CRÓNICAS PLURICULTURAIS
63. PROUST E A ARTE DA MEMÓRIA
Para Proust a literatura que se limita a descrever as coisas, “a apresentar apenas um miserável extrato delas feito de linhas e superfícies, é aquela que, intitulando-se realista, mais afastada está da realidade”.
Como poderia uma obra de ficção provar que a realidade é, em última análise, espiritual e não física?
Proust começou a acreditar no desconhecido e inovador poder da arte com Henry Bergson, segundo o qual a realidade é melhor compreendida subjetivamente, usando a intuição para acedermos às suas verdades, e não a experimentação.
Poderia Proust demonstrar através da intuição e de um romance que a realidade era, como defendia Bergson, em última instância, intuitivamente espiritual e não física?
A resposta chega-nos, desde logo, pela leitura inicial de Em Busca do Tempo Perdido, quando o autor degusta um bolo amanteigado, aromatizado com raspas de limão e bebe um chá, um pedaço de matéria, uma madalena, cujo sabor e aroma lhe revelavam a sua estrutura espiritual e imaterial, fazendo vir à memória lembranças de tempos idos, através de uma sobremesa reduzida aos seus elementos psicológicos.
É a afamada e memorável madalena, a partir da qual toda a mente e o seu poder, toda a memória e a sua força se revelam.
O sabor da madalena e o aroma do chá libertaram lembranças e recordações do passado, em rebusca do tempo perdido que foi reencontrado, acabando por revelar que os nossos sentidos do olfato e do paladar são particularmente sentimentais, sendo os únicos que se ligam diretamente ao hipocampo, tido como o centro da memória de longo prazo do cérebro, ao invés da audição, visão e tato, que passam primeiro pelo tálamo, origem da consciência e da linguagem e menos singulares quanto ao passado, como o defende a neurociência.
E é no cérebro, sede da memória, do espírito, da mente, do pensamento, da recordação e da lembrança, convocando o nosso passado, desde a nossa infância, adolescência e idade adulta, até à morte, que permanentemente se vive e se rebusca o tempo perdido, transportando-o, através da memória, para o nosso presente.
Foi assim, na sua própria memória e através dela, que Proust pensou que iria viver para sempre, rebuscando o tempo perdido, acabando por transformar e reviver o seu passado, via arte da memória, numa obra de arte literária.
Em rigor toda a literatura é uma arte da memória, por via de uma linguagem persistentemente trabalhada, com a diferença de que Proust, por exemplo, usou o aroma do chá e o sabor da madalena para invocar a sua infância, pressentindo-a e vivendo-a em permanência via arte da memória, tendo sempre presente que “Existe pelo menos uma realidade, aquela que todos nós apreendemos de dentro, por intuição e não por simples análise. Ela é a nossa própria personalidade no seu fluir através do tempo - o nosso eu que permanece” (Bergson, Introdução à Metafísica, 1903).
Antecipou e pressentiu a estrutura do nosso cérebro, como o reconhecem os neurocientistas, escrevendo sobre o olfato e o paladar, sentidos especialmente sentimentais:
“(…) quando nada subsiste de um passado antigo, após a morte dos seres, após a destruição das coisas, apenas o cheiro e o sabor, mais frágeis, mas mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, permanecem ainda por muito tempo, como almas, a fazer-se lembradas, à espera sobre a ruína de tudo o resto, a carregar sem vacilações, sobre a sua gotinha quase impalpável, o edifício imenso da memória”. Como as madalenas ao autor de Em Busca do Tempo Perdido, a memória devolve-nos partes esquecidas do nosso passado individual e coletivo.
30.10.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício