Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
É quase noite. Mulheres de diferentes idades esperam a chegada de quem as há-de levar. Enquanto esperam, falam às pedras com os olhos que carregam a viuvez dos dias. Vi-as toda a vida. Longe das pedras, junto ao mar. Quando se alugavam barracas listadas, se levava almoço e cadeiras desdobráveis para a areia, os miúdos aprendendo a nadar no mar, distantes delas, sendo só os seus pontinhos dourados, aparecendo entre marés. Vejo-lhes toda a vida. Chegavam de manhã e partiam ao fim da tarde, sacudindo dos pés a areia. Rostos quebrados de sol que hoje convergem até à mudez das pedras. Vejo-as e passo: esta rua é um caminho demasiado distante do mar. Está escuro. As luzes dos semáforos alumiam as clareiras. A cidade é uma floresta em que cada homem serve de modelo à magreza das videiras. Marcham lentos ao longo da avenida, corpos de vinha queimada pelo luar de Janeiro. Nenhum movimento é despoletado pelo vento, nem um só gesto: só galhos estendidos ao longo do sobretudo negro destes dias frios. Não são mulheres que falem às pedras. São os homens para quem o haver ainda rosto é uma irregularidade que brevemente será suprimida. Uma individualidade que se esgota na divergência entre o andar recto e o andar por dentro. Vejo-os caminhando avenida acima, e as suas sombras caminhando avenida abaixo, atravessando-os como parte de um passado a que não negam regresso. Cada um separado, dividido, dois eus caminhantes, passeando pelas ruas em direcções opostas, sem que alguém saiba verdadeiramente até onde se pode regressar. Voltar só é possível até um certo ponto. Regressa-se e regressa-se à possibilidade possível, e o que não é possível, o voltar à forma original, embrionária de colo materno, mantém-se na linha questionável deste horizonte que os braços podados das videiras já não podem alcançar. Resta-lhes isto, o corpo metafórico de uma ideia que apenas existe como forma de dizer: — já é noite há tanto tempo.
in É quase noite, 2013
It’s almost dark
It’s almost dark. Women of different ages await the arrival of someone who’ll take them. While waiting, they talk to the stones with eyes that bear the widowhood of days. I’ve seen them all my life. Away from the stones, close to the sea. In the days when striped beach huts were hired, picnic lunches and folding chairs were taken to the sand and the children were learning to swim in the sea, well away, golden little dots appearing in the tides. I can see their whole lives. They used to arrive in the morning and leave when the afternoon came to an end, shaking the sand off their feet. Their faces broken by the sun reach out today to the stones’ muteness. I see them and I walk on: this street is a route far too far away from the sea. It’s dark. The traffic lights illuminate the clearings. The city is a forest where each man is a model for the meagreness of the vineyards. Slow, they walk along the avenue, vine bodies burnt by the January moonlight. The wind triggers no movement at all, not a single gesture: only twigs lie along the dark overcoat of these cold days. These are no women to be talking to stones. It’s men for whom still having a face is an irregularity soon to be suppressed. An individuality which will run out on the difference between the straight walk and the inside walk. I see them coming up the avenue, their shadows going down it, piercing them like a section of a past to which returning is not denied. Each one separate, divided, two marching selves, walking the streets in opposite directions and none truly knows up to which point they’re allowed to go back. Returning is possible only to a certain extent. You return and you are returning to the possible possibility, and that which is not possible, the return to the original shape, embryonic maternal womb, rests on the questionable line of this horizon no longer reachable by the pruned vine branches. This is all that’s left, the metaphoric body of an idea which only exists as a way to say: – it’s been dark for so long.
Digo-o: não se escreve com medo. Devia perguntar-se aos poetas a quem lêem eles os seus versos, antes de os publicarem. Todos passam por essa corda de segurança. O poema de hoje lembra-me um Tempos Modernos, em que os poetas são operários como as poetas são aplicadas donas de casa. Opto pela androginia de género. Gosto de poetas que lêem versos às mães: as mães sentadas de televisor apagado, ouvindo-os, a coragem dos filhos e o pudor das mães, que sorriem como, de manhã, ao levantarem-lhes os lençóis manchados. Nisso ainda são delas, as ejaculações privadas que obrigam a lavar à mão cuecas em água quente e lixívia. Fariam o mesmo com os poemas; e eu, que pouco entendo de poesia, adoraria ler um poema esterilizado por cuidados maternos. As mulheres são diferentes, nenhuma mostraria os seus poemas ao pai. As intimidades das filhas são segredos pregados às costas paternas, quadros fixados numa parede móvel onde confortavelmente se deixam embalar sem que, por isso, os pais o saibam. Todos são paredes de casa expostas ao sol; voltados para fora, são tão fáceis de amar. Não há poeta que não seja filha de seu pai; nisso são equivalentes a eles, filhos de sua mãe. E talvez o problema operacional do verso seja esse: a falta de óleo na engrenagem que tritura a familiaridade. Todos deveriam ser pródigos, abandonar o conforto materno e evitar o mijo ou o sémen que manche páginas de livros. Poesia Kleenex é a melhor definição que me ocorre, ao pensar poeticamente na poesia contemporânea; e choca-me que ninguém se tenha lembrado ainda de imprimir versos do Pessoa em guardanapos de papel; ou Camões, que também serviria às saladas de entrada. Já vi xícaras de café com Álvaro de Campos e acho que Agustina, em curtas frases, faria brilharete em qualquer serviço de chá Vista Alegre. Para os kleenexes propriamente ditos, de uso vário, como se poderá mirar à margem da estrada, aconselharia alguma da poesia de 61 que, apenas por oito anos, não foi pródiga na sua auto-enunciação. Agora que a Renova imita a Alchimie du Verbe na produção das mais enigmáticas cores aliadas ao bom gosto genital de cada um, nada há a temer.
in É quase noite, 2013
I Say
I say this: you shouldn’t write with fear. You should ask poets to whom they read their verse, before having it published. All of them go through this safety net. Today’s poem reminds me of a Modern Times in which poets are workers and poetesses are dutiful housewives. I choose gender’s androgyny. I like poets who read verse to their mothers: mothers who sit opposite turned off televisions listening to them, the courage of sons and the decorum of mothers who smile, like they smile in the morning as they change the sons’ stained sheets. Private ejaculations which demand bleach and hot water hand-washing of pants. They would do the same with the poems; and I who don’t know much about poetry, would love to read a poem sterilised by motherly care. Women are different; not one would show their poems to their fathers. Daughters’ intimacies are secrets stuck onto paternal shoulder backs, pictures hanging from a mobile wall, being carried in comfort without their fathers’ knowledge. These walls all are sun facing; looking outwards, they are so easy to love. There isn’t a poet-ess who is not her father’s daughter; in this they are equivalent to poets, their mothers’ sons. And perhaps this is the verse’s operational problem: the lack of oil in the gear that grinds familiarity. All sons should be prodigal; they should abandon motherly comforts and avoid the piss and the semen that stain book pages. Kleenex poetry is what best occurs to me to poetically think of contemporary poetry; and I’m shocked that it hasn’t yet occurred to someone to print Pessoas’ lines on paper napkins; or Camões, who could be served as a starter. I’ve seen Álvaro de Campos coffee cups and I guess Agustina, in short sentences, would do really well on any Vista Alegre tea set. For the actual kleenexes, used for various purposes as can be verified on road verges, I’d recommend some of 1961 poetry which missed its self-enunciation just by eight years. Now that Renova copies l’Alchimie du Verbe in the production of the most enigmatic colours allied to one’s genital good taste, there’s nothing to be feared.
Falar tão baixo que ninguém ouça, escrever tão pequeno que ninguém leia, esvaziar tanto os ouvidos e os olhos que me achem sumida no chão que piso. Meu eu ausente, comprando casas de porcelana para minha mãe. Coleccionamos casas, pássaros nas molduras e budas mendicantes, que nos olham além da ternura bojuda de um candeeiro em latão dourado a que a mãe passa o lustre todas as segundas. Não temos casas nem asas. Cristo menino é perneta e dorme na almofadinha de veludo rosado que lhe deram para fazer conjunto na vez das palhas. Não repousa, olha-nos de olhos bem abertos de vidro pintado; nunca pude ter berlindes, pois os adultos tinham medo que os engolisse; mas eu não engoliria os olhos do menino magoado. Embate na noite a minha alma e é possível que a tenha trocado por olhos vidrados a um cristo de duas pernas. Gemer tão baixo que todos ouçam, falar tão silenciosamente que ninguém possa dormir, respirar tão pausadamente que até santos acordem e anjos se evadam dos céus. Que outra forma tenho eu de recriar a tua solidão na minha?
in É quase noite, 2013
EYES
To speak so low no one can hear, to write so small no one can read, to empty my ears and my eyes so that I’ll be found gone into the ground I walk on. My absent self, buying porcelain houses for my mother. We collect houses, framed-up birds and begging buddhas who contemplate us beyond the bulging tenderness of a brass lamp polished by mother every Monday. We have neither houses nor wings. The infant Christ only has one leg and sleeps on the little pink velvet cushion he was given instead of straw. He’s not resting, he’s staring at us through his wide open, painted glass eyes; I was never allowed glass marbles for fear of my swallowing them; but I would never swallow the eyes of the injured infant. My soul hits the night and it’s only possible that I might have swapped it for some vitreous eyes and a two legged Christ. To cry so low everyone can hear, to speak so silently no one can sleep, to breathe so slowly even saints can wake up and angels can escape the skies. Which other way do I have to recreate your loneliness in mine?