presentes que o Menino trouxe - ou havia de trazer - o Menino os levaria e eu ficava culpado e solteiro. Por isso, nunca ousei. 
O pior era quando o dia começava a clarear. Pela única vez no ano, as horas mais doces do meu sono tornavam-se as mais agitadas. Inabalável era a minha fé que os presentes já lá estavam, mas nenhum passo precoce me era consentido. Restava-me esperar horas infindas pelo acordar dos pais. Finalmente, entravam-me pelo quarto e juntávamo-nos os quatro (o quinto dos irmãos só nasceu anos depois) no corredor, à espera do "já podem" mais apetecido de sempre. Em cima de cada sapato, a pilha de presentes. Só com os meus filhos e com os meus netos, aprendi retrospetivamente quão estremecente eu ficava, antes de me precipitar a rasgar papéis e a abrir caixas. Incrivelmente, milagrosamente, o que eu tinha pedido cumpria-se. "Se algum dia pedires, com verdadeira fé, à montanha que se mova, a montanha mover-se-á." É a imagem mais aproximável que consigo dar para a sensação que tinha. Também me tinham dito que, se tivesse asneado muito, no Natal só receberia carvão. Mas o Menino era Todo Misericordioso, embora não Todo Distraído. Entre as prendas ubérrimas havia um carvãozinho. Ele lá sabia e eu também sabia. Mas aquilo ficava entre nós e em nada atenuava a desmedida alegria. Depois, ia ver os presentes dos outros, depois o dia passava a correr no gozo de prazeres novos. À noite, chegavam os tios e os primos para um jantar de 16 pessoas, 12 na mesa grande e os quatro miúdos numa mesa pequena. Até hoje, o menu não mudou: canja, folhados de camarão com salada russa e salada de agriões, o peru (com o recheio, o molho, os rabanetes, as batatas fritas aos palitos), depois, à sobremesa, as rabanadas, os sonhos, a "mousse" de chocolate, o ananás. Um jantar de horas à mesa, servido por duas criadas impecavelmente fardadas, de crista e luvas brancas. Só no dia 26, a vida de cada dia retomava o seu dia, até um jantar de idêntica ementa, idênticas presenças e idêntica euforia no Dia de Ano Novo. Só mudava o "décor". Em vez da nossa casa, a casa dos meus únicos tios que eram casal, ali na Rodrigues Sampaio. Mas não havia risco que qualquer de nós (adultos ou crianças) disséssemos ou pensássemos o que um neto meu disse há uns anos, quando falou da casa daquela tia em que o jantar é sempre a mesma coisa. Além de uma educação mais severa, o peru, nesses anos, era exclusivo do Natal e do Ano Bom. Dias antes do Natal, chegavam vivos e de boa saúde, oferta dos alguéns que deviam favores. Depois, em sótãos onde não nos deixavam entrar, a cozinheira embebedava-os com aguardente, antes de lhes cortar as goelas e calar os últimos berros desesperados. Outro sinal dos tempos: antes de jantar, telefonava, de Portimão onde vivia, o irmão mais novo do meu pai, que só nesses dois dias telefonava, não por alheamento da família (que, para ele, era a única verdade), mas porque um telefonema de tão longa distância era manifestação perdulária, só admissível em datas especiais. Precipitávamo-nos todos para o auscultador, um minuto, um minuto apenas, que as chamadas eram caríssimas.


3. Até que chegou o dia fatal, tinha eu oito anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Um colega explicou-me, a um canto do recreio, que não havia Menino Jesus nenhum e que os dadores não eram divinos mas os meus humaníssimos pais. Recusei-me a acreditar, mas a dúvida já cá estava. Chegado a casa, perguntei à mãe se era verdade. Confessou-mo. "Então os pais também mentem?" Ela explicou-me a diferença entre mentira e imaginação e como as coisas bonitas se podem sobrepor às verdades nuas. No futuro, interpretei-a muito latamente, mas disso não teve ela culpa ou se a teve foi uma "felix culpa". Não fiquei com os traumas que pedagogos perversos atribuem a revelações dessas. Só que no ano seguinte achei menos graça ao Natal e dormi melhor nessa noite. Quando chegou a minha altura de ser pai - e já se discutia seriamente entre "casais modernos", se se devia ou não contar isso do Menino Jesus às crianças - não hesitei na atitude a tomar. Talvez seja por isso que os meus filhos se maravilharam com o Natal tanto quanto eu me maravilhei e todos eles tenham contado a mesma história aos filhos deles, terceira geração maravilhada da família. Só acabou - e eu não me consolo - o Menino Jesus e os sapatinhos, que apenas sobreviveram até ao tempo dos meus filhos. Para os meus netos, já foi sempre o Pai Natal. E como até um reacionário como eu se tem que adaptar aos tempos que correm, eu próprio me converti no Pai Natal, mascarando-me dele na noite do dito, para, enquanto todos esperam no corredor, e as luzes se apagam, bater muito com os pés no chão, soltar alguns uivos medonhos e fugir precipitadamente, mas não tanto que alguns não jurem que viram o velho encarnado, tão real e perfeitamente como está nas renas.
Também mudou o ritual dos dias e das noites. Crianças, agora, não vão para a cama a seguir ao jantar, à espera do dia seguinte, como eu, os meus irmãos, os meus filhos ou os meus sobrinhos. Ficam à espera da meia-noite. A hora do milagre é agora noturna e não diurna. 
Tem, aliás, desde que me casei, um extra que não fazia parte da minha educação, mas que incorporei, já que tradições as incorporo todas e quantas mais melhor. Como a família da minha mulher (pelo lado do pai dela) vem mesmo da província e dos lares aconchegados da Vila da Feira de outrora, a festa, no caso dela e na casa dela, era a noite de 24, ao jantar, com o caldo verde, o bacalhau e mil variedades de sobremesas (ovos mexidos e bilharacos). Igualmente passou a acontecer, desde que troquei Lisboa por Sintra, nos idos dos anos 50. Qual é a sucessão? Jantar de consoada; distribuição dos presentes (já não entre 20 mas entre 40) com as crianças interditas de entrar na sala e uma confusão dos diabos (crescidos e multiplicados, sucedem-se as chegadas de pessoas-sacos de presentes, a distribuir em montões por cuja ordem zelo eu); escuridão à meia-noite para a minha metamorfose em Pai Natal; reacender das luzes para a entrada da turba em êxtases renascidos; depois, a ceia (que já vem dos meus 12-13 anos) com os "palitos de la reine", a "tête d'achard" (receita arcana da minha mãe), as rabanadas, o chocolate com natas, os presuntos, os queijos, o bolo-rei. Depois, as crianças caem de exaustão e de orgasmos, e os crescidos ficam nos copos até às tantas. Invariavelmente, desde os anos 60, o cenário é a minha casa, variavelmente, no jantar do dia 25 e dos perus de plástico, em casa de um dos meus irmãos (este ano, pela primeira vez, uma sobrinha minha será anfitriã). O camarão dos folhados também não é o camarão vindo do mar dos meus verdes anos; a salada russa é comprada feita; e qualquer semelhança entre as batatas fritas de agora e as de antanho é pura coincidência. Desapareceram as cozinheiras, desapareceram as criadas, as travessas estão em cima da mesa e cada um trata de si e Deus de todos. Mas o dia 25 é um epílogo, não um cerne. Um recanto, não um canto. O canto e o cerne continuam a ser na véspera, na noite em que é Natal e vamos a Belém adorar o Menino que a Senhora tem. E o melhor do mundo são as crianças. A acreditar que tudo é possível, sendo que até hoje - graças a Deus! - tudo foi e é mesmo possível. Diante de mim, seja em que recanto for, ninguém amaldiçoará o Natal. Do Menino, e desde menino, da Baby Born, às "asas a sério para a Vera voar" (carta da Vera para o Pai Natal) sou fanático.


por João Bénard da Costa

24 de dezembro 2004 in Público