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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


High Sunderland é mais do que uma casa, é uma forma de viver. 


Uma casa é de uma pessoa, mas para que uma pessoa consiga fazer parte integral de uma casa é preciso que exista uma ligação e um entendimento intrínseco e visceral de tudo o que rodeia e pertence a um determinado espaço e lugar. Shelley Klein no livro The See-Through House. My Father in Full Colour escreve que High Sunderland está mapeada no seu sangue e que intuitivamente consegue reconhecer cada espaço, canto, luz e textura desta casa. 


Situada no sul de Galashiels na Escócia, High Sunderland foi desenhada, em 1958, pelo arquiteto Peter Womersley (1923-1993) para o designer têxtil Bernat Klein (1922-2014). 


Ao estudar em Jerusalém, nos anos 1940, o jovem sérvio Bernat Klein, contactou pela primeira vez com as ideias da arquitetura do movimento moderno e da Bauhaus (foi a Bauhaus que iniciou uma produção criativa que acreditava no ato de construir como sendo a amálgama de todas as artes e por isso as formas resultantes afirmavam a geometria abstrata, a pureza da luz, a verdade dos materiais e a sensorialidade das texturas). Ao mudar-se e fixar-se na região escocesa das Scottish Borders, estas ideias modernas de Bernat Klein aproximaram-no do arquiteto Peter Womersley.


A linguagem, usada por Peter Womersley nos projetos de pequena escala, foi, por sua vez, muito influenciada pela arquitetura cada vez mais vernacular de Le Corbusier (que a partir dos anos 1930, começou a interessar-se por formas mais tradicionais e pelo equilíbrio entre as pessoas, as formas construídas e a paisagem); pela arquitetura moderna americana (nomeadamente pela Fallingwater (1935) de Frank Lloyd Wright mas também pelas casas desenhadas no âmbito do programa ‘The Case Study House’ lançado pela revista californiana Arts and Architecture); e finalmente pela novíssima arquitetura brutalista afirmada por Alison and Peter Smithson na escola de Hunstanton (1949-54). Womersley trabalhou durante um período em que o movimento moderno, cada vez mais aceite e conhecido por muitos, foi sendo cada vez mais absorvido e explorado localmente de modo a entrar numa polaridade claramente definida com o natural e com o orgânico. (Curtis 2005, 320)


É preciso fazer notar, que a influência da arquitetura do movimento moderno só se começou a sentir no Reino Unido a partir de meados de 1930 - este fenómeno coincidiu com a imigração de muitos arquitetos e artistas vindos da Alemanha, onde a arquitetura moderna começava a ser reprimida. 


High Sunderland é mais do que uma casa, é uma forma de viver. Pertencer, fez parte de uma ideia moderna renovada que se preocupava não em criar uma casa para um ser genérico mas para uma pessoa particular e para um lugar específico e por isso preconizava uma solução única e irrepetível.


High Sunderland ao ser uma caixa térrea envidraçada, está constantemente cercada e envolvida pelas texturas e pelas cores mutáveis da paisagem. Os panos de vidro levaram a habitação a ser apelidada de See-Through House. E a singularidade desta casa, está precisamente no facto dos vãos envidraçados serem separados horizontalmente por faixas brancas e verticalmente por painéis de madeira Makore (a madeira funciona como um eco de todas as árvores que rodeiam a casa). 


Womersley combina assim, a estrutura rígida e geométrica do aço branco, muito característica da máquina de habitar, com a introdução de uma variedade de materiais e de cores - através do uso da madeira, da pedra, dos tecidos de Bernat Klein e da densa vegetação. Na verdade, os primeiros esboços para High Sunderland não incluíam panos de madeira mas favoreciam o uso de pedra local - porém a escolha da pedra provou encarecer demasiado o projeto.


O uso do espaço aberto interno foi maximizado e simplificado através da eliminação de desnecessários corredores e paredes. Existia uma intenção em acentuar a flexibilidade modular da planta livre pelo uso de painéis, que tinham como objetivo permitir futuras modificações ou extensões. Separam-se então, através de painéis de madeira ou envidraçados, áreas para estar, trabalhar, dormir, comer, brincar, cozinhar e lavar, como se de volumes dentro de um grande volume se tratasse. A sala principal tem o piso rebaixado - o que permitia a Bernat Klein realizar neste espaço desfiles de moda para a sua empresa de têxteis. Grande parte da mobília foi feita por medida, com o propósito de servir a casa. A parede de mosaicos e todos os tecidos foram pensados por Bernat e Margaret Klein.


A casa, deste modo, permite um envolvimento total com o que existe à volta. Qualquer pessoa que aí viva, confunde-se com a paisagem e fará sempre parte daquele lugar. High Sunderland consente esta mistura e aproximação, concede ser o reflexo das árvores e abre-se à flexibilidade das tarefas mais banais.


‘A plain-sided glass box sitting on a hill could easily seem frail or banal; (however) the contrasts of solid and void, varnished boarding and full glazing, within the white frame, give the house strength and character.’, Michael Webb (Klein 2020, 24) 


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O Festspielhaus, em Hellerau, é o laboratório de uma nova humanidade.


O teatro Festspielhaus (1911) que Heinrich Tessenow (1876-1950) projetou, na cidade jardim de Hellerau, é a materialização viva de um espaço que consagra o encontro do corpo com o espírito. 


O Festspielhaus em muito contribuiu para estabelecer o movimento alemão da reforma da vida, naquele pequeno lugar urbano. Ao ser o centro de Hellerau (a rua principal atravessa a praça que se abre em frente à fachada do teatro) e ao combinar harmoniosamente a natureza, o trabalho e a arte, é uma crítica concreta e aberta em relação à crescente industrialização, ao materialismo e à urbanização massiva.


O desenho de Tessenow desejava encontrar a ligação entre o templo e a casa, através da forma clássica e vernacular simplificada onde a geometria e a proporção têm mais importância do que o detalhe.


Alan Colquhoun no livro ‘La Arquitectura Moderna una Historia Desapasionada’ explica que uma das principais preocupações de Tessenow era a vivenda coletiva e o problema da repetição. Tessenow teve oportunidade de estudar e testar esta e outras questões em conjunto com outros arquitetos tais como Behrens, Riemerschmid e Muthesius no projeto das casas desenvolvidas em Hellerau. Estes arquitetos foram influenciados por modelos urbanos medievais, de espaços irregulares, estreitos e encerrados, defendidos por Camillo Sitte. Os projetos residenciais de Tessenow apoiavam-se na teoria que idealizava a pequena burguesia como a base da ordem social alemã e, por isso, este arquiteto imaginava e ansiava por pequenas cidades (de 20,000 a 60,000 habitantes) que viviam de pequenas indústrias artesanais (com não mais de 10 artesãos por oficina). A rejeição da civilização altamente industrializada, era muito próxima das ideias de John Ruskin, mas Tessenow mantinha uma preferência pelas formas clássicas. 


Tessenow, ao projetar o principal edifício de Hellerau, optou por desenhar um auditório alto, retangular, despojado e colunado, que contrasta com as alas laterais de aspeto mais vernacular. A inclinação do frontão bastante acentuada, segundo Colquhoun, ilustra a intenção de Tessenow em fundir os protótipos alemão e latino. (Colquhoun 2005, 63)


Na opinião de Colquhoun, esta obra de Tessenow revela uma singular qualidade de abstração e pureza formal que anuncia a obra de Mies van der Rohe e que corresponde ao espírito grego das cenografias unitárias de Adolphe Appia e ao ensino da música baseado no movimento corporal expressivo e improvisado de Émile Jaques-Dalcroze. 


O Festspielhaus, além do teatro e dos edifícios residenciais para professores e alunos, inclui também espaços abertos de luz e de sol ao seu redor. No seu interior a ausência de palco e de cortina faz com que os espectadores e os artistas se fundam numa só unidade de corpo e de alma A orquestra encontra-se num fosso subterrâneo completamente escondido dos olhos do público e que poderia ser fechado se necessário. As encenações de Adolphe Appia no Festspielhaus puderam, a partir de então, finalmente ficar unificadas através do controlo da intensidade da luz, dos movimentos dinâmicos e tridimensionais dos actores em palco e dos cenários perpendiculares e profundos.


Em Hellerau celebrava-se a arte como meio para educar e esta era tida como uma exigência social do seu tempo. É através do movimento que se entende o mundo e o espaço flexível, retangular e neutro concebido por Tessenow tem a capacidade de incluir os ritmos orgânicos, imprevistos, não controlados e inesperados do corpo que pretendia desafiar a nova sociedade industrial. 


O Festspielhaus é o laboratório de uma nova humanidade onde os opostos se complementam e os conflitos se dissolvem. Aqui as pessoas, através do improviso dançam por um mundo melhor. O movimento do corpo apresentava-se então como a alternativa possível para recuperar o poder do orgânico. O projeto de Tessenow é, deste modo, a charneira entre o urbano e a natureza, entre a geometria e o espontâneo, entre a unidade e a separação, entre o estático e o móvel. 


No centro do frontão ao estar esculpido o símbolo yin e yang consegue-se entender que a dualidade existente em todo o universo é a força subjacente deste teatro em forma de templo. O Festspielhaus é assim uma afirmação de que nada deve existir em estado puro, nem em absoluta quietude. Tudo deve, portanto, estar em constante movimento e em contínua transformação, através do corpo que se exprime livremente.


Appia chamou por isso ao Festspielhaus a catedral do futuro, porque a atenção total sobre a pessoa humana que se move e que tudo abrange ao desenvolver as suas habilidades rítmicas, poderá ter o impulso necessário para propagar a ideia de uma vida mais natural, holística e ecológica. E em Hellerau, sem dúvida iniciou-se uma renovação expressiva fundamental, do corpo e do espírito, mas que com a eclosão da Primeira Grande Guerra terminou abruptamente. 

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Em 1999, na conferência ‘The Impact of shopping on the Urban Condition’ Rem Koolhaas, na Architectural Association, dá a entender que a precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Na opinião de Koolhaas, comprar é a derradeira atividade do ser humano e corresponde a uma fase final do processo de modernidade. O ato de comprar e consumir muda parâmetros espaciais, cria uma supersaturação irreversível e corrói tudo o que se relaciona com ideias de civilização e de progresso. Para Koolhas, foi Jane Jacobs - que ao identificar aspetos da vida urbana que considerava significativos - redescobriu a rua como sendo o único lugar onde se pode encontrar verdadeira diversidade e implementou uma urbanidade que incorporava inerentemente as capacidades de consumir em permanência. 


É através do marketing e da psicologia que se define o espaço urbano atual. O ato de comprar faz com que a cidade se defina como um grande parque temático de gratificação individual imediata, permanente continuidade e constante interação entre as outras diversas atividades.


A cidade que vive só do consumo está em constante processo de erosão. Vive dos desejos de controlo e previsibilidade dos seus consumidores e transforma-se numa marca que é explorada ininterruptamente. Koolhaas explica, por exemplo, que Singapura abandonou o modelo de cidade e substituiu-o pelo modelo de um centro comercial. Este modelo é propositadamente não é estável, não fixo e não constante e por isso mesmo baseia-se numa imprecisão e numa neblina sem forma. Singapura transformou assim o seu plano urbano numa coleção de palavras e conceitos, em vez de uma coleção de formas. 


Também Koolhaas esclarece que, Las Vegas, segundo Venturi, é o sistema do centro comercial que prevalece sobre uma circunstância urbana sem forma e sem configuração. Não é arquitetura de que se trata mas de uma ecologia - uma nova condição de completa artificialidade, inteiramente interna e iconograficamente ininteligível.


Para Koolhaas, o sistema comercial é uma ecologia, isto é, um sistema que estuda as relações intrínsecas dos seres com o seu meio. E o comportamento das formas dedicadas somente ao consumo tem sempre um núcleo com tentáculos que enriquecem o seu perímetro e que o tornam mais recetivo à interação. Este sistema tem um efeito denominado replascape, que consiste na interseção entre o design e a paisagem e cria automaticamente uma natureza interior falsa. São talvez estas leis da ecologia que, segundo Koolhaas, expliquem as formas excêntricas e hiperformalistas da nova condição urbana.


Desta nova condição urbana, baseada nas formas do consumo, resulta um novo tipo de espaço que Koolhaas chama de junk space. Para Koolhaas, junk space é aquilo que resta após a modernidade ter feito seu curso. Junk space é o lixo tóxico da modernidade. Junk space parece um rearranjo de uma condição espacial pré-ordenada. Pensa-se que seja uma aberração, mas, na verdade é a essência da condição contemporânea e da cultura do descartável. Junk space é intrincado e ambicioso, é incompreensível e imemorável, é overdose e ao mesmo tempo fragilidade que o torna impossível de ser descrito como espaço.


Para Koolhaas, Junk space é assim um novo modelo que existe não só além da geometria, mas além do padrão. Não pode ser compreendido, nem pode ser relembrado. Recusa-se a congelar, é amnésia contínua e é conversão permanente. Junk space é tão débil e inconstante que obriga a abandonar qualquer expectativa de estabilidade. A condição do junk space é sempre provisória, em permanente estado de se tornar e em constante movimento. Na regra clássica a materialidade era baseada numa condição definitiva, que só poderia ser modificada através da destruição parcial ou total. Junk space é sempre provisório e sempre pronto a ser consumido - esta condição é a norma e dita a sua materialização. Matéria e componentes agora são escolhidas pela sua maior capacidade de mutabilidade, flexibilidade, rompimento e maleabilidade.


Sendo assim, a essência do espaço atual é profundamente alterada por causa do excesso de consumo, e por consequência todo o modo de pensar arquitetura é moldado por esta condição.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Na opinião de Rem Koolhaas, a cidade contemporânea é desconexa e vive da interrupção permanente. 


‘I believe in uncertainty. In order to be really convinced of something you need a profound dislike for almost everything else, so that it’s crucial in certain projects to explore your phobias in order to reinforce your convictions.’, Rem Koolhaas (Finding Freedoms: Conversation with Rem Koolhaas, El Croquis 53+79, 2005)


Na conversa com Alejandro Zaera publicada na revista El Croquis 53+79, lê-se que Rem Koolhaas embora, no início dos anos oitenta pensasse a arquitetura como um eco, como um processo de réplica, que faz parte de um manifesto retroativo e que cria continuidade, acredita agora no potencial da invenção.


Um projeto depende intrinsecamente das condições existentes. Mas a capacidade crítica e decisiva tem de ser subjetiva, específica e única. Projetar sim sem juízos prévios, mas de modo a contradizer a desconstrução e a inevitabilidade, de modo a não ser caos nem representação. Para Rem, projetar é um ato simultaneamente intuitivo e explícito, ambíguo e literal, subentendido e manifesto. É um ato que se faz sem pensar nas consequências, mas existe para encontrar soluções e propor conceitos - por isso a ideia de tábula rasa de Le Corbusier é uma noção importante para Koolhaas porque nem tudo tem a capacidade de ser eterno. O culto da paranoia e a interpretação do delírio, para Koolhaas poderá ser o estímulo que despoleta novas ideias e novas maneiras de ver o mundo: ‘…it is for me as important to create a kind of unconscious, some disturbance in the realization of any process, as to work very precisely on the definition of our building experience.’, Rem Koolhaas, 2005


Rem Koolhaas discorda com a ideia de que a arquitetura é por definição caótica. A arquitetura, por ser concreta e real, mas não pertence à ideia de que tudo é desordem, confuso e descontrolado. A cidade contemporânea, de facto, é um conjunto de elementos construídos e desconexos, mas a arquitetura poderá afirmar-se contra a eliminação da necessidade de lugar e contra o triunfo da fragmentação. Koolhaas refere a importância sobre como tentar encontrar uma solução para aquilo que o Team X deixou em aberto, isto é, como relacionar a indeterminação de um contexto real com a especificidade arquitetónica. A constante crítica e o julgamento permanente poderão prejudicar o processo de projeto. Rem acredita que o arquiteto é um veículo sujeito a desvios, progressões, tropismos, tendências e mutações e que se deve mover num espaço amoral e experimental.


‘Our intention could be synthesized in how to turn all that garbage of the present system into our advantage. A kind of democratic King Midas: try to find the concept through which the worthless turns into something, where even the sublime is not unthinkable.’, Rem Koolhas, 2005


Rem deseja entender como infraestruturas incoerentes e díspares podem funcionar em conjunto e como encontrar o sublime naquilo que resta. Na sua opinião, a larga escala provoca a artificialidade, a separação e a quebra que procura. Através das suas palavras percebe-se que é a própria grandeza de um projeto que se torna o antídoto contra a fragmentação. Cada uma dessas entidades gigantes poderá adquirir a pretensão de uma realidade completamente envolvente, com uma autonomia e liberdade absoluta - são universos únicos que podem até resistir a coexistir.


‘But nevertheless it is extremely exciting, after the kind of unbearable and completely melancholic targets of the european urbanism of the 70s and 80s, to introduce those kind of formulas. In the urban models, to explore an urbanism that is based on disassociation, disconnection, and complementarity, contrast, rupture,… I find interesting to understand the city no longer has a tissue, but more as a ‘mere’ coexistence, a series of relationships between objects that are almost never articulated and visual or formal ways no longer ‘caught’ in architectural connections.’, Rem Koolhaas, 2005


Na opinião de Rem Koolhaas, é preciso entender que a cidade contemporânea é desconexa e que vive da interrupção permanente. Vivemos entre extremos, entre contentores gigantes e objetos pequenos dispersos e disformes. As cidades estão cada vez mais iguais - cada vez mais se está a passar do específico para o genérico. Na opinião de Koolhaas, a paisagem natural poderá ter um papel muito poderoso e a arquitetura um papel libertador, ao serem a apoteose do único e do específico que não visa o universal. 


‘We are seduced; we feel simultaneous glee and horror (…) how so many mediocre buildings together can generate a fantastic architectural spectacle? Or, how can so much ‘badness’ sometimes lead to a kind of intelligence? It is not complacency but fascination, and in fascination there is always an element of surrender.’, Rem Koolhaas, 2005


Ora, a ambiguidade do discurso de Rem Koolhaas pode levar a uma certa resignação estratégica mas pode sobretudo levar a aceitar mais facilmente o que existe, a trabalhar com o incómodo, com o imprevisto, com o que não tem controlo e com o que não é planeado. E por isso o arquiteto ao não ter dogmas, programas, ambições ou manifestos poderá estar mais preparado para concretizar sistemas especulativos que ponham a realidade a descoberto e que desencadeiem novas lógicas e novas soluções.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Upper Lawn Pavilion.png

 

O Upper Lawn Pavilion é uma casa meteorológica.

 

“Here, it is enough to say it is a pavilion in a compound, surfaced half by paving ‘as found’ and half by lawn; a pavilion in which to enjoy the seasons; a primitive of solar-energy pavilion whose thin skin forms a new space against the thick mansonry north walls of the original eighteenth-century and earlier farmstead cottages.”, Alison Smithson (Smithson 2001, 238)

 

O Upper Lawn Pavilion (Alison e Peter Smithson, 1959-1962) é uma casa/abrigo aberto a todas as estações, à verdade dos materiais, ao desenrolar das actividades quotidianas, à circunstância e à história e forma do lugar.

O Upper Lawn Pavilion através das formas mais simples, de pátio e de pavilhão, tenta responder às necessidades humanas mais básicas - que devem incluir ter um tecto e vista do céu e ter acesso a um pedaço de terra no meio da natureza.

Na publicação “Upper Lawn Pavilion. Alison and Peter Smithson” de Nicholas Oslington (Kingston University) lê-se que o Upper Lawn Pavilion é uma casa/pavilhão experimental. Alison e Peter Smithson usavam os projectos das suas casas para testar novas ideias, novos materiais, novas técnicas e novas formas. E o Upper Lawn Pavilion é uma espécie de símbolo da habitação mais precária e primária. Os Smithsons consideravam os princípios modernistas, sobretudo no que dizia respeito a materiais e técnicas, mas tentavam não esquecer que a arquitectura era um meio para a vida acontecer. Oslington clarifica que os Smithsons encontravam na tensão entre a cidade e o campo a energia necessária para desenvolverem o seu trabalho.

Oslington explica que, em 1958, Alison e Peter Smithson compraram o terreno onde se iria instalar o pavilhão. Uma pequena casa e o seu jardim erguiam-se na propriedade do Fonthill Estate em Wiltshire. Através dos conceitos “picking up, turning over e putting with” (captar, revolver e trabalhar com) os Smithsons concretizaram o conceito de ‘pátio e pavilhão’ neste projecto.

A pequena casa que existia colava-se ao muro norte. A posição periférica e marginal da casa oferecia a melhor vista possível de toda a circunstância envolvente. A casa era o momento charneira entre a paisagem e o jardim murado. Os Smithsons destruíram a casa e deixaram só a chaminé e os muros circundantes.

O pavilhão foi concebido para se situar no mesmo sítio da antiga casa - em torno da chaminé - e para materializar os princípios mais elementares de habitar um espaço. A caixa quase transparente, que constitui o pavilhão é toda construída em madeira, vidro e zinco e ocupa metade do comprimento e do volume da antiga casa.

O projecto do pavilhão manifesta o desejo de construir sem invadir, de formar sem ser concreto, de se ligar ao deixar passar a luz, de proteger ao receber as estações do ano, as mudanças do tempo, o dia e a noite. O pavilhão é um abrigo que permite uma contemplação constante, uma constatação permanente do banal, ao abrir-se com panos de vidro para o jardim e para a paisagem.

É por isso, uma casa com uma forte ligação ao contexto, à história do sítio e às condições existentes. Toda a envolvente é delineada pela vegetação - esta separa, abriga e determina percursos. Os Smithsons desejavam projectar de modo a revelar o que já lá existia (uma casa no muro e um jardim), como se tudo permanecesse intacto. O pavilhão ao ser de madeira, de vidro e de zinco parece pertencer ao muro desde sempre. Os Smithsons, ao deixarem uma das janelas da antiga casa pertencer ao jardim, transmitem o gosto pelo existente e pela realidade daquele específico e determinado lugar. É como se tudo se reduzisse a um jardim, ora aberto ora fechado. Os materiais formam forte relações com o existente e assim o pavilhão transforma-se num só com o muro, num só com o jardim. O vidro e o zinco reflectem o céu. A madeira toma a cor da pedra.

 

“…the once light, shiny materials merged with the weighty peace fulness of the stone wall” (Alison and Peter Smithson, “The Pavilion and the route”, 1965)

 

Dentro da casa tudo se abre para o jardim - mais recolhida está a cozinha e a casa de banho. O pavilhão flutua sobre a chaminé e o muro. O pátio foi o elemento preexistente maior e foi deixado tal e qual foi encontrado.

O pavilhão é assim simultaneamente um lado e o outro, o novo e o antigo, o dentro e o fora, o jardim e a casa, o barulho e o silêncio, a natureza e o artificial, o aberto e o fechado, o público e o privado, a acção e a contemplação, a introspecção e a extrospecção.

Para os Smithsons o pavilhão é uma casa meteorológica, é um espaço solar. É um lugar de retiro, de reflexão e de experimentação. É um lugar com distância suficiente para se reavaliarem pensamentos. É um espaço que permite a existência da criação, da descoberta e do existente. É um espaço dual que, ao mesmo tempo, permite o contacto com o produzido e o articificial e com o natural, o cosmos e o desconhecido. Para os Smithsons, o Upper Lawn Pavilion representa “a place made idyll: a dream of a stress free way of life.” - UCLPress

O pavilhão é assim tempo humano, em directo contacto com a natureza. É objecto fragmento que faz parte de um contexto maior. É protecção, é fronteira que faz parte de um enclave e que liga mais do que separa. É consenso e não confronto.

 

“The Solar Pavilion, Upper Lawn, Wiltshire, 1959-1962 holds the core ideas of a Janus Face building. It is both a look-out over the distant landscape on the north façade, sitting on top of the existing cottage wall, and a garden pavilion.”, Jonathan Sergison, Stephen Bates (L’ Architecture d’Aujourd’hui, 344, 2003)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


O Team 10 defende o direito a ser vago.


No texto “Intersecções oblíquas entre o Team 10, a cultura arquitetónica portuguesa e o cinema”, de Pedro Baía (Urbano 2013, 21-39) lê-se que o Team 10 (os participantes mais ativos do grupo foram Peter Smithson, Alison Smithson, Aldo van Eyck, Jaap Bakema, George Candilis, Shadrach Woods, Giancarlo De Carlo) não pretendeu apresentar uma alternativa à Carta de Atenas pelo contrário, mostrou sempre uma aversão a dogmas, a qualquer tipo de doutrinas e a programas de atuação explícitos. Para Pedro Baía, o Team 10 defende o direito a ser vago.


O que significa ser vago para o Team 10?


Vago significa conciliar polaridades em conflito, através de um debate plural, franco e aberto (entre o velho e o novo, entre a vanguarda e a tradição, entre a pequena escala e a grande dimensão, entre a rua fechada e a praça aberta). Vago significa planear alternativas que travem a desumanização e a consequente fragmentação de uma cidade, recuperando necessidades sócio-psicológicas relacionadas com identidade, vizinhança e pertença. Através da definição de clusters - que são modelos orgânicos de crescimento de comunidades - a casa, a rua, o distrito e a cidade poderão ser pensados como um todo. A cidade será assim, para o Team 10, uma teia concreta e aberta, capaz de receber variações e que privilegia a relação, a ligação e o encontro. A mobilidade será o elemento-chave que mantem viva e unida a cidade e que permite a criação de vários centros.


Para o Team 10, uma arquitetura vaga terá o constante interesse em acomodar-se e adaptar-se às experiências e aos desejos reais das pessoas. Sem esquecer a herança moderna, é uma arquitetura composta por uma infinidade de referências e fatores. E por isso evita uma só direção e uma definição muito limitada - afirma-se sempre na pequena escala, na privacidade labiríntica e na imaginação.


Vago significa igualmente, alertar para as questões relacionadas com o contexto, a história, o quotidiano, o vernacular, o espontâneo, a padrões de formas coletivas construídas, o processo participativo, o direito à cidade e a ligação a um lugar específico. O termo ‘ideia’, que substitui ‘norma’ ou ‘diretriz’, remete para algo mais inclusivo, mais apropriável, aberto a interpretações e a derivações.


As ideias do Team 10 são vagas, porque se definem através de programas não escritos, determinam-se através de palavras soltas que gravitam em torno de um centro indefinido. Os processos são privilegiados em detrimento das formas predeterminadas. O espontâneo permite a construção de soluções que recusam a abstração racionalista: “Team 10 is Utopian, but Utopian about the present. Thus their aim is not to theorize but to build, for only through construction can a Utopia of the present be realized”, Alison Smithson, 1968


Vago significa também que as mudanças que o Team 10 propõem não são revolucionárias nem desejam cortar com o estabelecido. Desejam trabalhar com o que existe e ser concebidas em continuidade, numa realidade concreta e específica. O Team 10 anseia por uma arquitetura capaz de despoletar o encontro e o cruzamento espontâneo de pessoas. Uma arquitetura vaga, tal como sugeriu Aldo Van Eyck, cuja noção de tempo e de espaço seja substituída pela ideia de lugar e de momento.


As fotografias das crianças a brincar na rua, utilizadas pelo Team 10 para acompanhar a Urban Re-Identification Grid (apresentada no CIAM IX) é, para Pedro Baía, o melhor exemplo possível para representar relações humanas intangíveis, imprevisíveis e inusitadas. (Urbano 2013, 34) Ora, Aldo van eyck e os seus projetos de parques infantis e o conjunto de fotografias que Nigel Henderson tirou em Bethnal Green, reclamam uma apropriação mais intuitiva da cidade. A perspetiva e a presença da criança na cidade faz acreditar num mundo novo, num mundo inventado, improvisado, mais sociável e flexível. Faz crer numa vida diferente e vaga que se afirma na existência de espaços vazios que recebem diversos significados. A forma destes lugares - vagos, que têm um uso mais ativo, que estão entre, que permitem uma interpretação mais aberta e que se podem até definir em torno da soleira de uma porta - é assim determinada por quem os utiliza. A rua é, por isso, o lugar por excelência do Team 10. A rua representa o real, a vida e o quotidiano. É o elemento da cidade que liga, que une, que permite o contacto e que se deixa apropriar. É a rua que transforma o individual em coletivo, a permanência em mudança, o físico em espiritual, o interior em exterior e a parte no todo.

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A casa como barreira entre o eu e a sociedade.


A casa Rietveld-Schröder em Utrecht, construída em 1924 e destinada a uma família constituída por uma mãe e três filhos ainda é hoje uma revolução aos olhos de quem a visita. Decidida a terminar com o velho e com o passado ainda é uma casa que faz nascer um indivíduo novo e livre. Tal como Gerrit Rietveld (1888-1964) diz: vamos construir casas espaçosas e simples! A generosidade espacial de uma casa, o direto acesso à natureza e a eficiente satisfação das necessidades quotidianas eram prioridades nos projetos de Rietveld - só assim o indivíduo não sentirá necessidade de se alienar e de sair para ir ao encontro de sol, de ar e de verde.


O vanguardismo afirmado nas casas de Gerrit Rieveld só foi possível graças aos seus clientes privados, que não receavam a mudança. Rietveld refere-se aos seus clientes como sendo sempre capazes de o corrigir e criticar apontando sempre o projeto em direção à vida. Foi Truus Schröder que permitiu a construção da casa Rietveld-Schröder, mas também trabalhou com o arquitcto em muitos outros projetos (até 1964), inclusivamente nos edifícios de habitação da rua contígua, Erasmuslaan.


A casa Rietveld-Schröder foi o primeiro projeto de habitação de Gerrit Rietveld. Até então o arquitecto desenhava mobília e algumas frentes de loja. A famosa cadeira vermelha, azul e amarela foi concebido em 1918. Em 1919, Rietveld foi convidado por Theo Van Doesburg a colaborar na revista De Stijl. Em 1920, Rietveld mobilou um apartamento num edifício de habitação desenhado por J.J.P. Oud. A influência dos pintores De Stijl, tais como Bart van der Leck e Piet Mondrian, estimulou Rietveld no uso das cores primárias (vermelho, amarelo, azul em combinação com preto, branco e diversos tons de cinzento). Embora Rietveld usasse cor em seu em todo o seu trabalho, no final dos anos 20, as cores primárias passaram a incluir uma mistura de branco, o que as tornou mais pastel.


“Let’s build houses that are well-spaced and simple; otherwise I’ll always free my home in search of Nature.” Rietveld 1930


Na opinião de Rietveld, importante, no desenho de uma casa, é dar espaço para que o ser humano se aperfeiçoe a si próprio. Todos conduzem uma vida árdua em sociedade, por isso Rietveld pensa que numa casa tudo tem de ser conveniente, amplo e higiénico, para que nada consuma demasiada tempo.


“We need a house that satisfies the necessary conditions of life as efficiently as possible, and which requires no maintenance; a simple machine for living, which is always reliable and which renders our lives independent of outside help. We must be able to save time and money for our personal enthusiasms and studies.” Rietveld 1930


Rietveld considera que as ações essenciais quotidianas como comer, beber, dormir e lavar são muito desinteressantes e por isso devem ser resolvidas economicamente com a ajuda de meios eficazes e mecânicos. Ora, a casa Rietveld-Schröder tenta concretizar todos estes requisitos de maneira a que todas as ações repetidas e diárias estejam contidas, controladas e acessíveis. E assim Rietveld deseja tornar os habitantes das suas casas livres e mais humanos. Rietveld deseja tornar claro o que realmente importa. Na sua opinião, a sociedade lança e descarrega tantas impressões e opiniões que o indivíduo pouco mais faz do que se submeter a essas ideias passivamente, sem consegue processar e experienciar tudo de maneira ativa. Rietveld escreve que tudo na vida acontece de forma simultânea e por isso a atenção dispersa-se e o olhar torna-se vago. Todavia uma casa (e a casa Schröder tenta responder a isso ativamente) deve ajudar a ver, a olhar claramente e a estimular ativamente todas as impressões sensoriais.


A casa (e qualquer casa de Rietveld) não será primordialmente um lugar de repouso mas antes um lugar de descoberta - a descoberta do eu que se dá longe do fluxo das impressões passivas. A casa é por excelência o lugar de ação - o eu poderá ser realmente ativo, ao fazer tudo aquilo que o seu livre arbítrio e toda a sua atenção determinar.


A casa Rietveld-Schröder revela o espaço contínuo. No interior, a compartimentação do primeiro andar tem a capacidade de desaparecer, de ser efémera e de se dissolver dentro das paredes exteriores. Através da abertura ampla das janelas eliminam-se cantos e arestas, permitindo a fusão com as árvores que rodeiam a casa. Ao agregarem-se todas as ações principais num só andar, Rietveld coloca toda a atenção na possibilidade de se poder viver dentro, à volta e entre. A flexibilidade do espaço permite a concretização da simultaneidade de comportamentos, a dispersão de energias, sobreposição de velocidades, abertura e vastidão, mas também admite a contenção dos movimentos e a fragmentação dos gestos.


A casa Rietveld-Schröder prova que o espaço de uma casa, para além de mecânico e eficiente (e isso verifica-se no andar térreo, que inclui a cozinha, zona de serviço e escritórios), deve ser a barreira entre o eu e a sociedade e a sua corrente de impressões passivas. Uma casa deve por isso, para Rietveld, ser a medida de referência de todas as experiências de cada ser. A casa Rietveld-Schröder consegue assim determinar um modo de viver e de ver o mundo.


“A good architect must be able to restrain himself (…) The aim isn’t to build large, tall structures, apply splendid materials or create genial forms and compositions. In architecture, the aim is to find the best fitting curve - this is trade jargon - which means the most to complete possible harmony of function material and structure.”, Rietveld 1930


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O subúrbio era o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser.


No livro “A cidade na História. Suas origens, transformação e perspetivas.” (Martins Fontes, 1998) de Lewis Mumford escreve que a formação do subúrbio coincide com o aparecimento da cidade. A sobrevivência da cidade e do subúrbio depende um do outro. A cidade predominava insalubre e compacta. O subúrbio decorria das necessidades e das deficiências da cidade.


O subúrbio desde cedo significava espaço (ar, verde e sol), natureza, saúde e liberdade. Mumford explica que os deleites do suburbanismo eram, desde o princípio reservados às classes superiores: “…de modo que o subúrbio podia ser descrito quase como a forma urbana coletiva da casa de campo (…) o modo de vida suburbano é, em grande parte, um derivado da vida descansada, jovial e consumidora da aristocracia, que se desenvolveu a partir da existência rude, belicosa e árdua da fortaleza feudal.” (Mumford 1998, 523)


Mumford faz notar que já no tratado de construção de Alberti se achava todo o programa suburbano doméstico dos arquitetos do princípio do séc. XX: retiro conveniente perto da cidade, livre de qualquer tipo de constrangimentos e convenções da sociedade urbana; oferta de ar e possibilidade de contemplação; abertura a prados, bosques, regatos, lagos e ao sol.


O subúrbio era assim o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser: “…construir a sua própria casa, única, no meio de uma paisagem única; viver uma vida centralizada em si mesma (…) criar um asilo (…) comandado ainda à vontade dos privilégios e benefícios da sociedade urbana.” (Mumford 1998, 525)


O subúrbio antigo representava um esforço da classe média em encontrar um novo modo de vida segregado e menos formalizado e uma solução para a depressão e desordem da metrópole poluída.


O subúrbio representou, durante algum tempo, pela sua livre utilização do espaço, a antítese da maior parte das cidades históricas do Ocidente. No subúrbio houve uma dispersão da edificação no meio de espaços abertos. As ruas já não formavam corredores fechados. O edifício podia afirmar-se isolado no meio da paisagem. Foi, sobretudo no séc. XIX, que urbanistas e construtores utilizaram o subúrbio como um campo experimental para investigarem novas formas para a cidade de planta aberta com uma nova distribuição de funções.


Mas, Mumford revela que a utopia do subúrbio antigo terminou através do movimento em massa que se deu em direção a essa dispersão e liberdade. Nesse movimento coletivo, visível a partir do séc. XX, produziu-se um novo tipo de desenho suburbano com deficiências evidentes: “…uma multidão de casas uniformes, inidentificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias uniformes, em estradas uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas da mesma classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de televisão, comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas geladeiras, conformando-se, no aspeto externo como no interno, a uma modelo comum, manufaturado na metrópole central.” (Mumford 1998, 525)


O crescimento em massa sobretudo dos subúrbios norte-americanos, que se deu em meados do séc. XX, levou à atomização, ao isolamento e à fragmentação da vida quotidiana: “…a mudança de dimensões e a difusão de moradias levantou um problema rural mais antigo, o do isolamento; e (…) amplificou a necessidade de transportes por veículos particulares…” (Mumford 1998, 530)


Na opinião de Mumford o subúrbio ao ter sido símbolo de refúgio preservava ilusões. Ali a individualidade podia prosperar sem culpa. Mumford afirma que ainda é a vivência da cidade concentrada que permite naturalmente construir uma consciência social, pelo constante contacto com a diferença e com a complexidade. O subúrbio contemporâneo ao compartimentar só permite o contacto com realidades diversas através da televisão. A televisão, como explica Luísa Sol na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018) permitiu uma confortável relação com o mundo sem sair do lugar. A partir deste momento, o culto do indivíduo elegeu o ecrã como sendo o novo grande espaço público.


Mumford explica assim que: “…as diferenças operativas entre o subúrbio contemporâneo e a grande cidade tornam-se cada vez mais minúsculas, pois naqueles ambientes aparentemente diferentes, a realidade tem sido gradativamente reduzida àquilo que é filtrado da tela do televisor.” (Mumford 1998, 536)


Ana Ruepp

CRÓNICA DA CULTURA

RENZO PIANO: um dos superiores expoentes da arquitetura mundial

  


“A minha inspiração veio da terra…e, claro, de Paul Klee…e a poética das suas pinturas”

 

  


Sempre que olho as obras de Renzo Piano, a minha inquietação acerca do facto dos seres terem abdicado de compreender o mundo como um todo e o terem aceitado em especialidades que não comunicam, a minha inquietação, dizia, desespera, face ao loteamento mental que se regista no agrado da atual sociedade. 

Renzo é um excelente exemplo de quem nunca corporizou uma visão de perspetiva limitada.

"A diversidade do conhecer é um valor, não é um problema". R.P.

  


A paisagem da pedra é a melhor prova de que a Natureza vive de um diálogo entre presente e passado e que tem medula comunicante, e há que aprender com essa comunicação como quando se vai a um museu e se perdem os olhos para melhor se reencontrarem, tal foi a aproximação e a emoção que provocou.

A arte propõe-nos também a reflexão de que aos méritos da especialização se deve estar atento, sob pena dos nichos se sobreporem ao somatório do qual tudo é feito.

Não podemos negligenciar o que fica de fora do julgar que se entende manusear com mestria.

Ortega Y Gasset já chamava a atenção que a emergência do “homem-massa” surgia cada vez mais pelo aparecimento de cientistas e menos de pessoas cultas.

A especialização é a chave de muitos saberes, é certo, mas não pode ser ela a fragmentação que impede o ser de compreender que, se se distanciar, o horizonte do espaço de linguagem onde passará a viver é um superior alto e rotundo.

Certo é que compreender a realidade à volta, implica a necessidade intrínseca, de transmitir conhecimento.

Renzo Piano, também se refere à arquitetura como um gesto cívico, devido ao modo como afeta a vida diária de todos nós, além de ser igualmente nesse espaço que a história se desenrola.

Renzo tem tido a grande capacidade de se reinventar e de compartilhar a criatividade debatendo, escutando, comunicando o que afinal também constitui parcelas do imaginário público.

A sua ideia de fazer “um edifício voar”, criando algo com a gravidade zero, retira a teima de o colocar no compartimento da arquitetura high-tech ou outra.

Os seus projetos não costumam ter características que se repetem.

  


Arquitetura é arte, mas arte bastante contaminada por muitas outras coisas. Contaminada no melhor sentido da palavra – alimentada, fertilizada por muitas outras coisas.

R.P.

  


The shard conhecida por
London Bridge Tower: outra proposta de Renzo Piano por Paul Klee e por toda a poética.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A arquitetura necessita do cinema.


“Os arquitetos vivem imersos num ambiente cultural e quando estão a fazer um projeto são influenciados pelo tempo em que vivem, que também tem que ver com a cultura que consomem, com os livros que leem, com os filmes que veem, as peças de teatro a que assistem, com a música que ouvem.” (Urbano 2013, 122)


Em “Histórias Simples. Textos sobre Arquitectura e Cinema”, Luís Urbano salienta a importância da relação entre a arquitetura e o espaço imaginado para o cinema. Para Urbano, o cinema mostra um próprio e característico sentido de lugar, que já faz parte do imaginário de cada um. Há filmes quase com cem anos e por isso a maneira como se olha e se pensa o espaço real onde se vive é também certamente influenciado pelo cinema.


Para Urbano, os cenários são a ligação mais óbvia e evidente entre o cinema e a arquitetura. Os estúdios de cinema são autênticas cidades e por vezes até tomam formas mais experimentais. Urbano explica que há naturalmente tendência para desvalorizar a arquitetura cinematográfica, por esta ser transitória: «Mas se começarmos a pensar que há filmes que foram feitos há setenta ou oitenta anos, os grandes clássicos do cinema que continuam a ser vistos por uma grande quantidade de pessoas, e que a arquitetura que está nesses filmes continua a ser vista hoje em dia, então acho que é de lhe dar alguma importância.» (Urbano 2013, 117)


No cinema também se sente com o corpo - depois de se ver um filme tem de haver uma readaptação à realidade. É através do espaço que se tem existência física e sensorial e cada um tem uma maneira própria e irreproduzível de se relacionar com este. A arquitetura é entendida por cortes, bocados e fragmentos, é pesada, é matéria, é luz, é som. Urbano explica que a arquitetura e a memória espacial resultante é constituída por partes por vezes desconexas. Por isso o espaço virtual não é arquitetura porque é contínuo, fluído e homogéneo. A fotografia é também diferente porque pode alterar as dimensões e apresenta sempre pontos de vista estáticos e imóveis. Mas já o cinema é o meio mais próximo da arquitetura porque é através do movimento e do percurso que se capta a real perceção de qualquer espaço: “No cinema, identificamo-nos com os personagens também porque eles são coincidentes com o espaço arquitetónico que habitam. (…) Sentimo-nos transportados para aquela realidade e, às vezes, transportados fisicamente.” (Urbano 2013, 120)


Para Urbano é difícil tentar perceber a importância do cinema na arquitetura, mas os processos mentais para fazer arquitetura aproximam-se muito dos processos mentais para se fazer cinema - sobretudo no que diz respeito à escolha de planos e à definição da montagem de acontecimentos espaciais. Os arquitetos também têm de imaginar a vida que irá acontecer num determinado espaço. Ao projetar, os arquitetos têm a capacidade “… de fazer a transição entre espaços que têm dimensões completamente antagónicas, de espaços estreitos e baixos para espaços largos e altos, ou espaços que tenham materiais diferentes.” (Urbano 2013, 120)


Nem a arquitetura e nem o cinema são possíveis sem o espectador em movimento, isto é, sem a capacidade de juntar formas e espaços diferentes sob uma mesma narrativa. Tanto a arquitetura como o cinema têm a capacidade de, ao juntar certas partes diferentes, alterar ou criar novos significados, reordenando a realidade. Na arquitetura é importante a forma como se juntam espaços distintos - é a maneira de dispor e relacionar espaços diferentes que cria expressões variadas.


Mas a relação entre a arquitetura e o cinema tem de se dar através da metáfora e por meio de substituições e aproximações não evidentes. E por mais que se queira, o espaço construído pelo arquiteto nunca corresponde totalmente ao que foi imaginado, porque a arquitetura transportará sempre múltiplas interpretações e possibilidades. A arquitetura tem de estar permanentemente preparada para receber livremente várias narrativas, sentidos e funções. Ao fazer parte de um tempo, a arquitetura, tem ainda capacidade de ser o testemunho e a imagem de determinados acontecimentos. Também ela conta uma história. Porém, o cinema usa o espaço para servir uma determinada e específica narrativa. Os cineastas têm a possibilidade de controlar toda a ocupação de um espaço: “A grande vantagem da arquitetura, podemos dizer que é uma vantagem ou uma limitação, é permitir que todas as histórias da aconteçam nela. Há liberdade, as pessoas podem utilizar a arquitetura como quiserem. O cinema apesar de conseguir controlar a forma como as pessoas vivem a arquitetura, também a limita, já que só se pode viver o espaço daquela maneira.” (Urbano 2013, 123)


Mas ainda assim, na opinião de Urbano, o cinema é o instrumento mais útil para descrever a arquitetura - é o testemunho mais real de uma verdade construída. A arquitetura necessita pois do ecrã, dos planos, da história e do movimento para ser compreendida e experienciada e o ecrã precisa da arquitetura para reconstruir a realidade a favor de uma nova ordem e de um novo significado.

 

Ana Ruepp