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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

JUÍZO DO ANO…


N
o começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.


I.
Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer;  (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de 
Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças.
Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.


II.
Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…   


III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!"Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…

 

Agostinho de Morais

ALBERT UDERZO (1927-2020)

 

 

Agradecemos ao nosso Amigo e consócio João Paulo P. Boléo, grande especialista da BD, este texto exclusivo.

 

Quando recebi de um amigo, na manhã de 24 de Março, a notícia da morte de Albert Uderzo, o meu primeiro comentário, a acompanhar a partilha da notícia, foi: «Esta é realmente uma notícia grande. Morreu Uderzo com um ataque cardíaco depois dos 90. É justo recordar que Goscinny foi bem menos feliz - morreu a fazer uma prova de esforço (!) por volta dos 50».

 

A carreira, colaboração, co-autoria, cumplicidade dos dois foi de tal maneira grande e marcante que ficaram indissociáveis. Não só, como sabe quem conhece minimamente as suas vastas obras, mas sobretudo - naturalmente - devido a Astérix.

 

Ao aceder ao "convite" do meu Amigo Guilherme d'Oliveira Martins, permitam-me algumas notas confessionais. Ao chegar lá a casa, no início dos Anos 60, pelo mão do meu irmão mais velho (o grande introdutor das histórias aos quadradinhos na família, com a cumplicidade do meu Pai), o primeiro livro do Astérix (Astérix le Gaulois), falámos nele a uma família belga amiga e naturalmente apreciadora de BD... e ainda não conheciam! Essa valiosa primeira edição acabaria por dar a volta à família, à rua, aos amigos... e desaparecer...

 

Sabemos (se e quando sabemos) que a autoria da banda desenhada, no caso frequente de um argumentista e um desenhador, tem as mais variadas nuances e contributos, desde o desenhador que recebe o guião "perfeito" e se "limita" a desenhá-lo (às vezes sem se verem!), até à intensa colaboração de ambos.

 

Sem pôr em causa o papel claro e fundamental de cada um, é evidente que havia ideias de ambos e uma intensa colaboração e cumplicidade entre Goscinny e Uderzo. Que já vinha de trás.

 

Hoje (penso no tempo em que também escrevi no Expresso artigos sobre estes autores, que não fui reler intencionalmente) é (mais) fácil recolher informação e reconstituir a obra de artistas como Goscinny (14/08/1926-05/11/1977, de origem polaca) e Uderzo (n. 25/04/1927, de origem italiana), convindo apenas sublinhar que Goscinny foi um genial argumentista com uma obra vastíssima e na sua maioria brilhante em paralelo e para lá da fecunda colaboração com Uderzo.

 

Mas hoje é Uderzo que justamente homenageamos. E assim como, por exemplo, Lucky Luke nasceu pela mão exclusiva de Morris mas foi com o talento de Goscinny que teve os melhores anos da sua vida, Uderzo também teve muitas obras e séries meritórias desde finais da Segunda Guerra Mundial, quando começou a sua carreira, mas Goscinny seria um companheiro decisivo. Embora não só.

 

O aspecto essencial a sublinhar, porém, aquilo que torna Uderzo um dos grandes nomes de toda a BD e dos artistas mais marcantes do nosso tempo é o seu excepcional jeito inato para o desenho desde pequeno, ele que até nasceu com seis dedos em cada mão (seria operado). E era daltónico.

 

Muito influenciado pelos desenhos animados de Walt Disney, revelou desde cedo um grande sentido do movimento e minuciosa expressividade, sendo também marcado pela pujante escola francesa de BD, nomeadamente Calvo, autor de La Bête est Morte, uma excepcional "versão" animalista da II Guerra Mundial.

 

As suas primeiras séries marcantes seriam Flamberge, Arys Buck, Belloy, etc., umas como autor completo, outras com argumentos de Charlier (que voltará a aparecer), e onde apuraria o seu estilo e criaria personagens que fariam parte da "arqueologia" dos seus sucessos maiores, bem como Jehan Pistolet e Luc Junior, primeiras colaborações com Goscinny, na década de 50, envidenciando nesta o seu talento para fundir o traço humorístico e o "realista".

 

Na segunda metade dos Anos 50, depois de um projecto inicial não totalmente conseguido, surgiria o grande "ensaio geral" antecessor de Astérix que seria Oumpah-pah, cinco histórias delirantes de 30 páginas com a amizade entre um índio e um caval(h)eiro francês, primeiro na revista "Tintin" (belga e francesa) e depois reunidas em álbum, o primeiro dos quais também seria muito lá de casa, com gags inesquecíveis, como o nome da figura que só tinha um dente...

 

E eis senão quando surge, em 1959, o projecto que irá revolucionar a História da BD, em especial  europeia: a revista "Pilote". E Goscinny e Uderzo farão parte dos fundadores, sendo o desenhador "pau para toda a obra" - evidenciando a importância da sua vasta e diversificada experiência, aqui só aflorada - que se vai manifestar especialmente em duas séries que mostram a sua versatilidade: Tanguy et Laverdure, com argumento do prolixo e importante Jean-Michel Charlier, em que mostra o seu talento "realista" e projecta a sua paixão pela aviação e pelas "máquinas" (também era um apaixonado por automóveis e condução), sem esquecer o toque de humor (em especial na figura de Laverdure); e, no registo que todos conhecem, Astérix.

 

A qualidade, relevância e influência de Astérix não precisam de ser sublinhadas, nem a importância que teve no processo de "dignificação" da BD na década de 1960, com o momento alto que foi o sucesso e impacto de Astérix et Cleópâtre (1963-1964, álbum em 1965), embora a BD não tenha atingido o estatuto no mundo da Arte que essa década anunciava e prenunciava, mas isso são outras histórias.

 

A Portugal, como Tintin, Astérix chegou cedo: na revista "Foguetão" (1961), de grande formato, um projecto efémero de Adolfo Simões Müller, em que Astérix surge a preto-e-branco ou a uma cor, tendo depois, como as outras séries (incluindo Michel Tanguy) que passar (com resumo!) para o "Cavaleiro Andante", na sua fase final.

 

Para uma primeira abordagem de Uderzo em Portugal sugiro: https://biblobd.blogspot.com/2018/10/albert-uderzo-ensaio-de-quadriculografia.html.

 

E Uderzo atinge aqui o cume do seu talento e da sua expressividade e fluência, a capacidade de transmitir sentimentos e emoções mesmo em personagens de costas, os gags visuais, uma inesgotável panóplia de recursos que é redundante sublinhar.

 

Não é a altura para uma reflexão mais aprofundada sobre Astérix, as múltiplas leituras de que foi objecto, sendo considerada tanto uma série progressista como conservadora, nem sobre os seus muitos méritos, os anacronismos, o humor de repetição intra-aldeia, as personagens pitorescas, os gags linguístico-visuais, etc., etc., nem sobre a sua incontornável presença na cultura contemporânea.

 

Uma coisa é certa. Uderzo também fez parte da concepção e não apenas da ilustração, mas como argumentista não é Goscinny, e se o primeiro álbum depois da morte deste (Le grand fossé, 1980) ainda tinha a força da dupla, ela foi-se diluindo, até Uderzo deixar de desenhar - a operação aos dedos deixara marcas...

 

Sobre os "apócrifos", com argumento de Jean-Yves Ferri e desenhos de Didier Conrad, de que saiu recentemente o quarto, não levem a mal que não me pronuncie, preferindo ir, com muito gosto, revisitar a série quando era feita por Goscinny e Uderzo, de que me permito, do fundo da memória, destacar Astérix et les Goths, A. Gladiateur, A. et Cléopâtre, A. chez les Bretons, A. légionnaire (o meu preferido), La Zizanie, Le domaine des Dieux... 

 

João P. Boléo