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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


162. AS ARTES DE BEM E DE ELITE E A SUA LIBERDADE


As artes de bem ou boas artes são tidas como compreensíveis por todos, um meio de comunhão universal entre as pessoas que entendem o seu valor intrínseco, não as excluindo da cultura.   


As artes de elite são tidas como deliberadamente excludentes do grande público e das pessoas em geral, operando por códigos elitistas e intelectualizados, só acessíveis e compreendidos por uma minoria.   


Se todas as pessoas têm direito ao gozo, uso e fruição da cultura (que é um dos direitos humanos), incluindo as artes, pode indagar-se do porquê de fazer, divulgar e promover   arte a partir de premissas estéticas e opiniões conceptuais de vanguarda, impedindo uma alfabetização cultural do povo, tido como inculto, em benefício de meios tidos como de média e alta cultura inacessíveis, no seu Olimpo, ao cidadão comum. 


É mais consensual haver boa arte ou artes de bem quando nelas sobressai o aprazível, o belo, a contemplação, o deslumbramento, o sublime e o transcendente, se acessíveis e universalmente entendíveis, por maioria de razão se aceitáveis por crianças, jovens e adultos, servindo também para entreter, não apenas educar, fazer pensar ou ter uma experiência estética.         


Ao invés, é mais incompreensível, ininteligível e irracional uma arte (ou artes) que nos impõe uma disponibilidade e obrigatoriedade, por vezes penosa, de pensar, que aborda uma realidade nua e crua, irrealista ou surreal, onde há o culto da irracionalidade, da obscuridade, duma experiência puramente estética, sem qualquer coerência lógica à vista desarmada de uma primeira impressão, por vezes chocante.   

Para ascendermos e nos transcendermos através das artes temos de, por um lado, nelas incorporar tudo o que somos como seres humanos, entre a luz e as trevas, elevando-nos da lama, sem omitir os impulsos e instintos que conscientemente não controlamos e, por outro, estar permanentemente a ir mais além, demandando o que não sabemos, numa busca infindável do que não conhecemos.


Sendo uma experimentação contínua e uma tentativa permanente de superar limites, em transgressão, revelia e rutura com as normas vigentes, valem por si, são um fim em si, não um meio ou instrumento para um fim, validando-se através de critérios próprios e não de validação exógena.


Realismo, neorrealismo e realismo socialista, por exemplo, que se presumiam grandemente apreciados e universalmente compreensíveis, foram ultrapassados, nomeadamente em países democráticos, que acolhem políticas plurais de cultura, sem dogmas ou imposição de gostos estéticos, dando abertura a que as artes dependam, no essencial, da emoção que provocam.


O que não sucede em regimes autoritários, ditatoriais e totalitários, onde são um meio ou instrumento de transformar a sociedade (não a arte) através de uma arte oficial, formatada e mais acessível às massas, que só admite uma ideia pré-formada da realidade, uma só e igual para todos, o que conduz a uma amputação da génese da criação artística.


Só havendo espaço para a liberdade, inerente à criação artística, podem coexistir todas as artes, incluindo as tidas tradicionalmente ou convencionalmente por boas, de bem ou compreensíveis pelas massas, assim como as de elite ou elitistas, compreensíveis por uma minoria ou ininteligíveis pela maioria, dado que a diversidade é a condição das liberdades.   


Todas as artes têm uma função, seja ela social, estética, de contemplação, da emoção que causam, de nos ascendermos e transcendermos para além da nossa própria materialidade, mesmo que ao observá-las ou usufruí-las não reconheçamos algo que nos leve para além da realidade, porque não gostamos ou percebemos, o que não invalida que futuramente sejam compreendidas pela maioria ou por todos, como tantas vezes sucedeu com obras de arte vanguardistas que se anteciparam temporalmente.


Antes a provocação da arte pela arte, acolhendo a dissensão em liberdade, uma linguagem permanentemente trabalhada e a trabalhar, mesmo a alegórica, metafórica, misteriosa, metafísica ou simbólica, do que a mera possibilidade de fixação de regras e dogmas ideológicos a que a criação artística se deve submeter, mesmo que mais acessível e de compreensão universal, sob pena de nos confrontarmos apenas com o determinismo do já conhecido, à revelia do desconhecido como promotor e questionador do progresso.  


16.02.24

Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


161. O MELHOR E O PIOR NAS ARTES E NA VIDA


“É muito libertadora a facilidade, sempre que ouvimos a música de Wagner, com que nos esquecemos da maldade do compositor. A razão é simples: a música é muito boa. Deve haver uma escala de correspondências morais entre os defeitos humanos de um artista e as qualidades artísticas das coisas que criou. Se foi - ou é - muito má pessoa, as obras de arte têm de ser muito boas. Wagner tinha muitos defeitos para compensar, mas compensou-os.


Também há artistas que são humanamente muito bons, mas que artisticamente são infernalmente maus. Talvez sejam bonzinhos por serem tão maus. Nisso, parecem-se com os bons artistas que acham graça serem mauzinhos como as cobras.


Talvez a maldade tenha uma tabela de preços: quanto maior, mais se tem de pagar em obras de arte”
(Miguel Esteves Cardoso, A Tabela de equivalências, Público, 22.01.24).     


Eis um exemplo de um bom compositor e de um mau cidadão. Do que há de melhor na música, a maior de todas as artes, para muitos, e o que há de pior na sua vida, conhecida pelo seu anti-semitismo, prosseguido por descendentes (o que não significa que, o que com acutilância, ironia e perspicácia é citado, seja adequadamente extensivo e científica e diretamente proporcional à maioria dos criadores).     


A História está cheia de pecados e vícios privados, tantas vezes horrendos e ocultos, de homens e mulheres das letras, ciências e artes em geral que foram e são pessoas canonizadas e consagradas pela sua obra, mas desaconselháveis, maus exemplos ou desprezíveis em função de uma moral pública e legal vigente, em convivência com sórdidas histórias de família.


Pergunta-se: pode o autor ser menos avaliado do que as ideias que defende enquanto indivíduo, pessoa singular ou cidadão comum, separando a obra do seu criador?


Considerando que uma obra vale e deve valer por si, ao arrepio das opções pessoais do seu autor, do politicamente correto ou das políticas que a divulgam ou promovem, sempre entendemos que pode e deve separar-se o valor intrínseco da obra do seu criador, quando falamos de criação artística, por exemplo.   


O que não exclui ser legítimo saber o essencial da biografia dos criadores, alguns tidos por génios ao pretenderem ajudar a regenerar, revolucionar e alterar a natureza humana, o que nos leva a concluir que o mundo não pode ser apenas modificado e remodelado pela força do intelecto, das ideologias, ideias e conceitos, havendo que averiguar e examinar de perto a vida das pessoas, in casu, dos autores das coisas criadas.


Sem esquecer que a arte é um espaço de liberdade onde tudo é possível, onde podemos colocar o que há de melhor e pior em nós à revelia do sistema, em que esse melhor e pior é parte de quem somos como seres humanos evoluíveis, defectíveis e perfectíveis.


09.02.24
Joaquim M. M. Patrício

A CORAGEM DE APOIAR AS ARTES


Foi António Pedro quem disse que “a Arte só o pode ser como exercício da liberdade”. A afirmação parece natural, mas precisa de ser vivida segundo esse sério entendimento. Por isso, o apoio às artes exige determinação e um sentido apurado, que permita conciliar o gosto e a apreciação do valor. Para tanto não há receitas nem lógicas utilitaristas. É um domínio de incerteza, de intuição e de capacidade de correr riscos. A experiência portuguesa dos anos cinquenta do século passado merece ser recordada. A abertura em 1952 da Galeria de Março, dirigida por José-Augusto França, no princípio com Fernando Lemos, merece referência, já que se tratou de uma aventura cultural, mais do que comercial. O seu nascimento veio na sequência do êxito da exposição de 52 de Lemos, Fernando Azevedo e Vespeira e a sua importância deveu-se a uma atitude eclética assumida, acolhendo os artistas que a procurassem, apenas com a exigência da qualidade – indo do neorrealismo (Júlio Pomar e Lima de Freitas) ao surrealismo (António Pedro, Dacosta, Cândido e F. Lemos), até ao abstracionismo (Lanhas, Jorge Oliveira, Edgar Pillet). E a função cultural ficou claramente demonstrada pela exposição de Almada Negreiros, que remeteu para Amadeo, de quem então apenas se falava, e tinha um único quadro, e chamando a atenção para Maria Helena Vieira da Silva.


Era, no entanto, um tempo ingrato, no qual “tentar vender pintura era como procurar vender frigoríficos no polo Norte: as pessoas não precisavam”, como disse J.-A. França no “Comércio do Porto” em 1956. Falando de galerias, lembramos a abertura da “Pórtico”, onde se lançaram alguns jovens, que iriam das Belas-Artes (ou do Centro Nacional de Cultura) até Paris, como o grupo KWY, como Lourdes Castro, R. Bertholo, José Escada e Costa Pinheiro. Havia salas de exposição, mais do que verdadeiras galerias, sendo difícil a formação de um mercado. Skapinakis considerava em 1959 ser tarde para fabricar “marchands”, dos quais desconfiava. Dez anos depois, surgiria o tal mercado, algo precipitadamente. Mas o tema da internacionalização entrava na ordem do dia. Enquanto Mário Dionísio criticava, num inquérito, a saída de artistas e o facto de pensarem como se estivessem em Paris, Roma, Londres ou Nova Iorque; mas José-Augusto França apostava na abertura de horizontes; “os nossos pintores têm de pertencer (à Europa) ou morrem” e Bernardo Marques desenha em 1958 uma deliciosa caricatura onde França aponta o destino de Paris para um animado e numeroso grupo de artistas. É exatamente o período em que as bolsas distribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian vão começar a ter um papel decisivo, merecendo referência a generosa proteção de Vieira da Silva em Paris. Aliás, esta internacionalização foi antecedida por Fernando Lemos na ida para o Brasil em 1953. E o papel catalisador da Gulbenkian permitiu uma visão panorâmica do estado das artes plásticas em Portugal, proporcionando aos artistas oportunidade para estabelecer contacto com o público.


Há dias, deixou-nos Maria da Graça Carmona e Costa. Foi exemplo do apoio inteligente, conhecedor e generoso às artes e à cultura. Justas foram as homenagens que se ouviram de diversos horizontes. Apaixonada pelas artes plásticas, contactou, desde o final dos anos 1960, destacadas personalidades da arte portuguesa, como Almada Negreiros, José-Augusto França ou Rui Mário Gonçalves. Iniciou a sua atividade na Galeria Quadrum, de Dulce d’Agro, nos Coruchéus. No final dos anos 1980, fundou o gabinete Giefarte, a que sucederia, em 1997, a Fundação Carmona e Costa, para dinamizar iniciativas de arte contemporânea portuguesa, como exposições, conferências, edição de livros e catálogos, ou bolsas de estudos como as destinadas a alunos do Ar. Co – Centro de Arte e Comunicação Visual de Lisboa. E para saber o essencial, percorra-se a exposição “Álbum de Família”, no MATT, com curadoria de João Pinharanda. Para não esquecer.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

De 30 de março a 5 de abril de 2020

 

A história do “Jornal do Fundão” no mundo da cultura e da comunicação, graças à vontade de António Paulouro, merece uma referência especial, sobretudo no momento em que sai a lume a edição fac-similada do suplemento “& etc…” – magazine de Artes, Letras e do Espetáculo, que teve como artífice e animador Vítor Silva Tavares (Jornal do Fundão – Canto Redondo).

 

 

 UMA HISTÓRIA INESQUECÍVEL
De 1967 a 1971, com 26 números publicados, teve lugar a publicação de páginas memoráveis, cuja recordação merece a nossa homenagem. E é preciso recordar, antes de tudo, que, pouco antes dessa iniciativa, o “Jornal do Fundão” fora punido pela Censura com a suspensão de 6 longos meses, em virtude da publicação de um texto de Alexandre Pinheiro Torres sobre o Prémio atribuído em 1965 pela Sociedade Portuguesa de Escritores, entretanto extinta, a Luandino Vieira, preso no Tarrafal, pelo seu romance Luuanda. Em 1967, estava-se, assim, no final do consulado de Salazar, e na ressaca dessa severa punição, que envolveu a submissão de textos, fotografias e publicidade do jornal aos serviços de censura de Lisboa. Sob o impulso de José Cardoso Pires, o entusiasmo de António Paulouro e a concretização de Vítor Silva Tavares, o nascimento deste suplemento cultural situou-se no domínio do necessário improvável. E o jornalista costumava recordar a “trepidante adesão do Paulouro”, que “mais parecia uma criança toda virada à travessura do que um circunspecto adulto que somava ser o diretor de um jornal respeitável, sem dúvida o mais vertical e atuante de toda a imprensa dita ‘regional’, para apoucar”. Os riscos eram óbvios, mas o sabor do desafio valeria tudo. Com a inteligência necessária, a aventura começou com os necessários cuidados, não “com neorrealistas suspeitos”, mas com o venerável Professor Hernâni Cidade (“com muita honra”) no número 1, a falar de Raul Brandão. Assim, “não começou logo em velocidade de cruzeiro. Começa só aí ao quarto ou quinto número. Dentro daquela tática do Cardoso Pires que era: ao quarto ou ao quinto…, até para a censura não poder começar a cortar indistintamente porque já podia constituir algum escândalo. Tinha de se aguentar em crescendo, não mostrar logo o jogo”. Afinal, a independência era o que estava em causa – numa corrente que envolvia a contracultura, abrangendo, com saudável pluralismo, as diferenças democráticas. Mais tarde, segundo o próprio testemunho de Silva Tavares viriam os inevitáveis cortes, em que a censura obrigava a recompor tudo, mas com artificiosa colocação pela equipa de marcas subtis nos lugares do texto em falta. E a imagem de umas tesouras dava muito jeito… Nuno Júdice fala de um “duplo inconformismo”: “o primeiro em relação à Ditadura, embora outras revistas e suplementos literários também o fizessem, dentro das limitações censórias da época. O & etc… caracterizava-se por olhar também para fora do nosso universo e trazer o que de mais inovador e vanguardista se fazia nesse final da década de 1960; - o segundo, em relação a um certo conformismo estético da chamada cultura de oposição que decorria da submissão a uma linguagem condicionada pelos chavões ideológicos de uma esquerda ortodoxa que não permitia expressões de rutura, e quando elas surgiam eram marginalizadas”… Assim, “& etc…” ganhou uma marca que corresponde ao espírito do tempo, mas também ao anúncio de novos tempos. Ao folhearmos a publicação, sentimos que a evolução veio a confirmar os valores em que a equipa apostou.

 

ANTÓNIO PAULOURO E VÍTOR SILVA TAVARES
Depois desse encontro histórico com António Paulouro, Vítor Silva Tavares passou a ser passageiro regular da automotora da Covilhã, entre “gentes, cestos, galinhas, hortaliças”, tantas vezes sob a invernia dura da Cova da Beira, sendo acolhido a desoras na redação do jornal por umas vitualhas deixadas pelo diretor, um bife e um ovo a cavalo, pão e talvez meia garrafa de vinho, para aquecer a alma fatigada do jornalista… Até um dia em que os talheres foram esquecidos para drama e angústia do denodado artífice da escrita. Como Emanuel Cameira recordou na sessão da Fundação Calouste Gulbenkian (que outro local poderia adequar-se a este marco cultural?), pode falar-se de uma “revolução estética”: “Encontra-se aqui enquadramento favorável para explicar, por exemplo, a revolução do romance, protagonizada por José Cardoso Pires, tentando ir além do neorrealismo, mas depois também por gente mais distanciada como Almeida Faria, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa (mais distanciada do neorrealismo como opção estética, mas não de uma resistência política, evidenciada de outras formas – recordo o caso de Carlos de Oliveira, exemplo de um neorrealismo não panfletário, realizado pela erosão da escrita)”. Silva Tavares vinha do círculo da editora Ulisseia e com ele vieram Rocha de Sousa, na área das artes visuais, Liberto Cruz na literatura, Romeu Correia no teatro, além de Virgílio Martinho e Luiz Pacheco. Júlio Moreira, um dos nomes mais presentes no suplemento, fala-nos da ideia de “fazer a revolução dentro”, de “poder transmitir às pessoas determinados pontos de vista culturais que correspondiam, de facto, a uma cultura do nosso tempo”. Havia, de facto, uma renovação em curso, nos meios culturais e artísticos. A democracia preparava-se, até pelo contacto com o que vinha de além-fronteiras, e isto já desde as revistas “Almanaque” (1959) e “O Tempo e o Modo” (1963).

 

UMA GRANDE DIVERSIDADE
A diversidade era significativa. As polémicas não se evitavam. E os horizontes apresentados eram bem diversos: José Régio, Maria Teresa Horta, José-Augusto França, José Blanc de Portugal, José Sesinando Palla e Carmo, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Pedro Oom, Alexandre O’Neill, Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Ruben A… Os jovens Eduardo Prado Coelho (sobre o estruturalismo), Jorge Silva Melo (em depoimento breve) e José Pacheco Pereira (sobre literatura de viagem) estão presentes. Vasco Granja traz a Banda Desenhada e o cinema de animação. Nelson de Matos recorda o trabalho a que a pequena equipa era chamada: “recolhíamos as colaborações de várias áreas e de vários colaboradores e organizávamos o número de modo que tivesse algum interesse sem que os textos se relacionassem necessariamente uns com os outros”. Daí a vivacidade que o leitor inevitavelmente sentia… Era a lógica inconformista em vários sentidos. Assim, no poema de Ruy Belo “Nada consta”, fica dito: “quando as coisas se erguem contra o homem / se eriçam agressivas contra ele / nem ao poeta basta o parapeito das palavras”… O certo é que a vida de “& etc…” foi atribulada. Os 26 números foram publicados ao longo de 4 anos, verificando-se uma interrupção longa no último ano. Depois, a sigla teve uma vida própria, a partir de 1973 com uma revista com o mesmo título, mas sem reticências, que publicou 25 números, e Vítor Silva Tavares fez uma editora a que dedicou o resto da vida… Mas a história regista um magazine inesquecível, em luta corpo a corpo com a censura, num tempo em que os jornais se faziam a chumbo e em que era necessário muitas vezes reinventar quase tudo…    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XLII - EXPRESSIONISMO

 

Movimento artístico alemão dramático e trágico, de grande densidade psicológica e reflexiva, cujos artistas supervalorizavam o eu e a necessidade de exprimir as suas ansiedades e conflitos pessoais, alguns com preocupações de denúncia social, havendo neles uma angústia de viver, ao invés da alegria de viver do fauvismo, apesar das suas semelhanças com o fauvismo francês.

 

Reagiu contra o naturalismo e o impressionismo, tendo como antecessores Cézanne, Gauguin, Jugendstil, Van Gogh, Hodler e Munch, recorrendo a cores fortes para a captação angustiante e dramática e a explicitação dos sentimentos e das vivências psíquicas, recebendo várias influências, à semelhança do fauvismo, entre elas a valorização do indivíduo, a atenção a civilizações primitivas e exóticas (Gauguin), as cores intensas e deformação da natureza (Van Gogh), a alucinação das figuras (Munch), a crítica à sociedade burguesa (Nietzsche).

 

A imagem é simplificada, deformada, brutalizada remetendo, por um lado, para modelos arcaicos, primitivos ou infantis, de pendor regressivo e, em contrapartida, tratando temas relacionados com a época de então, denunciando a civilização moderna e usando os instrumentos da crise contra a própria sociedade, produzindo-se uma contradição entre a forma e o conteúdo expresso.

 

Não foi um movimento unitário, tendo como representantes principais das várias manifestações expressionistas, Die Brucke (A Ponte), Der Blaue Reiter (O Cavalo Azul) e Der Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade).  

 

Die Brucke (A Ponte) foi criado em 1905 por Heckel, Schmidt-Rottluff e Kirhner, ao qual se juntaram Emil Nolde, Max Pechstein e Otto Muller. 

 

Concebem a arte como uma conceção do mundo e não como uma mera exigência estética, manifestam-se contra a sociedade urbana, denunciam com angústia a crueldade e a corrupção, sacrificam a beleza pelas suas ideias, sentimentos e paixões sobre temas da vida quotidiana, em que as cores e formas usadas arbitrariamente nas suas telas  pretendem provocar no observador um sentimento de assombro, medo ou rejeição, como em Mulher ao Espelho, Cinco Mulheres na Rua e Rua com Mulher de Vermelho.

 

O português Cristiano Cruz foi expressionista com grande influência de Kirchner.

 

Der Blaue Reiter (O Cavalo Azul), nasce em Munique, em 1909, sendo herdeiro do simbolismo, misticismo russo e do expressionismo do Die Brucke, tendo como figura fundamental Kandinsky, além de Franz Marc, Kubin e Munster. 

 

É um expressionismo que não tem o sentido dramático e trágico do primeiro grupo (Die Brucke), que procura uma dimensão espiritual, não necessariamente metafísica, a par da emotividade e contacto com a natureza, onde impera uma expressividade emotiva e espiritual, dando um valor emotivo, por vezes irracional, à cor, sem perder a harmonia cromática. Exemplificam-no O Sonho (1912), de Marc, com cores usadas de modo arbitrário nas figuras e paisagem, sobressaindo os cavalos azuis, transmitindo uma sensação de calma, recolhimento e serenidade. Outro exemplo: Com o Arco Negro (1912), de Kandinsky.   

 

Der Neue Salichkeit (Nova Objetividade, regressa à pintura figurativa, sendo desapiedada e dura, após a experiência da guerra, retratando a miséria humana e a morte em contraste com a riqueza e ostentação das elites e do poder, tendo como representantes Max Beckmann, Otto Dix e George Grosz. Veja-se Cenas da Rua Kurfurstendam (1915), de Grosz.   

 

Além da pintura, o expressionismo estendeu-se ao ensaio, ao drama, à música e à literatura em geral.

 

A sua angústia de viver, caraterizada pelo absurdo, ceticismo, desespero, pessimismo, crueldade, ansiedade e sentimentos de horror, repulsa, rutura e sofrimento, evasão da opressão, luta contra a desumanização, crítica da sociedade burguesa e troça do que é belo, fez surgir, pelo seu caráter multifacetado e variedade de géneros que desenvolveu, nomes marcantes no mundo literário, como Kafka, Brecht, Camus (O Estrangeiro),  entre outros.

 

08.01.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

Georges_Rouault.jpg

 

XLI – FAUVISMO

 

No Salão de Outono de 1905, em Paris, um grupo de jovens novos pintores expõe telas marcadas pela agressividade das cores, onde a cor é empregue em tons puros, fortes e contrastantes, sem preocupações com a exatidão do tom local, usando formas e contornos indefinidos, composições planas e simplificadas. Foram denominados “fauves” (feras), uma vez se assemelhar a rugidos, a violência do seu trabalho, na distorção das formas e cores. Incluía Matisse, Derain, Puy, Manguin, Vlaminck, Rouault, a que se juntaram ulteriormente Dufy, Marquet e Van Dongen.

 

Este movimento artístico francês, conhecido por fauvismo, não aceita o papel representativo da pintura tradicional, apreciando a arte primitiva e infantil, liberta de convencionalismos, utilizando a mancha livre de cor, grandes saturações e contrastes cromáticos, em que o quadro não tem de ser fiel ao real e o tema é uma interpretação livre do artista.

 

O protagonismo dá-se ao nível da cor, brilhante e agressiva, usando preferencialmente cores primárias, de pinceladas vigorosas, soltas ou corpulentos empastes.

 

Faz o culto de uma maior alegria de viver, por confronto com o expressionismo alemão, mais dramático e marcado pela angústia de viver, embora parte integrante do expressionismo no seu todo, havendo quem fale do expressionismo francês, diferenciando-o do alemão.

 

Matisse foi o pintor fundamental do fauvismo, defendendo a harmonia cromática, desmistificando o retrato, apelando a uma ingenuidade e espontaneidade no olhar, à cor pura, ao decorativismo na arte, ao intimismo, num preenchimento total do espaço pictórico, com figuras simplificadas, um desenho de traços puros, grande saturação cromática, primitivismo, visão pura das coisas e uso da bidimensionalidade.

 

Em A Alegria de Viver (1905/6), exemplo conseguido do fauvismo, as figuras reduzem-se a manchas de cor que os contornos quase não delimitam, numa visão a cores de figuras excêntricas rudemente desenhadas, com alegres inovações cromáticas. Em A Dança (1910), sobressai a natureza expressiva das cores, que se impõem na plenitude, por entre formas muito simplificadas.

 

O fauvismo tem um sentido decorativo profundo, procurando a alegria de viver.

A experiência fauve, embora marcante, foi curta, sendo 1906 o ano em que se manifestou plenamente, com uma maior intensificação do cromatismo em Matisse, Marquet e Duffy, verificando-se a adesão de Braque e dos russos Jawlensky e Kandinsky, tendo os seus protagonistas adotado posteriormente outras linguagens pictóricas.

 

01.01.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

 

 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XL - PÓS-IMPRESSIONISTAS

 

Os impressionistas rejeitavam motivos de inspiração histórica, literária ou religiosa. Os seus temas eram os efeitos de luz e as vibrações atmosféricas produzidas pelo calor, em pinceladas fragmentadas e justapostas.  

 

Alguns pintores que inicialmente tiveram uma fase impressionista, acabaram por evoluir, demarcando-se e ramificando-se do movimento, num novo destino.

 

Têm em comum o gosto pela luz e cor, que usaram como instrumento da expressão íntima do artista, vindo alguns a influenciar o desenvolvimento posterior do fauvismo, simbolismo, expressionismo e cubismo, como Gauguin, Van Gogh e Cézanne.

 

Merece referência a obra destes três pintores, que influenciaram decisivamente a arte do século XX.

 

Paul Gauguin: foi um autodidata, desenhador, pintor, escultor, um europeu não satisfeito com a Europa, que se retirou para Taiti onde encontrou o paraíso, livrando-se da influência da civilização, aí produzindo telas exóticas, eróticas, coloridas e simples, estilizadas, decorativas, evocando uma pacífica e tranquila bem-aventurança tropical, em quadros primitivos e modernos, numa procura de espiritualidade primitiva, numa exuberante saturação cromática que amplia a vivacidade das cores ao serviço da narrativa de histórias, como em O Nascimento de Cristo (1896) e Duas Mulheres Taitianas com Flores de Manga (1899).   

 

Daí o seu misticismo e simbolismo, encontrando na vida primitiva exótica e nas conceções mágicas dos povos dos mares do hemisfério sul inspiração para novos temas e formas que transpôs para a pintura, tendo tido influência marcante sobre o fauvismo (com a sua pintura taitiana) e o simbolismo. 

 

Vincent Van Gogh: pintor holandês e desenhador, autodidata, de pintura apelativa, com um sentido cromático muito forte, contrastante e saturante, de pinceladas com marca expressiva, cromáticas e sucessivas, começando por paisagens, cenas rurais e do operariado, naturezas-mortas e retratos.

 

Em 1888, vai para Arles, no sul de França, onde fica maravilhado com a intensidade de matizes produzidos pela luz na Provença, aí alcançando o seu estilo próprio: contornos fortes, cores luminosas, uma pintura cósmica de pincelada agitada e febril. As cores têm um sentido simbólico muito próprio: por exemplo, o amarelo, a sua cor preferida, é a energia positiva, a vida; o azul é espiritualismo, universo, firmamento. 

 

Ao assumir uma abordagem cada vez mais subjetiva, pinta não apenas o que via mas o modo como sentia o que via, começando a deformar, distorcer e desumanizar as imagens para transmitir as suas emoções, exagerando para impressionar, fazendo lembrar a distorção das imagens de El Greco, 300 anos antes, embora de temática diferente. Telas como A Casa Amarela (1888), Girassóis numa Jarra (1888), Noite Estrelada sobre o Ródano (1888) e O Quarto (1888), A Noite Estrelada (1889), Campo de Trigo com Corvos (1890), são algumas obras-primas que nos deixou. 

 

Queria, como autor e criador, que as pessoas pensassem da sua obra: “Este homem sente profundamente”

 

Pouco conhecido no seu tempo, ao invés de agora, a sua influência foi decisiva para o expressionismo, ao distorcer a cor e a pincelada para exprimir o que lhe ia na alma.

 

Paul Cézanne: pintor, desenhador, aguarelista francês, que após trabalhar sob a influência do impressionismo, em especial de Pissaro, chegou a um impasse, acreditando que a mãe natureza daria a resposta, vendo nela coisas soberbas, decidindo fazê-las ao ar livre, procurando dissolver a perspetiva convencional através da pincelada cromática e encontrar a volumetria através da cor, o que era novidade, a que acresce uma abordagem analítica da representação, baseada na redução de pormenores visuais a formas geométricas, desde quadrados, retângulos, círculos, triângulos e losangos, em que uma pedra assume a forma de uma bola e um campo de um retângulo.   

 

Começou a notar que uma representação vista de um único ponto de vista é redutora e limitativa, porque mais imitativa, em que o ideal é introduzir vários pontos de vista, fragmentando os objetos, numa perspetiva bidimensional, tridimensional, etc.

 

Se vejo de cima, de lado, de baixo o mesmo objeto, tenho dele pontos de vista diferentes, representando-o de várias formas.

 

Começa a haver uma unidade planificada, uma só unidade, em que os objetos e o céu são pintados numa mesma unidade sob várias perspetivas, num abandono da perspetiva tradicional, como o exemplifica Natureza Morta com Maçãs e Pêssegos (1905), em que o amarelo quente e o frio azul contrastam sem sobressalto, apesar de opostos no jogo de cores. 

 

De um espaço equivalente com perspetivas e planos diferentes e sobrepostos, transita-se para planos e espaços fragmentados, estilhaçados, baseados em meras formas geométricas e estruturados com uma grande tensão rítmica, servindo de base ao cubismo.   

 

25.12.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXIX - IMPRESSIONISMO

 

1. Movimento artístico cujo nome advém da tela de Monet Impréssion, que repudiava a pintura académica e de estúdio de natureza clássica, recusando um estilo que idealizasse obras baseadas na mitologia, iconografia religiosa, história ou antiguidade clássica, contrariando uma técnica de pintura tida como adequada e precisa.

 

O impressionismo faz sobressair o reflexo da luz nos objetos e não os próprios objetos, com pinceladas urgentes, momentâneas, velocistas, com explosões de cor compactas, breves, ao ar livre, onde a luz muda permanentemente, captando a sensação de um momento passageiro, em que a informalidade e a velocidade era essencial, em oposição ao ambiente académico, artificial, controlado e solene do estúdio.   

 

Captavam o aspeto momentâneo, singular e continuamente em mudança das coisas, partindo dos efeitos óticos da luz e das cores, normalmente claras, decompondo-as em manchas e pinceladas finas e pequenas, que ao serem observadas a uma determinada distância, refletiam o jogo da luz e do cromatismo, sem dependerem, no essencial, dos contornos, volume corpóreo e da profundidade. 

 

Há quem diga que pinta o espaço que medeia entre nós e os objetos. 

 

O desenho torna-se secundário. É a cor que dá forma. 

 

Embora no contexto atual da arte moderna o impressionismo seja tido como adequado e encantador, por representar e retratar cenas reconhecíveis de uma maneira figurativa, por confronto com a desumanização do cubismo, abstracionismo, dadaísmo e arte concetual, não foi o que as pessoas pensaram aquando do seu aparecimento, dado que, na época, os impressionistas foram tidos como um grupo de arrivistas, rebelde e radical, pintando obras artísticas tidas como meras caricaturas não adequadas aos cânones da Academia, onde imperava o estilo neoclassicista do Renascimento. 

 

Baudelaire, no ensaio O Pintor na Vida Moderna, fez uma interpretação atualista e atualizada do que estava a acontecer, usando o seu estatuto de escritor e poeta consagrado para avalizar os impressionistas, pelo que muitas das suas ideias foram  incorporadas nos princípios básicos fundadores do impressionismo. 

 

Desafiando os artistas a distinguirem na vida moderna o eterno do transitório, tendo como fim essencial da arte captar o universal no presente do quotidiano, escreveu: 

 

“A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável. Existiu uma modernidade para cada pintor antigo; a maior parte dos belos retratos que nos ficaram de tempos anteriores estão revestidos de vestuário da sua época. São perfeitamente harmoniosos porque o fato, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época tem o seu porte, o seu olhar e mesmo o seu sorriso) formam um todo de uma completa vitalidade. Este elemento transitório, fugitivo, cujas metamorfoses são tão frequentes, não tendes o direito de o desprezar ou de o dispensar. Ao suprimi-lo, caireis forçosamente no vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da única mulher antes do primeiro pecado”.   

 

2. Teve como principais representantes Manet, Monet, Renoir, Degas, Pissarro, Sisley e,  entre outras, como pinturas célebres Olympia e Almoço na Relva (1863, Édouard Manet), Impression, Soleil Levant (Impressão, Nascer do Sol, 1872, Claude Monet), A Aula de Dança (1874, Edgar Degas), onde são várias as influências sofridas, desde os paisagistas de Barbizon, os efeitos da luz natural do pintor inglês Turner e as xilogravuras japonesas coloridas e bidimensionais Ukiyo-e, com o seu significado de imagens de um mundo flutuante. 

 

As últimas consequências da técnica impressionista, desenvolveram-se com o neoimpressionismo (pontilhismo), a partir de 1885, nomeadamente com Seurat e Signac. Desenvolveu-se paralelamente ao processo físico visual, uma distribuição produzida por refração da luz através de um modo prismático das tonalidades, donde deriva o divisionismo, representando-as na tela via uso das cores puras aplicadas em forma de pequenos pontos aplicados uns contra os outros, formando uma espécie de teia.

 

Seurat era também artista gráfico, além de pintor, ficando conhecido por telas figurativas e paisagísticas, de grande força luminosa e estrutura matemática, enquanto Signac, além de pintor, foi escritor e artista gráfico, pintando paisagens com o movimento de redemoinho das cores.         

 

Na escultura, há que referir Rodin, com trabalhos em gesso, mármore e bronze, alusivos a formas plásticas de jogos permanentes de luz e sombras, exemplificando-o O Beijo (1866) e Os Burgueses de Calais (1884).

 

Reproduzindo, de igual modo, temas atuais e novos temas relacionados com a vida boémia e burguesa de Paris, o impressionismo opôs-se à pintura histórica e de género idealizada e tida como adequada para a época, tendo em atenção as inovações provocadas pela fotografia, estudos químicos sobre a cor do químico Chevreul, a pintura paisagística inglesa do século XVIII e do ar-livre fomentada e praticada pela escola de Barbizon. 

 

18.12.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXVIII - NATURALISMO

 

Na continuidade do realismo, surge o naturalismo, aproximando-se da natureza, aquele mais da fotografia.

 

O realismo preconizava a objetividade na mimetização da realidade e a necessidade de o artista não idealizar o real, mas tão só, provido de certo rigor científico, observá-lo com agudeza e isenção, fazendo artisticamente um retrato fiel do que observou na vida da sociedade.

 

Os naturalistas eram influenciados por conceitos da biologia, fisiologia, sociologia, especializados em ciências naturais, como a botânica e a zoologia, assim se diferenciado melhor dos realistas embora, como estes, mantivessem objetividade em relação à realidade.

 

Daí que a literatura naturalista seja expressão dos progressos científicos da fisiologia, bilogia e outras ciências, descrevendo as emoções através das suas manifestações físicas, demonstrando que os factos psíquicos estão sujeitos a leis rígidas, como os fenómenos físicos, não se limitando a observar e expor (como os realistas), o que levou o escritor Zola, por exemplo, a uma conceção determinista da existência humana, influenciado pelas teorias de Darwin e Haeckel sobre a hereditariedade.

 

Eça de Queirós, expoente da literatura realista em Portugal, alheou-se dos processos biológicos e fisiológicos para explicar o carater das personagens dos seus romances, tendo sido seguidores de Zola, entre nós, Júlio Lourenço Pinto, Abel Botelho e Teixeira de Queirós.

 

A Escola de Barbizon, em França, com a sua pintura ao ar livre, de ar-livrismo, teve muita importância na caraterização do naturalismo, cujo nome mais conceituado foi Théodore Rousseau.

 

Esta estética naturalista, aliada do realismo, teve forte impacto na pintura portuguesa, ao invés da literatura, onde vingou o realismo.

 

Em Portugal, ao nível da pintura, transitou-se do romantismo para o naturalismo, com uma breve passagem pelo realismo, por exemplo, com Miguel Lupi.

 

José Malhoa foi o pintor mais popular, conhecido e procurado. Maria de Lurdes de Melo e Castro a sua mais fiel discípula.

 

Não era pintor do regime, embora a sua obra efabulatória, de um certo Portugal paradisíaco, possa propiciar essa interpretação.

 

Preferia ambientes exteriores, ao sol, na rua, com figuras populares e o seu meio, preferindo o contacto popular. 

 

Pintor de paisagem, de género e de costumes, assim o qualificou Ana Ramalho Ortigão.  Em 1955, Egas Moniz, prémio Nobel da Medicina, considerou Malhoa como o maior pintor português de todos os tempos, o que mostra a dificuldade de outros pintores poderem singrar, caso de Almada Negreiros e Amadeu de Sousa Cardoso.

 

No retrato, temos Columbano Bordalo Pinheiro como o mais ilustre, sobretudo de análise psicológica.

 

Retratista de excelência, mais de intelectuais, como o de  Antero de Quental, tido como um ícone, onde o importante é o rosto, a cabeça, a inteligência, simbolizando a metafísica, correspondendo à parte iluminada do retrato, ficando na penumbro o resto do corpo.

 

A que acresce o retrato de Teófilo Braga, Bulhão Pato, Teixeira de Pascoais, Viana da Mota, António Ramalho, todos intimistas, introspetivos, de interiores, com forte presença psicológica, contraste de luz e sombra, luminosidade e penumbra, com chapas de luz criadoras de dinamismo na pintura, dando-lhe uma perceção dinâmica. É célebre a pintura a óleo O Grupo do Leão retratado, em 1885, por Columbano, com Henrique Pinto, Ribeiro Cristino, Malhoa, João Vaz, Alberto de Oliveira, Silva Porto, António Ramalho, Rafael Bordalo Pinheiro, Columbano, António Monteiro, entre outros. Além de retratista, foi pintor muralista, integrando a segunda geração naturalista.

 

O grande escultor do naturalismo português foi Teixeira Lopes, do realismo Soares dos Reis. 

 

11.12.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXXVII - REALISMO (II)

O IMORAL E O CRITICAR PARA CORRIGIR EM MADAME BOVARY

 

O romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary (1857), é tido como pioneiro da estética realista na literatura.

 

À semelhança dos romances realistas, propunha-se fazer um inquérito à sociedade francesa, como Eça de Queirós, mais tarde, influenciado pelas ideias importadas de França, se propôs fazê-lo à sociedade portuguesa.

 

Pelo seu pioneirismo e escândalo, na época, o processo movido contra Madame Bovary, é exemplar pelo confronto entre a acusação, a defesa e a sentença final.

 

Autor, editor e impressor foram acusados de delitos de ofensa à moral pública, religiosa e aos bons costumes, em especial Flaubert, o réu principal, qualificando de imoral tal romance o advogado/delegado imperial do Ministério Público, rebatendo a objeção geral de tal obra, no fundo, ser moral, dado que o adultério era punido, alegando: 

 

“Para essa objeção, duas respostas: suponhamos que, por hipótese, a obra é moral - uma conclusão moral do romance não basta para amnistiar os pormenores lascivos que nele se encontram. E depois afirmo: a obra, no fundo, não é moral”.

 

Acrescentando: 
“Digo, meus senhores, que pormenores lascivos não se podem cobrir com uma conclusão moral, porque a ser assim podíamos contar todas as orgias imaginárias, descrever todas as torpezas de uma mulher pública, desde que o fizéssemos depois de morrer numa enxerga de hospital. Seria lícito mostrar todas as suas posturas lascivas! Isto seria ir contra todas as regras de bom senso”

 

Após classificar a obra como imoral, do ponto de vista filosófico, reconhecer que a protagonista morre envenenada, que sofreu muito, alega que “morre no dia e hora que escolheu, e morre, não porque é adúltera mas porque quis morrer”, além de dominar o livro em tudo, havendo que recorrer à moral cristã para explicar e reforçar a imoralidade da obra, dado ser em nome desta que “o adultério é estigmatizado, condenado, não por ser uma imprudência que expõe a desilusões e pesares, mas porque é um crime contra a família”.   

 

Concluindo: embora compreensível que a literatura realista, como arte, pinte o feio, o mau, o ódio, a vingança, o amor, dado que o mundo vive disso, é inadmissível que estigmatize a moral, uma vez que a arte sem regra deixa de ser arte, pelo que impor à arte a regra única da cedência pública não é subordina-la, é honrá-la, só se progredindo com uma norma.

 

O advogado de defesa, nas suas alegações, questiona:

“Este livro, posto nas mãos de uma senhora jovem, poderia ter o efeito de arrastá-la para os prazeres fáceis, para o adultério, ou pelo contrário, de mostrar-lhe o perigo dos primeiros passos e de fazê-la estremecer de horror?”   

 

E acrescenta:

“O adultério não passa de um rosário de tormentos, de pesares, de remorsos; e depois chega a uma expiação final, pavorosa. É excessiva. Se o Sr. Flaubert peca, é por excesso. A expiação não se faz esperar; e é nisso que o livro é eminentemente moral e útil, é que ele não promete à jovem esposa alguns desses belos anos no fim dos quais ela pode dizer: depois disto, não importa morrer”. 

 

Mais se alegou que o autor mostra uma mulher que cai no vício em virtude de um  casamento inadequado e de uma educação desadequada para a condição em que nasceu, que lida a obra a amigos altamente colocados nas letras, que estudaram e examinaram o seu valor literário, nenhum deles se sentiu ofendido, dada a evidência do seu fim moral,  representando dois ou três anos de estudos incessantes para Flaubert, razão pela qual a defesa, por fim, pergunta: 

 

“A leitura de um tal livro provoca o amor pelo vício ou provoca o horror pelo vício? A expiação tão terrível da falta não impede, não incita à virtude?”  

 

Concluindo que ao fazer comparecer o autor em polícia correcional, “já foi cruelmente punido.”  

 

A sentença,  após vários considerandos, decide:  

“Considerando que Gustave Flaubert protesta o seu respeito pelos bons costumes e por tudo o que se relaciona com a moral religiosa; que não parece que o livro tenha sido, como certas obras, escrito com a finalidade única de dar satisfação às paixões sensuais, ao espírito de licença e de deboche, ou de ridicularizar as coisas que devem ser rodeadas pelo respeito de todos;

 

Que ele só errou em perder às vezes de vista as regras que todo o escritor que se respeita não deve nunca violar, e em esquecer que a literatura, como arte, para atingir o bem que lhe compete realizar, não deve ser apenas casta e pura na sua forma e na sua expressão;

 

Nessas circunstâncias, considerando que não ficou suficientemente provado que Pichat, Gustave Flaubert e Pillet se tenham tornado culpados dos delitos que lhe são imputados;  

 

O tribunal absolve-os da acusação pronunciada contra eles e manda-os em liberdade sem custas.”   

 

Para uns, o culto do imoral, do escândalo, o querer chocar, relatando cruelmente o mal, o querer vender para ter dinheiro, com o chamariz do deboche. 

 

Para outros, o fazer um inquérito à sociedade com um fim: criticar para corrigir, emendando-a, tentando a regeneração dos costumes pela arte.

 

Apesar do contexto da época e do vanguardismo do movimento realista, vingou a arte, fazendo e tentando fazer um profundo e subtil inquérito realista a toda a vida em sociedade.  

 

10.04.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício