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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

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   De 7 a 13 de dezembro de 2020

 

Gonçalo Ribeiro Telles publicou na revista “Cidade Nova” (nº 4, IV série, 1956) um texto pioneiro sobre a valorização da Paisagem, que merece lembrança. Hoje damos uma breve nota sobre o percurso político do nosso sócio número 1.

 

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CORAGEM POLÍTICA E ECOLÓGICA
Aquando das devastadoras inundações na região de Lisboa de novembro de 1967 uma voz desassombrada ergueu-se na televisão, rompendo as barreiras da censura, a denunciar o que se tinha passado. Então o jovem arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles veio explicar, num tom simultaneamente pedagógico e politicamente assertivo, que o desastre não era devido a um acaso nem à revolta das forças da natureza. A catástrofe, em que morreu um número muito elevado de pessoas (cuja dimensão real foi escondida), em que foram arrasadas habitações, campos e estradas, deveu-se, afinal, a uma confrangedora falta de ordenamento do território e à ocupação de leitos de cheia e de cabeceiras das bacias hidrográficas por gente que vivia em condições miseráveis de habitação. Ouvia-se quem, provindo do curso livre do Instituto Superior de Agronomia de Arquitetura Paisagista, criado por Francisco Caldeira Cabral, em 1942, em articulação com o Departamento de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, do grande mestre Orlando Ribeiro, projetava para a sociedade portuguesa a necessidade de ligar o desenvolvimento económico à preservação ambiental. Contudo, o jovem arquiteto paisagista que deitava a pedra no charco, não era um neófito político. Católico e monárquico, era um cidadão democrata de horizontes abertos e audaciosos. Há muito que exprimia os seus pontos de vista com grande coragem. Em 1958, acompanhara outros monárquicos, como Luís de Almeida Braga, Vieira de Almeida, Rolão Preto ou Francisco de Sousa Tavares no apoio à candidatura presidencial do General Humberto Delgado. Em 1945 participara na fundação do Centro Nacional de Cultura, com Fernando Amado, Afonso Botelho, António José Seabra e Gastão da Cunha Ferreira e em 1957 apoiara a eleição de Sousa Tavares para a presidência do Centro, participando na fundação do Movimento dos Monárquicos Independentes, de feição constitucionalista.

Como cristão inconformista, subscreveu em 1959 dois documentos, que constituem marcos decisivos na preparação de uma nova fase na vida da Igreja em Portugal, após a tomada de posição do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e antecipando a decisão de João XXIII de convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II. Gonçalo Ribeiro Telles será um militante ativo da nova mentalidade conciliar, ao lado dos seus amigos António Alçada Baptista e Sophia de Mello Breyner Andresen, na geração de “O Tempo e o Modo”. Aí se inserem tais documentos! Em fevereiro, o texto é sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos – onde o visado é Salazar, por ter dito que havia “alguns católicos”, que tinham rompido com a “frente nacional”, considerando que o assunto oferecia “graves implicações no que respeita à Concordata e mesmo ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja”. Os signatários diziam, porém, que a Igreja não podia ser acusada de hostilidade ao Estado Novo, mas se a Ação Católica não fazia política, não deveria alhear-se do mundo. De facto, os católicos tinham o direito e o dever de se interessarem pela política – com sérias razões “para julgar que o atual regime descura aquele mínimo de respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos, sem o qual se deve pôr em dúvida o seu acordo com a doutrina cristã”. Em coerência com estas preocupações o grupo dirigiu-se a Salazar, em 1 de março – para falar “sobre os serviços de repressão do regime”. Com exemplos concretos de desrespeito pelos mais elementares direitos previstos na própria Constituição, os signatários concluíam: “Se outros católicos, e também V. Exª, julgarem que os signatários abusam dos seus direitos de simples católicos, resta-lhes a esperança de terem procedido de acordo com as exigências da sua consciência da mesma forma que eventualmente V. Exª o fará também. E só Deus julgará a todos”. Os textos são claríssimos e marcam o início de um novo tempo, que aponta para a afirmação dos valores democráticos que culminaria na revolução de 1974. Além de Gonçalo Ribeiro Telles, encontramos entre os autores os Padres Abel Varzim e Adriano Botelho, Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, António Arnaut, Francisco Lino Neto, Francisco de Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner, João Bénard da Costa, João Gomes, Padre João Perestrello, José Escada, Manuel Bidarra, Manuel de Lucena, M. S, Lourenço, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira, Orlando de Carvalho e Vítor Wengorovius. A iniciativa merece uma atenção redobrada, já que entre 11 e 12 de março teria lugar o chamado “golpe da Sé”, que Mário Soares no Portugal Amordaçado considera como “um movimento de clara inspiração católica, embora com a participação importante de elementos não católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas”, sendo a alma civil da conspiração, Manuel Serra, antigo dirigente da juventude católica e apoiante do General Delgado.

 

O MANIFESTO DOS 101
Outro documento fundamental subscrito por Gonçalo foi o chamado Manifesto dos 101, de 25 de outubro de 1965, com muitos subscritores de 1959, num grupo mais alargado (onde se encontrava José Pedro Pinto Leite, que viria a integrar a Ala Liberal do tempo de Marcelo Caetano): onde se repudia a violência e o ódio com a maior firmeza, se defende uma cultura de paz e o respeito pelas Nações Unidas, se realçam os princípios da encíclica “Pacem in Terris” e do magistério de Paulo VI, se alerta para os problemas complexos e urgentes levantados pela política ultramarina, se denuncia a repressão da PIDE, os processos judiciais iníquos, os entraves no acesso a lugares públicos e empregos particulares, as buscas domiciliárias e a vigilância policial. Gonçalo Ribeiro Telles foi, assim, um cidadão completo – desde a oposição política democrática até à participação ativa na preparação da vida democrática. Esteve ao lado do pioneirismo de José Correia da Cunha na Comissão Nacional do Ambiente e foi um governante influente depois de 1974 (fundador do PPM, da AD e do Movimento Partido da Terra), sendo autor de medidas fundamentais, como a defesa dos melhores solos agrícolas, do coberto vegetal, do relevo natural, até à classificação das áreas adstritas à conservação da natureza e da paisagem. O seu comunalismo significa, no fundo, uma democracia centrada na dignidade humana, no primado da pessoa humana e numa ecologia global, centrada na equidade entre gerações. Manuel Alegre disse por isso: “talvez a culpa seja minha, porque fui deputado e participei na construção de uma democracia que a páginas tantas se distraiu e não soube resolver problemas estruturais, como o reordenamento do território e das florestas, assim como o combate ao abandono e à desertificação do país. Não se ouviu como se devia ter ouvido o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. É certo que por vezes protestei, mesmo contra o meu próprio partido. Mas não foi suficiente. Não consigo calar-me e sinto-me culpado” (2017). A afirmação merece atenção especial. Estamos a tempo de não esquecer o exemplo e a experiência de quem deixou um testemunho político essencial. Os jardins da Fundação Gulbenkian são uma das suas obras emblemáticas, cuja autoria partilhou com António Viana Barreto. Um dia perguntaram-lhe o que desejava para Portugal – e respondeu: gostaria que se tornasse uma espécie de Gulbenkian…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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   De 16 a 22 de novembro de 2020

 

“Gonçalo Ribeiro Telles - A Fotobiografia”, de Fernando Santos Pessoa (Argumentum, 2011) - é um repositório rigoroso que nos apresenta a personalidade fascinante de alguém a quem muito Portugal deve, como defensor determinado da natureza e do meio ambiente e como cidadão empenhado na salvaguarda da cultura portuguesa.

 

CNC _Gonçalo Ribeiro Telles – A Fotobiografia.j

 

MODELAR A PAISAGEM

“O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. (Cidade Nova, 1956, IV série, 4). Esta citação pioneira é emblemática de um percurso riquíssimo e exigente – que nos deixa uma herança que temos de respeitar e prosseguir. Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência da sociedade portuguesa pela ligação que sempre soube estabelecer entre a cidadania e o exercício apaixonado da sua profissão de arquiteto paisagista, discípulo de Francisco Caldeira Cabral - com quem escreveu o fundamental “A Árvore em Portugal”, defesa intransigente das culturas tradicionais. Nunca o vimos indiferente em relação a qualquer tema relevante que pudesse ser discutido em qualquer momento. Por isso, Eduardo Lourenço chamou-lhe “Jardineiro de Deus”. Quando a defesa do meio ambiente e da qualidade de vida era ainda algo muito distante e quase exótico relativamente às preocupações imediatas, por muito que o tema começasse a ser discutido no inicio dos anos setenta com crescente projeção comunicacional, a verdade é que desde sempre, a partir das origens do Centro Nacional de Cultura, nos anos quarenta e cinquenta, e da revista “Cidade Nova”, Gonçalo Ribeiro Telles pôs a tónica na dignidade da pessoa humana inserida numa natureza respeitada e equilibrada. Daí que não seja estranho que o encontremos, e a muitos dos seus amigos mais chegados, como Henrique Barrilaro Ruas, João Camossa Saldanha, Luís Coimbra ou Augusto Ferreira do Amaral em movimentos alargados na defesa da liberdade e da democracia. Dir-se-ia que é natural essa ligação e esse caminho de abertura e de inconformismo. Liberdade e tradição estão intimamente ligados ao magistério deste homem singular para quem o amor à terra e à História era algo tão natural como o ato de respirar. No entanto, para Gonçalo Ribeiro Telles a tradição não se confundia com o que se repete ou com qualquer inércia que se impõe contra o dever de completar e enriquecer pelo valor humano a herança recebida das gerações que nos antecederam. Tradição é traditio, isto é, a capacidade de transmitir generosamente e em movimento o que cada geração herda e cria. Mas a traditio é, por essência, dinâmica – daí o movimento de dar e receber, enquanto a revolutio é o regresso ao mesmo ponto de partida, num movimento circular. O seu empenhamento monárquico deve-se a esta conceção genuína baseada na tradição. A pessoa e a comunidade são elementos cruciais – como o património cultural, material, imaterial, natural, paisagístico, até às tecnologias novas e à criação contemporânea. Patres e múnus, o dever de preservar a herança dos nossos pais, eis o que tem de ser lembrado. Assim, Gonçalo Ribeiro Telles sempre se manifestou como um espírito livre para quem o mais importante são as pessoas e não os regimes formais. Daí o seu comunalismo de base – e a sua capacidade para debater e refletir com todos.

 

ECONOMIA PARA AS PESSOAS

A economia existe para as pessoas. As culturas tradicionais devem ser preservadas e protegidas - uma vez que correspondem àquilo que o tempo testou através do exemplo e da experiência. Veja-se como a preservação do património tem de seguir os métodos e os materiais tradicionais. A sociedade constrói-se pela confluência fecunda entre a singularidade das pessoas e o bem comum. A obra da autoria do Arquiteto Fernando Santos Pessoa dá-nos o percurso humano do homem, cidadão atento, disponível, generoso, capaz de fazer do diálogo entre as pessoas e a natureza algo de vivo e perene. Nada lhe era indiferente, e com que entusiasmo o víamos abraçar as causas que realmente valem a pena. Na cidade bateu-se pelos corredores verdes, pelas hortas urbanas, por um urbanismo que pusesse as pessoas em primeiro lugar. No campo, compreendendo Portugal como um rico continente em miniatura, como Orlando Ribeiro ensinou, pugnou sempre pelo respeito do que nos foi legado desde tempos imemoriais. E invoco especialmente o muito que o Centro Nacional de Cultura lhe deve. Gonçalo Ribeiro Telles é o elo que liga à primeira geração do Centro, fundado por António José Seabra, Afonso Botelho e Gastão da Cunha Ferreira, num tempo em que Almada Negreiros e Fernando Amado ligaram cultura e teatro, conferências e debates, convívio e reflexão. Depois, foi o momento de Sophia de Mello Breyner, de Francisco de Sousa Tavares, de António Alçada Baptista - até à presença luminosa de Helena Vaz da Silva... Gonçalo foi uma presença permanente e ativa no CNC, nunca deixando que a cultura fosse de mera circunstância. E foi assim que a cultura no CNC se tornou ciente de que a criatividade e a ecologia andam a par, como uma ética pública de liberdade e responsabilidade, de cidadania e de respeito da dignidade humana.

 

UM PERCURSO POLÍTICO

Com António Viana Barreto foi o autor do projeto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, galardoado pelo Prémio Valmor de 1975. Um dia, disse, aliás, que a sua ambição para Portugal era que se tornasse uma espécie de Gulbenkian. Não por acaso, foi o Coro da Gulbenkian que acompanhou as cerimónias religiosas de despedida de Ribeiro Telles no Mosteiro dos Jerónimos. Em 2013 foi galardoado com o Prémio Geoffrey Jellicoe, o “Nobel” da Arquitetura Paisagística. Consciente da importância da cidadania ativa, teve uma participação política corajosa que determinou a consideração como persona non grata do antigo regime, com consequências gravosas. Apoiou Humberto Delgado, com Luís Almeida Braga, Rolão Preto e Vieira de Almeida, também monárquicos; subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura, e da repressão; participou ao lado de Mário Soares, Sophia e Francisco de Sousa Tavares em 1969 na CEUD; interveio no Congresso da Oposição Democrática; fundou o PPM e foi membro dos governos provisórios da democracia, foi um dos líderes da Aliança Democrática com Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral, foi vereador independente nas listas do Partido Socialista no Município de Lisboa e fundou o Movimento Partido da Terra (1993). O corredor verde de Lisboa, a ele se deve, e o novo Parque da Praça de Espanha terá o seu nome; Lisboa Capital Verde da Europa tem-no como inspirador. Muito devemos a Gonçalo Ribeiro Telles – por isso é com legítimo orgulho que o lembramos como mestre da liberdade, da dignidade e do humanismo.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
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