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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

TARDE TE AMEI, Ó BELEZA TÃO ANTIGA E SEMPRE NOVA


Naquela tarde, foi o esplendor do pôr-do-sol! O horizonte em chamas, o Sol que baloiça no horizonte ao mesmo tempo que brinca e se banha no mar e se despede... E se nunca mais voltasse?!... Mas, na manhã seguinte, cá estava outra vez, resplandecente, e novo, novo como na manhã primeira do mundo. Tudo está reconciliado, tudo é perfeito, não há cisão de sujeito e objecto. E é tal o êxtase que até podíamos morrer. Porque aí não há morte. Tudo é apenas um instante. Mas trata-se daquele instante em que a eternidade tange o tempo, e, aí, nesse instante, o que há é a pré-vivência da vida eterna, plena.


Também há os rostos. E o que há de mais "instante" do que um rosto? Nele, o que vem é o Infinito a visitar-nos. Como alguém escreveu: “Cada um, único, é um mistério. Em síntese, o mistério de Deus.”


 Depois, há a arte. Que vai do canto à poesia e à escultura, da dança à pintura e à música.


O poeta abre as palavras, descobre a alma das palavras, põe-nas a cantar, e com o seu canto recria o mundo.


Pela dança e o seu ritmo, o corpo ergue-se acima do peso, é como se fugisse à lei da gravidade, e isso é já a antecipação do que São Paulo chamou paradoxalmente o "corpo espiritual".


Na contemplação da "Virgem Branca", em Toledo, com aquele Menino a sorrir para o enlevo da Mãe, fica-se a saber que a pedra bruta é mais do que ela e quer ser mais: divina!


Com o par de "as botas velhas com atacadores", de Van Gogh, em Amesterdão, percorremos os caminhos todos da vida e do mundo, o seu cansaço, e sobretudo a sua esperança. Lá, lá no termo do caminho, deve morar um reino e a perfeição.


O que se não pode dizer nem analisar diz-se na música. A música diz o indizível. Ela é súplica pela beleza e já a sua presença e oferta.


Na beleza e pela beleza, transcendemo-nos, e somos para lá do zoológico. A comida, a bebida, o sexo dão satisfação: preenchem necessidades. Mas o belo não é necessário, é um luxo, é uma graça: para que é que serve? Como disse Kant, o prazer que vem do belo é o único realmente desinteressado e livre: estamos interessados nele desinteressadamente. E, embora o belo deva agradar universalmente, não sabemos dar a razão precisa por que algo é belo.


O belo também não se confunde exactamente com o bom. Mas deve haver uma relação entre o belo e o bom, dita até na etimologia de belo e bonito: bonus, bonullus, e os gregos associavam o belo e o justo harmonioso. O belo abre a porta do que habitualmente não se vê nem se ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo vem a uma nova luz e se transfigura. A partir daí e dessa reconciliação, somos atirados para a transformação do mundo. É então que às nossas "acções boas" o Evangelho chama-as, no original grego, "acções belas". Desse modo, este mundo torna-se outro, sem ser o outro mundo. Por isso, perante o belo, exclamamos desde a raiz de nós: Como é bom estar aqui! É assim que devia ser! Sempre!


Até quando a arte nos confronta com o monstruoso e dilacerante, ainda é por causa da aspiração à harmonia. Porque "a beleza é uma promessa de felicidade", na expressão de Stendhal, comprometemo-nos "até ao fim com o mal, o falso e o feio da realidade ainda não reconciliada em que vivemos", como diz o filósofo Fernando Savater. “Na denúncia do que falta vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".


No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio Transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte e a música são os meios portadores desta vizinhança". Nomeadamente a música é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal".


O escultor José Rodrigues fazia o favor de ser meu amigo, a ponto de me chamar “meu irmão” e que enquanto ele fosse vivo seria ele a fazer as capas dos meus livros, o que para mim e os leitores foi uma bênção. Falámos muitas vezes e perguntava-me: “Anselmo, quando morrermos, para onde vamos?” E também me dizia, com imensa força: “Se Deus fosse mesmo meu amigo, punha-me tinta a sair dos dedos para eu poder pintar directamente.” Quando ele morreu, passei pelo crematório, para uma despedida. À saída, estava um jornalista que sabia da nossa amizade e eu falei-lhe disto e, perante a pergunta: “Quando morrermos para onde vamos?”, ele próprio perguntou-me: “Que acha? José Rodrigues para onde foi?” E eu respondi-lhe, sem hesitar: “Foi para a Beleza, que é outro nome de Deus. Para onde havia de ir?”


Não foi assim que Platão se referiu ao Divino? Ele é o Bem, a Beleza. Sempre me impressionou que mesmo pessoas simples perceberam esta relação íntima entre o bem e o belo: muitas vezes ouvi mães a dizerem ao filho, que fez uma asneira, algo de mal: “Filho, não faças isso, é feio”. Os Evangelhos, repito, que foram escritos em grego, quando se referem ao mandamento de Jesus: “Fazei boas obras”, escrevem: “Kalá érga: obras belas”.


Tudo a apontar para a Beleza, outro nome de Deus. Lá está Santo Agostinho; em As Confissões; relatando a sua conversão, voltando a Deus, escreveu numa das orações mais belas de sempre: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova… Tarde te amei.”


Dostoievski também nos ensinou: “A beleza salvará o mundo”. Ela realiza, como explicou o teólogo Leonardo Boff, a sua origem do sânscrito: Bet-El-Za, que quer dizer: “o lugar onde Deus brilha.”


N.B. Fica para a semana um balanço da JMJ.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de agosto de 2023

REVOLUÇÕES XENAKIS


“Quando procurávamos um título, pensei que ‘revolucionário’ lhe ficava bem, em muitos domínios diferentes. Por isso, achámos que plural era mais forte” – afirma Mâkhi Xenakis, filha do poliédrico artista cujo centenário assinalamos – Iannis Xenakis, músico e pensador… E a palavra Revoluções surge num sentido próprio, como encontramos na matemática, na astronomia, na sociedade e na essência da Arte. Xenakis procurou durante toda a vida algo de novo, que permitisse conhecer melhor a vida – daí a paixão pelo elo fecundo entre Arte e Ciência. Deste modo, encontramos na Exposição que se encontra na Fundação Gulbenkian o inventor, o investigador, o músico, o engenheiro, o arquiteto e o pesquisador informático avant la lettre. No início da vida, há a forte presença da mãe, pianista dotada, e a música ficou na criança como memória e ânsia de perfeição. Depois, Iannis vai estudar para Spetses, ilha do mar Egeu, numa escola politécnica, pelo gosto da física e da matemática e o desejo de ser arquiteto e engenheiro. Em 1940, no início da guerra, participa nos levantamentos populares em Atenas e junta-se à Frente de Libertação Nacional. Depois da vitória dos aliados, participa na guerra civil, no movimento estudantil comunista. É desse tempo a explosão de que é vítima e que marcará o seu rosto para a vida inteira. Em 1947 forma-se em Engenharia Civil, mas dedica-se sobretudo ao estudo das relações entre os domínios científico e artístico. Será perseguido e condenado à morte na Grécia, exilando-se em Paris durante 27 anos, até 1974. No ateliê de Le Corbusier procura contribuir com a sua experiência de engenheiro, nos cálculos de resistências, mas sobretudo toma consciência da multiplicidade de fatores presentes, como no projeto do Convento de La Tourette, em Lyon ou no Pavilhão Philips na Exposição Universal de Bruxelas de 1958.    


A inovação corresponde a um processo semelhante para o cientista e o artista: cerebral, neuronal e sináptico (como ensinou Rita Levi-Montalcini). O conceito de “massas sonoras” envolve o meio, como o som das balas, os gritos, os silêncios e a guerra. Arte e vida são inseparáveis na compreensão da complexidade. Os interesses múltiplos correspondem à necessidade de atenção e cuidado. E a filosofia da antiguidade clássica, com os seus ensinamentos, está sempre presente na busca da compreensão do mundo e da natureza. “A música sempre foi, e continua a ser, simultaneamente som e número, acústica e matemática e é nisso que se baseia a sua universalidade”.


Madalena Perdigão foi uma entusiasta de Iannis Xenakis, confirmando o extraordinário papel que teve na abertura de horizontes na criação artística e na cultura, graças à sua rara sensibilidade. Em 1967, Claude Samuel pede apoio para Xenakis para a participação no Festival Internacional de Royan. Madalena concordou e iniciou-se uma longa ligação entre a Gulbenkian e Xenakis, no serviço de música, no CAM e no ACARTE. Em conversas com José de Azeredo Perdigão e sua mulher, Messiaen nunca escondera a admiração profunda por Xenakis, pelo seu talento e pelo entendimento de uma nova visão das Humanidades, na interceção entre o conhecimento científico e técnico, a música, o pensamento e a poesia. A originalidade de Xenakis chega à escrita da música e à sua apresentação. As massas sonoras motivam-no e mobilizam-no: a chuva, o granizo, as cigarras, as aves. Há uma globalidade em movimento – música visual, arquitetura sonora. “Pôr o som no espaço e pensar arquitetura e música como irmãs”. E agora, Mâkhi Xenakis e Thierry Maniguet conceberam uma extraordinária surpresa sonora e visual para os visitantes da exposição, criada e pensada a partir dos politopos (vários lugares). São minutos de movimento e êxtase e compreendemos a essência da obra como novo modo de cultivar a Arte como verdadeiro diálogo criador com a natureza, a humanidade, a ciência e a técnica.


GOM

O ENIGMA DE NÉLIDA…


“Aprendi ao longo da vida que o verbo é o que fazemos com ele”, Nélida Piñon inicia deste modo um dos capítulos de Um Dia Chegarei a Sagres (Temas e Debates, 2021). Um dos mistérios que a escritora procura desvendar relaciona-se com a origem da língua portuguesa, que começou na terra de seus ancestrais, numa zona de Finisterra, ponto de encontro de múltiplas influências e origens, “território ocupado por sobrados, casas senhoriais, castelos, muitos ainda habitados. E antigas fortificações outrora a serviço do rei, prontas para combater inimigos. A constituir um sistema de defesa cujo poder bélico exibia esplendor e ostensivo contraste com a pobreza reinante”. Como idioma e património comum, o português nasceu nessa terra de trovadores e peregrinações e partiu à aventura. Quando lemos os poemas de Rosalia de Castro em Cantares Gallegos sentimos o que Nélida, na convergência da ancestralidade galega, nos diz em Uma Furtiva Lágrima (Temas e Debates, 2019)“bastou-me ver pela primeira vez a ponte medieval e a capelinha à entrada de Borela, para jurar amor imorredouro por aquele solo”. O mito da origem torna-se enamoramento e recuperação da força do mistério, verdadeira força da vida. E o certo é que o “mito não se moderniza. Afinal, o núcleo mítico daquela terra alastra-se além das aldeias que amei”.


É o galaico-português que encontramos e demarca este maravilhoso terreno das nossas raízes, nascido fora do Portugal, que nós prolongámos e se tornou marca e matriz de uma cultura que se projetou além-fronteiras no mundo global. E ouvimos Rosalia invocar “cantos, vagoas, queixas, sospiros, serans, romerias, paisaxes, debesas, pinares, soidades, ribeiras, costumes, tod’aquelo en fin que pó-la forma e colorido e dino de ser cantado, todo ó que tuvo un eco, un-ha voz, un runxido por leve que fosse, que chegasse á commoverme, tod’este m’atrevin á cantar…”. A verdade é que ainda hoje ouvimos, de um lado e do outro do rio Minho: “Canta xente… canta xente / Por campiñas, e por veigas! / Canta pó lo mar abaixo / Ven camiño da ribeira”. E foi esta língua que se espraiou desde as ondas do mar de Vigo para o sul, recebendo o tributo moçárabe, até Sagres, que, depois das influências e contributos dos trópicos, formou esse núcleo mítico que Nélida amou. “Há anos escrevi (diz-nos a escritora): era a época dos prodígios. Lembro-me de quando a Idade Média começou. A mãe levantou-se cedo para regar a horta e esquentar o leite recém-saído das vacas. Foi quando a mãe anunciou para uma família ainda sonolenta: - Venham ver as catedrais nascendo…”. E assim se fizeram a língua e a grei. “Santos e deuses caminhando de mãos dadas”. Nélida viveu apaixonada pela memória de quantos amou, a família, os amigos. E sonhava com a possibilidade de usar o capacete de Hermes e de, graças a ele, poder tornar-se invisível, para ver e conhecer melhor o mundo.  A imaginação é uma razão de viver. Amava as cidades, mas tinha nostalgia do campo, gostava de imaginar-se em personalidades diversas, em tempos diferentes. E pensava-se feita de retalhos, de escombros, de lembranças, que impedissem a morte por força da ingratidão.


E Nélida Piñon bem sabia, como os cultores da sabedoria, que “o melhor da viagem é prolongá-la através dos recursos da memória”. E foi este o enigma fundamental de quem, chegou a Portugal, sabendo por onde caminhar e quis “captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado”, porque “precisava descobrir de onde viera esse nosso idioma deslumbrante”. Eis o que nos liga e que faz desta língua multifacetada algo que permite compreender que somos uma cultura aberta, que deve recusar a tentação de qualquer superioridade histórica e que está investida no desafio da exigência e da responsabilidade. “Falar em primeira pessoa requer audácia. Mas é uma opção natural. Enquanto falo por mim, incorporo os demais na minha genealogia. Não ando sozinha pelo mundo”. 


GOM

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A ÚLTIMA CEIA


1 - 
No mundo latino, não há sacra imagem mais reproduzida e mais divulgada. Nessa divisão, normalmente situada ao fundo de longos e desabridos corredores, a que no século XIX e em grande parte do século XX, se chamou casa de jantar, a burguesia e a pequena-burguesia, mesmo quando maçónicas ou jacobinas, entronizaram, quase sempre, gravuras, litografias ou, nas casas de pior gosto, horrendos baixos-relevos esmaltados ou pintados, reproduzindo o cenáculo davinciano pendurado sobre o aparador com torcidinhos. Nenhuma dessas reproduções reproduzia a pintura de Leonardo, como ela estava ou como ela era à época da sua mais intensa popularidade. Bem cedo depois de ter sido pintada (1495-1497), "L'Ultima Cena" já começara a obscurecer-se. Em 1568, Vasari escreveu que "a obra de Leonardo está em tão más condições que pouco mais se vê do que uma mancha fosca". Mas a fama de Leonardo era tamanha, tamanha era a reputação da "tavola" pintada no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, que, na primeira metade do século XVI, já se multiplicavam as cópias a óleo de discípulos do Mestre, como Solari ou Luini. A mais famosa dessas cópias data de 1625, quando o cardeal Federico Borromeo a encomendou a um tal Vespino, para que a "reliquiae fugiente" da "Ceia" ficasse para a posteridade.


Assim, o que essa posteridade, entre a qual me incluo, conservou e emoldurou, não foi a pálida imagem de Leonardo, mas a pálida imagem de maquilhadíssimas cópias. Quem foi ou quem ia a Santa Maria delle Grazie, mesmo após os sucessivos restauros de 1851, 1870, 1901 ou 1924, recuava cheio de espanto. Não via um quadro, como, baseado nas reproduções, tinha suposto ir ver; não via um fresco porque Leonardo nunca pintou um fresco nem usou a técnica dele; via, na parede oposta à Crucificação de Montorfano, uma pintura descomunalmente horizontal (já houve quem lhe chamasse a única pintura do mundo em cinemascope) onde a custo se descortinavam os rostos de Cristo e dos doze Apóstolos e onde o celebérrimo "sfumato" vinciano se esfumava na sombra e no silêncio.


Como as estátuas gregas do século V, que hoje só conhecemos pelas cópias romanas, a memória da "Ceia" vinciana foi transmitida, ao longo de quatro séculos, por imagens claras de uma imagem obscura. É verdade que, de Milão, em 1788, Goethe escreveu ao Duque Carlos Augusto, de Weimar, que ela era "uma obra-chave no campo da conceção artística. Absolutamente única e nada lhe pode ser comparado". Falaria do que viu? Ou foi Goethe o primeiro a perceber que a prodigiosa singularidade da "Ceia" reside no próprio sentido de efémero que lhe presidiu? É que Leonardo só não pintou "a fresco" porque não quis. Se pintasse "a fresco", não tinha podido corrigir, nem mudar. "Leonardo é o primeiro artista insatisfeito, atormentado não tanto por uma obcecante necessidade de perfeição mas pelo objetivo fundamental que perseguiu. Não concebeu a "história" como uma ação definida, mas como uma situação psicológica complexa, tecida de atos e reações mutuamente intrincados, inseparáveis uns dos outros e só passível de valorização face ao resultado global" (...) "O desenho, a pintura são uma busca contínua; não se pode saber de antemão onde conduzirá e que facto revelará de que se não pode prescindir." Estou a citar Argan, o historiador. Podia citar Leonardo, que o disse em menos palavras, aqui deixadas em italiano: "Il bono pittore ha da dipingere due cose principali, cioè l'homo e il concetto della mente sua; il primo è facile, il secondo difficile, perché s'ha a figurare con gesti i movimenti delle membra." Eventualmente, Leonardo terá querido que da sua obra (a "Ceia" é a obra de Leonardo mais dedicada ao instante) ficasse a sombra. Sombra do imenso movimento dos 12 homens que se sentaram com Cristo à mesa naquela tarde; sombra da imensa imobilidade de Cristo naquela tarde e naquele momento (não consigo dizer-vos se a pintura é terrivelmente dinâmica ou terrivelmente estática); sombra que se projetou, como se luz fosse de um projetor cinematográfico indesligado e indesligável, na pálida luz das cópias, as únicas que fixaram o que em Leonardo, para sempre, ficou em aberto, movente e comovente.


2 -
 Vai árido este texto? É bem possível, mas não sei de outra via. Como sempre me acontece, amenizo subjetivando. É que até eu, e até ao dia 11 de novembro de 2003, nunca vira "La Cena" senão em reproduções. Em 1967, da primeira vez que fui a Milão, o Cenáculo fechou-se-me tanto por má fortuna como por amor ardente. Quando voltei, nos anos 80, já se encerrara para o último restauro, esse que durou de 1977 a 1999. Quando, agora, surgiu inopinadamente e sem qualquer premeditação a possibilidade de uma estada de 24 horas em Milão, soube que era chegado o momento. O dia 10 (uma segunda-feira) era o dia de encerramento? Era. Para o dia 11 já não aceitavam mais reservas (o Cenáculo, como tantos outros lugares altíssimos de Itália só se visita hoje por "prenotazione", bela palavra para tão feia ação)? Não aceitavam. Eu tinha que estar no Aeroporto de Malpensa às 11 horas da manhã? Tinha. Mas os modernos dragões (burocracias, turistas japoneses, horários) são como os antigos. Saltamos-lhes às goelas. Comigo próprio assinei o pacto de me levantar às 6 e meia da manhã (não conheço outros Leonardos nem outras Leonardas que a tanto me obrigassem). Às 8 em ponto estava junto à porta amarela do Cenáculo e às 8h15, após mendigar junto de três guias, surgiu aquela (louvada seja!) que tinha um bilhete a mais. Às 8 e 30, a porta de vidro automática do refeitório das Graças abriu-se para mim e para mais 49 terrestres pedestres. Fora avisado da regra, como nos mitos e lendas antigos. Só dispunha de 15 minutos, 15 exatos minutos. Ao fim deles, seria implacavelmente varrido. Nem olhei para a "Crucificação" da parede sul. Os 35 metros de largura da parede norte esperavam por mim. 68 anos esperaram. A primeira coisa que pensei, como Henrique III diante do cadáver do Duque de Guise, foi: "Mon Dieu! Comme il est grand!" Depois, eu, que demoro tanto tempo a ver, puxei dos olhos com quanta força tenho. Vi o triângulo equilátero da figura de Cristo, a forma indestrutível. Vi o perfil efeminadíssimo de Filipe, o mais alto de todos. Vi Tiago Menor, o único da família de Jesus, seguindo alguns até seu irmão, visivelmente inspirado no mesmo modelo que serviu para a imagem de Cristo, dos doze o mais bonito, com os cabelos louros tão bem penteados. Vi o suavíssimo João, o único tão imóvel quanto Cristo, o único que não gesticula. Mas vi sobretudo o Senhor, sentado de costas para a maior das três janelas, com o espaço todo à direita e à esquerda, sem ser tocado por ninguém e sem tocar em ninguém, abertamente sozinho.


3 - 
Em tempos, impressionou-me muito um agudíssimo paralelo feito por George Steiner ("Two Meals") entre "O Banquete" de Platão e a "Última Ceia". Steiner - como Leonardo - parou o tempo na passagem do Evangelho de São João em que Cristo diz: "Amen dico vobis quia unus vestrum me traditurus est" ("Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há-de trair"). S. João, sempre segundo o mesmo Evangelho, estava reclinado no peito de Jesus, como discípulo amado que era. Pedro faz-lhe sinal para que ele interrogasse Jesus e soubesse quem era o traidor. João assim fez e Jesus respondeu: "É aquele a quem Eu der o bocado de pão ensopado." E, molhado o bocado de pão, tomou-o e deu-o a Judas. Steiner escreveu: "Num plano naturalista, o que aconteceu só é inteligível se o que Jesus disse ao discípulo que amava não foi ouvido por mais ninguém. A não ser assim, porque é que Judas aceitaria o 'pão que eu vou molhar', o sinal que trairia o seu anátema?" Mas Leonardo não viu a cena como quase todos os pintores e comentadores a viram, nem sentou Pedro longe de João, o que "naturalisticamente" explicaria o pedido, que Pedro, de onde estava, não teria podido fazer. Pela primeira vez, na história de uma representação da Última Ceia, João não está reclinado no colo do Senhor, mas muito afastado dele, inclina-se para a direita, ouvindo S. Pedro, que se levantou do seu lugar. Este, João e Judas formam um outro triângulo, em que Pedro passa para trás de Judas, para falar ao ouvido de João. Judas, virado para os dois (único que volta as costas ao espectador), não pode deixar de ouvir o segredo. A não ser que o momento representado seja posterior a ele, hipótese que ao 7º minuto me comecei a pôr. Ou seja, João fez a pergunta a Cristo. Este já respondeu e é essa resposta que João, deixando o colo do Senhor para se aproximar de Pedro, transmite ao futuro papa, sem curar de Judas, que, incauto, já foi identificado e já não pode fugir. Mas nem todos o sabem àquela mesa e por isso tanto se dividem os grupos: os apóstolos, à esquerda do Senhor (mais longe de João, Judas e Pedro) em imensa agitação, protestam inocência; os da direita estão gelados pela descoberta. Por isso, a mão direita do Senhor retira-se da de Judas a quem deu o pão e a mão esquerda fica aberta sobre a mesa, no último sinal de oblação. Por isso, também, o olhar de Cristo é o único olhar que não vemos e não nos olha. Só a boca e os braços abertos exprimem a solidão suprema, nimbada ao fundo pela luz crepuscular, a mesma luz da transcendência, essa que, no mesmo ano, Bramante filtrou na cúpula de Santa Maria delle Grazie. Nunca tanta sombra deu tanta luz.

Um segundo de tempo num infinito de espaço. Foi, também, o que me foi dado. E mais não peço e mais não quero.

João Bénard da Costa
14 de novembro de 2003, in Público

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Bumf


“The image of the system’s notions of image clarity, of the image flow and image density - they are all essentially modeled on the parallel (and unimpeded) movements of the logo, the compressed pseudonarrative of the TV commercial, product slogan, the sound bite. Images are still everywhere telling stories and issuing orders. Web pages, billboards, and video games are just visualizations - magnifications and speed-ups - of this prior and continuing world of the shouted or whispered sentence.” T. J. Clark In Modernism, Postmodernism, and Steam


Num mundo inundado de formas virtuais e visuais que continuamente e instantaneamente contam histórias e dão ordens, estas fotografias da artista Joana Bastos (1979), presentes na exposição Bumf (Rua Poço dos Negros, 69) trazem a solução necessária para nos desembaraçar de imagens que contêm mensagens inerentes que nos influenciam e nos prendem imensamente.


Temos uma propensão para acreditar sempre numa imagem, numa fotografia, porque é tão verosímil que é impossível não tomá-la em consideração.


A fotografia da Joana Bastos deixa-nos esta ideia de que a falsidade é fascinante. Uma fotografia nunca revela a verdade e por isso muitas vezes leva-nos a querer coisas impossíveis, a sonhar com o irrealizável, a ter expectativas intoleráveis.


Joana Bastos fotografa-se a si própria como uma verdadeira contorcionista. Somos imediatamente levados a acreditar que todas estas acrobacias são possíveis. Prontamente essas imagens tornam-se referência.


Joana Bastos talvez tente dizer isso, que a imagem fragmento é sempre um engano, porque as fotografias nunca contam tudo e não podemos ficar presos a elas porque nunca dizem respeito à verdade pura. Haverá sempre imagens que contam histórias incríveis, que têm mensagens que põe tudo em questão, e que impõem metas impossíveis. Bastos traz a chave para que não nos deixemos enganar por imagens petrificadas que impedem de originar outras imagens e que passam a condicionar e a aprisionar o nosso olhar sobre o mundo.


Mas não nos podemos esquecer, que o tema abordado por Joana Bastos confirma a propensão pós-modernista de que o artista já não é um herói, que nos liberta todos os sofrimentos da vida. A arte perde aqui qualquer vontade de poder. Bastos oferece perspicazmente o fragmento, o inexplicado e o incompleto. O inautêntico é aqui celebrado. O verdadeiro eu não existe, e tal como em Cindy Sherman, está revestido de uma falsa identidade - a super mulher que consegue fazer tudo, até colocar-se em posições impossíveis, intoleráveis e insuportáveis. As fotografias de Bastos materializam assim com humor a apropriação de certas imagens que nos chegam através dos meios de comunicação social e através da sua contorção fragmentada, cria uma ilusão que nos maravilha.

 

“I grew to love the livestyle,

not the life.

(…)

I wen to yoga, t’ai chi,

feng shui, therapy, colonic irrigation.

(…)

As for me,

I went my own sweet way,

saw Rome in a day,

spun gold from hay,

had a facelift,

had my breasts enlarged,

my buttocks tightened,

went to China, Thailand, Africa,

return enlightened.

 

Turned forty, celibate,

teetotal, vegan,

Buddhist, forty-one.

Went blonde,

redhead, brunette,

went native, ape,

berserk, bananas;

went on the run, alone;

went home.”

Carol Ann Duffy, Mrs Faust

 

Ana Ruepp

HOMEM DOS SETE OFÍCIOS…

 

José-Augusto França, com a perspicácia que sempre lhe conhecemos, afirmou que “Cottinelli Telmo foi talvez o artista modernista mais inteligente da sua geração”. E quando nos deparamos com a obra multifacetada do artista, reconhecemos que nos múltiplos campos em que interveio deixou marcas de originalidade, de inovação e de uma curiosidade excecional. Minucioso conhecedor do período em que o artista viveu, J.-A. França pôde evidenciar o papel desempenhado pelo arquiteto entre os seus contemporâneos num período muito rico de renovação das artes e do pensamento. Cottinelli (1897-1948) foi arquiteto, desenhador, cartunista, argumentista, decorador, músico, cineasta da “Canção de Lisboa”, poeta, ensaísta, articulista, comunicador nato. António Ferro e Duarte Pacheco escolheram-no pelas suas múltiplas aptidões como arquiteto-chefe da Exposição do Mundo Português (1940). E teve a missão impossível de coordenar doze arquitetos, dezanove escultores e três pintores, entre os quais Almada Negreiros. São múltiplas as marcas da obra que nos deixou, desde a Estação de Sul e Sueste à Standard Elétrica, passando pela Alta de Coimbra – sem esquecer, enquanto presidente do Sindicato dos Arquitetos, o lançamento do Congresso dos Arquitetos de 1948 e os caminhos totalmente novos que então suscitou, falecendo pouco depois num acidente trágico. Teve assim um papel essencial, abrindo um novo tempo, no fim da guerra, marcado pela entrada em cena de uma jovem geração de arquitetos, profissionais e artistas, pela exigência de democratização das novas gerações e pela emergência de uma corrente orientada para o fomento, ditada pela “Linha de Rumo” de Ferreira Dias, depois da morte de Duarte Pacheco (1943) e com a saída de António Ferro do SNI (1949).


Devo salientar um elemento importante. A aventura artística de José Ângelo Cottinelli Telmo teve um marco fundamental em 1920 no mundo da Banda Desenhada (“história de bonecos”, como então se dizia) no “ABC”, com as “Aventuras inacreditáveis do Pirilau que vendia balões”. Cinco anos antes, Stuart de Carvalhais lançara os mais duradouros heróis portugueses dos quadradinhos, “Quim e Manecas”. O “ABC” foi um importante magazine ilustrado, no qual colaboraram os melhores desenhadores modernistas – Emmérico Nunes, Jorge Barradas, Bernardo Marques, além de Stuart, na linha dos caricaturistas da escola do “Simplicissimus”. Cottinelli publicará a seguir “A Grande Fita Americana” (1921), paródia aos filmes e às vicissitudes da uma companhia de cinema. A BD e o cinema têm ligação umbilical. Perante o sucesso das séries de continuados, o jovem acabado de se formar em arquitetura é convidado a criar um jornal infanto-juvenil, o “ABCzinho”, que orientará de 1921 a 1929 e que constituirá um grande sucesso junto do público, no qual iremos encontrar Carlos Botelho, além de Jaime Martins Barata, Raquel Roque Gameiro ou Olavo d’Eça Leal. O aluno do Liceu Pedro Nunes e da Escola de Belas Artes e notável arquiteto tornou-se ainda um dos membros mais destacados da chamada “tribo dos pincéis”, envolvendo as famílias Roque Gameiro, Leitão de Barros e Martins Barata. Como afirmam Carlos Bandeira Pinheiro e João Paulo Paiva Boléo, numa obra notável (O Pirilau Que Vendia Balões…, Baleia Azul, 1999): “Cottinelli marcou indelevelmente a cultura portuguesa da primeira metade do século XX, conseguindo a proeza de fazer muito e bem. (…) Tinha assim o duplo dom de marcar cada género de atividade a que se dedicava e de fazer escola, tornando-se um modelo”… Eis como um genial cultor da Nona Arte (a arte que imediatamente se segue à Fotografia), combatente ativo da hesitação, contra a qual projetou um monumento irónico, foi uma referência cultural de essencial importância.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Através da poética do sublime, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos.


No final do séc. XVIII a crise gerada pela Revolução Francesa e consequentemente pelo cessar do universalismo supra-histórico do neoclássico abre-se a possibilidade do Romântico se expandir como alternativa.


Lê-se em ‘Arte Moderna’, de Giulio Carlo Argan, que o clássico está ligado à arte do mundo antigo greco-romano e à relação clara e positiva do ser humano com a natureza. O Romântico, por outro lado, está ligado à ideia de que a arte é a revelação do sagrado e tem necessariamente uma essência religiosa. O Romântico está por isso ligado à arte cristã da Idade Média e à consideração de que a natureza é uma força misteriosa e hostil, que tem a capacidade de expor a pessoa humana às grandes questões relacionadas com o sentido da vida.


Segundo Argan, estas duas conceções diferentes do mundo - poético vs mimético -, a partir da segunda metade do séc. XVIII, “…tendem simultaneamente a se opor e a se integrar à medida que se delineia nas consciências, com as ideologias da Revolução Francesa e das conquistas napoleônicas, a ideia de uma possível unidade cultural…”. Para Argan, o ‘belo romântico’ é subjetivo, característico, mutável e contraposto ao ‘belo clássico’, que é objetivo, universal e imutável.


A cultura do Iluminismo trouxe a ideia de que a natureza não é só ordem revelada e imutável, é sim o ambiente da existência humana e por isso estímulo a que cada um reage de modo diverso, ora racional ora passionalmente. É do pensamento iluminista que nasce a tecnologia moderna, que não obedece à natureza mas que a transforma.


O termo romântico, em meados do séc. XVIII, significava ‘pitoresco’, a poética do relativo, isto é uma arte que não imita nem representa, mas que educa a natureza sem destruir a sua espontaneidade. Porém através da poética inglesa e alemã do sublime e do horror, o romântico passou a referir-se a uma relação mais misteriosa do indivíduo com o cosmos. Para o ‘sublime’ a natureza desenvolve na pessoa o sentido da sua solidão e da sua tragédia de existir. O ‘sublime’ é absoluto, visionário, angustiado e aprisionante. A poética do ‘pitoresco’ vê o indivíduo integrado no seu ambiente natural, mas na poética do ‘sublime’ o indivíduo paga, com a angústia e o pavor da solidão, a soberba do seu próprio isolamento.


As poéticas do ‘sublime’, definidas como proto-românticas, que veem a arte como uma atividade inteiramente espiritual, adotam em geral modelos das formas clássicas, como acontece na obra transcendental de William Blake e profunda de Heinrich Füssli - sendo Miguel Ângelo o exemplo supremo de génio inspirado e solitário que põe em comunicação o céu e a terra.


“Father, father, where are you going
O do not walk so fast.
Speak father, speak to your little boy
Or else I shall be lost,


The night was dark no father was there
The child was wet with dew.
The mire was deep, & the child did weep
And away the vapour flew.”
William Blake, ‘The Little Boy Lost’ In Songs of Innocence


O pintor e poeta William Blake (1757-1827) pensava que Homero, a Biblia, Dante e Milton eram os portadores das mensagens divinas. Para além dos limites terrenos só pode existir a transcendência ou o abismo, o céu ou o inferno. Blake acreditava que ao ultrapassar o limiar do ‘sublime’ as sensações desvanecem-se e entra-se em contacto direto com as forças divinas - porque o perfeito equilíbrio entre a humanidade e a natureza já se perdeu para sempre.


Para Blake, Arte é pura atividade do espírito, que escapa à matéria. É conhecimento intuitivo das forças eternas e por isso estabelece uma constante relação com o divino e o sagrado e com o Ser na sua totalidade. É anticiência, síntese, inspiração e subjetividade. É comunhão com o Universo. Blake acreditava na infinita bondade inerente ao ser humano (que cessa ao ser corrompido pelas restrições da sociedade) e na ideia de que nos primórdios da humanidade todos os seres humanos estavam ligados ao infinito (ver A Casa do Lazareto, 1795).


Blake deseja que o artista seja um ser excecional, em contacto com tudo o que a ciência, nos limites da sua racionalidade, não chega a compreender. (ver Newton, 1795)


Para Argan, ainda que o traço, das pinturas de William Blake, seja nítido e duro, é capaz de definir a indefinibilidade, a imensidão e a deslumbrante e imóvel imanência das figuras.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O pós-modernismo é uma maneira de caminhar sem sair do lugar.


“Os horizontes da vida não se projetavam em cores puras.”, Ruben A., Cores


Martin Heidegger no livro Being and Time (publicado em 1927) já afirmava que não existe pensamento puro - o pensamento existe sempre em relação a algo, por isso constrói-se junto ao mundo, numa determinada e específica realidade.


O indivíduo das primeiras vanguardas do séc. XX ansiava eliminar qualquer consciência contextual, alusiva ou histórica de modo a viver totalmente no presente e a criar uma arte nova sem qualquer influência exterior. Esse indivíduo moderno acreditava estar totalmente a sós com o seu abismo e era através da arte que se iria salvar. A arte das primeiras vanguardas vinha assim travar os prolongados sentimentos decadentes relacionados com a desgraça iminente e o horror à vida.


Donald Kuspit em The Cult of the Avant-Garde Artist (1993) escreve que o método da arte pós-modernista concretiza-se numa vontade arqueológica e maneirista em defesa contra essa decadência.


Kuspit entende que esta nova vanguarda pós-moderna vem completar o projeto que a arte moderna do início do séc. XX começou: a criação de uma arte democrática que abre a esfera fechada da arte a todas as criações afirmando um pluralismo universal que quebra sim todos os cânones, mas que os arqueologiza imediatamente em relíquias paradas no tempo. Segundo Kuspit a arte pós-moderna transforma-se cada vez mais num campo aleatório de memórias, numa coleção de elementos históricos que em cada nova obra logo adquire a camada de um passado generalizado.


Kuspit acredita que a perpétua e incessante busca por novos recursos, a ânsia pelo eterno rejuvenescimento e pela novidade, iniciada no início do séc. XX, torna-se cada vez mais agressiva e inquietante na arte neovanguardista. Mas essa ânsia tem um efeito oposto ao pretendido: as fontes perdem o seu poder rejuvenescedor quase imediatamente, pois são facilmente apropriadas simplesmente como sinais abstratos, puramente estéticos, alusivos e ornamentais, em vez de se tornarem produtos particulares com significado particular.


Por isso, para Kuspit, o pós-modernismo representa um novo tipo de decadência e um desejo imenso de inversão e de modificação da linguagem moderna. Para o artista pós-moderno apenas o caminho para trás parece claro (às vezes até reconhecendo os mestres da primeira vanguarda como velhos mestres).


Na arte pós-moderna a decadência toma conta de tudo, numa tentativa de explicitar uma sensação de progresso nenhum, sem possibilidades, sem caminho, sem saída e sem alternativas. Aqui o artista não persegue a originalidade nem a eterna possibilidade, nem se apropria de linguagem alguma. Não deseja diferenciar-se dos seus antecessores, nem colocar-se em diálogo com o passado nem com o presente. Este artista não pensa na arte como algo criado porque não deseja ser criativo. É sim um individuo que deseja sobreviver num mundo sem futuro e por isso personifica todo o passado. É a derradeira atitude decadente, porque o presente é visto simplesmente como a fina fronteira entre o nada e o todo. Toda a estrutura pós-moderna é descendente em vez de transcendente. E tal como Kuspit coloca, o pós-modernismo é uma maneira de caminhar sem sair do lugar - é uma estase dinâmica, é uma contínua regressão no presente.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

A indeterminação é a matéria da arte.


A solidão acompanha-nos sempre como se de uma sombra se tratasse. Faz parte da condição humana. Fazer arte é estar em silêncio, é fazer parte dessa solidão, é estar em completa fusão e em constante metamorfose com o que rodeia. É aceitar o que é, o que existe e o que cessa. Porque se olharmos simplesmente sem ideias preconcebidas e sem expectativas nunca nada está completo, nem parado. Há um momento em que temos de deixar e esperar que tudo aconteça.


A origem da arte é confusa. O artista nunca consegue saber bem o que está a comunicar, porque na verdade está sempre à procura daquilo que vai dizer. Essa indeterminação e esse constante contacto com o abismo e com a escuridão é a matéria da arte.


“...a arte é sempre impaciente (...) Nela não há nada de adicional, de cumulativo, não há progresso verdadeiro (...) procura compor um corpo, uma coisa finita, em escorço, em miniatura, uma nova feição do apelo das forças do obscuro, do irracional, trazendo-as à luz simbolicamente.” (Molder 2020, 16-17)


A arte não tenta escapar, nem perceber a vida, nem muito menos dar a entendê-la. É um simples testemunho dos nossos sentidos e de impressões dispersas. Fazer arte talvez seja a oportunidade única para se estar em contacto direto com a matéria em transformação, com a ultrapassagem de um estado ao outro, com esse espaço intermédio que fica entre o que realmente é e o que se desejaria que fosse. Ao formar o artista está a testemunhar e a participar de uma metamorfose que de repente faz sentido. Uma metamorfose que sem o artista não se daria. O artista ajuda a entender uma evidência. A arte pertence e vive de um momento muito específico: “...diz respeito a um modo de conhecimento, que tende sempre a superar a morte, a investir contra a escuridão...” (Molder 2020, 15)


Os pensadores modernos atribuíram especial integridade e poder ao artista, por ser o único capaz de ser ele mesmo de uma forma que é impossível para as outras pessoas e por ser o único capaz de ter experiência primordial e direta e uma sensibilidade profundamente realista. O artista moderno é singular ao ser capaz de experienciar a vida de um modo muito mais fundamental e original. Ao ser capaz de permitir que todos se libertem da agonia da vida. E de realizar a metamorfose do sonho da vida em algo concreto e palpável. A arte moderna é até capaz de ser uma grande ressuscitadora e de transferir a experiência da vida real em infinitude.


O artista moderno tem a singular e a espontânea capacidade de conduzir todos para fora do mundo comum da perceção e para longe do senso comum da vida - em direção a um mundo promissor e a um sentido de vida totalmente novo. O artista moderno é um herói que todos devem adorar porque consegue superar o seu destino através da criatividade, e consegue densamente, através daquilo que faz, libertar todos do sofrimento da vida. É a promessa da totalidade. É a promessa de ligar e de pertencer a tudo o que pode ser ligado, mesmo que seja por um instante. A arte moderna é assim ainda considerada um ofício divino em que o artista é considerado excecionalmente o único ser autêntico numa sociedade inautêntica. (Kuspit 1993, 2-6)


“... o mal na arte está numa representação do mundo que deixa o mundo abandonado, desprovido de forma, uma arte de passa-tempo para matar o tempo.” (Molder 2020, 19)

 

Ana Ruepp

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


77. FUTURISMO E TRANSUMANISMO


O futurismo antecipou muito do atual fascínio que rodeia o transumanismo.


O futurismo era uma espécie de novo modernismo, à época, como o é, agora, o transumanismo. 


Há em ambos a atração pela velocidade e ritmo acelerado da transformação científica e tecnológica.    


Convivemos, cada vez mais, com ciborgues, androides, híbridos de humanos e máquinas, com uma transformação radical dos nossos corpos, substituídos por próteses ou silício, em que nos vem à memória a escultura aerodinâmica e futurista de Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, de 1913, alegórica à velocidade e ao progresso, representando um ciborgue, metade homem, metade máquina.


Se o futurismo pressupõe um corte radical com a tradição artística e cultura dominante (passadismo), um grande espírito de experimentação, via criação de uma arte orientada para o futuro (futurismo), também o imaginário transumano antecipa o futuro, como nas artes, onde o cinema e a literatura são um bom exemplo, através da ficção científica, da inteligência artificial e da ideia de uma pós-vida digital.  


Como no futurismo, há no transumanismo um processo de aceleração movido pela ciência e pela tecnologia, pela ousadia, audácia, velocidade, pelo dinamismo, contra o decadentismo, o simbolismo, a imobilidade pensativa e o sono, tornando os seres humanos mais fortes e inteligentes.   


A que acresce, para o transumanismo, o desejo de seres humanos de maior longevidade biológica, mais duráveis, tentando reverter o envelhecimento ou, numa última fronteira, transcender a mortalidade. 


Realidade vindoura ou ficção?  


Há uma tentativa de libertação do humano daquilo que lhe foi doado biológica e naturalmente, redefinindo-o, o mesmo quanto à distinção entre a vida e a morte, superando uma corporização carnal baseada no carbono, para um corpo imaterial ou não carnal, baseado no silício. Pense-se no físico Stephen Hawking, filho de pais biológicos, que quando morreu a maioria do seu corpo era de silício, devido a doença por atrofiamento. Também a possibilidade, cada vez mais falada, de transferir a mente para um computador, é um dos exemplos mais versados.    


Pode, ainda, parecer chocante, perigosa e sinistra a ideia de uma vida pós-digital, mas se os humanos carnais cada vez consomem mais tempo online, que farão quando tais possibilidades estiverem disponíveis e se comercializarem, com a agravante de terem a internet como a mãe de todas as coisas?  


E que dizer de quem argumenta ser injusto não podermos viver eternamente? A começar por alguns tidos por génios? O que de nada lhes vale.


Embora a evolução seja contínua, nunca seremos um Homo Deus, como nunca fomos, dado que somos seres terrenos e mortais, havendo que ponderar equilíbrios, pois nem sequer sabemos se mais poder, longevidade, inteligência e saber são compatíveis entre si, o planeta em que vivemos e o cosmos de que somos parte.

 

04.06.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício