Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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ALMADA E O ESPETÁCULO TEATRAL, NO “MANIFESTO ANTI-DANTAS”
Assinala-se este mês o centenário do “Manifesto Anti-Dantas e por Extenso”, texto referencial, não só da obra e da intervenção de Almada Negreiros através da análise polémica e veemente, mas de profunda atualidade, do meio cultural da época – e em tantas coisas, do meio cultural da nossa época: e isto, tanto pela singularidade e qualidade do texto em si mesmo, como das críticas que em grande parte e no global, ainda hoje se revelam atuais.
Façamos pois uma breve análise.
Antes de mais, há que referir a simbologia das críticas, a partir da obra, à época em plena criação e expansão, do próprio Júlio Dantas, realçando aliás dois aspetos hoje muito claros. De um lado, a simbologia em si mesma, considerando-se Dantas um símbolo de certa criação literária e artística da época, e daí a abrangência de tantos nomes e tantas formas de arte e literatura.
Mas de outro lado, o reconhecimento de que o “Manifesto” em si, notabilíssimo ainda hoje como expressão e rigor da critica, peca em certos aspetos por análises epocais que entretanto ou foram corrigidas por obras posteriores de cada um dos visados, ou revelam um excesso de criticismo: o que, porém, constitui em si mesmo um dos valores perenes do “Manifesto”, mesmo quando não se concorde inteiramente com a analise.
Ora bem: um dos aspetos que nos apraz salientar, por que menos lembrado, é a referência ao meio teatral – atores, encenadores – na época em plena atualidade, mas que, precisamente, hoje, é importante recordar. E tenha-se presente que essas referencias nem sempre são expressas, o que mais reforça a abrangência global, digamos assim, do “Manifesto” em si mesmo.
E isso é particularmente assinalável no que respeita a atores, pois a sua arte é, por definição e por essência, transitória e como tal tantas vezes esquecida. Por outro lado, as referencias diretas são escassas o eu não impede Almada de condenar, em termos genéricos mas veementes e abrangentes, “os atores de todos os teatros”, nada menos!
Sara Afonso Ferreira, que tem dedicado vasto e meritório labor à obra de Almada, procede, na edição critica do “Manifesto Anti Dantas”, a qual integra um CD com leitura e entrevista, pelo próprio Almada gravada em 1965, procede a um levantamento vasto dos atores relacionados com as companhias e espetáculos que direta ou indiretamente são referidos no próprio texto. Por vezes expressamente, outras vezes através dos espetáculos e companhias citados.
Assim, temos “os Rosas” e “os Brazão” que correspondem a João Rosa, Augusto Rosa e Eduardo Brazão, em “A Ceia dos Cardeais” do próprio Dantas. E temos Maria Matos, Luísa Lopes, Celeste Leitão, a jovem Hermínia Silva, Francisco Mendonça de Carvalho e Mário Duarte na estreia de “Soror Mariana”, também de Júlio Dantas, no Teatro Ginásio em 21 de Outubro de 1915.
E surgem mais evocações, no livro de Sara Afonso Ferreira, de elencos de espetáculos citados no “Manifesto Anti-Dantas”, do próprio Dantas e de outros autores. E são sempre marcadas pela crítica irónica ou violenta de Almada.
Por exemplo, o ator Mário Duarte, na estreia da “Soror Mariana” é referido como “o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa”, alusão a um dentista homónimo da época.
E há mais citações de peças, atores e atrizes que marcaram a época, e são citados em espetáculos de autores diversos: Maria Matos, que na “Soror Mariana” interpreta a Abadessa com “a voz tão fresca e maviosa da tia Felicidade da Vizinha do Lado”, peça de André Brun; ou Mendonça de Carvalho, evocado num papel anterior, em “A Menina do Chocolate” de Paul Gavault; ou estreia de “Aljubarrota” de Rui Chanca, com Eduardo Brazão e Augusto Rosa, e “que deixou de ser a derrota dos castelhanos para ser a derrota do Chianca”; a atriz Palmira Torres, que em 1916 estreou uma comédia, “Como se Vingam Mulheres”, de Sousa Costa, dedicada a Julio Dantas …
E tantos mais!
(cfr. “Manifesto Anti-Dantas e por Extenso por José de Almada Negreiros Poeta d´Orpheu, Futurista e Tudo” edição de Sara Afonso Ferreira, Assírio e Alvim ed.)
Na semana passada evocamos aqui o cenógrafo italiano Luigi Manini (1848-1936), contratado, recorde-se, em 1879 para o então designado Real Teatro de São Carlos, onde se manteve, em vasta e prestigiada atividade, até 1913. Hoje, evocamos o cenógrafo e ocasional dramaturgo francês Lucien Donnat (1920-2013) que desde 1939 colaborou com a Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro (ERCRM), pelo menos até 1968, com a peça “Tango” de Slamovir Mrozek, estreado no Capitólio em 29 de novembro daquele ano. Tinha também trabalhado para o Teatro de São Carlos.
No livro-depoimento de Amélia Rey Colaço, escrito por Vitor Pavão dos Santos, Amélia é pródiga em evocar as numerosíssimas criações e intervenções cenográficas de Donnat ao longo da sua longa estadia em Portugal, e isto, como bem sabemos, nos sucessivos “Teatros Nacionais” que a empresa ocupou, e designadamente o D. Maria II, e, depois do incêndio de 11 de dezembro de 1964, o Avenida até ao incêndio de 1965, o Capitólio até dezembro de 1970, e episodicamente o Trindade e o São Luiz (1974). Isto, alem das tournées dentro e fora do país. E neste contexto, Lucien Donnat manteve-se ligado à empresa durante dezenas de anos. (cfr. Vitor Pavão dos Santos - “O Veneno do Teatro ou Conversas com Amélia Rey Colaço”, Bertrand Ed. 2015).
Mas não exclusivamente como cenógrafo: em meados dos anos 40, assinala Luis Francisco Rebello, a ERCRM leva à cena, algo insolitamente, uma revista intitulada “Diz-se por Musica” da autoria de João Villaret e Lucien Donnat… De notar aliás que não foi esta a única revista que Robles e Amélia levaram à cena.
Lembra Luis Francisco Rebello que em 1928 produziram um espetáculo a partir da revista “Cravos de Papel” de Lino Ferreira e Nascimento Fernandes, com um elenco de luxo: Amélia fez dois papeis, “Menina Alfacinha” e “Mulher da Mouraria”, Robles fez o compère e atuaram também, Maria Clementina, Assis Pacheco, Álvaro Benamor, entre outros mais.
E acrescenta Rebello que, no início dos anos 40 o Teatro Nacional levou à cena nada menos do que três revistas, sendo uma delas a já referida “Diz-me por Música” de João Villaret e Lucien Donnat. (cfr. Luis Francisco Rebello – “História do Teatro de Revista em Portugal”, vol. 2, ed. Publicações D. Quixote, 1985, sobretudo pág. 123-126).
Mas vejamos o historial da colaboração de Lucien Donnat com Amélia Rey Colaço, a partir sobretudo do livro de Vitor Pavão dos Santos. Aí encontramos com efeito numerosas referências a trabalhos de Donnat.
Assim, em 1949, na peça “Outono em Flor”, ultima de Júlio Dantas, Pavão dos Santos descreve os cenários e esclarece que “quem desenhava estas maravilhas era Lucien Donnat, o francês mais português e mais espirituoso e requintado que conheci, de um gosto o mais impecável, do qual Amélia fizera um indispensável aliado” (pág. 27). E nessa linha vai citando cenários e ambientes produzidos para o TNDMII.
Jorge de Sena refere também estes cenários de Lucien Donnat, sublinhando em especial os móveis e adereços e salientando a adequação ao ambiente da peça “a que o público se entrega consoladamente.” E acrescenta ainda que “um ou outro desconsolo da restante interpretação diluiu-se na amenidade geral do conjunto”, o que não deixa de ser interessante, tratando-se de uma peça de Julio Dantas (in “Do Teatro em Portugal” edições 70, pág. 134).
Mas voltemos às análises de Vitor Pavão dos Santos. Seleciono, entre tantas mais, as referências a peças de Lope de Vega (“A Menina Tonta - La Dama Boba”) “em que Lyicen Donnat fez maravilhas com um pátio do siglo de oro”, isto em 1953 (pág. 38); a apresentação do “Tá-Mar de Alfredo Cortez em Paris (1953)” com cenários bem bonitos estilizados mas com o necessário realismo poético” (pág. 57).
E sobretudo, na mesma obra, a transcrição do longo depoimento de Amélia Rey Colaço sobre Lucien Donnat, onde se refere que o cenógrafo não era “apenas” um grande cenógrafo: seria também dramaturgo, como aliás já vimos acima, e até autor esporádico de música de cena. Por exemplo, diz Pavão dos Santos, na “revista carnavalesca Ponto de Vista (10 de Fevereiro de 1961) texto muito engraçado de Varela Silva, música de Lucien Donnat” (pág. 153)!
E para terminar, o depoimento de Amélia Rey Colaço sobre a recuperação do Teatro Avenida, depois do incêndio do D. Maria II: “O que recebi do seguro foi todo aplicado na renovação do Teatro Avenida, que era um teatro miserável. As pessoas nem queriam acreditar, o meu querido Lucien Donnat, com a sua baguete de feiticeiro, tinha transformado tudo, parecia um teatrinho de Londres, em tons de vermelho, com o busto do Garrett no foyer, salvo do incêndio”. E Amélia recorda ainda que, durante o incêndio, Lucien Donnat “meteu-se às chamas”! ( págs. 208-210).
Evocamos hoje a figura e a intervenção do cenógrafo italiano Luigi Manini (1848-1936) no teatro português, pois a sua colaboração com a criação e produção teatral cobre todo o movimento de renovação literária e cultural da transição do século. Contratado como cenógrafo em 1879 pelo então chamado Real Teatro de São Carlos, e aqui se manteve em trabalhos permanentes até 1913. E não se limitou, antes pelo contrário, à colaboração, aliás intensa e determinante, como a produção operística. Foi muito mais longe na renovação e na produção.
Basta lembrar as numerosas e variadas intervenções no âmbito da pintura e da decoração, um pouco por todo o país. Contratado pelo São Carlos, a sua ação imediata concentrou-se como é óbvio na ópera: recorde-se a cenografias de produções por exemplo da “Aída”, “Mefistófeles, “Otelo” ou "Lohengrin”, entre tantas mais.
Tal como escreveu José Augusto França, salientando sobretudo a colaboração no São Carlos e no D. Maria II: “No meio duma cenografia «em estado crapuloso» (Fialho) foi vastíssima a obra de Manini para os dois palcos lisboetas que encheu de florestas e montanhas, claustros, castelos e salões, indo de Wagner a Verdi, de Meyerber a Rossini”. E desenvolve a referência com as diversas dimensões da obra criativa e das intervenções de Manini. (cfr. “A Arte em Portugal no Século XIX”, segundo volume, Portugália ed. 1966 pág. 197).
E lembramos ainda uma apreciação da época, nada menos que do então bem conhecido e influente Sousa Bastos, que aqui temos citado: “depois de Rambois e Cinatti, ainda não tivemos melhor. (…) O seu trabalho agradou imensamente e todos os teatros de Lisboa o disputavam para as suas peças, especialmente as de grande espetáculo. Nos teatros de S. Carlos, D. Maria e Trindade, há trabalhos de Manini que são de primeira ordem” (“Diccionário do Theatro Português (1908); cfr. também do mesmo autor “Carteira do Artista” 1899).
Mas a permanência e atividade de Manini, nos cerca de 35 anos que trabalhou em Portugal, é muito mais vasta. Colaborou, como arquiteto-decorador para os Teatros do Palácio Foz, do D. Amélia, São Luiz, São João do Porto, Garcia de Resende de Évora, Funchalense ou, noutro plano, para a Exposição de Paris de 1900. E nesses, e em outros teatros, deixou a sua marca em cenários para peças designadamente de autores nacionais.
Ora bem. Uma peça recente, “Os Patriotas” (2000) da autoria de Filomena Oliveira e Miguel Real, estreada no jardim da Quinta da Regaleira em Sintra, hoje pólo relevante de atividade cultural da Câmara, dá-nos uma imagem curiosa da intervenção de Manini nessa época tão rica da renovação da vida cultural portuguesa, numa abrangência global.
A encenação de Filomena Oliveira, ao longo de 24 cenas, rentabilizou os jardins mas também o chamado Terraço dos Mundos Celestes criado por Manini. São 16 personagens em sucessivos diálogos que, além do dono da Quinta, Carvalho Monteiro, envolvem nada menos do que Guerra Junqueiro, Eça de Queiroz, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e José Fontana.
Manini não surge em cena, mas é regularmente citado. Vejamos algumas cenas dispersas:
"Albertina - Conhece o sr. Manini? (…) Ele costuma passar dias inteiros aqui na Quinta. É pena não estar cá hoje (…) O sr. Manini às vezes também canta quando está a trabalhar nos seus desenhos. E eu oiço e gosto”.
“D.ª Perpétua (referindo-se a Margot) - Ela canta na ópera do senhor Manini”…
“Carvalho Monteiro - Acabei de mandar uma grossa quantia para Coimbra, para o mestre Gonçalves. Os artistas da pedra com quem o Manini já trabalhou no Buçaco”.
“Dª Perpétua (arrumando a mesa) - Olha para isto. São partitura do Manini, com certeza. Ainda se perdem.” / Carvalho Monteiro - “Deixa estar. Ele tem tido com tanto trabalho em S. Carlos… Se as deixou aí, é melhor deixa-las”.
“Margot - Que maravilhosa Quinta esta! É quase um cenário de ópera. (observa em volta) Que pena não termos o Sr. Manini aqui connosco.”
“D.ª Perpétua - Gosto de conhecer o libreto antes de assistir a uma ópera.” / Margot (remexendo papéis que se encontram sobre a mesa) - Se quizer conto-lhe a história da Carmen. É a história de uma mulher que…/ D.ª Perpétua - Por favor, não mexa nesses papéis! Pertencem ao senhor Manini. / Margot - Mas está assinado por uma Alfredo Keil. Quem é? / D.ª Perpétua - São papéis que o Sr. Manini deixou. Por favor…”
“Carvalho Monteiro - então, Perpétua, tens de ser tolerante com os artistas. Margot é uma cantora muito dotada. E é amiga do Manini.”
Haverá maior homenagem à presença atual de Manini no teatro português?
O ESPETÁCULO TEATRAL EM CAMÕES E ANTÓNIO RIBEIRO CHIADO
Recuamos hoje até meados do século XVI.
O espetáculo teatral, ao longo dos anos de 500, terá perdido a dinâmica e a abrangência que Gil Vicente lhe legou. E mesmo a nível de textos, a qualidade regista como que uma quebra, em relação aos parâmetros vicentinos, mas também ao conjunto de outros géneros e expressões literárias e artísticas.: o que não significa uma total ausência de valor.
Há aqui um certo paradoxo. Todos bem sabemos que não é na vertente dramatúrgica que Camões atinge os píncaros excecionalíssimos da sua obra. Mas também todos temos consciência de que António Ribeiro Chiado atinge o seu mais elevado nível precisamente, na vertente dramatúrgica.
E não estamos a compara-los entre si. Ou melhor – até podemos dizer que, na especificidade das dramaturgias respetivas, o Chiado não desmerece tanto: mas no conjunto global das criações respetivas, qualquer comparação seria perfeitamente descabida, para não dizer absurda!...
Posto isto, o que nos interessa agora é evocar o espetáculo teatral da segunda metade do século XVI: e encontramo-lo diretamente evocado em duas peças que precisamente retratam e documentam o meio teatral da época. São elas, o “Auto de El-Rei Seleuco” de Camões e o “Auto da Natural Invenção” do Chiado. Sem entrar em méritos relativos ou comparativos, salientamos entretanto um aspeto aglutinador: ambas as peças, cada uma a seu modo e a seu jeito, põe em cena situações de “teatro no teatro”: representações de peças por grupos de amigos ou familiares.
O “Auto de El-Rei Seleuco” terá sido escrito entre 1543 e 1549 e evoca uma figura destacada da corte de D. João III, o Cavaleiro Fidalgo Estácio da Fonseca, Almoxarife e Recebedor das Aposentadorias da Corte. Trata-se com efeito de uma récita de teatro representada em casa do próprio Estácio: e a anteceder o Auto propriamente dito, temos uma cena em que o próprio dono da casa dialoga com um chamado moço-criado sobre o espetáculo que irá ter lugar e os atores respetivos:
«Estácio – São já chegadas as figuras?/Moço – Chegadas são elas quase ao fim das suas vidas./ Estácio – Como assim?/ Moço – Porque foi a gente tanta que não ficou capa com frisa, nem talão de sapato que saísse fora do couce. Ora vieram uns embuçadetes e quiseram entrar pela força: ei-lo arrancamento na mão: deram uma pedrada da cabeça do Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não há-de entrar, até não derem uma cabeça nova, e o Ermitão até não lhe porem uma estopada na calça. Este pantufo se perdeu ali; mande-o vossa mercê apregoar nos púlpitos que não quero nada alheio./Estácio – Se ela fora outra peça de mais valia, tu botares a consciência pela porta for apara a meteres em tua casa»…
Ora bem: no próprio “Auto de El-rei Seleuco” o Chiado é expressamente referido com alguma ambiguidade. Num diálogo entre dois personagens, Martim Chinchorro e o Escudeiro Ambrósio, este conta como contratara o Moço Lançarote:
«Ambrósio - Aqui me veio parar às mãos, sem piós nem nada; e eu por gracioso o tomei; e mais, tem outra coisa: que uma trova fá-la tão bem como vós, ou como eu, ou como o Chiado»…
Por sua vez, o Chiado, no “Auto da Natural Invenção”, põe também em cena um diálogo preparatório da representação de um espetáculo em casa de uma figura do corte. Falam o Dono da casa e o criado Almeida:
«Dono – Almeida!/ Almeida – Senhor?/ Dono – Vem cá, vem cá! Sabe se há-de tomar o porto/hoje este auto, ou se é morto./Almeida – E o autor onde está?/ Dono- Em casa de teu avô torto,/ ou marmelo pela perna!/ Quem seus rapazes governa/sua casa é mais rapaz, e rapaz que tratos traz/ com quem a malícia inverna./ Que te mandei todioje?/ Almeida – Que mandou Vossa Mercê?/ Dono – Já nada pois que assi é/ não hade Deus que tenoja»…
O Auto acaba por ser feito, apesar das restrições do Dono, para quem o Auto é devassidão, confusão, desonra e risco de segurança da casa. Talvez porque, como escreveu Luciana Stegagno Picchio, «A Natural Invenção tal como as peças espanholas e inglesas que tratam do mesmo assunto, põe-nos em contacto direto com a menosprezada e pitoresca chusma de comediantes que em Portugal no seculo XVI já tinha assumido uma fisionomia própria bem definida» – expressão rigorosa do meio teatral da época… (in “História do Teatro Português” – 1964, pag. 102). Aliás o designado Autor é, na época, muitas vezes, o que hoje designaríamos como encenador: mas desses, nem se fala!
E vejamos, para terminar, ainda uma referência ao Chiado, na comédia “Aulegrafia” da autoria de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Aqui, dialogam dois personagens, D. Galindo e D. Ricardo:
«D. Galindo – Ah desumana cegueira,/ que trago os olhos quebrados/ para chorar/ todos os gostos passados (…)/ D. Ricardo – Isso é vosso?/ D. Galindo – Senhor, não. É do escudeiro Chiado./ D. Ricardo – Em algumas coisas teve veia esse escudeiro» …
Teófilo Braga enfatiza esta citação e relaciona-a com a referência de Camões que acima se transcreveu: «não carecia de mais para a sua imortalidade». (in “História da Literatura Portuguesa – Escola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional”- 1898 pag. 83).
Já aqui evoquei a carreira de Álvaro Benamor, em especial como professor de Arte de Representar e Encenação no Conservatório Nacional (CNC - “O Ensino do Teatro em Portugal”- 5 - 21 de maio de 2014). Ocorre que se assinalam 40 anos da sua morte. E acresce que entre os últimos grandes espetáculos em que marcou a sua intervenção e a que assisti, saliento, na Casa da Comédia, “A Dança da Morte” de Augusto Strindberg, na temporada 1969/1970, e a versão de Friedrich Durrenmat denominada “Play Strindberg – A Dança da Morte em Doze Assaltos”, estreada em Portugal em 1975 (e depois reposta), também na Casa da Comédia, ambas encenadas por Jorge Listopad. (cfr. Rui Pina Coelho “Casa da Comédia (1946-1975) Um Palco para uma ideia de Teatro” – ed. Temas Portugueses – FLL e INCM 2009).
Álvaro Benamor iniciara a carreira em 1928. Toda essa cronologia por si só justificaria a evocação. Mas importa sobretudo referir a qualidade deste ator-encenador e sobretudo a inovação que sempre marcou as suas intervenções no plano da atuação em palco, repita-se, como ator e como encenador, e particularmente, ainda, a capacidade didática como professor, que o foi no Conservatório Nacional a partir de 1959. Aí o conheci e a muitas aulas, exercícios e ensaios também assisti.
E é de assinalar então a intervenção de Benamor na Casa da Comédia, pois, para lá da qualidade dos espetáculos, que me é grato novamente registar, inscrevem-se simultaneamente diversos fatores relevantes.
Por um lado, a versatilidade do ator, no auge de uma carreira que, iniciada como vimos em 1928, e que integra, ao longo de décadas, os mais relevantes projetos de teatro profissional – Empresa Rey-Colaço – Robles Monteiro, no D. Maria mas também noutros teatros, Companhia Teatral Portuguesa de António Pinheiro e Companhia de Maria Matos no Avenida, Comediantes de Lisboa no Apolo, Teatro de Arte de Lisboa de Francisco Ribeiro no Trindade, Companhia Nacional de Teatro de Couto Viana também no Trindade, e ainda, como já se disse, a Casa da Comédia, onde terá encerrado a sua atuação como “ator culto e inteligente”, escreveu Luís Francisco Rebello no “Dicionário de Teatro Português”.
E para alem disto, a intervenção no teatro radiofónico, dezenas de anos na EN, e a inovação nos inícios do teatro da RTP, em direto, como era prática na época.
Ma ainda, em particular, a direção-encenação de dezenas de espetáculos da Companhia Portuguesa de Ópera no Teatro da Trindade dirigido por José Manuel Serra Formigal. Por razões familiares mas também profissionais, assisti a numerosos ensaios de todas as produções, que alternadamente cobriram desde o grande repertório operístico a estreias e “recuperações” de óperas portuguesas, numa sucessão muito meritória. E aí, assinalo a renovação e, para o público em geral, a “descoberta” desse repertório operístico português – por exemplo, como citei em artigo anterior, a “Serrana” de Alfredo Keil, “A Vingança da Cigana” de Leal Moreira, ou “A Condessa Caprichosa” de Marcos Portugal.
E destaco, na memória que conservo destes espetáculos, dois aspetos relevantes: de um lado, a modernidade das encenações; mas simultaneamente, a reconstituição adequada à estética musical, predominante num espetáculo de ópera clássica, mesmo quando a encenação é um a reconstituição epocal moderna, passe o paradoxo.
Cito ainda o final dessa minha evocação anterior. É que, para além do repertório internacional clássico e moderno, “no Conservatório, Álvaro Benamor selecionava, para os alunos, um repertório português, a partir de Gil Vicente, percorrendo dos clássicos aos contemporâneos, e dando assim uma complementação das cadeiras teóricas, desde a História da Literatura Dramática à Filosofia do Teatro.”
EVOCAÇÃO DA ÓPERA DO TEJO E DO MEIO TEATRAL DA ÉPOCA
Acaba de ser publicado um livro da autoria de Aline Gllaschi-Hall de Beuvink, professora da Universidade Autónoma de Lisboa e especialista em História da Arquitetura e do Espetáculo: e precisamente, o estudo agora publicado, “Ressuscitar a Ópera do Tejo – o Desvendar do Mito” (ed. Caleidoscópio) evoca, com larga informação e muita qualidade, o Teatro- edifício, junto ao Terreiro do Paço que, durante 7 meses marcou a vida cultural e urbana de Lisboa, de 31 de Março a 1 de Novembro de 1755, até ser destruído pelo Terramoto. Ficaram entretanto memórias e documentos que o livro cita e analisa em detalhe: e ficou designadamente uma gravura das ruinas, da autoria de Le Bas, datada de 1757.
Num texto introdutório, a autora enuncia as sucessivas designações do Teatro, desde a origem até hoje. E até nesta variedade de identificação, podemos adivinhar, algo paradoxalmente, a transitoriedade catastrófica do edifício: Real Casa da Ópera, Teatro do Paço, Real Teatro de Lisboa, e até Teatro da Tanuaria.
E acresce que, nos escassos meses de atividade, apenas subiram à cena dois espetáculos, já que o terceiro estava em fase de produção: e foram eles a ópera “Alessando nell Indie”, de David Perez sobre libreto de Pietro Metastasio e “La Clemenza de Tito” de Antonio Mazzoni, também sobre libreto de Metastasio. O terceiro espetáculo, “Antigono”, dos mesmos autores, estava previsto para estrear em 4 de novembro: mas a tragédia real foi outra, três dias antes...Estaria em preparação um quarto espetáculo, “Artaserse”,de David Perez.
Gustavo de Matos Sequeira ainda evoca outro espetáculo, “Destruição de Cartago”. Mas sobretudo refere com detalhe a inauguração da Ópera do Tejo e as encenações. E destaca por exemplo, numa delas, a intervenção de um corpo de cavaleiros no palco, “marchando todos os rocins ao som da orquestra”!
E transcreve a opinião de um espetador qualificado, Frei João de S. José Queiroz, Bispo do Grão-Pará, o qual criticou não só o esplendor do teatro em si, como as despesas da produção operística:
“Não se pode nem deve sustentar a magnificência, o esplendor e o gosto de um teatro com uma orquestra soberbíssima, reputada pelos embaixadores estrangeiros como a primeira do mundo. Assim mo disse o conde de Peralada, que esteve na Favorita em Viena, e Nápoles, em Itália, e finalmente viu o teatro espanhol depois de apurado no governo dos reis D. Fernando e Dona Maria Bárbara”... (in “Teatro de Outros Tempos” 1933 págs. 189/190).
E mais: a vasta bibliografia que enquadra a atividade operística do período, numa dimensão cultural europeia no que toca à música e de certo modo ao teatro, não era habitual entre nós. Mas por essa época assiste-se a um movimento de produção de espetáculos com reflexo imediato na edificação de teatros e mais espaços que deixaram nome e memória, muito embora muitos deles tenham sido atingidos pelo Terremoto.
A época posterior acabou aliás por contemplar em termos de recuperação arquitetónica espaços de espetáculo que “prepararam” o grande movimento ao longo da segunda metade do seculo XVIII até se entrar em pleno no seculo XIX, época privilegiada no que respeita ao espetáculo teatral.
O livro de Aline Beuvin sobre a Ópera do Tejo escrito “no período em que se assinala o 260º Aniversário da sua construção e fenecimento”, diz-nos a autora na Apresentação, é também extremamente esclarecedor no “desvendar do mito”, expressão que como vimos integra o título.
Por seu lado, Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara e Vanda Anastácio referem com destaque a intervenção de Inácio de Oliveira Bernardes (1659-1781) como decorador e cenógrafo, já na altura com larga carreira, o que terá justificado a nomeação, por D. José, para o exercício desta atividade junto dos teatros da corte. Remetem para uma coleção de desenhos e esboços, salientando que “muitos desses traços mostram o seu conhecimento dos modelos estéticos barrocos, correspondendo alguns dos seus desenhos a soluções pessoais a partir de condicionantes ditadas pela ação dramática”, numa perspetiva de “adaptação da estética barroca a novas tendências proto-românticas” (in “O Teatro em Lisboa no Tempo do Marquês de Pombal” ed. MNT 2005 págs. 122 e segs.).
E veja-se ainda, entre outras obras, a descrição detalhada que encontramos em Marina Tavares Dias, para quem a Ópera do Tejo “talvez tivesse vindo a ser um marco na história da cidade. Pelas razões óbvias, é apenas uma memória difusa”. (in “Lisboa Desconhecida” vol. 5 1996 pág. 62). E remete-se para a descrição detalhada que faz Mara Ana T. Gago da Câmara no “Dicionário da História de Lisboa”, direção de Francisco Santana e Eduardo Sucena no verbete relativo a Teatros Régios (1999 pág. 899).
Finalmente: sendo este Teatro concebido e construído com vocação operística, e nela tendo preenchido os escassos meses em que sobreviveu, o que se sabe da sua estrutura e o que historicamente se conhece do meio teatral da época não deixa excluir a hipótese de posteriores atividades teatrais, tal como sucedeu aliás no “sucessor” Real Teatro de São Carlos, inaugurado em 1793.
Sobretudo, se considerarmos que na época atravessava-se um período interessante de heterogeneidade teatral, no sentido global de texto e espetáculo.
Basta lembrar as sucessivas Dissertações que em 1757, Correia Garção apresentou à Arcádia Lusitana, definindo uma teoria geral do espetáculo, a partir a própria elaboração dos textos, mas conduzindo à produção teatral e ao que, mais tarde (e até hoje) se chamaria encenação. Aí se determina, designadamente, a necessidade de despojar a cena que deverá ser simples e austera.
E em 1766 apresentou a sua peça de estreia, “Assembleia ou Partida” que põe em cena, com ironia crítica, a preparação de um espetáculo teatral, no que respeita designadamente a interpretação e encenação:
Vejamos o que diz o personagem denominado Artur Bigodes:
“A ideia de teatro é bom projeto/O ponto só consiste em desbancarmos/ o da Rua dos Condes e Bairro Alto”
E mais adiante, o personagem Aprígio:
“Aqui trago compadre estes senhores/Ambos um non plus ultra de teatro./ São músicos, atores, dançarinos,/ Grandes poetas, tudo ao mesmo tempo/ (…) O Senhor Jofre, quando as áreas cantam/ As almas arrepia, cala o vento./ Pois o mancebo cá, o meu Inigo,/ esse vivo bemol, esse magano,/ Nos lances amorosos é um pasmo!”
E no final, outra vez o Artur:
“Inda o Fado não quer, inda não chega/ A época feliz e suspirada/ de lançar do teatro alheias musas/ De restaurar a cena portuguesa.”!...
Ora bem: o espetáculo de estreia não chegou ao fim, interrompido pela pateada e pelas vaias do público! Teófilo Braga é aliás categórico: “A comédia Teatro Novo é uma sátira constante aos que dominavam a cena portuguesa sem nada compreender da arte dramática” (in “História do Teatro Português – A Baixa Comédia e a Ópera” 1871 pág. 74).
MÁRIO DE SÁ CARNEIRO, DIRETOR DE UMA COMPANHIA DE TEATRO EXPERIMENTAL
Temos aqui alternado a referência a atores profissionais com a referência a individualidades dominantes da literatura, da cultura ou da política, que em fases diversas da vida, participaram em espetáculos teatrais, como atores ou encenadores. Essa tradição, há que insistir, vem das origens vicentinas e inclui situações por vezes episódicas mas nem por isso menos significativas: e basta lembrar Almeida Garrett, em 1843, a fazer de Telmo Pais na estreia do “Frei Luis de Sousa”.
No início do ano assinalamos aqui o início do centenário da morte trágica, auto-infligida, de Mário de Sá Carneiro, ocorrida em 26 de abril de 1916, tinha o autor 26 anos. Evoquei então a sua intervenção como diretor de um movimento teatral, a Sociedade de Amadores Dramáticos, para além da sua própria produção dramática: ou melhor, daquilo que, nessa linha de criação, chegou até nós, com destaque para duas peças – “Amizade” escrita com Tomás Cabreira Júnior (1912) e “Alma” (1913) esta escrita com Ponce de Leão.
E citei títulos que, ou não chegaram até nós, ou que deles restam apenas estratos: “O Vencido” (1905), “Gaiato de Lisboa” (1906), “Pesar de Estudante” (1907), “Feliz pela Infelicidade” (1908), “A Farsa” e “Irmãos” (ambas de 1913) além de uma tradução/adaptação de “Aveugle” de Michel Provins. Fiz aí referências a estudos anteriores da minha autoria e de Luis Francisco Rebello e François Castel.
Acrescente-se, de Sá Carneiro, “O Vencido” e “Feliz pela Infelicidade”, bem como um estrato inominado, publicados pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda com estudos de Manuela Nogueira e Maria Aliete Galhoz: e há referência a mais textos perdidos (in Mário de Sá Carneiro – “Juvenília Dramática”- INCM 1995).
Neste contexto de celebrações dos 100 anos da morte do escritor, damos aqui notícia de duas iniciativas muito recentes.
A Biblioteca Nacional inaugurou uma exposição intitulada “Mário de Sá-Carneiro - «O Homem são Loco»”, citação de Fernando Pessoa, comissariada por Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro, catálogo com retrato da autoria de Júlio Pomar, mostra essa que exibe e documenta um conjunto muito interessante de livros, textos e imagens referentes à vida e obra do autor.
E aí, assinalo um aspeto curioso, ligado à produção teatral de Sá Carneiro. É que a sua primeira peça publicada, “Amizade”, identifica na capa os dois autores, mas por ordem inversa daquela que é hoje referida por todos os historiadores de teatro e literatura: Tomás Cabreira Júnior e Mário de Sá Carneiro, diz a capa da edição, dando assim “prioridade” ao malogrado primeiro co-autor, que poria termo à vida em 1911 - tal como Sá Carneiro faria 5 anos depois…
Esta sequência de nomes dos autores foi entretanto totalmente alterada posteriormente (“Amizade” de Mário de Sá Carneiro e Tomás Cabreira Júnior, assim citada), pois a relevância de um e de outro não se pode comparar, mas a edição original é como referimos.
Por seu lado, o Jornal de Letras Artes e Ideias (JL - 27 de abril / 10 de maio de 2016) dá grande destaque ao centenário da morte de Sá Carneiro, a partir de textos de um conjunto relevante de escritores, em edição devidamente ilustrada com gravuras e desenho na capa de João Abel Manta. E aí, reproduzem-se designadamente dois textos relativos à atividade teatral de Sá Carneiro, ambos em francês. Trata-se em primeiro lugar de uma carta data de 3 de Julho de 1911, assinada por Tomás Cabreira Júnior e Mário de Sá Carneiro, destinada a um jornal e onde se esclarece que a peça “Amizade” dos signatários foi escrita em 1909 e não é plágio de uma “Amitié” publicada por Jules Lemaitre.
E ainda uma notícia (também em francês) publicada mas não datada nem identificada, onde se informa que foi fundada em Lisboa, em Março de 1912, uma nova sociedade teatral de amadores, a Sociedade de Amadores Dramáticos, indicando o repertório dos quatro primeiros espetáculos. Primeiro: “Les Fossiles” de François de Curel; segundo: “O Relógio do Senhor Cura” de António Ponce de Leão e a “Amizade” de Cabreira e Sá Carneiro; terceiro: ”Interieur” de Maurice Maeterlinck, “Le balcon” de Gunnar Helberg e ainda “Les Bouligrin” de Courteline; e o quarto: “Mentiras” de Ponce de Leão.
COMENTÁRIO A UMA ENCENAÇÃO DO “FREI LUIS DE SOUSA”
Faremos aqui um breve comentário à encenação de Rogério de Carvalho no “Frei Luís de Sousa” levado à cena pela Companhia de Teatro de Almada no Teatro Joaquim Benite. E isto porque, em primeiro lugar, são sempre bem vindas, para não dizer necessárias, as re-encenações deste grande texto referencial. Mas também porque o espetáculo – que diga-se desde já, tem boa qualidade – concilia o rigor assumido do texto de Garrett, com uma versão moderna, renovada e renovadora: o que em si mesmo não só é obviamente legítimo como louvável pela afirmação de modernidade, mesmo que se discutam aspetos de conceção e execução.
Mas desde logo se diga que a integral do texto, encenado num registo de atualização de espetáculo, mostra a atualidade da peça em si no ponto de vista da criação direta de Garrett. Quer dizer: a peça, tal como a lemos, contem todos os valores da sua atualidade real no texto e potencial no espetáculo. E nesse aspeto, ainda dois comentários:
Em primeiro lugar, as próprias didascálias e notas de cena originais, tal como Garrett as concebeu e interpretou em 1843, podem ser devidamente “aplicadas” num espetáculo moderno, sem por isso o espetáculo deixar de ser moderno e atual. Trata-se aliás de uma expressão exemplar de teatralidade, repita-se, não só através das descrições de cena propriamente ditas, vastas e pormenorizadas na sua adequação “realista” à época do drama, mas também, modernas quando Garrett as concebeu e ainda hoje: uma versão rigorosa nunca será por isso menos eficaz na sua modernidade.
E essa modernidade concilia três planos epocais e estéticos: o da época da cena e da ação histórica (século XVII), o da época da criação da peça (século XIX) e o da época da encenação (século XXI). Nesse aspeto, insista-se, o espetáculo concebido e dirigido por Rogério de Carvalho concilia bem os planos: aliás, tal como o próprio encenador recorda numa entrevista no programa coordenado por Ângela Pardelha, “o texto é um dos melhores textos dramáticos da literatura portuguesa”, pois “a modernidade do texto é evidente”. Assim é, com efeito: o que comporta a modernidade da encenação, mesmo que não se considere sempre ao mesmo nível o tratamento e o desempenho de todos os personagens.
E ainda um reparo: a intemporalidade e certa “abstração” cénica e cenográfica epocal é em si mesma bem-vinda, sem embargo, insista-se, da qualidade, no duplo sentido, das indicações cénicas originais. Mas apesar disso, registo na encenação uma certa “homogeneidade excessiva” que neutraliza um pouco a dramaticidade crescente – e não se fala aqui de suspense ou de premonição e fatalismo, por que o texto é hoje perfeitamente universal no conhecimento que dele se tem… o que permite em certa medida exercícios de homogeneização.
Pode no entanto discutir-se a “abstração” da cena do final do segundo ato, como sabemos crucial no contexto dramático. A didascália de Garrett é rigorosa, como o são aliás todas as indicações de cena. Aqui, impõe-se o significado dramático e simbólico da descrição do Ato Segundo, com a galeria de retratos e com a extraordinária cena final:
“Romeiro (apontando com o bordão para o retrato de D. João de Portugal) – Ninguém” (Frei Jorge cai prostrado no chão, com os braços estendidos diante da tribuna. O pano desce lentamente)…”
E pode questionar-se aqui a encenação/interpretação que, segundo penso, de certo modo desdramatizou o conteúdo simbólico da cena de identificação do Romeiro-D. João de Portugal pelo próprio, apesar de figurar no retrato “noutros trajes… com menos anos – pintado”, como refere o Frei Jorge:
“Jorge – Procurai nestes retratos e dizei-me se algum deles pode ser.
Romeiro (sem procurar, e apontando logo para o retrato de D. João) – É aquele”.
Note-se bem: “sem procurar”…
No plano do texto em si, saliento sempre a grande fala final da Maria:
“(…) Esta é a minha mãe, este é o meu pai… Que me importa a mim com o outro? (…) Mate-me, mate-me se quer, mas deixe-me este pai, esta mãe que são meus (…) – Não há mais do que vir ao meio de uma família e vir dizer: «vós não sois marido e mulher? e esta filha do vosso amor, esta filha criada ao colo de tantas meiguices, de tanta ternura, esta filha é…» Mãe, mãe, eu bem o sabia… nunca tu disse mas sabia-o: tinha-mo dito aquele anjo terrível que me aparecia todas as noites para me não deixar dormir…”
No que respeita ao espetáculo, há certamente que o elogiar, com talvez um reparo relativo à conceção cénica ao longo dos três atos, a partir de um dispositivo uniforme de José Manuel Castanheira, contrastante com as notas de cena e descrições de ambiente de Garrett, curiosamente detalhadas e realistas. Mas nada disso prejudica o espetáculo, ainda valorizado pelas interpretações de Adriano de Carvalho, Alberto Quaresma, Afonso Fonseca, Carlos Fartura, Joana Castanheira, João Farraia, Marques d’Arede, Pedro Walter, Teresa Coutinho, Teresa Gafeira.
De facto, Garrett é um grande (e moderno) dramaturgo, o “Frei Luís de Sousa” é uma grande (e moderna) peça. Merecerá sempre por isso a reposição.
´Há menos de um mês, evocamos a carreira de Nicolau Breyner, por ocasião da sua morte. (“Atores, Encenadores - LXVIII – 23 de março de 2016). Hoje, pouco mais de apenas três semanas decorridas, evocamos a carreira de Francisco Nicholson, falecido no passado dia 12 de abril. São dois atores da mesma geração, com carreiras paralelas e tantas vezes convergentes, na participação de espetáculos, na heterogeneidade de repertórios, na renovação da cena portuguesa, em que ambos participaram com destaque adequado e justificado pelo talento que também lhes era comum.
Francisco Nicholson (N. 1936) começou a fazer teatro aos 14 anos, ainda aluno do ensino secundário, nas iniciativas de António Manuel Couto Viana, e numa geração que abrangeria, mias tarde, atrizes e atores que marcaram o espetáculo em Portugal. Passou entretanto, ao longo de uma carreira de dezenas de anos, por grupos que são ainda hoje referencias no moderno teatro- espetáculo em Portugal. Destaco, no que respeita ao teatro declamado com exigências culturais, a ligação a companhias que marcaram época: a do Gerifalto, companhia duradoura de teatro infanto-juvenil, fundada e dirigida por Couto Viana, que encenaria peças de aurores marcantes como Fernando Amado, Natália Correia, Jaime Salazar Sampaio, Correia Alves, Norberto Ávila, alem de clássicos adequados ao publico infanto-juvenil. E recordo ainda a Companhia Nacional de Teatro ou o Teatro Estúdio de Lisboa, dirigido por Luzia Maria Martins e Helena Felix.
E ainda a companhia que Raul Solnado criou para inaugurar o Teatro Villaret, isto em 1965: tal como escrevi na época, “obra excelente, no bom gosto, no sentido de oportunidade, no completamento ideal de instalações”, até porque se trata de um teatro de bolso integrado num prédio em Lisboa: teatro em vez de lojas ou garagens. Por isso escrevi a propósito que “Lisboa tem uma sala potencialmente a mais rica, e desde já, a realidade consoladora de um lugar cénico em que todos, atores e espetadores, se sentem bem”…
Nicholson tinha estudado em Paris e a sua participação, durante anos, na companhia do Teatro Villaret, sob a direção de Raul Solnado, muito contribuiu para a qualidade e sentido de renovação dos espetáculos e em geral do meio teatral da época: estamos, recorde-se, em 1965. E até podemos evocar, para documentação do progresso que Solnado trouxe na época ao meio teatral português, que o Teatro Villaret se “desdobrava” em duas companhias e em duas temporadas simultâneas, perdoe-se a expressão paradoxal: pois ao mesmo tempo Jacinto Ramos dirigia, em matinés, o denominado “Teatro do Nosso Tempo” que na época constitui também uma renovação de elencos e repertórios, na simultaneidade de duas companhias e dois espetáculos absolutamente distintos no centro de Lisboa. Em qualquer caso, no Villaret, Nicholson integrou o elenco do “Inspetor Geral” de Nicolau Gogol.
A partir daí, a carreira de Nicholson prosseguiu numa abrangência de géneros e numa pluralidade de iniciativas muitas vezes inovadoras e sempre com qualidade. No Teatro ABC estreia como ator e também como autor de revista, em “O Gesto é Tudo” contracenando com Camilo de Oliveira e Eugénio Salvador. Percorreu os diversos teatros/espetáculos de revista, no Parque Mayer e um pouco por todo o país. E seria um dos fundadores da companhia do Teatro Adoque. Trabalhou também nos Teatros Monumental e Maria Matos.
Francisco Nicholson desenvolveu pois uma notável carreira, pela qualidade das interpretações como ator, pela qualidade dos textos como autor, mas também pela variedade de registos cénicos e dramatúrgicos abrangidos. E mais: como autor de poemas musicados por uma variedade assinalável de compositores e intérpretes, em espetáculos e concursos internacionais, em Portugal mas também pelo menos no Rio de Janeiro e em Atenas.
Foi um dos nomes marcantes na televisão, designadamente a partir de 1964, como autor e interprete em numerosíssimos programas e também como letrista e autor de telenovelas, que aqui não vamos elencar, mas que cobrem dezenas de anos de produção televisiva, sendo a primeira a “Vila Faia” na RTP.
E finalmente, escreveu os guiões de dois filmes de Pedro Martins: “Operação Dinamite” (1966) e “Bonança e Cª” (1969).
EVOCAÇÕES DE ÂNGELA PINTO POR QUEM A VIU REPRESENTAR
Evoco hoje a memória e a carreira da atriz Ângela Pinto, nos 150 anos do seu nascimento e isto na perspetiva de um desempenho que, na época, foi unanimemente elogiado e aplaudido, o que hoje já não podemos obviamente avaliar: mas diz-nos muito, porque - e isso podemos avaliar - alem do sucesso unânime e duradouro junto do publico e da critica, deixou a memória de uma renovação de repertório e de modernização de espetáculos que impulsionou ou a que esteva ligada. Ora, se não se pode obviamente avaliar, repita-se, a qualidade das interpretações, pode-se, isso sim, atestar a qualidade e exigência de repertório, tanto em teatro declamado como em teatro ligeiro e musicado, e, mais do que isso, evocar o estrondoso sucesso e prestígio na sua longa vida de atriz, tanto em Portugal como no Brasil.
Transcrevo, a propósito, o que Mário Duarte, na revista “De Teatro” (Março de 1925), escreveu por ocasião da morte da atriz, ocorrida em 9 de Fevereiro daquele ano:
“Não se precisa citar a sua maior criação, se foi no papel cómico, picaresco de uma revista que brilhou, ou se o seu talento deu maior tensão à trágica figura de determinada obra dramática; não. A comediante que hoje perdemos fazia todos os seus papéis com a mesma arte e levava – os consigo até á altura descomunal do seu talento de criadora”.
Cita em seguida um grupo de notáveis atores então recentemente falecidos: Virgínia, Ferreira da Silva, Joaquim Costa, Ângela Pinto. Só a fama de Joaquim Costa não chegou aos dias de hoje.
E Mário Duarte completa a evocação com recomendações veementes de disciplina e ordem aos atores:
“Basta de indisciplina e falta de ordem que vão pelos teatros, porque, desaparecendo consecutivamente essas figuras, que ainda hoje o dignificam, e poucas são, uma escassa dúzia, se outras não estiverem preparadas para tomar dignamente os seus postos, não teremos apenas, como agora, de chorar a perda de um artista, mas em breve teremos de pôr luto pelo teatro português!”…Assim mesmo!
Mas recuemos no tempo. Vinte e um anos antes, portanto em 1906, é publicado um livro intitulado precisamente “Ângela Pinto – Esboços, Homenagens e Apreciações Críticas” que recolhe depoimentos sobre a atriz, então no auge da carreira. E aí, escreveu Henrique Lopes de Mendonça, já na época figura destacadíssima do teatro e da sociedade portuguesa em geral:
“Essa radiante atriz, que começou pela opereta e galgou rapidamente às eminências do grande drama, reflete em cada um dos géneros as qualidades primaciais que noutro a distinguiram e que às vezes… raras vezes!... poderão destacar desagradavelmente. (…). Um simples gesto dela, nessa admirável fantasia burlesca do «Burro do Senhor Alcaide» (peça de D. João da Câmara e Gervásio Lobato estreada em 1891) revelou-me uma trágica. E se não correspondeu ainda plenamente a essa minha previsão, não é dela a culpa. É do meio artístico, que não parece comprazer-se na singeleza clássica da tragédia. Mas não há drama em que ela entre, onde, por um admirável gesto, por uma frase de profundo patético, a Ângela não produza o misterioso arrepio de que só os grandes artistas são os agentes. Intuição verdadeiramente genial, por certo, visto ser esta a frase consagrada para essas refulgências de espírito artístico, geradas espontaneamente no mais recôndito do ser (…) porque o temperamento vibrátil, irrequieto, impulsivo de Ângela Pinto não lhe consente o estudo demorado, minucioso, atento e paciente”…
E finalmente, Sousa Bastos (marido de Palmira Bastos, que amplamente elogia) no “Diccionário do Theatro Português” (1908):
“Ângela Pinto é um talento de eleição, uma atriz distintíssima, um nome que sem dúvida ficará vinculado, como raros, na história do nosso teatro. Nas suas tournées ao Brasil, tem sempre tido êxito igual ao que alcança a toda a hora na sua terra natal”!
Para terminar: Luís Francisco Rebello, no estudo intitulado “Três Espelhos” (2010), evoca, com elogios, algumas das peças que, ao longo da longa carreira, Ângela Pinto interpretou. E aí encontramos a heterogeneidade de géneros e autores: de Garrett (a Madalena de Vilhena) a D. João da Câmara (a Mariana do “Amor de Perdição”), de Shakespeare (“Hamlet”, em que fez o protagonista - imagem) a Feydeau, Augier, Bernestein, ou à “Severa” de Júlio Dantas, entre tantos e tantos mais.