Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“Requiem, Uma Alucinação” (1992), de Antonio Tabucchi (1943-2012), foi escrito originalmente em português e constitui um exemplo da criatividade de um escritor essencial da contemporaneidade, que esta semana foi homenageado pelo município de Lisboa com a atribuição do seu nome a um jardim na freguesia da Misericórdia, por proposta do Centro Nacional de Cultura.
UM SONHO EM LISBOA Este “Requiem” tem um especial significado, tendo sido escrito integralmente em português. Suspenso entre a consciência e a inconsciência, entre a realidade e o sonho, a personagem que protagoniza esta alucinação é apresentada ao meio-dia em ponto de uma data precisa, sem que o próprio entenda muito bem porquê, na cidade de Lisboa, deserta e tórrida, num domingo de julho. Ironicamente, ele sabe vagamente que tem algumas tarefas a cumprir – mas sobretudo deve encontrar-se com um ilustre poeta desaparecido que, como qualquer fantasma que se preze, talvez apareça só à meia-noite, hora do mistério e da surpresa. E o protagonista entrega-se aos ditames do acaso, segundo a lógica das associações do inconsciente. Então, dá consigo a seguir um percurso que o leva a reviver o que foi ao longo da vida, a tentar desatar os nós cegos da sua existência passada, que, de facto, nunca conseguiu compreender verdadeiramente. Tabucchi sempre foi um apaixonado do mistério dos sonhos, jogando com o significado das misteriosas aparições de quem teve importância na sua formação e no seu destino. Essas alucinações, errâncias, aparições, regressos e sonhos duram doze horas. É o tempo de uma vida se comprime e se dilata. Passado e presente confundem-se e os vivos encontram-se com os mortos no mesmo plano, como aliás acontece em diversas circunstâncias documentadas na obra do escritor.
ENTRE RAÍZES E DESCOBERTAS Em “Requiem”, Antonio Tabucchi conta a experiência de uma viagem misteriosa e iniciática. Assim, este livro é um ato de amor relativamente ao país que lhe pertence profundamente por adoção e à língua na qual o romance está escrito, pressupondo uma ligação intensa a uma personalidade multifacetada, que não esquece as raízes, as lições passadas e a descoberta literária de um poeta com várias vidas e personalidades. Foi, aliás, um misterioso poeta que trouxe Tabucchi até à cultura portuguesa e ao mundo dos seus afetos. E se falamos dessa referência, temos de considerar a multiplicação de personalidades que ela comporta. É, de facto, do Engenheiro Álvaro de Campos que falamos, discípulo de Alberto Caeiro, que o poeta ortónimo visita estranhamente, ao lado de outras personalidades consagradas em “Sonhos de Sonhos”, como Dédalo, Ovídio, Apuleio, Cecco Angiolieri, François Villon, Rabelais, Caravaggio, Goya, Coleridge, Leopardi, Collodi, R.L. Stevenson, Rimbaud, Tchekhov, Debussy, Toulouse-Lautrec, Maiakovsky, Garcia Lorca e Freud. Estamos perante um verdadeiro mundo, em que se pode descobrir a complexidade do género humano e os seus mistérios. E “Requiem” é um outro modo de descoberta dessa fantasmagoria criadora, através de pessoas aparentemente comuns que a cidade de Lisboa revela. Aí encontramos: o rapaz drogado, o cauteleiro coxo, o chauffeur de táxi, o criado da Brasileira, a velha cigana, o guarda do cemitério, o escritor polaco Tadeus, o senhor Casimiro, a sua mulher, o porteiro da Pensão Isadora, a Isadora, a Viriata, o Pai Jovem (numa reminiscência perturbadora), o barman do Museu de Arte Antiga, o pintor copiador, o revisor do comboio, a mulher do faroleiro, o maître da Casa do Alentejo, Isabel, o vendedor de histórias, a Mariazinha, o misterioso convidado e o tocador de acordeão. Ah! e não devemos esquecer o gato solitário que passeava entre as primeiras campas dos Prazeres.
UM CONTO DE UM VENDEDOR DE HISTÓRIAS «Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento»… Depois de vários desencontros, num bizarro regateio, o vendedor de histórias consegue convencer o interlocutor de que tem um conto para crianças a trezentos escudos – não era um conto de fadas, mas de um mundo mágico, de uma sereia que trabalhava num circo e que se apaixona por um pescador da Ericeira… E ali no cais das colunas, à beira do Tejo, com o cacilheiro a chegar a sereia talvez viesse mesmo a calhar. A deambulação é rica de encontros e desencontros, de realidade e imaginação, de alucinação e sonambulismo… E quando somos chegados ao fim do cais, há um banco como no começo da conversa, que vai tornar-se o fim da mesma. Então o tocador de acordeão torna-se dispensável. Pode terminar e função. E, como por encanto o Convidado desvanece-se, como tinha aparecido. “Quem sabe se um romance escrito numa língua que não é a nossa não poderá nascer de uma minúscula palavra que, essa sim, é exclusivamente nossa e não pertence a mais ninguém. Às vezes uma sílaba pode conter o universo”.
Antonio Tabucchi, o escritor italiano que escolheu Portugal por afeto. Antonio Tabucchi uma razão para o tempo não envelhecer.
Por Teresa Bracinha Vieira
A vida não está por ordem alfabética como há quem julgue. Surge…ora aqui, ora ali, como muito bem entende, são migalhas, o problema depois é juntá-las, é esse montinho de areia, e esse montinho de areia, e este grão que sustém? Por vezes, aquele que está mesmo no cimo e parece sustentado por todo o montinho, é precisamente esse que mantém unidos todos os outros, porque esse montinho não obedece às leis da física, retira o grão que aparentemente não sustentava nada e esboroa-se tudo, espalma-se e resta-te apenas traçar uns rabiscos com o dedo, contradanças, caminhos que não levam a lado nenhum, e continuas à nora, insistes no vaivém, que é feito daquele abençoado grão que mantinha tudo ligado…até que um dia o dedo resolve parar, farto de tanta garatuja, deixaste na areia um traçado estranho, um desenho sem jeito nem lógica, e começas a desconfiar que o sentido de tudo aquilo eram as garatujas.
Antonio Tabucchi in “Tristano Morre”
Os poemas de Pessoa, o contacto com O’Neill e Cardoso Pires, a tradução de Drummond, o contributo para as línguas e cultura europeias e este silêncio que se deve fazer também pela escrita e encurtá-la na nomeação deste sempre galardoado Escritor, crítico e tradutor de peito cheio.
Tabucchi Nascido em Vecchiano como Poeta na margem do Tejo.
"Estórias com Figuras" (D. Quixote, 2020), foi a última obra publicada em vida por Antonio Tabucchi, em 2011. Sai a lume entre nós numa bela edição com traduções de Gaëtan Martins de Oliveira e Maria José de Lancastre e dois textos escritos diretamente em português pelo autor.
PINTURA E ESCRITA…
Como Tabucchi confessa: “aconteceu muitas vezes a pintura vir solicitar a minha escrita”. E fala-nos, como exemplo, da circunstância em que entrou no Museu do Prado, numa tarde longínqua de 1965, e ficou “cativo perante Las Meninas de Velasquez, ficando incapaz de abandonar a sala até ao fecho do museu”. E o certo é que sem essa experiência não teria havido O Jogo do Reverso (1981)… “Da imagem para a voz o caminho pode ser breve, se os sentidos responderem. A retina comunica com o tímpano e ‘fala’ ao ouvido de quem olha; e para quem escreve, a palavra escrita é sonora: ouve-a primeiro na cabeça. Vista, ouvido, voz, palavra…”. Mas não há um sentido único, há uma “corrente alternada”. E “a palavra, ao regressar, traz consigo outras imagens que antes não existiam: inventou-as ela”. Esta é a chave destas “estórias com figuras”, nas quais encontramos o que constitui a riqueza da genial capacidade do romancista. O sonho e a realidade encontram-se e como na grande literatura, que aqui encontramos, o leitor é permanentemente transportado para uma vida outra que completa e enriquece o quotidiano da existência. E neste caso, a pintura integra a escrita do autor – como estímulo e insinuação, mas essencialmente como encantamento. E este especial encantamento leva-nos ao mundo e ao universo criativo do romancista, enriquecendo-o e dando-lhe sentido pleno.
SEMPRE O DR. PEREIRA
Em “Olha quem chegou, o Dr. Pereira!” damos de caras com a personagem bem conhecida e presenciamos uma visita fantasmagórica através do retrato feito por Giancarlo Vitali. “Alguém convocara o fantasma, ao materializa-lo numa imagem. Agora o ícone de Pereira encontrava-se diante dos meus olhos, maciço, bem visível em toda a sua ‘pereiridade’”. E deste modo a sombra torna-se ícone e transforma-nos em participantes da narrativa – em que somos levados a reentrar. Mas não se trata de um “viajante estático”, como o de Costa Pinheiro, em que Fernando Pessoa tem nas suas mãos a miniatura do navio das “viagens nunca feitas”, lembrado da original navegação, feita aos dezassete anos, no regresso de Durban. Pereira movimenta-se e chega como criatura diante do criador, pronto a discutir quem chamou e quem respondeu. E se falamos do encontro da criatura e do criador temos de invocar o pintor Giancarlo Savino, “completamente só na sua velha casa”, sem um gato sequer, “porque quer estar só”, preparamdo-se para receber as suas criaturas, sem saber muito bem quais virão. “Pega nos tubos de aguarelas e distribui tintas em tigelinhas, misturando-as com água, ao lado das folhas de papel, como se tratasse de um alimento mágico”. É um festim de imaginação. “O Pintor levanta o copo e diz: vinde, criaturas visitantes”. E eis que nascem as criaturas do criador, em fila sobre os guardanapos… Depois serão encerradas nas páginas de um livro. Há sempre um livro pronto para albergar cores ou palavras, criaturas ou existências. É assim com o pintor ou com o escritor, com o músico ou o arquiteto… E se o Dr. Pereira simboliza a outra dimensão do tempo, podendo nós viver com as gerações que já não estão no nosso convívio, um quadro de Alessandro Tofanelli, Presto o tardi, permite-nos ir até à dimensão de uma “janela sobre o desconhecido”. E no entusiasmo desse cenário imaginário desenhado por um arquiteto amigo, a personagem aproxima-se da janela e “instintivamente tenta por a mão lá fora., como para acenar a alguém que não estava lá ou simplesmente para tocar o ar no exterior. Mas a sua mão chocou com o acrílico” – porque a imaginação tem limites…
E BERNARDO SOARES
Giuseppe Modica põe-nos diante de La terrazza di Pessoa… Trata-se das férias de Bernardo Soares, que escreve a Pessoa para confessar com mágoa não poder, nesse ano de 1934, jantar no Natal no restaurante do costume com o seu amigo. Era setembro e Soares passaria até ao Natal numa villa magnífica, embora com uma fachada bastante gasta, em frente ao mar, cedida pelo patrão. Trata-se de um convite tétrico. Soares, o quase ortónimo, teria como único companheiro Sebastião, “um velho papagaio que sabia dizer algumas palavras e que o carvoeiro tinha prometido emprestar-lhe durante alguns dias para que ele não se sentisse demasiado sozinho nas suas férias de Cascais”. Deixado sem mais em tão estranho destino, “ficou sozinho no terreiro, sentou-se nos degraus e pôs-se a olhar para o mar. Pensou outra vez que era o seu último Natal, mas pensou também que não tinha importância. Depois puxou de um maço de Provisórios e pôs-se a fumar um cigarro”… Os cenários improváveis constituem, afinal, o melhor modo de tentar entender o mundo. António Dacosta é visto em sonhos e permite que o escritor entre no quadro que estaria a pintar. Maria Helena Vieira da Silva deixa aos seus amigos dezanove cores, entre as quais “uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade”, num misterioso jogo de xadrez. José de Guimarães põe a imaginação criadora num pequeno automóvel, que se deixa vencer pelo esgotamento do consumo e deseja ardentemente o fim dos seus dias. Em Paula Rego revela-se a invocação de “Rosamunda” no cenário misterioso e enigmático de um fabulário inesgotável. Com Bartolomeu Cid dos Santos, lembramos que “as utopias são frágeis, mas quando se convertem em arte não temem o tempo alcançam uma eternidade própria e uma beleza que não teme as modas e o vento que as traz”. Valério Adami retrata António Tabucchi como o intérprete de sonhos ambivalentes que nos fascinam sempre. Mas António Tabucchi foi sempre um cidadão atento e empenhado em nome das causas justas, preocupando-se com os egoísmos destruidores da democracia e dos direitos humanos. A partir da série de Graças Morais, A Caminhada do Medo (2011), invoca Eneias, fundador mítico de Roma, (agora renomeado como Anónimo), cantado por Virgílio e fala do fim de um mito. É da Europa que se trata nesse diálogo: “Eles desembarcaram na Lua e os astros não opuseram resistência. Mas é proibido desembarcar nas margens da Fortaleza Schengen”… A democracia confunde-se com “ruínas fumegantes, morte desprezo e cinzas”. E o mito desvanece-se: “Em tempos, o Mito era o nada que é tudo. Hoje é apenas o nada”… E assim, profeticamente, se antecipava o que depois veio a acontecer e que continuamos a presenciar a cada passo. No fundo, a leitura de Tabucchi representa, em aparição onírica, a procura de compreensão do mundo que nos rodeia, com uma dimensão ética em que a busca da humanidade está sempre presente.