Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Por ocasião dos cem anos do armistício do final da primeira guerra mundial tive o gosto de plantar nos jardins da Gulbenkian dois choupos e um álamo em homenagem à paz e à dignidade humana. Nada melhor do que as árvores como símbolos do respeito e do amor à vida. Recordei o facto no dia em que comemorámos o centenário do nascimento do Arquiteto António Viana Barreto (1924-2012), coautor com Gonçalo Ribeiro Telles desses extraordinários jardins, modelos do paisagismo enquanto encontro entre a natureza, a cultura e a arte. A exposição que se encontra aberta por estes dias fala por si. De facto, não se compreende o património cultural como realidade viva sem a ligação entre os monumentos, os documentos, as tradições, a natureza, a paisagem, as tecnologias e a criação contemporânea. “A paisagem tende a constituir uma unidade global de funcionamento ecológico, apesar da diversidade dos seus elementos constituintes. O sistema de relações que se verificam no território tende a estabelecer um entrelaçamento, cada vez maior, do espaço urbano com o espaço rural”. Quantas vezes ouvimos os artífices dos jardins Gulbenkian lembrar com estas palavras a importância deste diálogo criador entre a humanidade e a natureza. Os dois paisagistas compreenderam, assim, que essa relação constitui o modo mais sublime da criação e o melhor exercício da sabedoria humana.
Viana Barreto frequentou o Curso Livre de Arquitetura Paisagista, dirigido por Francisco Caldeira Cabral no Instituto Superior de Agronomia, tendo sido o primeiro profissional com esta formação a entrar para um serviço do Estado, na Direção Geral dos Serviços de Urbanização, onde criou a Divisão de Arquitetura Paisagista. Quando a Direção Geral passou a designar-se do Planeamento Urbanístico, a Divisão ampliou a sua intervenção tendo sido constituídas as delegações do Porto, Coimbra, Faro, Madeira e Açores. Tal foi decisivo para impor a profissão em todo o País. Tratava-se não apenas de considerar o território a ocupar, mas a paisagem a ordenar. E que é a paisagem etimologicamente senão a imagem do país, como expressão da identidade e da cultura? Assim, António Viana Barreto, como o seu amigo Gonçalo, tornaram-se Maestros da Paisagem, como se regessem a complexa orquestra da natureza. E como disse o nosso homenageado, tudo o que fez foi inspirado na convicção de que “é do conjunto da articulação e ponderação de todas as vontades que se constrói qualquer coisa”. Nesse trabalho magnífico, temos de recordar Edgar Fontes, Álvaro Ponce Dentinho e Fernando Pessoa – e hoje a Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas. Todos permitiram a consolidação dos conceitos e metodologias do ordenamento do território. E lembremos o pioneiro Plano de Ordenamento Paisagístico do Algarve, com Albano Castelo Branco e Álvaro P. Dentinho, que nos permite ter uma visão de futuro, que hoje continua atualíssima, a partir do entendimento de uma região com potencialidades longe de estarem plenamente aproveitadas.
E se falamos de método, temos de lembrar os ensinamentos do paisagista escocês Ian McHarg, autor de “Design with Nature”, obra de cabeceira destes pioneiros, para quem os pilares fundamentais da política ambiental são a Conservação da Natureza e o Ordenamento do Território. E quando se fala em desenvolvimento sustentável, importa ter bem presente o exemplo de António Viana Barreto, para além de um discurso de atualidade, uma vez que se trata de questões de sobrevivência da humanidade que apenas podem ser salvaguardadas com método, persistência e determinação. Quando foi criada a Direção Geral do Ordenamento, o primeiro responsável foi Viana Barreto e quando pensamos nos instrumentos de ordenamento do território e nas áreas protegidas temos de lembrar a plêiade desses pioneiros e o que nos legaram: além dos jardins da Gulbenkian, os planos da Torre de Belém ou das quintas das Conchas e dos Lilases. Todos ganhámos. Há que continuar.
Kazuo Shinohara imagina um espaço com uma escala que confunde a medida humana.
“I would like for the houses I make to stand on this earth forever.”, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)
Encontrar uma forma, neste mundo cheio de coisas, deveria estar relacionado com a procura de algo que realmente deve existir - ligado à subjetividade de cada um e muito próximo da compreensão de uma experiência particular. Kazuo Shinohara no texto ’Theory of Residential Architecture’ (1967) reflete sobre a urgente necessidade em produzir uma arquitetura que perdure no tempo.
Segundo Shinohara, a constituição de um espaço interessado com a natureza e o desenvolvimento do ser humano, pode contribuir para uma intensa observação de si próprio. A constante mutabilidade é uma característica intrínseca do cosmos - o ser humano e tudo ao seu redor estão sempre em constante mutação (não existe distinção entre um e outro).
‘I believe that the world flows ceaselessly through the small spaces of the house.’, Kazuo Shinohara, ‘Beyond Symbol Spaces’ (1971)
Um espaço, também nunca toma a forma que se deseja, está sempre em permanente alteração. Para Shinohara, a arquitetura não existe para manipular o ser humano, mas para abrir novas possibilidades e transições.
No livro ‘Kazuo Shinohara: Traversing the House and the City’ de Seng Kuan (ed.) lê-se que Shinohara redefiniu a habitação através de um espaço onde o significado pode ser gerado com base numa experiência pura e singular - um espaço que privilegia a relação entre o sujeito que é único e o meio envolvente que é específico.
‘Human emotion must never be identified with a mere gap between material things’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)
A experiência sensível faz parte da vida humana. A arquitetura para ser eterna tem de ser capaz de criar um espaço possibilitador que incorpora o fluxo da intensidade da vida humana. Um espaço duradouro necessita de todos os seus serviços e equipamentos mecânicos, somente como tela de fundo. A vida numa casa não acontece entre soluções técnicas e funcionais. Segundo Shinohara, uma casa é a forma expressiva mais ativa, pois é na ação física diária que o ser humano floresce.
Durante um primeiro período ou estilo, do qual a Umbrella House faz parte, Shinohara desenvolveu uma retórica de permanência, de expansividade, de irracionalidade, que acentuava os desejos mais emotivos de uma casa - contrapondo-se à corrente arquitetónica Metabolista. Seng Kuan explica que o primeiro estilo de Shinohara é um exercício de diálogo com a tradição arquitetónica japonesa, onde se destilaram conceitos de composição como a frontalidade e a divisão a partir dos seus estudos de habitações pré-históricas, casas comuns minka e edifícios de estilo Shoin (tais como Katsura Imperial Villa e Jikō-in).
“From the moment a small space touches the human heart it has become art.’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)
Segundo Shinohara, o espaço de uma casa incorpora espontaneamente uma resposta à abundância da emoção humana. A casa é assim a forma criada pelo ser humano mais integral e intensa. Uma casa contém tudo aquilo que constitui vida.
Segundo Shinohara, para se moldar a vida e segurar o que é fugaz, é preciso criar um espaço de conceitos. Os conceitos não se descrevem por palavras e só residem nos espaços criados que correspondem aos desejos mais profundos. Shinohara não pretende estabelecer bases sólidas, estáticas e uniformes, mas, sim, de alguma maneira segurar, firmar e conter emoções, reações e variações à deriva e sem rumo.
Shinohara imagina, por isso, um espaço com uma escala para além do que se conhece, para além de sistemas formalizados e regulamentados - uma escala que confunde a medida humana. Shinohara anseia, assim por uma extensão abstrata e inesperada do chamado espaço simbólico - onde toda a concretude do quotidiano será posta em causa como forma de recuperar a extensão da perceção que se tem do mundo.
‘I want to create spaces that are beyond mere human physical scale, and then return these to human beings. (…) The intuitive impulsiveness of an architect may well capture spaces having non-everyday scale.’, Kazuo Shinohara, ’Theory of Residential Architecture’ (1967)
“C’était comme une nuit d’hiver, avec une neige pour étouffer le monde décidément.”, Rimbaud (Bachelard 1994, 40)
Uma verdadeira casa contém todo o universo assim que o mundo exterior se uniformiza.
No livro “The Poetics of Space”, Gaston Bachelard escreve que a existência de condições adversas exteriores pode fortalecer o real significado de uma casa. A presença, por exemplo, do inverno pode aumentar o valor de uma casa como lugar permanente.
Não é a solidez das paredes que oferece resistência às intempéries, pois a ausência de resposta é uma das características essenciais na definição de uma casa. Segundo Bachelard, esta ausência de luta, intrínseca a uma casa, pode significar, por um lado, enraizamento, proteção e resistência e, por outro confiança na sabedoria dos elementos que, mesmo em fúria, veem as casas dos seres humanos e concordam em protegê-las. Bachelard explica que as tempestades são particularmente agressivas nas casas que acentuam a fragilidade do ser humano.
Existe um diálogo constante entre uma casa e o seu universo exterior. Bachelard argumenta que é o inverno, por exemplo, que faz aumentar a necessidade de abrigo e de proteção. Durante o inverno, uma casa torna-se espaço de reserva e o mundo exterior reduz-se a nada, a um não-lugar - a neve e a escuridão uniformizam e sufocam todo o universo (as estradas desaparecem, os sons ficam abafados e todas as cores se ocultam). As certezas exteriores deixam de existir. Bachelard afirma que o inverno simplifica e imobiliza o cosmos. O mundo passa a estar fragmentado, fechado e finito.
Como resultado desta simplificação universal, sente-se a negação do cosmos. O espaço interior dilata-se e expande-se. O eu separa-se do universo e interrompe a sua ligação ao mundo exterior. Dentro de uma casa tudo se multiplica e se expõe. A natureza verdadeira do eu poderá experienciar toda e qualquer interioridade com maior intensidade. No interior de uma casa, há espaço para a existência, a matéria e o movimento acontecer.
A casa é, assim um centro bem definido de regressos e de abertura para todo aquele que sonha. É um espaço paradoxal, de disponibilidade imediata e de obscuridade profunda. O diálogo entre os dois espaços - interior e exterior - torna-se então dinâmico, ora de confiança ora de angústia. Casa e cosmos não são apenas dois espaços contíguos. Na realidade, interior e exterior, são dois elementos coincidentes e que, apesar de opostos podem despertam um no outro a eternidade. O espaço interior de uma casa é assim um fragmento de infinito sem forma, pura matéria celeste.
“Quand les cimes de notre ciel se rejoindront Ma maison aura un toit.”, Paul Eluard (Bachelard 1994, 38)
Umbrella House (1959-1961) de Kazuo Shinohara é uma casa total e muito pequena completamente exposta à imponente estrutura que a cobre e que a sustenta.
Shinohara percepciona uma casa como sendo como uma obra arte - um lugar onde se expressa subjectividade. Uma casa é muito mais do que a concretização de determinadas tarefas quotidianas. É acima de tudo a materialização de uma ideia, cuja relação com qualquer contexto deve ser universal. É um lugar que permite o sonho, a expressão, o movimento, a hesitação, a demora, a espera, o encontro e a solidão. É claro constituída por hábitos e ritmos, mas é sobretudo testemunha de pensamentos e sentimentos irrepetíveis. É passado, presente e futuro. É intimidade, presença e abismo. Por isso, a Umbrella House não é só um contentor funcional mas sim um invólucro espiritual. É espaço que transcende e que é difícil de compreender.
Nesta casa objecto e sujeito fundem-se. Shinohara deseja simular um espaço sem referências explícitas, nem detalhes concretos em relação a exemplos tradicionais japoneses. Talvez o templo ou a casa do chá sejam as referências mais próximas, onde a enorme cobertura piramidal é unidade. O nome atribuído à casa - umbrella (guarda-chuva) - traz à memória as delicadas construções de papel. A sua cobertura flutuante transforma esta casa num objecto singular, num todo único e indeterminado, que pode ser compreendido por inteiro. Shinohara ao expôr, no seu interior, a estrutura de madeira que suporta a cobertura, afirma a capacidade que uma casa tem de proteger e de abrigar.
Numa casa tão pequena, Shinohara corporiza o espaço não funcional ou abstrato (em reação contra o conceito de Existenzminimum dos anos 30) através de uma simplificação radical das funções necessárias para o habitar. Para Shinohara, só foi possível desenvolver a ideia de espaço não usado e não existente tornando imanente o espaço vazio. Espaço, para Shinohara, não é algo físico nem substancial - é fluxo, transitoriedade, transparência, impermanência e imersão.
Ao enfatizar-se o esvaziar cósmico e a ausência de funções - principalmente numa casa tão pequena e perante uma sociedade extremamente mecanizada - possibilita-se assim a imensidão da vida humana.
“The real work of design is not the mere production of housing as a social goal, but should instead be the creation of spaces that will strongly appeal to people. Unless it attains the status of a work of art, a house has no reason for being. The strength of my conviction that 'A House is a Work of Art' was born of the struggle with this small house. I wished to express the force of space contained in the doma (earthen-floor room) of an old Japanese farmhouse, this time by means of the geometric structural design of a karakasa (oiled-paper Japanese umbrella).", Kazuo Shinohara, text for Umbrella House, October 1962 (first published in English in The Japan Architect, vol. 38, Tokyo, February 1963).
O Upper Lawn Pavilion possibilita o aumento da duração de momentos específicos e insignificantes.
“Rather it is a romantic vignette of a mural play-life of weekend hermits, in a hermitage that is an unassuming permanent-tent whose whole encircling landscape (…) is the rustic setting for a ‘gazebo’ from which to watch the interweaving patterns of weather and seasons.”, Alison Smithson in Diary (1962-82) (Smithson 2023, 51)
O Upper Lawn ou Solar Pavilion é arquitetura que deixa a vida acontecer. É arquitetura que não se impõe, nem demonstra qualquer tipo de poder. É acontecimento que se adapta e que vive da constante mudança e transitoriedade permanente. É recipiente capaz de generosamente gravar, fixar e revelar um lugar particular na sua plenitude. Usa a natureza como testemunha da vida banal que se passa dentro de uma cápsula por vezes fria, húmida, vazia e completamente exposta.
Este invólucro-experiência é fonte infinita de repouso, de ideias e de pensamentos que têm a possibilidade de infiltrar-se na consciência humana. É dador de tempo, que permite a demora. É revelador de diferentes estados e possibilita o aumento da duração de momentos específicos e insignificantes: “Bareness restores to ordinary objects their ‘absolute quality’”, Alison Smithson (Smithson 2023, 59)
O diário do Upper Lawn Pavilion, escrito por Alison Smithson, publicado no livro “Upper Lawn Solar Pavilion” dá a conhecer, tal como num filme, as histórias que se passam dentro de uma casa. Paul Clarke, no texto “Sticks and Stones” (Smithson 2023, 7-15), escreve que a arquitetura dos Smithsons embora se oriente para uma certa simplicidade, desencadeia sobretudo um complexo campo de oportunidades ínfimas no seu habitar. Clarke explica que os Smithsons acreditavam na potência da liberdade de movimentos e no papel performativo dos habitantes na formação da arquitetura. É a ocupação que dá vida. Ao nada ser insignificante, tudo ganha uma enorme importância. A arquitetura é assim feita de momentos insignificantes - das mudanças de luz, da definição de sombras, das diferentes estações, dos ritmos, dos sons e da consciência do tempo que passa.
Clarke escreve que os Smithsons se afastaram de uma arquitetura puramente formal, representativa e estática e iniciaram uma experiência espacial que é enriquecida pela vida, pela materialidade e pelo lugar. Os Smithsons possibilitaram a reconciliação do interior e do exterior, ao sublinhar o mundo tal como encontrado. Os Smithsons transformaram a arquitetura num observatório, de maneira a reencontrar-se com o seu princípio primeiro - um invólucro que vê através de um vidro, de um filtro, de um espelho.
Este pavilhão solar é uma membrana-testemunha que ora se fecha ora se abre. O jardim, a paisagem e a história daquele lugar fazem parte permanente deste espaço. Clarke lembra a atenção dos Smithsons em relação à arquitetura como um fenómeno transitório, de maneira a eliminar qualquer sentido de duração e de permanência. O transitório, para os Smithsons, é a condição necessária para que a arquitetura se possa sintonizar com um contexto específico. A arquitetura é testemunha de um tempo limitado, é aquilo que está entre a terra e o céu. É a transição entre o ser humano e o mundo. O Upper Lawn Pavilion está agarrado às pedras da antiga casa mas eleva-se para o desconhecido, para o incerto e para o intemporal.
No prefácio escrito para a primeira edição deste diário, publicado em 1985, Enric Miralles escreveu que este pavilhão é gerador por excelência daquilo que é essencial. Por ser esvaziado, tudo se modifica à mais minúscula alteração. Este é um espaço protegido e que tal como um caleidoscópio nos oferece infinitas imagens frágeis, irrepetíveis, presas por um acaso. Aqui a vida pode ser vivida de forma mais pura e subtil, em consonância com as flutuações do tempo. O Upper Lawn Pavilio representa assim um sentido de futuro e de experiência única, mas principalmente celebra a vida fugaz que acontece dentro e fora de um espaço.
A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior.
“.. Architecture produces desire. The exhilaration we find when we walk into the space between or inside certain buildings produces a kind of psychological space. It can represent an experience we never had before and want to see more of.”, Steven Holl (Holl 2008, 29)
Steven Holl no livro “Urbanisms. Working with doubt”, escreve que a dúvida deve fazer parte de um projeto urbano. É a dúvida que suspende o absoluto e a perfeição e que permite a construção de sistemas mais dinâmicos e abertos. Steven Holl é da opinião de que o poder experimental das cidades não pode ser completamente racionalizado, deve sim ser estudado subjetivamente.
A subjetividade associada assim à dúvida pode ajudar a recuperar a importância de características fenomenológicas no contexto urbano. São o espaço, a matéria, a luz, a cor e o som que acentuam e incentivam as perceções de cada indivíduo e podem dar profundidade à realidade objetiva.
A experiência urbana cheia de contradições e incoerências pode, deste modo, ser imensamente enriquecedora para o ser humano. Para Steven Holl, a verdadeira tarefa do urbanista deve sobretudo acentuar valores relacionais e de conexão, de maneira que a arquitetura de pequena escala possa ser o elemento primeiro, apto a gerar essas necessárias ligações.
Steven Holl explica que é a arquitetura que tem a capacidade de envolver e de introduzir diferentes dimensões ao espaço. A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior, na ocasião em que a circunstância se converte em algo intrínseco e interno. É a flexibilidade, a complexidade e a metamorfose espacial que aumentam e potenciam a expansão de cada indivíduo. Assim que a arquitetura é incomensurável, sem limites conhecidos e aceita justaposições, possibilita que o espaço tenha sempre a capacidade de se tornar e de vir a ser - será espaço em potência.
Para Holl, a arquitetura deve assim ser porosa, em que espaço e movimento se interpenetram constantemente. A arquitetura objeto, sólida, estável e maciça deve dar lugar a fenómenos experienciais diversos e a sequências espaciais independentes de qualquer direção. Através do tempo, é a arquitetura que permite o encontro - livre, experimental e verdadeiro - do indivíduo consigo próprio, com outros indivíduos e com o mundo que o rodeia.
“The recognition of spatial and material phenomena meets the imagination.” (Holl 2008, 29)
A forma da capela de Notre-Dame-du-Haut domina com autoridade mas admite concessões através da experiência e dos fenómenos a que está exposta.
‘1950-1955. Liberté: Ronchamp. Architecture totalement libre. Pas de programme autre que le service de la messe, - l’une des plus vieilles institutions humaines. Une personnalité respectable était toutefois présente, c’était le paysage, les quatre horizons. Ce sont eux qui ont commandé. Véritable phénomène d’acoustique visuelle. “Acoustique visuelle, phénomène introduit au domaine des formes”: les formes font du bruit et du silence; les unes parlent, les autres écoutent…’ Le Corbusier In L’atelier de la Recherche Patiente (Le Corbusier 2015, 166)
No texto “Actualidade de Le Corbusier”, de Nuno Portas (Portas 2005, 180-194) lê-se que a Capela Notre-Dame-du-Haut em Ronchamp (Le Corbusier, 1955) surgiu já após do movimento CIAM (Congressos Internacional de Arquitetura Moderna) se ter desagregado e após os discípulos de Le Corbusier e camadas mais jovens terem posto em causa os diversos lados do método e do vocabulário do racionalismo e o estilo internacional.
No início da década de 1950, Portas explica, reabriram-se novas referências tais como o organicismo de Frank Lloyd Wright, a arte nova de Van de Velde, o empirismo e o neo-realismo dos nórdicos e dos italianos. A máquina de habitar de Le Corbusier estava agora contaminada com o realismo, os costumes e as tradições populares e com a pretensão de integração e diálogo com os ambientes históricos preexistentes. Para Nuno Portas esta retirada de Le Corbusier como propulsionador e profeta coincidiu “…com o seu mais importante período de construtor de obras diferentes e dispersas e atestam a capacidade maravilhosa de um homem que fora o mestre de maior influência escolástica neste século…” (Portas 2005, 192)
Neste novo período Le Corbusier foi capaz de superar as próprias bases do seu próprio método e conseguiu também romper com esquematismos ideológicos e figurativos, através de um esforço em tornar a sua linguagem formal mais realista - que resulta de um franco diálogo com as condições concretas da existência e da permanente investigação ao ritmo da mudança daquilo que existe de facto. Talvez para trás tenha ficado também a sua inclinação por ideais de cariz fascista (https://www.bbc.com/news/world-europe-32546182).
Em todas as primeiras obras de Le Corbusier estava presente a ideia de aglutinação dos elementos da composição - os elementos eram volumes que traduziam uma função única. E estes volumes funcionais eram por Le Corbusier tratados como sólidos geométricos simples que, ao serem justapostos e o articulados com outras peças de circulação, formavam um edifício onde o observador se poderia deslocar para contemplar os volumes como uma escultura geométrica arquitetónica se tratasse.
Nos últimos quinze anos de produção, Le Corbusier interessou-se em tornar o espaço interno o protagonista da sua nova arquitetura. O espaço interno é assim moldado, escavado e esculpido dentro das paredes através da luz, da cobertura, do chão inclinado e do céu. O espaço interno é agora o elemento principal que consegue, através da sua escala e do seu percurso, comunicar e relacionar-se com cada indivíduo que contempla, que vive e que se move.
Ora, Vincent Scully no texto ‘The Nature of the Classical in Art’ refere-se à arquitetura dos últimos anos de Le Corbusier, também como sendo uma tentativa de resolver integralmente espaço interior e revestimento exterior - forma e espaço são um só.
Para Scully, a capela de Ronchamp evoca a escala humana, a horizontalidade a verticalidade, o peso, o suporte, uma ordem nova artificial e abstrata, que completa aquele mundo natural da colina. Sem aquele artifício, aquele lugar específico não faria sentido. Le Corbusier coloca toda a paisagem visível em foco humano. A capela é ponto de convergência que transforma mas dá a ver. Le Corbusier escava no interior cavidades nos volumes inchados para uma experiência sublime de luz e de cor. O exterior escultural revela elementos dissonantes e violentos mas que se apaziguam ao estarem combinados, colados e cosidos uns aos outros.
Scully escreve que, tanto as paredes como a cobertura estão comprimidos em direção ao interior. O objeto não é um simples volume oco. Em Ronchamp, caverna e invólucro são um só. O santuário escavado interno é revestido com formas externas de força escultórica extraordinária - Scully afirma que a capela é um impulso material que atracou naquele monte em eterno voo.
Está-se, por isso, perante um recipiente espiritual, que engole e que envolve. É um corpo que cobre, que rodeia e que cerca um outro corpo.
Ronchamp lida com o todo e sobretudo com opostos em conflito e em confronto: a figura e o abstrato; o finito e o eterno; o absoluto e o relativo; a matéria e o espírito. E a fusão, o equilíbrio, o diálogo dos opostos só se dá através da vivência daquele espaço - é o indivíduo que permite a concretização total daquele lugar.
A forma da capela de Ronchamp domina com autoridade mas admite concessões através da experiência e dos fenómenos a que está exposta. É a sua unicidade e singularidade que permite a irrepetibilidade da experiência. Experiência essa que é individual e rara e que coloca o indivíduo perante existências ambíguas e por vezes contrárias. É aí que se situam em simultâneo verdades e incertezas, respostas e perguntas, presenças e ausências, massa e vazio, luz e sombra, barulho e silêncio, o dentro e o fora, o primitivo e o novo, o passado e o futuro.
Scully refere-se a Ronchamp como o invólucro que apela à liberdade a todos os que reconhecem a condição não submissa nem constrangida desta capela. É o absoluto que cresce através da aceitação total do que é relativo e indeterminado pois o interior e o exterior completam-se e confundem-se.
Le Corbusier conseguiu na capela de Ronchamp aproximar opostos ao relacionar diretamente o ser humano com a natureza. E foi assim capaz de criar um espaço gerador e suscetível de criar um novo ser. O estado rudimentar e inicial, de concha e de casulo, deste objeto, provoca e permite o princípio de algo. Este é o sentido sagrado desta capela pois é um espaço causador, capaz de criar, de produzir e de propor constantemente novos conteúdos. É um espaço contentor contemplativo mas acima de tudo indizível.
“… e esta(s) obra(s) ficam entre as mais poderosas máquinas de comover que terão sido inventadas.”, Nuno Portas (Portas 2005, 193)
A arquitetura e a cidade em Rohmer expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros.
“Dans le fond, ça me rassure, dis-je, j’aime bien qu’il y ait du monde dans les rues, à n’importe quelle heure. C’est ce qui fait l’agrément de Paris. Je ne connais rien de plus sinistre que les après-midi de province ou de banlieue…”, Fréderic In L’Amour, l’après-midi (Rohmer 1998, 214)
No filme L’Amour, l’après-midi (Eric Rohmer, 1972) a metrópole, neste caso Paris, apresenta-se como um lugar que salva da angústia e do aborrecimento quotidiano. A cidade oferece a possibilidade de o indivíduo desaparecer para emergir.
Lê-se em ‘Film as Theology’ de Keith Tester (2008) que o território dos filmes de Rohmer têm um sério compromisso com a realidade. Segundo Tester, o realismo dos seus filmes, distingue-se ao refletir a importância da graça teológica para a vida empírica de cada pessoa humana. Nos filmes de Rohmer, o território cartografado é precisamente o lugar para aprender a olhar e para atender às manifestações da graça.
Em L’Amour l’après-midi a cidade revela-se como sendo o lugar onde a imaginação se desenvolve e onde suposições se poderão eventualmente cumprir. É durante a hora de almoço tardia que Fréderic fantasia viver uma vida paralela. Mas assim que dá a possibilidade da vida imaginária se concretizar, através de Chloé, Fréderic escolhe conservar-se firme na sua vida real.
Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer exploram o conceito de graça que está incorporado no mundo da experiência e da prática. Graça para Rohmer é o momento capaz de transformar o indivíduo de modo a poder perseverar na vida real. Rohmer revela assim a importância de cultivar o olhar aberto ao milagre que irrompe inesperadamente através dos outros e do mundo objetivo que nos rodeia.
A arquitetura e a cidade em Rohmer têm esse papel, porque é através desse espaço físico que se expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros... Segundo Rohmer é a graça divina que salva e que indica o caminho e o verdadeiro destino.
Tanto o cinema como a arquitetura, para Rohmer, moldam o espaço e têm a capacidade de influenciar e determinar o trajeto humano. Porém é sobretudo a arquitetura, que através da sua forma e escala pode ser uma abertura para a compreensão que transcende. A cidade onde Fréderic se move e trabalha é o espaço da sua vontade e da sua imaginação mas também lugar de uma vontade sublime. Para Tester, Rohmer com sua objetividade, explora sobretudo os momentos em que a infusão divina se perde e se manifestam erros, ilusões e estratégias na tentativa das personagens se preservarem da tentação.
Os objetos de Nathalie Du Pasquier, na Villa Savoye, não hierarquizam, não ordenam - acomodam-se.
“Ce qui me plaît dans cette maison, c’est toute une série de détails, des petites choses. J’aime par exemple les chants des étagères qui sont peints d’une autre couleur.”, Nathalie Du Pasquier (Entretien avec Yvon Lambert et Virginie Gadenne)
A Villa Savoye (1928-31) de Le Corbusier é interpenetração espacial acentuada pela afirmação da ‘promenade architectural’. Os objetos da pintora Nathalie Du Pasquier (1957) são unidades geométricas que surgem a partir de um processo de assemblagem intuitiva. As suas pinturas, falsamente tridimensionais, erguem-se sobre caixas, prismas e painéis.
Foi a escala modesta da casa que aproximou Pasquier de Le Corbusier, na exposição ‘Chez eux’ em 2022.
O prisma abstrato, plano, uniforme, puro e branco da Villa Savoye, que flutua sobre finos pilotis, cria no seu interior oculto uma possibilidade de desmaterialização e de improvisação plástica. É a fachada livre que permite que, um sistema independente de qualquer organização espacial, se crie no seu interior. Os objetos de Nathalie Du Pasquier, espalhados pela casa, acentuam essa organização interior livre, assimétrica e mais subjetiva.
O prisma quadrangular branco da casa apresenta uma certa austeridade e uma rigidez. Mas do exterior consegue-se talvez adivinhar um interior liberto e colorido, que contem diversos sentidos, perceções, proporções e medidas. Os objetos de Nathalie du Pasquier ajudam a determinar essa oposição entre o exterior contentor e o interior formado por perceções não vinculadas - e permitem sustentar essa múltipla penetração da forma-espaço-objeto-cor.
A Villa Savoye foi concebida intencionalmente com quatro frentes abertas o horizonte, onde todos os planos e espaços têm a mesma importância. Os objetos de Nathalie Du Pasquier também não hierarquizam, não ordenam - acomodam-se. Todas as partes desejam afirmar-se unitárias dentro de uma continuidade espacial.
A presença oblíqua da rampa da casa ajuda a determinar um espaço interior sem restrições, e a pôr a descoberto as diferentes perspetivas e os múltiplos movimentos contínuos, comunicantes, integrantes e circundantes. Os objetos de Pasquier antecipam construções geométricas coloridas sem constrangimentos, pois cada composição permite diferentes leituras e combinações. A capacidade destes objetos fazerem parte deste espaço, completa a casa. Está-se perante um objeto total.
A escala humana de cada objeto e de cada pintura de Pasquier acentua a presença dos corpos que se movem incessantemente no espaço. Cada objeto é um mundo uno, que resulta da interseção, da junção, da disposição e da disponibilidade das formas geométricas primárias, que se leem claramente.
Os objetos são pinturas. As pinturas são objetos. A sua escala delicada poderia ser uma maquete de uma nova Villa Savoye.
Nathalie Du Pasquier ao participar da Villa Savoye, revela um interesse pela arquitetura como experiência física e sensorial, que tem de ser transposta. O dentro tem de ser apropriado para ser compreendido. Os objetos de Pasquier parecem assim, nesta casa, reunir e combinar diversas perceções - o essencial e o excedente, o plano e a perspetiva, o dentro e o fora, o superficial e o penetrante, o singular e o composto. Estes objetos mobilam, mas acima de tudo completam, acrescentam, referenciam, acentuam e dão escala à Villa Savoye.
A arquiteta Erin O'Keefe (1962) revela que começou a interessar-se pelas questões relativas ao espaço através da fotografia. A fotografia é uma das formas de expressão mais mutáveis e de acesso muito fácil e constante. Cada vez mais a imagem fotografada constitui a maneira como se vê e se pensa o mundo.
A fotografia é assim, muito importante para Erin O’Keefe, porque em arquitetura, a experiência do espaço é feita sobretudo a duas dimensões. A memória que se tem da arquitetura é naturalmente construída através dos desenhos mas principalmente através das fotografias que aparecem nos livros e nas revistas. A perceção que se tem do espaço, em arquitetura, é sempre mediada por um filtro, por uma lente e por uma moldura que escolhe e que só mostra determinadas coisas e exclui outras. Por isso O’Keefe revela que a noção de espaço está continuamente pronta a ser modificada a qualquer momento - o entendimento do espaço está, deste modo, sempre disponível para ser subjetivado.
O mais estranho, O’Keefe sublinha, é que, muitas vezes, conhecemos um espaço melhor e mais facilmente através da fotografia. O espaço real apresenta-se muito mais complexo e vasto, tem um inesperado tamanho, tem pormenores imprevistos, tem interrupções súbitas. Porém, através da lente, o espaço aparece mais simplificado, sem escala, mais despojado e limitado - parece pertencer a um todo completo e acabado que é muito mais inteligível.
As fotografias de O’Keefe dividem o mundo em três camadas: os objetos, a lente e o observador. A camada da lente ajuda a manipular e a repensar a ordem espacial. Tal como numa pintura, o espaço da fotografia não tem de corresponder à realidade, não tem de necessariamente de funcionar, não tem de ser coerente. E é isso que Erin O’Keefe explora - a capacidade que uma imagem tem em ser ilusória ao mesmo tempo que capta objetos reais, palpáveis, que existem e que foram feitos para serem fotografados. Os objetos, numa imagem, comportam-se de uma determinada maneira que não corresponde à realidade. O'Keefe está interessada em descobrir e explorar, através da imagem, essas múltiplas relações que, num espaço, dois ou mais objetos podem ter entre si. As suas fotografias sustentam-se assim através da variável em compressão. A sua lente existe para capturar e congelar os objetos no espaço e explorar conceitos de cor, opacidade e sombra, mas também transparência, translucidez e reflexo.
As fotografias de O’Keefe são fragmentos enigmáticos visuais e são feitas para ficarem por resolver. São imagens que existem independentes do mundo real e que têm um conjunto de regras únicas e singulares. São quebra-cabeças inexplicáveis capazes de unir o pequeno ao amplo, a profundeza à planura, a espessura ao raso, o liso à rugosidade, o nivelado ao irregular, o recorte ao todo. Os seus objetos (ultimamente geométricos) são muito tácteis e pictóricos e por isso nunca se sabe ao certo se se está perante uma pintura uma colagem ou uma fotografia… É a lente que introduz a ambiguidade. A superfície plana da fotografia reduz os objetos e a perspetiva a duas dimensões e causa a dúvida. A experiência da imagem assim como a provocação incerta dos objetos no espaço é o que mais interessa a O’Keefe.