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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A CABECINHA ROMANA DE MILREU…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 11

 

Como não apaixonarmo-nos pelo património? Na tarde de domingo dia 5 de agosto em Querença na mesa quadrada sobre Literatura e Artes Plásticas vieram à baila as “Metamorfoses” de Jorge de Sena. E Mário Avelar recordou “A Cabecinha Romana de Milreu”. Uma preciosidade! Não poderia deixar de o fazer aqui em terra algarvia. Jorge de Sena veio ao Algarve em 1959, em fim de fevereiro, em companhia de Erico Veríssimo. E ficou com essa imagem bem marcada, como lembrança daquele momento em que também foi acompanhado pelo poeta Emiliano Costa (1884-1968), médico em Estói.

 

O que resta desse busto encontra-se no Museu Nacional de Arqueologia e é assim descrito: “Cabeça-retrato de uma jovem mulher, bem modelada, de traços expressivos e grande naturalidade. Tem o nariz fragmentado e pequenas falhas na superfície do queixo e do pescoço. É um bom retrato, realista, de feições corretas, tecnicamente bem executado. (…) Ostenta um característico penteado em “ninho de vespa”, a testa curta quase desaparece sob o diadema formado por uma cadeia tripla de caracóis sobrepostos, que as damas romanas mandavam armar sobre uma rede de fio ou de metal, e na parte anterior da cabeça uma mecha de cabelo enrosca-se em largo carrapito sobre a nuca descobrindo as orelhas. A moda deste penteado foi criada por Júlia filha de Tito e esposa de Domiciano, no período flaviano, tratando-se talvez mesmo de um retrato da própria imperatriz. (…) Proveniente da villa romana de Milreu (ruínas de Estói), este retrato espelha da melhor forma a riqueza, importância e a plena atualidade e inserção sociopolítica das elites municipais da Lusitânia meridional em finais do século I – inícios do século II d.C., adotando posturas e modas estereotipadas de evidente prestígio pela sua conotação com a casa imperial”.

 

Em 1963, já em Araraquara, Jorge de Sena pegou no registo poético da memória e escreveu um poema que bem ilustra a riqueza do Algarve, no modo como a literatura se alimenta da arte.  

 

«Esta cabeça evanescente e aguda,
Tão doce no seu ar decapitado,
Do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
Na sua boca as legiões não marcham,
Na curva do nariz não há povos
Que foram massacrados e traídos.
E uma doçura que contempla a vida,
Sabendo como, se possível, deve
Ao pensamento dar certa loucura,
Perdendo um pouco, e por instantes só,
A firme frieza da razão tranquila.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
Prados e rios, sombras e colheitas,
E teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
Que os deuses todos tornou seus, não tinha
Um rosto para os deuses. E os humanos,
Para que os deuses fossem, emprestavam
O próprio rosto que perdiam. Esta
Cabeça evanescente resistiu:
Nem deusa, nem mulher, apenas ciência
De que nada nos livra de nós mesmos».

 

Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 10 a 16 de julho de 2017.

 

A exposição do Museu Nacional de Arqueologia intitulada “Loulé: Territórios, Memórias, Identidades”, com coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui de Almeida, constitui uma oportunidade única para tomarmos contacto com o riquíssimo passado do Sudoeste Ibérico, uma das zonas da Europa mais ricas em termos arqueológicos, em razão de estarmos numa encruzilhada de povos e de influências, que muito tem para contar… 

 

 

PARTIR DO PIONEIRISMO
O trabalho pioneiro de Estácio da Veiga (1828-1891) tem de ser lembrado, quando visitamos a exposição do Museu Nacional de Arqueologia intitulada “Loulé: Territórios, Memórias, Identidades” (como dissemos com a competente coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui de Almeida). Partindo da riqueza histórica e patrimonial algarvia, como encruzilhada entre o Mediterrâneo e o Atlântico, temos um conjunto de informações, materiais e conhecimentos, inicialmente destinados a um Museu Arqueológico do Algarve. Estamos diante de uma narrativa que conta a evolução das comunidades que constituíram o cadinho deste extremo ocidente mediterrânico, desde a Pré-História à Idade Média, a partir de vestígios arqueológicos e fontes documentais recolhidos e conservados ao longo do tempo, com persistência e rigor científico. Como diz Lídia Jorge: “Aqui tudo fala de um tempo antes da História, em que a África estava unida à Europa, e ao mesmo tempo tudo esconde. Depois, muito mais tarde, quando as ervas deram flores, e já existiam homens para colhê-las, levas sucessivas de povos do mundo pré-histórico aqui vieram fixar-se, porque ali havia terra boa, sol brilhante e mar tranquilo, e era após era, foram deixando o rasto das suas mãos fabricadoras no solo generoso que habitaram. Hoje, passados milhares de anos, o movimento é semelhante…”. Estas palavras são as de quem ama e lembram aquele pequeno azulejo com que meus avós acolhiam os forasteiros: “Bem-vindo seja quem vier por bem”. Ao encontrar agora Joaquim Romero Magalhães, lembrei-me das conversas com seu Pai, a invocar a terra vermelha que acolhe a cultura destes campos de fecundidade exigente, as memórias antigas de muitas gerações de gentes diversas e heterogéneas, para quem a rede de pesca e o arado, a proa da embarcação de inspiração grega e fenícia, a açoteia e a nora se complementam naturalmente, de modo milenar e as identidades abertas capazes de unir e complementar judeus, cristãos e árabes, na riquíssima herança moçárabe.

 

DESDE AS MAIS ANTIGAS RAÍZES
Das antigas sociedades camponesas, entre 6 mil e 2 mil antes da nossa era, encontramos a bilha da Retorta (Boliqueime), os menires do Serro das Pedras, o sítio do Forte Novo, o povoado do Cerro do Castelo de Corte João Marques (Ameixial) com uma instimável riqueza desde a cerâmica e pedra à metalurgia do cobre. Para a Idade do bronze, apesar da míngua de elementos, temos da necrópole da Vinha do Casão (Vilamoura) cerâmicas, artefactos metálicos e de pedra. Na Idade do ferro, temos os fantásticos vestígios da cultura que possuía uma forma de escrita gravada sobre estelas, a escrita do Sudoeste, derivada do alfabeto fenício, cuja decifração constitui grande desafio para os dias de hoje. É a “pedra com letras que não se dá conta de ler”, de que o povo fala. No tempo do império romano instalam-se as villae e propriedades agrícolas, que vão permitir a ligação dos produtos da terra aos preparados de peixe, exportados em ânforas de barro. Para este tempo, o Cerro da Vila (Quarteira) é um caso de requinte e progresso (lembremos a belíssima cabeça feminina de mármore dos séculos II-III d.C.). Depois, bizantinos, visigodos e árabes continuarão aqui, com novas culturas, para além da oliveira, como a alfarrobeira, a figueira ou a laranjeira. E, na chamada Vila Moura, que deu origem ao moderno topónimo, foram encontradas esculturas, mosaicos, vidros, cerâmica fina, lucernas e adornos femininos.

 

QUINHENTOS ANOS…
Os povos de língua árabe estiveram 500 anos no Algarve, mas continua a haver um grande desconhecimento da sua influência. Loulé não tem uma matriz romana, mas muçulmana – daí o processo lento da sua construção. As cidades de influência moura ou árabe ou nascem da vontade política ou de uma dinâmica local. No caso de Loulé prevalece a riqueza agrícola do barrocal e, como Tavira, singulariza-se pela dimensão mercantil – daí abranger as três zonas algarvias e ter das principais vias usadas pelos almocreves em direção ao Alentejo. Agricultores, pescadores, mercadores movimentavam-se intensamente no maior concelho meridional. Sinal de progresso está nos banhos árabes de Loulé, para lazer e purificação do corpo, a que se refere a poesia árabe, que demonstram estar-se em Madinat al-‘Ulyà no auge da época almóada (séculos XII-XIII) muito para além da economia de subsistência. É uma identidade aberta a que aqui se encontra… No século XI, Loulé ainda era uma aldeia ou alcaria que se desenvolveu num vasto território com 45 por cento de serra xistosa e de mato, 40 por cento de barrocal calcário e 15 por cento de litoral. E se Loulé não tem porto, o litoral permitiu o contacto com as navegações de fenícios, gregos, cartagineses, romanos e normandos. Os pescadores algarvios irão nas caravelas e o Morgado de Quarteira servirá de laboratório para as ilhas Atlânticas a cultura da cana-de-açúcar. Compreende-se a afirmação de Orlando Ribeiro: “A civilização mediterrânica é (…) uma civilização da pedra, consequência da intimidade do homem com este elemento, que ora elimina nas terras de cultura ora utiliza na maior parte das suas obras materiais; daí o carácter construído da paisagem mediterrânica, tanto nas formas de povoamento como na organização do campo”. Ora, a pedra usada em valados, muros de suporte e de resguardo, caminhos, pontes, aquedutos, forro de poços é um precioso elo com a longa duração. A cada passo descobrimos vestígios antigos, onde se manifesta a sobreposição de gerações e de tempos. “Mas o Algarve não é o jardim do Éden” – ensinava ainda Mestre Orlando. “Olhe-se como os campos e os arvoredos estão encerrados por afloramentos de calcário estéril. Repare-se como, por toda a parte, os muros de pedra, as belas sebes de opúncias, a casa esparsa e o entrecruzar de caminhos, mostram até que ponto a terra está ocupada”. Foi a fragmentação dos reinos taifas que facilitou a reconquista cristã… O Al-Gharb do Al-Andaluz compunha-se de distritos militares (Faro e depois Silves), comarcas civis e rurais, casais e aldeias (alcarias), cidades amuralhadas e castelos, de pedra ou de taipa. O Mediterrâneo funcionou como ponto de encontro, como zona de intenso relacionamento do Oriente e do Ocidente, que se interpenetram. Aqui encontramos as cerâmicas finas da Gália, o azeite de Sevilha, o preparado de peixe da Bética – e daqui saem os figos secos, as amêndoas e as laranjas… Isto, enquanto culturalmente o moçarabismo permite o diálogo fecundo entre judeus, cristãos e árabes – sendo a Península Ibérica, com Constantinopla, eixo da renovação do pensamento europeu, graças ao progresso técnico vindo da Ásia, através do Levante, e à redescoberta da filosofia grega. Perante este repositório apaixonante de referências antigas, desde as raízes aos tempos de memória mais próxima, “de todos recebemos pedaços da história local, regional, nacional e todos, todos, são Loulé”.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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