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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

SARABAND

 

1. Apetecia-me começar este texto sobre o último filme de Bergman comentando uma frase de Liv Ullmann que li algures: "Filmes e pessoas não envelhecem da mesma maneira." É tão certo. Mas, como os críticos portugueses acentuam, quase invariavelmente, o retorno do mesmo Bergman como um regresso da casa dos mortos (alguém que já tinha uma lápide em cima e vibrante elogio fúnebre e que, de repente, reapareceu algo obscenamente, quebrando a lousa por sua própria mão), reprimo o apetecimento. Se há coisa que me apetece ainda menos é entrar em polémicas, ao falar de um dos filmes mais desmedidamente belos alguma fez feitos. O filme mais intenso, o filme mais suave, dessa intensidade e dessa suavidade a que Julia Dufvenius (uma das muitas imensas surpresas de "Saraband") se refere, quando, no princípio do seu primeiro diálogo (ou monólogo) com Liv Ullmann, lhe fala do que o pai lhe exige para interpretar a sonata op. 25 de Hindemith (Cena 2). Deixo, pois, essa conversa de tempos e de velhos, para apenas reter dela o que na cena 9 Liv Ullmann diz a Erland Josephson, quando o compara a um personagem de um filme antigo. Erland Josephson reage à notícia da tentativa de suicídio do filho (Börje Ahlstedt, que em tempos foi o tio Carl de "Fanny e Alexandre") com comentários de uma maldade desmedida. Desse filho que agoniza no hospital, após tomar todos os comprimidos que tinha e não tinha (onde é que eu já ouvi isto?), cortar os pulsos e a garganta, não crê na morte. "Quem falhou tudo na vida, até no suicídio vai certamente falhar." Ela não o reconhece em tamanha crueldade. E usa então a comparação citada. Em que filme estaria ela a pensar? É bem possível que num filme de Bergman, onde o Deus Aranha teceu fios equivalentemente perversos. Mas se tudo neste filme de Bergman reenvia a outros filmes de Bergman (quase se poderia citar a filmografia completa), nenhum filme me pareceu menos um filme antigo, e obviamente não estou a pensar no digital HD que não menosprezo mas também não sobrevalorizo. Há muitos anos que não via um filme tão novo, um desses filmes que parece reinventar tudo e onde tudo parece acontecer pela primeira vez. Deixem-me apenas que vos diga que não percebo que se fale de um silêncio quebrado, 21 anos depois da estreia de "Fanny e Alexandre". É verdade que Bergman disse, à época (1982), que não voltaria a filmar. Já o tinha dito antes, muitas vezes, e quebrou a promessa. Como a quebrou, em 1983, com "Depois do Ensaio" e com "O Rosto de Karin"; em 1986, com "Os Dois Bem-Aventurados", e com o documentário sobre "Fanny e Alexandre"; em 1997, com "Na Presença de um Palhaço"; em 2000, com "Os Construtores de Imagens". Foram filmes para a televisão e não para o cinema? Mas não foi esse também o caso de quase todas as suas obras desde "Lágrimas e Suspiros", em 1972? Não foi esse o caso, nomeadamente, de "Cenas da Vida Conjugal", de que alegadamente "Saraband" seria a continuação? Bergman que o disse também o desdisse e não bastam nomes idênticos para idênticos atores (Liv Ullmann/Marianne, Erland Josephson/Johan) para concluir por essa solução (as filhas de então não se chamavam Sara e Martha, como agora se chamam). Essa questão é irrelevante, como é irrelevante o tempo do pousio, se acaso o foi. Prefiro passar à nova música.

 

2. É verdade que nem sequer o é. O lugar central ocupado pelo quarto andamento da quinta "Suite para Violoncelo Solo", de Bach, já existira em "Lágrimas e Suspiros", para não falar da omnipresença da segunda suite na chamada "trilogia de Deus". Mas, desta vez, em que Bach não está sozinho e traz consigo Bruckner e Brahms, Alban Berg e Hindemith, "Saraband" é título e título de uma obra a que Bergman chamou "um concerto grosso para quatro instrumentos". Sarabanda - Concerto grosso. Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma vagarosa e solene dança processional. No filme, conserva-se a lascívia (discretíssima, mas perturbantíssima, na relação incestuosa entre Börje Ahlstedt - Henrik, o filho de Erland Josephson - e Julia Dufvenius - Karin, a filha dele - com quem o pai partilha a cama e a quem beija sofregamente na boca. E sem querer insistir (até porque Bergman só é elíptico quando quer), para mim um exemplo fulgurante de imagem lasciva é aquele plano sublime (só possível graças à imagem digital) em que, no fim da Cena 6, Karin se vê sozinha no ecrã todo branco, com o violoncelo entre as pernas, ponto luminoso perdido na distância, parecendo surgida de um filme de Michael Powell.
Sexta cena. Sex. Posso bem estar a delirar, mas essa cena batizada "A Proposta", passada entre um avô de 86 anos (a propósito, Erland Josephson tinha 80 à data da rodagem, 86 era a idade de Bergman) e uma neta de 19, é, sem dúvida, a mais erótica do filme. Toda vestida de encarnado (da única vez que se veste assim, roubando a cor a Liv Ullmann) cercada pelos sons altíssimos da 9ª de Bruckner, Karin, antes de entrar no escritório do avô, controla cuidadosamente a aparência e vestes, e avança depois, sem que ele a ouça, até o despertar com um beijo e uma vénia. O avô lê-lhe então a carta da proposta (o convite do maestro russo para uma carreira de solista) e oferece-se para lhe pagar os estudos e o violoncelo digno de um Guarnerius. Como sempre, é mais um monólogo do que um diálogo e pouco ou nada Karin responde à tentação altíssima. O avô despede-a, após a conversa sobre Freud e os cigarros, a pretexto de muito cansaço e é então que Karin tem essa autovisão, essa espécie de dissonância na composição da sequência, de que outros exemplos sumamente heterodoxos abundam durante o filme. Mas não me consigo despedir desta música sem citar outra dessas dissonâncias, a mais brutal porque é a primeira. É a meio da Cena 2, entre Liv Ullmann e Julia Dufvenius, quando esta conta àquela a sua violenta cena com o pai. Subitamente, saímos do quadro e vemos (no que não é um "flash-back") a dita cena intensamente física. Depois, a rapariga foge de casa, em camisa de noite, percorrendo a floresta como a virgem da fonte, até entrar na água escura de um pântano e desaparecer da imagem, sem que a câmara se mexa. Ouvimo-la, então, em "off", num uivo desmedido, até reaparecer no plano. Jean Michel Frodon, comentando essa cena, fala de morte e ressurreição. E diz: "Nunca, talvez, se tenha mostrado esse duplo acontecimento extremo - morte e ressurreição - de maneira tão poderosa. Nem no cinema, nem no teatro, nem na pintura." Tem razão.

 

3. "Concerto grosso para quatro instrumentos". Atores há cinco, mas quatro preenchem quase todo o filme. Um prólogo, em epílogo e dez cenas. Mas nas cenas nunca estão mais do que duas personagens, exceto nas dissonâncias aludidas. Mas há muitas outras personagens ausentes. E uma há que, retomando uma designação antiga, eu poderia dizer, sem dizer nada que não tenha sido já dito e redito, que é a "protagonista ausente" desta obra. Falo de Anna, a mãe de Karin, a mulher de Henrik, que morreu de cancro dois anos antes de o filme começar. Dela, temos recorrentemente, em casa do marido, em casa do sogro, o retrato a preto e branco. Amou-a o marido, amou-a a filha, amou-a o sogro e não parece que nenhum deles tenha amado alguma vez mais alguém. Foi o "anjo" naquele "ninho de víboras"? Tudo e todos parecem dizer que sim, única presença de amor feita, única presença feita para o amor. Ela só parece ter estado de lado daquela origem que Erland Josephson misteriosamente nomeia, quando comenta, na Cena I, a beleza da paisagem que o rodeia: "O mundo é pleno de belezas. Como deve ser bela a origem delas!" Ela só parece assemelhar-se ao São João que repousa no colo de Cristo, na ceia medieval da igreja da cena V e que Liv Ullmann vem ver de perto, no fim dela, única cena de onde o grande plano esteve ausente. Mas será verdade? Quando Henrik termina o seu longo monólogo na cama com a filha (cena 3) vemos-lhe o retrato em grande plano. E há um breve efeito (outra vez o vídeo), em que os olhos do retrato parecem disparar uma luz luciferina (um encarnado tão rápido, mas não mo tirem) sobre a filha e o marido no leito conjugal. Muito depois (cena 7), vem a leitura da carta que Anna deixou ao marido, sobre a relação dele com a filha. Essa carta é carta salvadora ou carta de perdição? Pelo menos, a partir dela tudo se consome. Karin, que resistira à proposta do avô, não resiste ao convite de Abbado, a sarabanda da Suite não chega a ser tocada, e Henrik suicida-se sem que a filha o saiba. E é depois (cena IX) que surge a sequência genial da hora do lobo, em que Erland Josephson, numa "diarreia de angústia", irrompe pelo quarto de Liv Ullmann, para, nu, se deitar junto ao corpo também nu da ex-mulher de 63 anos (a propósito, a idade real de Liv Ullmann à data da rodagem). Parecia que o filme não podia crescer mais? Mas há ainda o epílogo. Como no prólogo, Liv Ullmann dirige-se à câmara (dirige-se a nós) e, numa última dissonância, assistimos ao seu encontro com a filha catatónica, que, por breves momentos, abre os olhos como que respondendo ao afago da mãe. "E, pela primeira vez, nas nossas duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na minha filha. Na minha criança."
O ecrã fundo em negro. O filme acabou.

 

4. Eu não consigo acabar sem vos fazer uma pergunta. Alguma vez pensaram que o grande plano é a única figura da gramática do cinema que só no cinema existe e que não é concebível em qualquer outra arte? Pintores pintaram grandes planos, mas o quadro impede-nos de os ver como tal, a não ser que encostemos a cara à tela, em movimento nosso e não da pintura. Não é maneira de a ver, não é movimento suposto ao espectador.
Mas a câmara pode o que o nosso olhar não pode. E a câmara de Bergman pode mais que qualquer outra câmara, mesmo a de Griffith. Neste filme, vai ainda mais longe. Ao acercar-se mais e mais dos quatro rostos e das quatro vozes, para além dos corpos, dá-nos a ver almas. Impossível? Não para esse génio de todos os possíveis, chamado Ingmar Bergman.

 

por João Bénard da Costa
21 de janeiro 2005 in Público

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Aqui tens o prometido texto, tirado de Um Beijo Dado Mais Tarde que, escreve João Barrento, arrasta consigo o estigma de um diferimento afetivo, de um atraso no tempo, de uma tensão dilemática com a memória. Ou, poderíamos também dizer já, pensando neste não romance de Maria Gabriela Llansol, um desfasamento entre a língua que nos é dada e a voz própria que um dia assumimos -  ou não. Por mim, encontro nele, também, quiçá sobretudo, a saída de um espaço-tempo real, mensurável, que eu próprio muitas vezes experimento, como já te disse, Princesa, ainda que sem o devaneio onírico de Maria Gabriela. Dou-lhe, a ela, a palavra:

 

   Bach canta pela voz de Anna Magdalena, é aquele que ocupa o centro do toucador, junto do espelho.

 

   Será uma profanação fazer diligência por encontrar a arte nos restos humanos? Será errado encontrar-me com o sagrado neste quarto, a olhar a forma sentimental destas figuras acompanhantes, e destes móveis? O que é meu não é meu, estou na parte do templo destinada aos que vivem envoltos em mistério. Assafora jacente é o fim de que nasce um ser, e faço-lhe uma festa tímida na testa, ou à silhueta de navio do seu ir-se embora; que toda a obscuridade seja móvel, e deslize para fora do quarto, mesmo a minha, pois não sei exprimir a ideia que me provoca aquele ser finito, com substância infinita. Será realmente infinita, ou engano-me nas palavras, manchando o canto com que entrei?

 

   A música já não é minha, percorre o corredor do espaço até à sala de jantar onde, numa certa cena, construí a minha infância. Que grande terror terem-me mandado até aqui, já não como filha da casa, mas como neblina muito densa de onde se espera a luz; ao fixar uma salva, tenho um sonho de prata desenhado a lápis no meu pulso; dos lagos, no seio das águas do mar   com um golpe de navalha; a partir do que nele leio, reconstituo a minha visão, que gostaria que fosse ouvida pela minha tia doente: estou na grande sala onde habitualmente vivo, e somos, no máximo, três; de modo natural, é noite lá fora, onde há um jardim com árvores soltas, cantadas por alguém que conhece o espaço; fitas douradas, lianas capazes de doçura, pendem dos ramos fixando nossos olhos; a noite ressai até dentro de nós e reparo na cómoda onde essas mulheres guardam os nomes que dão às coisas da sua conveniência; na primeira gaveta entreaberta, chove. Vou busca-la, e vejo que algumas palavras estão negras, enquanto que outras são azuis e douradas. - Também há tristeza no paraíso - diz-me Bach, que se liga a outra mão para a segurar. 

 

   Respiro. Fazem permutar as palavras. Inebriada por esse álcool, encontro-me na rua, também eu munida de desejo e de poder. Vou a uma loja que tem a porta quase coberta por um monte de palavras. Alguém, deitado no chão, procura penetrar o monte e eu baixo-me para impedir que as palavras se espalhem na rua; surge então, em lugar inferior às sílabas / letras e acentos, um ninho de gatos brancos que reconheci serem aves do paraíso. - Também há alegria sobre a terra - diz-me Bach.

 

   Gosto muito desta escrita. Não lhe faço comentários "técnicos", pois para tanto me faltam conhecimentos, competência e jeito. Creio que este texto não foi redigido no exílio belga da autora, mas já depois, talvez em Colares ou Sintra. Não sei. Mas tenho-o, para mim, que ele traz a marca indelével de um exílio interior, é mesmo sinal de uma vocação de exílio. Recordo um passo de carta que Maria Gabriela escreveu em 1980, em Herbais, Bélgica, lembrando a partida: Em dezembro de 1965 abandono Portugal. À falta de alguém ou de um animal para acompanhar-me na viagem aérea, levo nas mãos os "Salmos" de David; está presente a ideia do Êxodo. O Êxodo é uma aventura interior, não necessariamente uma viagem no espaço. Vivi mais de metade da minha vida fora do meu país, e trinta desses muitos anos de exílio passei-os entre gente que não falava a minha língua. Tudo isso aconteceu por opção minha, sem outras pressões além de uma vocação de desprendimento. Maria Gabriela Llansol emigrou para estar com seu marido, refratário à guerra de África. Mas assumiu o exílio como decisão sua, precisou de interiorizar uma presença fiel na ausência, a essência da saudade. Aí me encontro profundamente com ela, que nunca conheci. Não só pela vivência de um rasgão, mas pelo modo como se compensa: amor à língua materna, carinhosamente tratada e educada, e ainda a perceção de que, como Gabriela tão bem diz, para mim, o exílio faz parte da escrita, e não quero perdê-los; dá-me o afastamento de pressões, a distância para poder ver sem entraves e imaginar...   ... O exílio. A língua portuguesa já não a ouço quotidianamente à minha volta; nem a falo; os livros dos escritores portugueses são-me enviados e eu principio a criar as representações da língua ausente... E sobre o extremo ocidental do Brabante, onde se refugiou, escreve: Reconheço que sempre vivi nesse país sem tentar mergulhar nele, e torna-lo meu; mas como poderia ser diferente, se eu própria me afastava daquele em que tinha nascido e, pouco a pouco, não possuía do passado senão uma língua de que nada, nem ninguém, conseguiriam separar-me.

 

   E será acerca do seu primeiro livro, inteiramente escrito na Bélgica, que ela confessará, no esboço de uma carta dirigida à Moraes Editora, em 1977, publicado, mais tarde, no Livro de Horas II - Um Arco Singular (Lisboa, Assírio e Alvim, 2010) que momento tão importante como o da aprendizagem da escrita foi o da escolha do exílio. Exílio corporal, não presença, mas também a lenta aquisição do espírito da distância, onde "O Livro das Comunidades" nasceu e se vai apagando a cartilha das referências, hierarquias que estratificam a posse e o uso do poder, e a categorização espontânea do tempo; os livros que se seguem (como dizer?) continuam a luta contra a minha cultura. Sempre penseissenti o amor como fator de transformação, posto que não pode, não deve quedar-se; antes vive precisamente por ser atuante. No entendimento dos casais, como na educação dos filhos ou discípulos, o labor amoroso também sabe remar contra a maré. Assim nós, portugueses, devemos amar a língua portuguesa, a nossa Pátria, diria Pessoa, cultivando-a. E qualquer cultura implica uma forma de amorosa violência... A ousadia é o princípio do amor, a transformação renovadora o seu pão de cada dia. 

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira