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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de novembro a 4 de dezembro de 2022


A “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, adaptada em Banda Desenhada por José Ruy (Âncora Editores) é uma das obras-primas da 9ª Arte em Portugal. Recordamo-la. no momento em que o grande ilustrador nos deixa com 92 anos de idade.


UMA REFERÊNCIA DA CULTURA PORTUGUESA
Se a obra de Fernão Mendes Pinto é uma das maiores referências da cultura da língua portuguesa, esta adaptação feita por José Ruy (1930-2022) e publicada pela primeira vez em continuados no “Cavaleiro Andante”, entre 14 de dezembro de 1957 e 6 de junho de 1959, constitui uma magnífica adaptação gráfica, na qual o público leitor pode ter acesso a uma síntese servida pela mestria de um dos mais importantes mestres das histórias de quadradinhos (HQ), ao lado de Eduardo Teixeira Coelho (ETC), José Garcês ou Fernando Bento. Quando lemos a adaptação de “Peregrinação” percebemos o porquê de Fernão Mendes ter respondido aos que duvidaram da veracidade dos seus relatos do seguinte modo: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. É memorável, por exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (não se sabe se alter ego do autor), numa situação, em que quiseram saber novidades de Liampó, “porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito”. Afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto.


O DOMÍNIO DO MOVIMENTO
E é inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia “derramador e bebedor do sangue português”, a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. “E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão…” As ilustrações de José Ruy são exemplares e constituem referências para os melhores especialistas internacionais da Banda Desenhada. Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto está relatado na “Peregrinação”, que constitui um texto pioneiro na literatura europeia, ao lado da obra imortal de Cervantes sobre o Cavaleiro da Triste Figura. Pode até ter acontecido que não fosse Mendes Pinto o real protagonista de tudo o que é relatado, mas percebemos que cada episódio pôde ocorrer de facto, até porque os estudiosos desse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relatam sem ler Fernão Mendes Pinto. E José Ruy com o seu traço inconfundível e o perfeito domínio do movimento interpretou a mole imensa de acontecimentos de modo exemplar. Dir-se-á que, como acontece na literatura moderna, o autor, como o romancista, compõe a visão dos acontecimentos artisticamente, a partir da matéria-prima dos acontecimentos que de facto viveu.


José Ruy, que aqui homenageamos, nasceu na Amadora em maio de 1930, tendo sido aluno e cursado na Escola António Arroio, que sempre tanto elogiou, onde foi discípulo de Rodrigues Alves, Falcão Trigoso e Júlio Santos. Iniciou-se como desenhador e argumentista com apenas 14 anos em “O Papagaio” de Adolfo Simões Müller, tendo tido uma especial preocupação no aperfeiçoamento das técnicas de desenho, ilustração e gravura. É o autor português com maior número de obras publicadas na sua especialidade, mais de 80 álbuns, sendo cinco dezenas de Banda Desenhada (ou de histórias de quadradinhos, como preferia dizer) com destaque para as viagens de Porto Bomvento, bem como para as biografias de Almeida Garrett, João de Deus, Bernardo Santareno, Pero da Covilhã, Pedro Álvares Cabral, Aristides de Sousa Mendes, Leonardo Coimbra, Humberto Delgado, Charlie Chaplin ou Carolina Beatriz Ângelo. Graças ao encontro com um saudoso amigo comum, Amadeu Ferreira, ilustrou a história da língua e do povo mirandês. Com a publicação de “Os Lusíadas” foi o primeiro autor a publicar um álbum sobre um poema épico. O rigor e a qualidade do seu trabalho têm sido reconhecidos tanto em Portugal como no estrangeiro, estando a sua obra publicada em 11 línguas. Foi o primeiro autor a ser galardoado com a Medalha de Honra do Festival de Banda Desenhada da Amadora, tendo ainda recebido a Medalha Municipal de Ouro de Mérito e Dedicação da Cidade da Amadora. O CNC não esquece a extraordinária lição que nos deu sobre os segredos do artista no tempo em que a gravura era trabalhada diretamente na base metálica, até ao mais ínfimo pormenor. Não podemos deixar que o silêncio possa cair sobre a memória de um artista como José Ruy. A sua obra corresponde a um caso único de qualidade e exigência. Enviamos, por isso, a sua família e amigos a expressão dos nossos sentimentos e uma homenagem profunda ao seu humanismo de sempre.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

"CAVALEIRO ANDANTE"

cavaleiro andante.jpg

 

A minha geração teve uma relação especial com a revista “Cavaleiro Andante”, dirigida por Adolfo Simões Müller. Apesar da resistência que encontrávamos em alguns dos nossos professores de Português relativamente às histórias aos quadradinhos, hoje referidas como 9ª Arte ou Banda Desenhada, pudemos encontrar no “Cavaleiro Andante” e na sua escola um bom aliado na demonstração de que era possível ter qualidade no uso da língua e no incentivo à leitura.  A revista que recebíamos ao sábado, com prazer e alvoroço, permitia termos bons argumentos a favor da qualidade das narrativas ilustradas. Recordo os debates amenos, mas incisivos, no Liceu Pedro Nunes, com alguns professores resistentes e a evolução no sentido do reconhecimento de que esse era um importante contributo para a boa leitura. E assim fomos vendo passarem para o nosso campo os antigos críticos.   


Na Exposição sobre Hergé na Fundação Calouste Gulbenkian recordei esse tempo com António Cabral, o grande impulsionador da iniciativa. Hoje reconhece-se a qualidade excecional do autor belga e o papel fundamental que desempenhou no campo cultural. Do mesmo modo, o introdutor de Tintin em Portugal, Simões Müller, pôde contribuir decisivamente para incentivar o prazer da leitura, com exigência de qualidade. E quando alguns de nós passámos a assinar a revista “Tintin” belga foram as nossas professoras outrora críticas as primeiras a reconhecer os efeitos positivos da BD nos progressos no ensino das línguas, como modo de ligar o multilinguismo, o enriquecimento pedagógico e a abertura de horizontes de um humanismo universalista. António Mega Ferreira já recordou, mais de uma vez, como o Tintin foi um marco de liberdade para a nossa geração. E no caso de Adolfo Simões Müller podemos lembrar os testemunhos de Luísa Ducla Soares, a afirmar que o jornalista e escritor foi um herói da sua infância – “que através dos seus livros, que não esqueço, me iniciou na literatura”; ou de Alice Vieira, a dizer da alegria que era no dia em que chegava o “Cavaleiro Andante”. E David Mourão-Ferreira, recordando o Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, lembrava o papel desempenhado pelo diretor do “Cavaleiro Andante” “ao tornar acessíveis e aliciantes, a sucessivas gerações de jovens, algumas obras-primas da literatura universal e, particularmente, da literatura portuguesa”. E João Paulo Paiva Boléo refere Müller como “um dos monstros sagrados da direção de revistas juvenis e de banda desenhada, de que inicialmente nem gostava”.


Nas férias de verão, em casa de meus avós, no Algarve, como não tínhamos acesso ao “Cavaleiro Andante” ao sábado, recebíamos religiosamente, à segunda feira, pelo correio, enviado pelo nosso pai, um pequeno rolo, que era acolhido com entusiasmo. Os correios eram ciosos cumpridores dos prazos e a leitura da revista estava devidamente escalonada, para que, com os meus irmãos, pudéssemos usufruir daquele néctar escrito e ilustrado nas melhores condições. Era uma equipa heroica que cuidava com esmero da revista. Os nomes não podem ser esquecidos – Maria Amélia Bárcia, no secretariado da redação, e Fernando Bento, referência fundamental ao lado dos melhores europeus, na direção gráfica. Depois havia tudo o mais – e sobretudo a magia dos continuados e o “suspense” cuidadosamente cultivado de uma semana para outra. E assim tornámo-nos apaixonados da literatura, do cinema, das artes plásticas, da história e da ciência, acompanhando a mais bela das histórias de uma amizade em “Tintin no Tibete”, seguindo as pegadas no Yéti, o abominável homem das neves, como antes fôramos à lua ou partilháramos a luta pelos direitos humanos em “Coke en Stock”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

De 17 a 23 de janeiro de 2022


João Paulo Cotrim, fundador da Bedeteca e editor da editora Abysmo, foi um promotor ativo da leitura e do amor dos livros. Aqui representado pelo humor de André Carrilho.

 


O AMOR DOS LIVROS
O amor aos livros é difícil de definir. Não basta gostar, mais do que isso, é preciso amar, sem rodeios. A companhia do livro é necessária, tem um calor especial, uma forma, uma cor, um cheiro, um toque e um chamamento. Um livro tem consigo a vida própria da leitura que nos proporciona, mas é ainda um encontro que integra e envolve a escrita e a mensagem do autor. E desse modo encontramos quem há muito deixou este mundo, mas continua bem vivo. João Paulo Cotrim amava os livros e cuidava especialmente da sua feitura e da sua apresentação. Com a “Abysmo” estávamos diante de um verdadeiro símbolo que invocava o falso arcaísmo de um moderníssimo ípsilon, que significava movimento, surpresa e desassossego. E lembrava Teixeira de Pascoaes: “Na palavra lagryma (…) a forma do y é lacrimal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; substituindo-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério… Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal”. Também Sophia escrevia dança com um s, como dansa, uma vez que só assim se entenderia o movimento como essência da arte. Um livro é um conjunto, em que tudo se complementa – a escrita, a apresentação, a ilustração, a mancha tipográfica, a capa, a consistência, a encadernação, a cosedura e o conteúdo mágico da escrita, que funciona como verdadeiro tesouro… Criador da Bedeteca tornou o que, com especial humor, designou por vezes como Quadricologia, um dos modos de fazer cultura e de amar os livros e a leitura. E a Banda Desenhada ou as Histórias aos Quadradinhos constituíam uma fonte inesgotável de imaginação. Não por acaso, em 2020, fundou, no auge do Covid-19, no âmbito da sua editora, “Torpor. Passos de voluptuosa dança na travagem brusca”, uma revista digital gratuita que procurava exprimir o efeito da pandemia e do confinamento “tanto nas artes como na vida”. Foi uma iniciativa não planeada que “resultou de sucessivos diletantes passeios pelas redes”, nas quais descobriu um mundo que manifestava a força da criação artística… Era o único modo de entender o estranho tempo que atravessávamos.


LIGAR A PALAVRA E A IMAGEM
Por outro lado, a Banda Desenhada constituía uma forma de ligar a palavra e a imagem, como um movimento continuado, pleno de intensidade, de diversidade e incerteza. Desde “Les Amours de monsieur Vieux Bois” de Rodolphe Töpffer (1827), de “Max und Moritz” de Wilhelm Busch (1865) ou do nosso Rafael Bordalo Pinheiro com “A Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa” (1870) podemos falar de uma 9ª Arte (a seguir à fotografia e antes dos jogos digitais), enquanto “arte sequencial” (Will Eisner) ou como “literatura desenhada” (Hugo Pratt). E a história moderna desta arte é inesgotável - “Yellow Kid” de Richard Felton Outcaut (1896), “Katzenjammer Kids” (“Os Sobrinhos do Capitão”) de Rudolph Dirks (1897), “Little Nemo in Slumberland” de Winsor McCay (1905), “Bécassine” de Rivière e Pinchon (1905), “Krazy Kat” de George Herriman (1913), e “Quim e Manecas” de Stuart Carvalhais (1915) são nomes e autores familiares, que representam o início da evolução de uma arte que ganhou foros de importância maior, deixando de ser marginal ou tolerada. A pouco e pouco, passámos a contar com uma nova expressão, que liga a narrativa e a ilustração, numa lógica de incessante movimento. Lembrando-nos do pioneirismo do americano “Yellow Kid”, deparamo-nos com o nosso Manecas de Stuart a sofrer nítida influência gráfica do pequeno herói de Richard Outcaut – até no pioneirismo do uso dos balões que apresentam as falas e os diálogos. Alain Saint-Ogan criaria em 1925 (quatro anos antes de Tintin) Zig e Puce, usando os balões como modo especial de comunicação, que se tornaria típico dos quadradinhos. E daqui seguimos até aos dias de hoje, à escola da linha clara, ao encontro com a arte pop e a tudo o mais. Afinal, as ideias da Bedeteca ou do Salão de Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada e a mostra Ilustração Portuguesa pressupunham a salvaguarda de um espírito sempre capaz de regressar à infância, não como nostalgia, mas como capacidade de nos mantermos despertos e curiosos relativamente a tudo o que nos cerca, contra a tentação da indiferença ou do ceticismo. E se havia esse espírito de permanência de uma jovem memória sempre renovada, também havia o lado cidadão da Quinzena Jean Moulin, a recordar a passagem pela capital do resistente francês, além da capacidade criadora do guionista de filmes de animação, de novelas gráficas, de ensaios, de poesia e de histórias para crianças.


MAIS DO QUE DOS 7 AOS 77…
Encontrei a última vez João Paulo Cotrim na Gulbenkian, na exposição de Hergé. Nada faria prever o trágico desenlace. Planeámos a sua participação no ciclo de debates que estava previsto e havia nele o genuíno entusiasmo de quem sabia que a adesão do público de todas as idades (mais do que dos 7 aos 77) correspondia, a um tempo, à demonstração das virtualidades da leitura, como procura e encontro, e da importância que as humanidades exigem ao diálogo entre os vários saberes e artes, entre conhecimento e compreensão. Mais do que entretenimento, tratava-se de ligar o prazer e a reflexão. E lembro o que João Paulo escreveu sobre o livro de António de Castro Caeiro “S. Paulo – Apocalipse e Conversão” (Aletheia): “Saulo, o estudioso sério, homem de leis e de minúcias, passou a ser o portador da palavra, de uma Palavra que não é a sua, de um projeto de loucura e escândalo, que desobedece às leis. Paulo é a crise, como nós hoje somos e doravante seremos a crise. Ou não vivêssemos o apocalipse, agora. Paulo interessa mais ainda por ser alguém que vive sob o signo do tormento. E pouco mais saberemos aqui de Paulo ou Saulo, do ponto de vista biográfico. O terreno que pisamos é o da palavra” (in “7 Margens”, 26.12.2021). Esse também era o terreno que João Paulo pisava, no sentido mais rico e plural da questão. O amor aos livros era o amor da palavra e do encontro entre as pessoas ou da procura da diferença e do Outro. Numa sociedade em que a imagem é cada vez mais importante, compreende-se que a narrativa e a representação se associem. Inconformismo e sentido crítico – eis o que a cultura suscita e exige. “Somos postos a ser pelo olhar do outro neste mundo” – eis o que encontrámos sempre nessa paixão pela literatura e pela imagem, pela criatividade e pela imaginação. “Curiosamente são as palavras o pano de fundo, o cenário maior desta busca de sentido, este trabalho de compreender não as palavras, que de um certo modo nos levariam ao lugar onde estão escondidos os seus múltiplos e prementes sentidos, o coração, mas porque elas próprias se revelam a superfície do mundo, como a pele é a superfície dos nossos corpos”.   


Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 2 a 8 de agosto de 2021


Vasco de Castro (1935-2021), com uma obra multifacetada e um traço inconfundível, marcantes quer no comentário político e social, quer na compreensão da cultura atual é uma referência fundamental no cartoon contemporâneo.


A MAGIA DA ILUSTRAÇÃO
A importância da ilustração na imprensa escrita é algo que merece uma atenção especial. E se falamos do tema no JL, temos de lembrar como João Abel Manta marcou e marca hoje a história desta casa. Ainda há pouco a capa do JL, que invocava José Cardoso Pires, no momento da publicação da sua biografia, tinha bem presente essa marca de um artista maior das nossas artes plásticas. Essa lembrança, ligada à força essencial da ilustração, merece referência especial, quando há dias nos deixou um grande ilustrador como Vasco de Castro (1935-2021), com uma obra multifacetada e um traço inconfundível, marcantes quer no comentário político e social, quer na compreensão da cultura contemporânea. A galeria das obras de Vasco permite-nos seguirmos a história portuguesa recente numa perspetiva de horizontes abertos, segundo uma estética original, que se liga às melhores tendências modernas do cartoon. Nascido em Ferreira do Zêzere, em virtude da colocação de sua mãe como professora primária, filho do poeta transmontano de Vila Real Afonso de Castro, frequentou o curso de Direito na Universidade de Lisboa, tendo feito parte de uma direção da Associação Académica, com participação ativa nas lutas estudantis. O compromisso político esteve sempre nas suas preocupações e combates, desde o apoio à candidatura de Delgado até à participação nas tertúlias surrealistas do Café Gelo. A boémia e a política marcaram a sua vida, atento ao mundo e ao tempo. As primeiras colaborações na imprensa portuguesa ocorreram a partir de 1954 no “Diário Ilustrado”, “Diário de Lisboa”, “República” e “Parada da Paródia”. Contudo, a situação política e a guerra levam-no para o exílio em França. Tendo vivido em Paris desde o início dos anos sessenta até 1974, a qualidade da sua produção artística e o militantismo social e político desde cedo se evidenciaram, tendo colaborado na mais influente imprensa francesa, “Le Monde”, “Le Figaro”, “France-Observateur” e “L’Humanité”, o que, desde logo, representou o reconhecimento da qualidade da sua obra. Primeiro assina “Tinho”, de Agostinho, seu primeiro nome, e depois, de modo inconfundível, como “Vasco”.


MILITANTE ATIVO
É militante ativo em maio de 1968: “a prática exata da alegria de viver, porque estamos a ser úteis para qualquer coisa que está prenhe de futuro”. Fundou o semanário underground “lx” (1969), logo proibido, e a editora “Champ du Possible” (1973). Em 1970 e 1972 teve participação nas Bienais de Desenho de Humor de Montreal. Com o escritor espanhol Xavier Domingo colaborou em Bandas Desenhadas sobre Hemingway, André Breton e François Mauriac. De regresso a Portugal, após a revolução, fixa-se em Lisboa e colabora na imprensa, em “O Jornal”, “JL”, “Diário de Notícias” “Sempre Fixe”, “República”, “Diário de Lisboa”, “Opção” com textos e desenhos, tendo sido um dos fundadores do diário “Página Um”. Entre as obras publicadas por Vasco de Castro contam-se Montparnasse, mon village (1985), Fotomaton (1986) e Montparnasse até ao esgotamento das horas (2008). No recente livro de homenagem a Mário Mesquita, recordava como o então jovem diretor do “DN” foi decisivo para a escrita das crónicas parisienses. E recordava um encontro com François Mitterrand, “que via frequentemente nesses anos 72-73, no semanário socialista ‘L’Unité’, onde ele escrevia e eu desenhava. Aconteceu numa festa comício próxima de Lyon, onde eu expunha desenhos, e Mitterrand fez um discurso de campanha. Acabámos por nos restaurar durante mais de duas horas, com garrafas de Macom e saucisson local e descontraída conversa; Mitterrand era um sedutor e um ‘homme du monde’”. E dessa história nasceria a ideia de uma série de artigos de memórias aos domingos.

O volume sobre Leal da Câmara (1996) constitui uma importante invocação de uma referência fundamental na história da caricatura em Portugal – na tradição muito rica vinda de Rafael Bordalo Pinheiro. Merece ainda referência o notável conjunto de obras sobre Fernando Pessoa exposto em 2012 na Casa do poeta. Em “Levante-se o Réu”, crónicas do quotidiano dos tribunais de Rui Cardoso Martins, publicadas no “Público”, pudemos contar com impressivas ilustrações que documentam o inesperado da vida, onde o trágico e o irónico tantas vezes se encontram. A presença nas páginas do “Público” é, aliás, significativa. Desde 1992 era sócio correspondente da Academia Nacional de Belas-Artes. Segundo João Alpuim Botelho, diretor do Museu Bordalo Pinheiro, que teve a iniciativa de organizar a exposição antológica “Vasco Século XXI” (2019): “Vasco é um dos grandes da caricatura e do cartoon. O claro escuro, feito de manchas e pingos, com que define as suas personagens, cria um estilo absolutamente original na caricatura portuguesa, que cruza a pintura com o desenho em efeitos insinuantes, que constantemente provocam o nosso olhar”.


OBRA INCONFUNDÍVEL
De facto, a obra de Vasco de Castro é inconfundível, levando-nos tantas vezes até próximo de Stuart de Carvalhais, apesar da distância e das evidentes diferenças. Pode dizer-se que se há autor contemporâneo português que deixou a sua marca inconfundível no panorama político e cultural, com inconformismo e um notável sentido do picaresco foi sem dúvida Vasco. Sendo o panorama português do cartoon atual extremamente rico, onde encontramos, numa referência não sistemática e incompleta, António Moreira Antunes, André Carrilho, Cristina Sampaio, Jorge Colombo, José Carlos Fernandes, João Fazenda, Luís Afonso, Nuno Saraiva, José Bandeira, além dos saudosos Augusto Cid, Sam ou Zé Manel, a verdade é que Vasco, como desenhador e escritor, é um exemplo marcante que deve ser lembrado e estudado… Basta dizer que não será possível fazer a história da cultura portuguesa contemporânea sem considerar o modo como o cartoonista viu, com olhar crítico, escritores, pensadores, artistas, músicos… Lembrando-nos de como Rafael Bordalo Pinheiro foi importante na segunda metade do século XIX no exercício da liberdade de imprensa, no debate de ideias e no pluralismo crítico, é oportuno dizer que o cartoon e a caricatura são meios essenciais para a formação de uma opinião pública madura e construtiva. Daí a importância da ilustração e da ligação entre texto e imagem, entre análise e ironia. Um dos modos de contrariar a falta de qualidade e o primado do imediatismo e da ilusão está no recurso à inteligência crítica. Disso não tenhamos dúvidas… Eis por que razão o lugar de Vasco de Castro é central quando falamos da história recente do jornalismo e da comunicação social.

 

Guilherme d’Oliveira Martins 
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CADA ROCA COM SEU FUSO...

Numa homenagem a José Ruy o grande mestre da Banda Desenhada e à memória de Amadeu Ferreira, que tanto deu à causa da língua portuguesa e da língua mirandesa, citamos um texto publicado há pouco no DN…

A MAGIA DA PALAVRA


Fernão de Oliveira, autor da primeira “Gramática da Linguagem Portuguesa” (1536) alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”.


Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no “Livro do Desassossego”. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores. A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros. A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y. E Pascoaes não se resignou: «Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal». Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…


Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: «Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram».


GOM

CADA ROCA COM SEU FUSO

o mestre dos automóveis - jean graton.jpgJean Graton, Michel Vaillant | Auto, Desenho

 

O MESTRE DOS AUTOMÓVEIS – JEAN GRATON

 

Jean Graton, criador da personagem Michel Vaillant, morreu aos 97 anos em Bruxelas. É uma das grandes referências da escola franco-belga da “linha clara”, com Hergé, Greg, Tibet, Jacques Martin, E.P. Jacobs, Franquin, Albert Uderzo e René Goscinny. Nascido em Nantes em 1923, Jean Graton cultivou duas paixões - arte e desporto – transformando-as em grande sucesso nas pranchas da banda desenhada, ao criar em 1957 o piloto de Fórmula 1 Michel Vaillant (Miguel Gusmão em Portugal).

Os começos nas histórias de quadradinhos deram-se na revista Spirou (“As Mais Belas Histórias do Tio Paulo”). No ano de 1953, já na revista "Tintin", publica "A primeira corrida", traduzida em português, no "Cavaleiro Andante" no mesmo ano. Era a primeira de muitas narrativas curtas de temática desportiva.

"Michel Vaillant" estreou-se em 12 de junho de 1957, em histórias de quatro páginas, tendo "A 24.ª hora" sido publicada em português no "Falcão". "O grande desafio" (1958, "Cavaleiro Andante" n.º 357) seria a primeira de 70 histórias longas, que levariam o piloto francês, filho de um construtor de automóveis, a competir na Fórmula 1, em motas, stock cars, ralis e karts. A opção pelo mundo da competição automóvel, segundo Jean Graton escreveu no primeiro volume integral da série, surgiu porque "gostava de desenhar automóveis e conhecia bem o mundo das corridas". Por isso, "o meu herói foi um piloto".

O portal Lambiek, dedicado à banda desenhada, que eu frequento muito, refere que o artista francês era muito rigoroso no tocante ao desporto automóvel e fazia bastante pesquisa, incluindo idas a corridas, a fábricas e encontros com especialistas e pilotos. "Jean Graton participou em corridas e ralis em quase todo o mundo, tendo-se apaixonado pelo Rali de Portugal e ganhando a amizade de Alfredo César Torres, grande nome do automobilismo em Portugal. É impressionante a documentação que foi recolhendo, o que dava uma grande verosimilhança às ilustrações e às narrativas. Desde 1982 que Jean Graton tinha a titularidade plena dos seus direitos de autor, tendo criado a sua própria editora, Studio Graton, com a participação do filho, Philippe Graton, que se tornou, entretanto, argumentista das histórias de Michel Vaillant, que continuam a publicar-se. Quando Jean Graton se reformou em 2004 tinham sido já editados cerca de 70 álbuns da série com o piloto.

jean graton.jpgÉ muito difícil de explicar aos neófitos o extraordinário sucesso de Jean Graton em todo o mundo, mas em especial no caso de Portugal. Vários são os álbuns referem Portugal, podendo dizer-se que teve na divulgação turística entre nós um papel fundamental. Duas das suas aventuras decorrem inteiramente no nosso país: "Rali em Portugal" (1969) e "O homem de Lisboa" (1984), e esta última com um enredo de base policial.

Ao longo de quase 50 anos, a série aos quadradinhos foi um reflexo da realidade desportiva, com o herói a manter-se jovem e a acompanhar não só a evolução dos automóveis como a de várias gerações de pilotos com quem confraternizou e competiu como: Graham Hill, Jackie Stewart, Jacky Ickx, Niki Lauda, Ayrton Senna, Michael Schumacher ou o português Pedro Lamy (em "A prova", 2003). Perdemos um grande amigo de Portugal e um mestre da Banda Desenhada.

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…


UMA CAPA MILIONÁRIA… 


Teve lugar há poucos dias um leilão histórico, no qual foi vendido por 3,2 milhões de Euros o primeiro original da capa do “Lotus Azul” da autoria de Hergé. Apesar da polémica sobre a proveniência da ilustração, o valor atingido bateu todos os records em relação à Banda Desenhada. A editora Casterman que colocou o desenho em leilão com uma base de licitação entre 2,2 e 2,8 milhões de euros, viu ultrapassadas as melhores expectativas em cerca de um milhão de Euros, o que surpreendeu todos os especialistas. Fica, porém, demonstrada a celebridade inigualável de Hergé, referência da BD e também da Arte Pop (ao lado de Andy Warhol e Roy Lichtenstein. A história continua rodeada de mistério, uma vez que há quem duvide que aquilo que foi contado corresponda exatamente à verdade. No entanto, o que importa é que, mesmo sabendo das dúvidas, houve quem se dispusesse a largar os cordões à bolsa num valor inimaginável – digno do milionário Carreidas. E talvez a polémica tenha contribuído para animar este leilão histórico. Sobre as razões que levaram a Casterman a vender este pequeno tesouro também se suscitou muita especulação – muitos disseram que tal se deveria a dificuldades financeiras da casa editora. Recorde-se que o anterior record do preço atingido por uma prancha de BD cabia também a Tintin com 2,6 milhões de euros para os originais de umas páginas de guarda para as publicações da casa de Tournai. Na versão oficial, o editor teria considerado que esta versão da capa seria de muito cara execução, pela grande superfície de negro exigida na quadricromia. Por isso, Hergé teria oferecido a versão não aceite a Jean-Paul Casterman, filho do editor, que a teria guardado religiosamente dobrada (como se nota na imagem) durante cerca de oitenta anos… Neste momento, não nos importará entrar nesta discussão – sobre se foi ou não uma dádiva de Hergé… O importante é dar nota do valor extraordinário atingido no leilão.


Este acontecimento, coincide com o anúncio pela Fundação Gulbenkian da grande exposição antológica que será inaugurada no Outono deste ano e que trará a Lisboa os mais importantes originais de Hergé…


Também hoje assinalamos os oitenta anos do encontro do Capitão Haddock com Tintin, em 9 de janeiro de 1941, no “Le Crabe aux Pinces d’Or” (O Caranguejo das Tenazes de Ouro). Para o efeito reproduzimos o desenho de Plantu, publicado na primeira página do circunspecto “Le Monde”. É caso para dizer “tonerre de Brest”, “Mille Miliards de Mille Sabords”, “Sacré de cercopithèque…”. Os tintinófilos estão todos de parabéns, uma vez que este companheiro de Tintin, que ele trouxe ao caminho da virtude e se tornou amigo inseparável é uma referência essencial. Plantu invoca a cena do esparadrapo em “Tintin au Tibet”, transformando-o na representação do terrível vírus Convid-19, de que nunca mais nos vemos livres.


Se dúvidas houvesse sobre o sucesso que se anuncia para a grande exposição de Hergé em Lisboa, parece que todos temos de reservar o nosso tempo, o nosso entusiasmo e a nossa curiosidade para a grande mostra anunciada, com mil milhares de milhões de surpresas…

 

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…


O MÁGICO DAS LETRAS…


Adolfo Simões Müller (1909-1989) foi um ativo militante da leitura e dos livros. As gerações dos anos trinta a sessenta do século passado tiveram a influência das suas iniciativas. Como diretor de “O Papagaio” (1935-1941), foi um dos introdutores da Banda Desenhada em Portugal, ou do que então designávamos como “histórias aos quadradinhos”. As Aventuras de Tintin e a influência da obra de Hergé foram dadas a conhecer  em Portugal graças à revista dirigida por Adolfo Simões Müller – na qual colaboravam Júlio Resende e José Viana. Portugal foi o primeiro país do mundo a traduzir as Aventuras de Tintin, e o primeiro a colori-las. Devemos lembrar o papel desempenhado pelo Padre Abel Varzim nesta ação pioneira, que trouxe a obra de Hergé para Portugal, através da empresa da Rádio Renascença, dirigida por Monsenhor Lopes da Cruz, que acolheu de braços abertos a sugestão da aposta na narrativa ilustrada da escola belga do que designamos como da “linha clara”. Num momento em que havia muitas dúvidas sobre a Nona Arte, é de saudar a coragem de quem cedo compreendeu a importância dessa pedagogia de grande alcance, capaz de ligar Literatura, Arte e Cinema.


Hoje, quem passa pelo jardim das Amoreiras encontra o busto do jornalista e escritor, numa justa homenagem a quem desenvolveu uma obra prolífera reveladora de uma orientação sábia sobre o modo de melhor captar os mais novos, não apenas para as letras, mas sobretudo para a curiosidade intelectual e para o espírito de aventura. Depois de ter frequentado a Faculdade de Medicina, cujo o curso abandonou, enveredou pelo professorado e pelo jornalismo. Foi secretário de redação do jornal “Novidades”, fundador e diretor até 1941 do jornal infantil “O Papagaio”, diretor do ”Diabrete” (1941-1951), do “Cavaleiro Andante” (1952-1962), do semanário juvenil  “Foguetão” (1961) e do “Zorro” (1962-1966). Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, José Ruy, José Garcês, José Manuel Soares foram alguns dos autores portugueses que colaboraram nas iniciativas de Adolfo Simões Müller – ombreando com tantos autores europeus consagrados.  Foi ainda diretor do gabinete de estudos de programas da Emissora Nacional de Radiodifusão   e produtor de programas para a rádio, tendo sido autor do primeiro folhetim radiofónico, com a adaptação da obra de Júlio Dinis  “As Pupilas do Senhor Reitor”.


Estreou-se na literatura com o volume de poemas “Asas de Ícaro” (1926). Foi, porém, a literatura infanto-juvenil que o celebrizou, tendo escrito “Caixinha de Brinquedos” (1937, Prémio Nacional de Literatura Infantil) e “O Feiticeiro da Cabana Azul” (1942, galardoado com o mesmo prémio). Para o público juvenil foi a grande animador da coleção “Gente Grande para Gente Pequena” (edições Tavares Martins), na qual publicou obras biográficas como “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”, sobre a Madame Curie; “O Capitão da Morte”, sobre Robert Scott; “As Aventuras do Trinca-Fortes”, sobre Camões; “O Homem das Mil-Invenções”, sobre Thomas Edison; “O Grande Almirante das Estrelas do Sul”, sobre o Almirante Gago Coutinho; “O Piloto do Navio Fantasma”, sobre Richard Wagner; “O Exército Imortal”, sobre Gutenberg; “A Lâmpada que não se Apaga”, sobre Florence Nightingale; “O Príncipe do Mar”, sobre o Infante D. Henrique; “O Fidalgo Engenhoso”, sobre Miguel de Cervantes; “Através do Continente Misterioso”, sobre Serpa Pinto; “O Mercador da Aventura”, sobre Marco Polo; “A Primeira Volta ao Mundo”, sobre Fernão de Magalhães (Prémio Nacional de Literatura, de 1971); “A Pista do Tesouro”, sobre Baden Powell; e “O Contador de Histórias, sobre Hans Christian Andersen.


Adaptou para os mais jovens “Os Lusíadas” (1980), “A Peregrinação” (1980), “A Morgadinha dos Canaviais” (1982) e “As Pupilas do Senhor Reitor (1984). Em 1982 recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra., onde ainda se incluem: “Meu Portugal, Meu Gigante” (1931); “Jesus Pequenino(1934), “A Última Varinha de Condão” (1941); “Historiazinha de Portugal” (1944; “A Última História de Xerazade” (1944; “Dona Maria de Trazer por Casa” (1947), “O Livro das Fábulas” (1950) ou  “A Viagem Maravilhosa de Comboio” (1956), num extraordinário conjunto de mais de 70 obras.


Podemos designá-lo como “O Mágico das Letras”, uma vez que não só foi um incansável cultor da divulgação literária, mas também um permanente pesquisador dos melhores autores nacionais e europeus na Banda Desenhada, a fim de desenvolver o interesse cultural e científico dos mais jovens, num momento em que era necessário romper com a elevada taxa de analfabetismo de que o país sofria. As resistências e as críticas de alguns não se aplicavam a Simões Müller, uma vez que foi um exemplo de cuidado extremo com a utilização da língua portuguesa.

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

LODO NO CAIS…

Quando  demos a notícia da morte de A. P. Duchâteau, dissemos que publicaríamos um dos seus problemas policiais, adaptado por Adolfo Simões Müller, ilustrado por Tibet, e dado à estampa no “Foguetão” número 4 (25 de Maio de 1961). De facto, o relato era de Ric Hochet, ainda que nessa altura agisse anonimamente. O Comissário Esteves era, nem mais nem menos que o inspector Boudon. O prometido é devido e eis um enigma surpresa. Pedimos aos nossos leitores que nos digam a solução até ao final de amanhã, segunda feira – e reservaremos uma pequena surpresa para quem acertar…

 

“Naquela terça-feira 20 de outubro, um inquérito tinha-nos conduzido, ao Comissário Esteves e a mim, a um pequeno porto de pesca na região do Douro. Um inquérito sem história que terminara com a prisão do larápio que perseguíamos. Eram então nove horas da noite, muito tarde para regressarmos ao Porto. E assim decidimos passar a noite no hotel da terra. Depois do jantar, tínhamos passeado à beira-mar, entrando de vez em quando nas tabernas das ruelas vizinhas, pelo prazer de bebermos uma caneca de vinho verde, ao mesmo tempo que apreciávamos o ambiente local. Seria meia-noite quando nos encontrámos no “Cantinho dos Pescadores”. E de repente, um grito rouco ressoou lá fora, um verdadeiro grito de agonia. Corremos para a rua e aí descobrimos na semiobscuridade duas sombras enlaçadas que gesticulavam. Uma faca subiu e desceu… Ouviu-se um novo grito, desta vez abafado. Uma das sombras tombou no solo, enquanto a outra fugia em direção à enseada onde os barcos de pesca estavam ancorados. Vendo que o Comissário Esteves corria para socorrer o ferido, lancei-me na perseguição do fugitivo. Mas, uma vez no cais, perdi-o de vista. Decerto tinha-se escondido por trás dos caixotes vazios… Avancei com prudência. Um silvo… e mal tive tempo de me atirar ao chão. Uma faca foi cravar-se na madeira apodrecida de um dos caixotes… Depois, vi o homem que partia de novo, correndo. Para lhe estender uma armadilha, conservei-me imóvel, como se estivesse ferido. E vi-o saltar para o convés de um barco encostado ao cais. Entrou na cabina e desapareceu… Momentos depois, eu próprio estava a bordo do barco e batia à porta da cabina. Apareceu-me um marinheiro de camisola de lã – exatamente como o homem que eu perseguia.

- Que quer? – perguntou.

Sem responder, empurrei-o. Dentro da cabina, sentado a uma mesa, outro marinheiro da mesma corpulência, vestindo uma camisola idêntica escrevia a lápis uma carta.

- Mas fale! – exclamou o homem que abrira a porta – Que quer?

- Estão só os dois a bordo?

- Sim, senhor. Eu sou José Sardinha e aquele (apontou o homem que escrevia) o meu irmão Raul. Que quer o senhor?

- Um de vocês agrediu um homem há pouco…

- Impossível – replicou Raul, largando a carta – Nem eu nem o meu irmão saímos daqui.

- Em que empregaram o tempo esta noite?

-  Eu tenho estado a escrever à rapariga.

Debrucei-me sobre a carta, que dizia assim: “ X – 21 de outubro – Querida Teresa. Espero que ao receberes esta, te encontres bem. Eu, Zé e o barco estamos ótimos. Fico muito contente por me dizeres que em breve nos veremos, tomara esse dia…”.

Havia mais algumas frases no mesmo estilo, mas a carta estava por acabar.

- A que horas começou a escrever?

- Eram onze e quarenta e cinco.

- E você o que fez ? – perguntei a José Sardinha.

O homem apontou-me algumas cartas de jogar sobre a mesa.

- Estava a fazer paciências?

- Parece que sim… - resmungou ele.

- Bom! Agora já sei quem foi que deu as facadas.

Caro Leitor, um dos dois irmãos mentiu de forma flagrante para assegurar o seu álibi.

Foi o José? Foi o Raul? Respondam por favor…

 

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

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A. P. Duchâteau (1925-2020)

 

O pai de Ric Hochet e do inspetor Bourdon morreu. André-Paul Duchâteau, autor consagrado da Escola belga da Linha Clara da BD deixou-nos na passada semana, contava 95 anos. O experimentado autor celebrizou-se pela criação com o desenhador Tibet de Ric Hochet, personagem mítica para várias gerações de leitores das histórias de quadradinhos. A. P. Duchâteau há muito que estava ligado às edições du Lombard. Sendo natural de Tournai, nasceu a 8 de Maio de 1925, tendo a paixão pelo romance policial nascido da leitura de "Six Hommes morts", de Stanislas-André Steeman e sobretudo depois do contacto pessoal que com ele estabeleceu. Com apenas 15 anos de idade, publicou o primeiro romance policial, "Meurtre pour meurtre", numa coleção dirigida pelo próprio Steeman. Em 1947, escreveu os primeiros argumentos para Banda Desenhada, na revista "Bravo!", entre narrativas originais e adaptações de obras de Walter Scott e Paul Féval. Nessa altura que travou conhecimento com Tibet, pseudónimo de Gilbert Gascard, (1931-2010), autor de Chick Bill e elemento muito relevante na redação de “Tintin”.

A ilustração que hoje publicamos é de sua autoria, possuindo um traço da rara qualidade. Hergé reconheceu cedo essa qualidade, fazendo-o, porém, desistir de desenhar figuras de animais para uma faixa etária infantil. Em 1951, Duchâteau e Tibet assinam as primeiras criações em parceria na "Ons Volske" e depois na revista "Tintin", graças ao apoio de Raymond Leblanc e do próprio Hergé. Em 1955, nasce Ric Hochet, futuro jornalista e detetive, que começou por ser um jovem ardina. Em Portugal, foi o nº 183, de 2 de Julho de 1955 do “Cavaleiro Andante” que primeiro publicou essa aventura de Ric Hochet, como adolescente português, chamado João Nuno. Os dois autores assinarão quase oito dezenas de álbuns de um herói, que revelará uma popularidade significativamente longeva.. Meses depois, em fevereiro de 1956, Ric Hochet, já com um aspeto diferente, mais velho, como os mais célebres detetives, reaparece numa história curta, promovido a repórter do periódico La Rafale, onde soma proezas detectivescas aos eventos jornalísticos. É a redação parisiense que apresentamos com toda a sua vitalidade. O sucesso não pararia e A. P. Duchâteau tornar-se-ia um dos pilares da revista “Tintin", chegando a chefe de redação e diretor artístico. Em 1961, o “Álbum do Cavaleiro Andante” publicaria a primeira longa metragem de Ric Hochet “Camaleão, Perigo de Morte”.

Autor exigente, prolífero e erudito, com um grande conhecimento dos clássicos, Duchâteau abordou os mais diversos géneros, da aventura ao humor, do western ao fantástico, mas sempre com a ficção policial como principal referência. Com uma invulgar capacidade de escrita, era um caso especial de popularidade, deixando um imenso legado de centenas de novelas, romances, folhetins e álbuns de BD. Apesar de estar ligado essencialmente à personagem de Ric Hochet, escreve argumentos para Mittéï (3A), Aidans (Bob Binn), Parras (Comissaire Marin) e Eddy Paape (Les Jeux de Toah). Com Christian Denayer, produz a série Yalek, Alain Chevalier e Les Casseurs (Al & Brock). Na década de 1970, sucede a Jean Van Hamme como o argumentista de Mr. Magellan (desenhos de Géri), escreve para Paape (Luc Orient e Yorik das Tempestades), Cosey (Monfreid et Tilbury), MiTacq (Derval Stany), Follet (Valhardi) e Pleyers (Tiger Joe). Na década de 1980, lança novas séries com Grzegorz Rosinski (a saga de ficção científica Hans), Patrice Sanahujas (Serge Morand e Chancellor), Vance (Bruce J. Hawker) e Xavier Musquera (Peggy Press). No final dos anos 1980, torna-se editor literário de du Lombard. Em 1989, é responsável pela coleção Detetives BD da editora Lefrancq, onde escreve várias adaptações para BD de romances policiais. Na década de 1990, continua a fazer adaptações para BD de escritores como Mik Fondal (Les Galapiats de la Rue Haute com Didier Desmit ) e John Flanders (Edmund Bell com Raoul Giordan). Inicia novas séries, como Wilt, com Yves Urbain, Detective Carol com Eddy Paape e Les Romantiques com Eric Lenaerts (2001 a 2003). Foi distinguido com inúmeros prémios durante a sua vida, prezando de forma especial o Grande Prémio de Literatura Policial que, em 1974 galardoou o seu romance "De 5 à 7 avec la morte", tendo sido durante muitos anos, em “Tintin” um imbatível campeão de popularidade, classificando-se sempre em primeiro lugar nos inquéritos realizados às preferências dos leitores.

Também em Portugal, o sucesso de Ric Hochet foi grande. Se o “Cavaleiro Andante” lhe chamou João Nuno, o “Zorro” preferiu o nome de Mário João e do inspetor Navarro, mas o “Falcão” não teve problema em usar o nome original de Ric Hochet e do seu inseparável companheiro Inspetor Bourdon. O “Foguetão” e o “Falcão” usaram os enigmas policiais engendrados por Duchâteau – tendo cabido a Artur Varatojo a coordenação dos enigmas policiais na equipa de Adolfo Simões Müller. Raimundo Esteves era o nome do Comissário desses enigmas do “Foguetão” e as ilustrações de Tibet eram muito expressivas e ajudavam muito. Havia, no fundo, que motivar os leitores para poderem responder sobre quem era o criminoso… Havia sempre um indício acusador – ou era um lenço, ou um monograma, afinal, um pequeno erro cometido pelo acusado… A sombra de Ric Hochet significava mistério e procura da verdade e da justiça – eis o fundo pedagógico que A. P. Duchâteau e Tibet sempre prosseguiram. Não me canso de voltar a essa dupla extraordinária… Prometo que a minha próxima crónica será integralmente um enigma de Ric Hochet…

 

Agostinho de Morais

 

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