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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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TARDE TE AMEI, Ó BELEZA TÃO ANTIGA E SEMPRE NOVA


Naquela tarde, foi o esplendor do pôr-do-sol! O horizonte em chamas, o Sol que baloiça no horizonte ao mesmo tempo que brinca e se banha no mar e se despede... E se nunca mais voltasse?!... Mas, na manhã seguinte, cá estava outra vez, resplandecente, e novo, novo como na manhã primeira do mundo. Tudo está reconciliado, tudo é perfeito, não há cisão de sujeito e objecto. E é tal o êxtase que até podíamos morrer. Porque aí não há morte. Tudo é apenas um instante. Mas trata-se daquele instante em que a eternidade tange o tempo, e, aí, nesse instante, o que há é a pré-vivência da vida eterna, plena.


Também há os rostos. E o que há de mais "instante" do que um rosto? Nele, o que vem é o Infinito a visitar-nos. Como alguém escreveu: “Cada um, único, é um mistério. Em síntese, o mistério de Deus.”


 Depois, há a arte. Que vai do canto à poesia e à escultura, da dança à pintura e à música.


O poeta abre as palavras, descobre a alma das palavras, põe-nas a cantar, e com o seu canto recria o mundo.


Pela dança e o seu ritmo, o corpo ergue-se acima do peso, é como se fugisse à lei da gravidade, e isso é já a antecipação do que São Paulo chamou paradoxalmente o "corpo espiritual".


Na contemplação da "Virgem Branca", em Toledo, com aquele Menino a sorrir para o enlevo da Mãe, fica-se a saber que a pedra bruta é mais do que ela e quer ser mais: divina!


Com o par de "as botas velhas com atacadores", de Van Gogh, em Amesterdão, percorremos os caminhos todos da vida e do mundo, o seu cansaço, e sobretudo a sua esperança. Lá, lá no termo do caminho, deve morar um reino e a perfeição.


O que se não pode dizer nem analisar diz-se na música. A música diz o indizível. Ela é súplica pela beleza e já a sua presença e oferta.


Na beleza e pela beleza, transcendemo-nos, e somos para lá do zoológico. A comida, a bebida, o sexo dão satisfação: preenchem necessidades. Mas o belo não é necessário, é um luxo, é uma graça: para que é que serve? Como disse Kant, o prazer que vem do belo é o único realmente desinteressado e livre: estamos interessados nele desinteressadamente. E, embora o belo deva agradar universalmente, não sabemos dar a razão precisa por que algo é belo.


O belo também não se confunde exactamente com o bom. Mas deve haver uma relação entre o belo e o bom, dita até na etimologia de belo e bonito: bonus, bonullus, e os gregos associavam o belo e o justo harmonioso. O belo abre a porta do que habitualmente não se vê nem se ouve. Mas, quando se viu o invisível e se ouviu o inaudível e a sua beleza, tudo vem a uma nova luz e se transfigura. A partir daí e dessa reconciliação, somos atirados para a transformação do mundo. É então que às nossas "acções boas" o Evangelho chama-as, no original grego, "acções belas". Desse modo, este mundo torna-se outro, sem ser o outro mundo. Por isso, perante o belo, exclamamos desde a raiz de nós: Como é bom estar aqui! É assim que devia ser! Sempre!


Até quando a arte nos confronta com o monstruoso e dilacerante, ainda é por causa da aspiração à harmonia. Porque "a beleza é uma promessa de felicidade", na expressão de Stendhal, comprometemo-nos "até ao fim com o mal, o falso e o feio da realidade ainda não reconciliada em que vivemos", como diz o filósofo Fernando Savater. “Na denúncia do que falta vê-se contra a luz a possibilidade futura daquilo que poderia ser a plenitude".


No belo, tornamo-nos vizinhos imediatos do próprio Transcendente. Como escreveu George Steiner, "a poesia, a arte e a música são os meios portadores desta vizinhança". Nomeadamente a música é inseparável do sentimento religioso: "Ela foi durante muito tempo, continua a ser hoje, a teologia não escrita dos que não têm ou recusam qualquer crença formal".


O escultor José Rodrigues fazia o favor de ser meu amigo, a ponto de me chamar “meu irmão” e que enquanto ele fosse vivo seria ele a fazer as capas dos meus livros, o que para mim e os leitores foi uma bênção. Falámos muitas vezes e perguntava-me: “Anselmo, quando morrermos, para onde vamos?” E também me dizia, com imensa força: “Se Deus fosse mesmo meu amigo, punha-me tinta a sair dos dedos para eu poder pintar directamente.” Quando ele morreu, passei pelo crematório, para uma despedida. À saída, estava um jornalista que sabia da nossa amizade e eu falei-lhe disto e, perante a pergunta: “Quando morrermos para onde vamos?”, ele próprio perguntou-me: “Que acha? José Rodrigues para onde foi?” E eu respondi-lhe, sem hesitar: “Foi para a Beleza, que é outro nome de Deus. Para onde havia de ir?”


Não foi assim que Platão se referiu ao Divino? Ele é o Bem, a Beleza. Sempre me impressionou que mesmo pessoas simples perceberam esta relação íntima entre o bem e o belo: muitas vezes ouvi mães a dizerem ao filho, que fez uma asneira, algo de mal: “Filho, não faças isso, é feio”. Os Evangelhos, repito, que foram escritos em grego, quando se referem ao mandamento de Jesus: “Fazei boas obras”, escrevem: “Kalá érga: obras belas”.


Tudo a apontar para a Beleza, outro nome de Deus. Lá está Santo Agostinho; em As Confissões; relatando a sua conversão, voltando a Deus, escreveu numa das orações mais belas de sempre: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e sempre nova… Tarde te amei.”


Dostoievski também nos ensinou: “A beleza salvará o mundo”. Ela realiza, como explicou o teólogo Leonardo Boff, a sua origem do sânscrito: Bet-El-Za, que quer dizer: “o lugar onde Deus brilha.”


N.B. Fica para a semana um balanço da JMJ.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de agosto de 2023

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

75. BELEZA E ARTE


Uma pessoa comum, da rua, associa a arte com a beleza.
Mas a arte não é necessariamente bela, nem a beleza necessariamente arte. 
A beleza é mais objetiva, a arte mais subjetiva.
A beleza biológica, por exemplo, é tida como universal, havendo estudos que provam que homens, mulheres e crianças muito, muito bonitos, o são em qualquer lugar, de Portugal à Austrália, passando pelo Japão, China, África e Américas.
O mesmo não sucede com pessoas normais, onde há discordância.  
Também a beleza artificial (fabricada) não é tida como universal.   
A beleza é, desde sempre, uma aspiração humana, é apelativa e sedutora. 
Na arte uma coisa feia pode ser uma bela representação.  
O que é feio na natureza pode ser artisticamente belo. 
O belo ou a beleza, na arte, não é a representação de uma coisa bela, mas sim uma bela representação de uma coisa, ao invés da arte clássica grega que fazia o culto da beleza, do equilíbrio, da perfeição, do absoluto, de representações anatómicas harmoniosas e proporcionalmente adequadas e sedutoras.  
Foi Marcel Duchamp que cortou a ligação entre arte e beleza, ao levar um urinol (Fonte) para uma exposição em Nova Iorque, em 1917, transformando-o numa escultura ready-made, demonstrando que qualquer objeto pode ser uma obra de arte e estar ao alcance de todos, sendo a negação de uma estética objetiva da arte em benefício de uma atitude criativa. 
Ao defender que a obra de arte devia ser desfigurada, desumanizada, dessacralizada, Duchamp colocou uma barbicha à Gioconda, tornando-a homem e desconsagrando um ícone pintado por um génio (Leonardo da Vinci), sendo a sua Mona Lisa uma negação de uma obra prima.   
Beleza e arte não são, de todo, a mesma coisa, embora possam coincidir, e quando coincidem, todos as perseguimos, porque nos ajudam a estabilizar as coisas e o mundo, a classificar e equilibrar em adequação e tranquilidade a nossa mundividência.

 

21.05.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Eric Rohmer: Objetividade, Espaço, Verdade e Beleza, e Unidade.


No livro Eric Rohmer de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina (1991) lê-se que o cinema de Rohmer se descreve se acordo com quatro fatores fundamentais: ObjetividadeEspaçoVerdade e Beleza e Unidade.


Para Rohmer, através do cinema, é possível a objetividade de espaço e de tempo. O cinema deve ser mais objetivo que o olho – o filme deve estar ao inteiro serviço de um lugar, de modo a apresentá-lo, a mostrá-lo e a valorizá-lo a partir de diversos fragmentos. A coisa filmada é de maior importância, a interpretação deve ser posta de parte. Os filmes devem ajudar a ver o mundo banal como nunca antes visto. O cinema deve ser, por isso, a imagem do mundo exterior. Deve reproduzir a realidade em imagens e tentar ir mais além, mostrando o invisível através do visível.


O espaço fílmico, para Rohmer, é um espaço-tempo virtual que se reconstitui, no espírito do espectador, através da ajuda de fragmentos, que aparecem no filme. O realizador é um organizador de espaço, e o filme é a materialização, através de imagens, de um modo de ver o mundo.


Eric Rohmer deseja reproduzir exatamente a realidade e captar imagens que melhor nos conduzam a descobrir a verdade e a revelar a beleza do mundo.  O cinema, para Rohmer, é uma reprodução exata das coisas, com as suas cores, filmado à altura do olho humano e sem mediadores – porque a poesia, a ordem cósmica e a presença divina surgem ao respeitar-se escrupulosamente a realidade.


Rohmer procura sempre uma unidade de estilo em contraposição a uma qualquer amálgama de imagens e de cores. A unidade permite colar todas as peças do filme e da história. Apesar da aparente naturalidade, todos os filmes são construídos minuciosamente, revelando um controlo formal muito detalhado.


Os filmes de Rohmer são um meio para aceder à verdade e à beleza do mundo, são um instrumento de revelação de um todo que, de outra forma, nos poderia escapar. Permitem que sejamos de novo sensíveis ao esplendor da realidade quotidiana (todo o espaço físico que nos rodeia fica de novo acessível). Nos seus filmes, Rohmer preocupa-se com quatro formas de ocupar o espaço: a grande cidade (Paris), os subúrbios (Villes Nouvelles), a pequena cidade (na província) e o campo (e o mundo rural). Os seus filmes têm a capacidade de transcender o contraste paradigmático entre a cidade e o campo – são uma reflexão importante e necessária acerca da coexistência e da interligação, que deve ser permanente, entre o mundo urbano e o mundo rural. São a prova viva da existência de um território poroso e em movimento constante.


Nos filmes de Rohmer, o espaço urbano é o espaço que, por excelência, através do seu movimento incessante, permite o encontro entre pessoas e é até uma força exterior capaz de mudar uma vida. O subúrbio representa a promessa de uma vida nova. O fácil acesso à natureza permite o contacto com o cosmos e com fenómenos maravilhosos, tal como o raio verde e a hora azul.


«I think I prefer the country, but I like to live in the city!», Rohmer (Baecque e Herpe 2014, 380)

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Na sua segunda meditação sobre a beleza (cf. Cinq méditations sur la beauté, Albin Michel, Paris 2008), François Cheng, um dos meus companheiros espirituais, exclui qualquer utilização de beleza como instrumento de engano ou dominação, pois tal seria a própria feieza (os dicionários dizem fealdade, mas eu, ao dizer beleza, não digo beldade...). E explica que sim, deve sempre evitar-se a confusão entre a essência de uma coisa e o uso que lhe possamos dar. E como isto é verdade quanto à beleza! Cito-te esta afirmação agora, porque me recorda a reflexão medieva - e os debates! - sobre estética, que Umberto Eco tão metodicamente analisou, ele que se conta entre os grandes estudiosos do pensamento medieval europeu e, neste capítulo, da filosofia estética de Tomás de Aquino. Iremos lá depois, noutra carta. Por enquanto, deixa-me recitar François Cheng: a beleza é algo virtualmente aí, desde sempre aí, um desejo que jorra do interior dos seres, ou do Ser, qual inesgotável fonte que, mais do que figura anónima e isolada, se manifesta como presença radiante e religante, que incita ao consenso, à interação, à transfiguração. Relevando do ser e não do ter, a verdadeira beleza não poderá ser definida como meio ou instrumento. Por essência, é uma maneira de ser, um estado de existência. Observemo-la através de um dos símbolos da beleza: a rosa.

 

   Curiosamente, correndo o risco de entrar em banalização, o filósofo-poeta colhe a flor, lembrando-me aquela lindíssima ária de Il trionfo del Tempo e del Disingano do Haendel, em que Piacere (o Prazer) tenta converter a si a Beleza, contra a razão do Tempo e do Desengano, personagens que sobre o Prazer triunfarão, neste primeiro oratório de Georg Friedrich Händel, ainda nos seus vinte anos, com libreto do cardeal Benedetto Pamphili, já com cinquenta e quatro de idade (em carta por te enviar falo mais dessa obra e seus autores): Lascia la spina, / cogli la rosa; / tu vai cercando / il tuo dolor... Traduzo a ária toda: "Deixa o espinho, colhe a rosa ; estás buscando a tua dor. Encanecida geada furtivamente te cobrirá, quando menos a espera o coração". Mas, já no oratório de Händel, sairá derrotado o prazer, pois o efémero escolherá a eternidade. Pensossinto, ó de mim Princesa, que sempre, a contemplação do efémero é uma cancela sobre dois caminhos: o da complacência no imediato da beldade, ou o da sublimação até à essência da beleza. Tal como diz Paul Claudel numa das suas intimíssimas Cent Phrases pour Éventails, inspiradas por haiku japoneses: Seule la Rose / est assez fragile / por exprimer / l´Éternité - pois sentimo-la, como diz Claudel ainda, e eu traduzo, um certo perfume / que só cheiramos / fechando os olhos... e... Fechamos os olhos / e a Rosa diz / Sou eu!  François Cheng vai buscar a Angelus Silesius, poeta germânico setecentista, que se filia na tradição mística renano-flamenga -que também tenho como muito minha, sobretudo por Mestre Eckhart, dominicano do século XIII, de quem já muito te falei - estes versos que livremente te traduzo:

 

               A rosa é sem porquê,

               floresce por florescer,

               sem ter de olhar para si,

               sem desejo de ser vista.

 

   Da atualidade da rosa, te posso lembrar, Princesa, traduzindo-te a abertura da primeira meditação de Cheng sobre a beleza: Nestes tempos de misérias omnipresentes, de violências cegas, de catástrofes naturais ou ecológicas, falar da beleza poderá parecer incongruente, inconveniente, quiçá provocador. Quase um escândalo. Mas precisamente em razão disso, vemos que, no oposto ao mal, se situa a beleza, mesmo na outra ponta de uma realidade que temos de enfrentar. Estou persuadido de que temos a tarefa urgente, e permanente, de encarar esses dois mistérios que constituem as extremidades do universo vivo: de um lado, o mal; do outro, a beleza. E prossegue dizendo que o mal é sobretudo aquele que o homem inflige ao homem, a beleza sendo como que uma enigmática evidência que nos espanta: o universo não tem obrigação de ser belo mas é, contudo, belo... E interroga-se sobre o que significa então a beleza para a nossa existência, procurando entender o que significa a frase de Dostoïevsky no Idiota: A beleza salvará o mundo. Chega assim a esse inescapável sentimento íntimo - que já tantas vezes nos desafiou nestas cartas - de que o mal e a beleza são antagónicos mas inseparáveis, na medida em que nesta se tende a encaixar aquele, a fazer dela uma máscara enganadora do maligno... Eis como me leva a reencontrar essa preocupação da nossa tradição greco-cristã acerca de uma qualquer hipotética dissociabilidade do vero-bom-belo. Mas não voltarei agora, Princesa de mim, ao meu outro mestre, Tomás de Aquino, que tanto se interrogou sobre a estética como fundamento da independência artística, musical e poética - se assim posso, ao jeito hodierno, exprimir-me. Nem tampouco abordarei o tema da iconofilia e da iconoclastia, nas tradições monoteístas, judia, cristã e muçulmana. Fico-me, com o nosso tão amigo François Cheng, pela meditação, em modo talvez taoista - mas tão próximo da mística e da arte cristãs que mais venero -, dessa surpresa sempre inesperada na sua permanência, talvez o laço que mais firme e fielmente nos una ao universo que é nossa morada: a beleza como raiz e devir de tudo. Aprendi muito com a minha cerejeira do Japão, que todos os anos floresce porque floresce, e não dá frutos, e cujas flores sem saber de si me encantam e me levam para muito longe quando fogem com o vento, talvez então muito mais próximas de mim comigo, porque não as tenho e apenas sou com elas, simplesmente. O efémero torna-se assim num sacramento de eternidade.

 

   Regresso por aí à meditação de François Cheng sobre a beleza e a rosa, escolho um trecho que me ocorrera ao ler um bilhete  de uma amiga minha, pintora, mulher, mãe e avó, completada pela família e pelo campo onde vive em natureza, e pelo ateliê, onde nem todos os dias são tranquilos ou gloriosos, porque até nas coisas que mais gostamos de fazer, ou que maiores alegrias nos dão, pode insinuar-se a perplexidade, um quase desânimo, talvez mesmo a tentação maléfica (?) de desistir, de destruir até. O mal detesta a beleza, tentará aniquilá-la, mas a beleza não se livra do mal pela violência de um apagão, tal não é próprio dela. Ela é positiva, criadora, não é negativa. Lembras-te, Princesa, de que já nas aulas de física, no liceu, sabíamos que um corpo frio não pode acender outro, mas um corpo quente sempre transmite o seu calor? Diz então o poeta sino-francês:

 

   Na verdade, a rosa é sem porquê, como todos os viventes, como todos nós. Se todavia um observador ingénuo quisesse acrescentar algo, poderia dizer isto: ser plenamente uma rosa, na sua unicidade, e nada mais, eis o que já constitui suficiente razão de ser. Tal exige da rosa que ela ponha em combate toda a energia vital de que está carregada. Desde o instante em que emerge do solo, o seu esteio irá crescendo como que movido por inabalável vontade. Através dele se fixa uma linha de força que se cristaliza num botão. A partir desse botão, as folhas e depois as pétalas ir-se-ão formando e dispondo, seguindo esta curva, aquela sinuosidade, optando por este tom, aquele aroma. Doravante nada a poderá impedir de aceder à sua assinatura, ao seu desejo de cumprimento, alimentando-se da substância vinda do chão, mas também do vento, do orvalho, dos raios do sol. Tudo isto com vista à plenitude do seu ser, uma plenitude posta já no seu germe, já num muito longínquo começo, podemos até dizer que desde toda a eternidade.

 

   Eis enfim a rosa que se manifesta em todo o brilho da sua presença, propagando as suas ondas rítmicas para aquilo a que aspira, o puro espaço sem limites. Nesta tarde tão cinzenta e mansamente chuvosa, estou, tolhido de dores físicas que me desafiam, conseguem irritar, mas fugirão assim que eu me cale e olhe para os campos que avisto, verdes e agradecidos à grisalha húmida que os cobre, na quietação do meu gabinete, há meia hora acompanhando o lento deslizar de um caracol que, do lado de fora, percorre vários vidros da janela que me alumia. Ao vê-lo solto da casa que transporta, esticado, mas creio que ondulante sobre a superfície lisa e transparente - que me deixa vê-lo por debaixo e, à luz pálida do dia silente, me revela o seu corpo translúcido - recordo uma do católico Claudel no seu Connaissance de l´Est, que François Cheng cita (et pour cause!):

 

      Mas o que é o Tao? ... Por debaixo de todas as formas, o que não tem forma, o que vê sem olhos, o que guia sem saber, a ignorância que é o supremo conhecimento. Seria errado chamar Mãe a esse suco, a esse sabor secreto das coisas, a esse gosto de Causa, a esse estremecimento de autenticidade, a esse leite que nos ensina a Nascente? Ah!, estamos no meio da natureza como ninhada de leitões que mamam numa cerda morta! Que nos diz Lao Tseu, se não que cerremos os olhos e ponhamos a boca na própria fonte da Criação? E fecho esta carta acentuando a sua nota intimista, com uma citação de São Bernardo de Claraval (Sermones in Cantica256): Pulchrum interius speciosus est omni ornatu extrínseco, omni etiam regio cultu... Ou seja, Princesa: A Beleza mais íntima brilha melhor do que qualquer ornamento extrínseco, bem mais, até, do que qualquer paramento régio.

 

   Mas como, em dias de penumbra pluviosa, sempre me acodem, inesperadamente, lembranças que vêm mesmo a calhar para me ilustrar o pensarsentir, deixo-te mais uma que ora me socorreu. É do filme La Strada, do Fellini (1954), quando o equilibrista louco (Il Matto) diz a Gelsomina (representada pela inesquecível Giulietta Masina): Se eu soubesse para que serve este calhau, seria Deus, que tudo sabe. Quando nasces. E também quando morres. Este calhau serve com certeza para qualquer coisa. Se for inútil, tudo o mais será inútil, mesmo as estrelas. E também tu, com essa cara de alcachofra, para alguma coisa hás de servir.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Simone Weil e a beleza do mundo.

 

‘A beleza é a única finalidade neste mundo.’, Simone Weil

 

Em ‘A Espera de Deus’, Simone Weil (1909-1943) escreve que uma coisa bela não contém qualquer fim, não contém qualquer bem. É somente ela mesma na sua totalidade, tal como nos surge. Uma coisa bela oferece-nos a sua própria existência – possuímo-la e contudo desejamos ainda, não sabemos o quê. Para Weil, gostaríamos, no fundo, de ter o que se encontra por detrás da beleza (mas ela é somente superfície). Talvez, na verdade, gostaríamos de nos alimentar dela, de modo a incorporá-la em nós, na totalidade.

 

Ao não ter qualquer fim, a beleza constitui a única finalidade neste mundo. A beleza não é um meio para outra coisa. Está presente em todas as buscas humanas – todas as coisas que tomamos como fins são na realidade meios e a beleza confere-lhes um brilho que as reveste de finalidade (de outro modo, não poderia existir desejo nem consequente energia na busca). 

 

Para Weil, a pobreza possui o privilégio de nos aproximar mais do amor à ordem e à beleza do mundo, como complemento do amor ao próximo. Renunciar à nossa situação imaginária de centro do mundo, é acordar para o real, para o eterno, ver a verdadeira luz, escutar o verdadeiro silêncio. Só então se opera uma transformação na própria raiz da sensibilidade, na maneira imediata de receber as impressões sensíveis e as impressões psicológicas.

 

Weil diz ainda que o homem ao esvaziar-se da sua falsa divindade, ao negar-se a si mesmo, consente caridade para com o próximo, consente um amor total à ordem do mundo.

 

A arte é, para Simone Weil, uma tentativa de reproduzir, através de uma quantidade finita de matéria modelada pelo homem, uma imagem da beleza infinita de todo o universo. Essa porção de matéria deve revelar toda a realidade que nos cerca. As obras de arte devem assim ser aberturas diretas, reflexos justos e puros sobre a beleza do mundo. Para Weil, Deus inspira toda a obra, por mais profano que seja o assunto. A obra de arte reconstrói a ordem do mundo como uma imagem, a partir de dados limitados, inventariáveis e rigorosamente definidos. A contemplação dessa imagem da ordem do mundo constitui um certo contacto com a beleza do mundo. 

 

‘O artista, o sábio, o pensador, o contemplativo devem, para admirar realmente o universo, perfurar essa película de irrealidade que o oculta, e que cria para quase todos os homens, em quase todos os momentos das suas vidas, um sonho ou um cenário de teatro.’, S. Weil

 

Weil revela que as realizações puras e autênticas da arte revestem-se da verdadeira poesia da vida humana, sendo reflexo da luz celeste: ‘A conveniência das coisas, dos seres, dos acontecimentos consiste apenas nisto, que eles existem e que não devemos desejar que não existam ou que tivessem sido outros. Nós somos constituídos de forma tal que este amor é realmente possível; e é esta possibilidade que tem por nome beleza do mundo.’

 

A ausência de finalidade, a ausência de intenção, e a ausência de pensamentos que alterem a verdade tal como ela é – essa sim é, para Simone Weil, a essência da beleza do mundo.

 

Ana Ruepp