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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (8)

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8.  Uma identidade em processo

 

A antropologia, o estudo do Homem, é uma tarefa sem fim. De facto, o ser humano não pode definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível, pois ele é uma abertura ilimitada: por mais que diga de si nunca se diz plena e adequadamente.

A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas. Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e São Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: "O que é que eu sou?, quem sou eu?", é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia...

O meu ilustre amigo, Juan Masiá, professor na Universidade Sophia, em Tóquio, apresentou a questão numa bela síntese. Pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas afirmações de base. Assim:

Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: provenho da natureza, mas transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si. Impõe-se, pois, o diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.

Eu sou eu na minha circunstância (Ortega y Gasset). Portanto, eu sou no mundo, eu sou espácio-temporalmente, ao mesmo tempo que transcendo e tento sempre transcender o espaço e o tempo. Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.

Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou. Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu, como é que o corpo se faz um sujeito que vai lentamente tomando consciência de si? Neste quadro, dialoga-se com as antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.

Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade. Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu exprime a possibilidade que uma pessoa tem de auto-objectivar-se e reconhecer-se. O ser humano afirma-se a si mesmo na reflexão. E não é um mero animal de instintos, pois vive na realidade: é um animal de realidades, como sublinhava o filósofo Xavier Zubiri, distinguindo entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real. Apesar dos seus limites, encontraremos aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.

Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de mim. A partir do material genético que recebi dos meus pais e sempre condicionado por ele, eu, se fosse educado noutro lugar e em circunstâncias diferentes, noutro ambiente, se fosse encontrando outras pessoas ao longo da vida, seria o mesmo? A resposta é: sim e não, pois seria eu, mas de outro modo. A identidade pessoal constrói-se e afirma-se na liberdade, mas a partir de uma herança tanto genética como cultural, e isto num processo histórico sempre aberto: cada um de nós é uma estrutura em permanente desestruturação para uma nova configuração: faço-me, desfaço-me, refaço-me... A pessoa não é encerrando-se em si mesma; pelo contrário, é saindo de si que vem a si e se encontra. O ser humano só é na relação, vivendo mesmo este paradoxo: só porque é abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única, e experiencia-se enquanto liberdade, ainda que sempre liberdade em situação. Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.

Eu não sei se sou eu. Serei eu? Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e perguntar: fui eu que fiz isto?, como foi possível?, aí não era eu. É, pois, inevitável o confronto com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiologia.

Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá de mim. O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente. O ser humano é simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para lá da morte. Ele não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera assim a sua realização para lá da história intramundana. A antropologia desemboca assim em perguntas pela ultimidade, que são questões da constituição metafísica do real e da conexão entre ética, esperança e religião.

Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer que estas afirmações-perguntas formuladas na primeira pessoa do singular têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e autenticamente na relação, a identidade individual implica a identidade social e histórica e planetária e cósmica. Afinal, em cada ser humano está presente a realidade toda. Da identidade de cada ser humano faz parte a humanidade inteira - lá estão, de novo, Aristóteles e São Tomás: anima est quodammodo omnia (a alma, o ser humano, é de algum modo tudo).

Por todas estas razões, o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido radical, dito no étimo da palavra - perguntar vem do latim: percontare, que contém contus, um pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao fundo (o que há lá no mais fundo?) De pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja, por Deus. já que a pergunta pelo sentido global da existência é constitutiva e inevitável.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 28 de setembro de 2024

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (2)

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2. O que sou? Quem sou?

 

O que é o Homem? 

Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietzsche); um ser que cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos... Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14.000 milhões de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a destrutividade”.

Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se amanhã se der a clonagem e a partenogénese?

Os grandes espíritos - Diderot, por exemplo - deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?

Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, o que é que nos distingue? Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa. Pelo menos, é preciso manter a pergunta.

Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a animalidade.

O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”, escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer justiça pelas próprias mãos.

Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio, desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.

Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.

M. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra nenhum vestígio – mínimo que seja – nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não encontramos filosofia nem religião nem arte...

A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.

Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana. Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.

O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.

Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem, mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.

O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o:
O que é o Homem? O que sou? Quem sou?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de agosto de 2024