Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


121. TRABALHAR A FELICIDADE


Para Aristóteles o homem é um ser social, sendo a procura da felicidade a finalidade da vida, só no fim se podendo dizer se fomos felizes.

Há quem diga que a felicidade está nas pequenas coisas, num cheiro apelativo e sedutor matinal, em estados de alma.   

E quem sustente que é uma atividade, não um estado.

Se para uns o trabalho é escravatura, para outros é ser feliz.

Temos de trabalhar a felicidade, num equilíbrio entre interesses pessoais, impessoais e o trabalho, sabido que este, mesmo com amor e gosto, não preenche as nossas necessidades, menos ainda as espirituais.   

Necessário é o meio termo, para fixar o equilíbrio entre o esforço exigível para saber o que é indispensável à maioria das pessoas para serem felizes.

O que exige atividade e esforço, desde a alimentação, a habitação, o amor, reconhecimento e compensação profissional, saúde, respeito de quem e por quem nos rodeia. Para alguns, constituir família e ter descendência. Ou ter interesses por aquilo que não tenha uma importância prática na vida.   

Há interesses à margem das atividades essenciais da nossa vida que nos ajudam a manter o sentido das proporções, que são gratificantes e momentos felizes: uma boa leitura não relacionada com a nossa atividade profissional, ir a jogos, ao cinema, ao teatro, caminhar, correr, atividades e práticas desportivas, artes e cultura em geral. 

Segundo Aristóteles, sem amigos não se alcança a eudemonia, palavra grega que significa felicidade, sendo caso para dizer, exemplificando-o: se grande remédio do mal foi sempre a conversação, idem uma boa conversa a dois.   

 

14.10.22
Joaquim M. M. Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXX - A ARTE COMO IMITAÇÃO EM PLATÃO E ARISTÓTELES

 

1. Para Platão a arte é uma falsidade, porque uma aparência, uma imitação da realidade, um engano, uma mentira. A imitação do real, por mais perfeita que seja, é sempre ilusória, inviabilizando a compreensão do real, o conhecimento da essência das coisas, no seu sentido objetivo, real e verdadeiro.
Se para Platão o mundo concreto e sensível em que vivemos já é uma cópia do que tem como real e verdadeiro, em que os humanos e demais seres da natureza são cópias sensíveis de modelos originais de um mundo superior e inteligível, a arte afasta-se ainda mais do real, dado que imita a cópia, uma vez que a realidade sensível já é uma imitação do inteligível.   

O pintor, por exemplo, é um fingidor, imitador, mentiroso, falsificador da realidade, como o poeta também o é, simulando ambos para se poderem exprimir esteticamente, a exemplo de Fernando Pessoa, quando escreve:

 

O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente, 
que chega a fingir que é dor   
a dor que deveras sente.

 

E embora as imagens do tempo de Platão, comparativamente com as dos nossos dias, sejam uma brincadeira, por certo se “suicidava” se confrontado com a manipulação das imagens televisivas, cinematográficas, de propaganda e outras, que na sua realidade virtual nos condicionam permanentemente. 

 

2. Aristóteles, discípulo de Platão, defende que a imitação é benéfica, uma fonte de aprendizagem, de prazer, de caráter pedagógico, uma criação humana própria da nossa natureza.
Ao invés da negatividade não saudável associada à imitação platónica, a arte funciona na base de uma imitação e saudável mentira, sendo a representação artística uma representação com verosimilhança. Quando no cinema alguém dá um murro, o som respetivo não corresponde ao real, mas é verossimilhante, por isso o aceitamos, mesmo que corresponda a uma explosão de dinamite.

Sendo a arte uma produção humana, pode imitar a natureza, o material, o racional, o verosímil, o que está ao nosso alcance, mas também abordar e interpelar o espiritual, o imaterial, o infinito, o inatingível, o irracional, o inverosímil, suprindo o que está ausente no mundo natural. Que pode ter a utilidade prática de uma bênção, uma compensação, um refúgio, uma redenção, uma salvação. 
Entre a dissemelhança de Platão e a verossimilhança de Aristóteles, há o afastamento cada vez maior do real e a possibilidade permanente de a imitação criativa humana ser cada vez mais real. 
Ao mundo das ideias, que nos transcende, contrapõe-se o mundo concreto e terreno, onde vivemos, lembrando-nos uma obra prima de Rafael, “A Escola de Atenas”, de 1509, em que ao centro está Platão, de toga vermelha, e Aristóteles, de toga azul, dialogando, apontando o primeiro para cima, para o Céu, o mundo das ideias, e o segundo para baixo, para a Terra, o mundo humano e material, em que vivemos. 

19.12.2017 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A sóbria partilha

 

Aristóteles respondeu:

 

«A coragem proporciona os riscos corridos para o fim procurado. Ela mantém-se no meio justo entre estes dois excessos que são a cobardia e a temeridade» 1.

 

De fato se a temeridade muitas das vezes anda por inúteis riscos, a coragem já deve ter assento numa inteligente reflexão. Estudámos que o herói grego é a coragem liberta do medo da morte e despojada de interesse pessoal. Referimo-nos a uma virtude de fundo guerreiro e de onde a violência que abarca é purificada pelo próprio dom que envolve o sacrifício da coragem. Então a coragem nunca será reflexão pois não se trata de pensar, mas de agir. Diríamos que a reflexão do próprio pensamento pode inibir a coragem já que lhe mostra os perigos. Vamos um passo mais e saltamos ao conceito de heroísmo, e é este, e não a coragem, que implica o desinteresse da vida, já que o herói será aquele que se expõe quando podia abrigar-se.

 

Curiosamente também poderíamos concluir que o herói não é «razoável» já que se esquece do seu instinto mais vital. Então justificamos que há razões de viver que afinal valem mais do que a vida.

 

E há aqui doçura. Há a música nos campos de batalha dos filmes. Há aqui algo mesmo de misticismo, mas que só se revela em extremo mobilizado por uma engrenagem interna que faz despoletar uma espécie de conversão.

 

Contudo, existe heroísmo quando alguém se lança à água para salvar a vida de um desconhecido, e ainda assim, o heroísmo mais puro é o de todos os dias, o de toda uma vida de situações difíceis oferecidas como leves para se não tornarem pesadas aos que nos rodeiam.

 

Abrigamos dentro deste exemplo o recomeço depois do fracasso. É ele o grande segredo da coragem, o grande segredo do desprendimento do verdadeiro herói que sem querer ter perdido ainda exige de si dar lugar a valores superiores; afinal, valores superiores àqueles a que todos nos queremos, de um modo ou de outro, vermo-nos destinados, e por não sermos capazes de ir do tudo ao nada, nunca nos é oferecido esse caminho.

 

E se tudo isto tiver fios à alegria, chegada está a eternidade que nos muda: a sóbria partilha, como vocação.

 

Teresa Bracinha Vieira

1.Aristóteles, Ética a Nicómaco, Garnier , 1965

OS HUMANOS E OS ANIMAIS

 

II - PERSPETIVAS HIERARQUIZANTES E IGUALITARISMO CÓSMICO

 

1. Aristóteles não nega que o ser humano é um animal, embora racional. Todavia, a partilha de uma natureza animal comum, é insuficiente para que seres humanos e animais tenham igual consideração. Ao defender que o ser humano que era escravo era inferior ao que era livre, também era defensável o direito dos seres humanos dominarem os animais. A própria natureza é na sua essência uma hierarquia em que os que têm menor capacidade de raciocínio existem para servir os que a têm em maior grau. As plantas estão para os animais e estes para o ser humano. Se a natureza nada faz incompleto e em vão, é necessário admitir que tenha criado tudo para o ser humano. Se o imperfeito existe para servir o perfeito, o irracional para servir o racional, o ser humano, como animal racional, pode usar e dispor do que lhe é inferior para seu benefício, passando tal convicção para a civilização e tradição ocidental.

Porém, o apelo de que o humanitarismo inclui o respeito por todos os seres que são parte integrante do mundo natural, foi-se acentuando. Chegando a incluir um sentimento mais amplo de unidade e de amor universal com toda a natureza. Exemplifica-o São Francisco de Assis, que tinha como irmãos e irmãs o sol, a lua, a água, o fogo, o vento, os rios, as colinas, os campos, as rochas, as flores, as árvores, as aves, as cotovias, as borboletas, os coelhos, os patos, as ovelhas, os cavalos, os bois, os burros. No filme de  Franco Zeffirelli, São Francisco de Assis, (Brother Sun, Sister Moon, no original), são patentes sentimentos de amor universal, cantando-se o irmão sol e a irmã lua, as brisas suaves e reparadoras que sopram, as flores que deleitam o nosso olhar, o querer viver-se  como as aves no céu, sendo o seu protagonista tido, para muitos, como louco, por cantar como as aves, seguir as borboletas e olhar as flores.         Sobressaiem cada vez mais, nos nossos dias, preocupações ecológicas, segundo as quais o ser humano não tem (nem lhe foi conferido) um poder absoluto ou uma liberdade para usar e abusar dos seres não humanos, dado que nas relações com a natureza estamos sujeitos a leis biológicas e outras.

 

2. Independentemente de uma defesa sadia de todos os seres indefesos (humanos e não humanos) e haver pessoas que gostam mais de animais que de humanos temos, por um lado, os defensores de que o especismo é o grande adversário a abater, para bem da evolução e progresso civilizacional, ao lado dos que entendem que embora tal perspetiva igualitarista esteja na moda, não têm como exaltante tal igualitarismo, optando pelas perspetivas hierarquizantes, tendo a vida de um animal como um valor relativo e a humana como um valor absoluto. Se bem que aliciante e sedutor, o igualitarismo cósmico e o sofrimento igualitário, no seguimento de pensadores como Peter Singer e Tom Regan, é muito contestada a tese da igualdade de valor das vidas humana e não-humana, desde logo por se entender que quem dá mais valor à vida de um cavalo, de um cão ou de um gato do que à humana, é porque o dono lhe dá esse valor, e não por valer mais que a humana. Enquanto cada humano é um ser único da sua espécie, com um valor intrínseco e irrepetível, um animal é só mais um caso da sua espécie, que nunca sabe que errou, nem porquê, que pode ser abatido por poder ser uma ameaça ou um risco para os humanos e segurança pública (especialmente se de raças perigosas), não o devendo ser por vingança ou por ter culpa. Além de que se é necessário serem os humanos a defender os animais, por estes não terem capacidade de defender os seus direitos, isto parece negar a tese de que a vida humana e animal têm igual valor.

 

3. Como se justifica, então, que na hipótese de haver dois seres em perigo de vida, um humano desconhecido e o nosso cão, haja pessoas que salvem o seu animal, se só viável salvar um? Como explicar este maior afeto e simpatia pelo animal?
É usualmente dada como justificação a crise civilizacional que vivemos, onde primam ideias que duvidam das potencialidades humanas, tendo a nossa raça como malévola, perversa e sem redenção, o humano como um episódio gratuito da evolução, uma filosofia do absurdo, pondo o humanismo em causa, sem que as humanidades nos salvem. Só que, se o ser humano não tem capacidade para o bem que nele existe, como se compreende a contradição entre essa alegada ausência e a capacidade de bem que esses mesmos humanos têm ao defender os animais, dado que são estes que não têm essa capacidade para se defenderem? E se a fome e as guerras mostram o mal que há em nós, por oposição a um alegado pacifismo dos animais, como se justifica que a violência também exista em tantos animais que lutam e se matam entre si, quando não contra e em relação aos humanos? Ou há que distinguir entre animais domésticos de bom caráter e pacíficos e os selvagens de mau caráter e violentos, em paralelismo com os humanos bons, pacíficos e santos e os assassinos, psicopatas e de maus instintos? 

 

4. Aqui chegados, ideologias e sectarismos à parte, parece que o bom senso terá de prevalecer. Não sendo uma causa de direita ou de esquerda, é compreensível que sejamos pelos direitos dos animais, no sentido de serem estimados, não abandonados ou mal tratados, que se sancionem ou criminalizem os seus maus-tratos, o seu uso abusivo e infundado por malvadez, como bodes expiatórios e puro egoísmo humano. Mas respeitá-los e tratá-los bem, não implica abdicarmos de uma hierarquização de valores, entre o que é humano e os outros seres, se e quando na medida do suficiente e necessário. Tendo sempre presente que a dignidade humana é uma espécie de reserva e salvaguarda em qualquer sociedade, protegendo todos os humanos de quaisquer despotismos, dada a inalienabilidade e indisponibilidade de certos direitos, mesmo em relação aos bebés, deficientes ou incapazes, quando confrontados com animais adultos tidos, para alguns, como mais racionais e sensíveis. E se a capacidade de sofrer e sentir pode ser uma razão para ter direitos iguais aos humanos, desde logo, por extensão aos animais, por que não o é, perguntam outros, na mesma extensão e em igualdade de circunstâncias, para os animais terem deveres iguais, a começar pelo dever de pagar impostos? Mesmo quando incidem sobre animais de que são donos, são impostos sempre pagos por humanos, de tendência crescente nas sociedades urbanas e mais desenvolvidas onde, por vezes, a solidão humana é compensada e suprida pela posse de animais. Posse essa que, quando arrebatadora e obsessiva, também pode ser censurável, por manifestar uma atitude de arrogância e superioridade ao priorizar os animais, se em conflito com humanos, tendo-os como coisa sua, em termos absolutos.

 

10.01.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício