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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

A prisão: uma recruta dos desertos

 

Depois de passar a primeira porta de ferro todas as vozes surgem reconstituídas face aos ecos que se fazem sentir. Quase se soletram as energias vocais de cada um e que correspondem a um diferente sentir instantâneo de uma ocasião repentina que se torna única quando o prisioneiro se depara com alguém que não conhece. Depois outra porta de ferro, e também automática, fecha-se a estalar atras de nós, numa descendência justificada de portas, uma após outra: e o corredor: eis. O corredor, ou antes, os corredores, em anarquias controladas de ruídos e movimentos que se esgotam nos repentes que se não veem, mas se apercebem por um ar, por onde, cheios do bater de asas, aves mudas seguem sopros que não são mais do que turvas visões. De todos são conhecidos os nervosos movimentos que se esgotam ali, súbitos, sob o nosso olhar como numa rápida operação de cálculo. Mais fundo, mais dentro da cadeia, chega o momento de se escutarem os segredos enlouquecedores vindos de cada um, e, entende-se que já por ali se não tem tudo o que a vida entregou antes de iniciar o gesto que daria o cumprir da pena. Ali quedaram-se muitas migrações e emigrações em sombras impassíveis de desastres confiados a um luto. Os guardas prisionais, naquela cadeia de alta segurança, surgiam-me, um após outro, como se os conhecesse desde sempre naquela profissão de lenhadores de ruínas que naquela hora única me sorriam à minha descida do céu.

 

Sentei-me à frente dos trinta e poucos prisioneiros que queriam ter tido aquela tarde na biblioteca que todos estávamos a construir, e eis que o Diretor da prisão entra, senta-se ao meu lado, e num gesto de harmonia simples e de contentamento solto, apresenta-me aos prisioneiros e, generosamente, agradece a minha presença e sai, pois o muito a fazer não lhe permite ficar.

 

Olhei para todos em breve relance. Os dois guardas presentes perfilavam-se também para me escutar ou escutar orlas desconhecidas da minha perceção. Os despertadores das trovoadas, quis crer, adormeceram num ápice. E eu

 

Não me ocorre nada do que pensei dizer-vos. Deixo à vossa consideração as perguntas que me queiram fazer face aos livros que sejam do vosso interesse. Eu, apenas vos digo, que um dia, um dia normal como tantos outros, um dia em que não se pensa sequer na liberdade como jornada a conquistar, um dia, disse-me um médico

 

Pois o seu caso é complicado, o que resulta dos exames renais leva-nos a atuar com a urgência máxima. Será operada daqui a dois dias, ou seja neste dia de Natal próximo, e, o pós cirurgia, devo dizer, é doloroso. Vamos ver como se lida com isto.

 

Tremia por dentro do peito como não sei dizer. Aquele cancro condenava-me a um mês de vida. Prisioneira de tudo e de todos procurava danos que tivesse cometido e que justificassem aquela pena máxima a que estava condenada. Não tinha a mínima possibilidade de escolher livremente quem queria ser naquele dia. E digo-vos, pensei nessa dor inexplicável, irremediável e injusta que então senti, quando há pouco se fecharam atras de mim as grades elétricas que me deixariam enfim, ao vosso lado. Pensei nisto tudo quando nos corredores vos vi a todos impacientes a uma estranha dança deste viver, assim, aqui dentro. Agora mesmo sinto no ar abandonos, feridas sufocadas por maldições e os vossos olhares a escutarem-me e eu nada mais vos sei dizer, neste momento, em que queria muito que pensassem que se estou aqui é porque sobrevivi ao mundo de dor pelo qual passei. E acima de tudo sobrevivi sem me sentir enraivecida pelo que suportei, a impotência não me moldou, devo dizer-vos, mas a caça por um mundo melhor trouxe-me neste dia até vós. Assim aceitem os senhores esta estranha janela que vos quero dar. Não sei se fui clara, mas não fui poupada neste meu tempo de viver, creiam, e tive de jogar às cartas da vida numa estúpida crença de que elas não possuíam o meu trunfo. E afinal, não possuíam mesmo: estou aqui, com as minhas fraquezas e as minhas possibilidades.

Obrigada.

 

Um guarda trouxe-me, num velho carro celular (não havia outro) até Campanhã. Recordo ter achado curioso experimentar a limitação e a incomodidade do dito. Viemos lado a lado a conversar numa estranha admiração mútua. As condições de trabalho que me explicou funcionarem naquele estabelecimento prisional, bem me consciencializaram para as pessoas que lutam pelas migalhas do pão de cada dia, bem cientes de que já viram demasiadas verdades. Vivemos num mundo arrasado e apenas aqueles que têm os corações arrasados, sabem que também se marcha por entre os destroços. Não esquecerei o diálogo com aquele guarda e muito me agradou o que ele não disse.

 

O comboio da noite, após várias horas, trouxe-me até Lisboa. Durante a viagem fui pensando uma a uma em todas as perguntas que me fizeram os prisioneiros e nas respostas que fui dando. O que se mostrou mais intelectual de entre todos e com Alberto Caeiro entre as mãos disse-me: a imperfeição absurda da vida é irremediável: escrevo isto muitas vezes pois cada vez fica mais claro. E um outro que se levantou para que a sua voz se ouvisse bem alto: sabe eu tenho um cão que olha para mim e me diz coisas que eu gostaria de ouvir de alguém. E eu, ali naquele comboio, cada vez mais me convencia que cada um de nós parece estar mais bem treinado para sacudir a água do capote. Também somos sobrecarregados connosco próprios, pensei, agrade-nos ou não a ideia. Lembrei-me de Yourcenar quando perguntava: existirá alguém tão insensato que morra sem conhecer a sua prisão? O que temos é, inevitavelmente, a opção de escolher em tudo o que fazemos, mas um homem sensato tem de ser um investigador de almas que saiba da luta vã contra a nossa insignificância. O seja feita a vossa vontade, é o saber recompor as horas fragmentadas e formar com elas uma harmonia, uma possibilidade em relação a cada novo dia. Talvez a compreensão deste facto nos permita acarinhar os desastres e tornarmo-nos humanos, dirigindo-nos ao mundo como indivíduos. Mais pensei, por muito que a ideia messiânica possa ser atraente, a simples crença na fraternidade de uma sociedade pode demonstrar compaixão em pessoas que ainda não saibam viver mais do que para elas. Então a tal janela que acima referi aos prisioneiros, pode abrir-se aos desejos e aos medos e podemos com ela libertar-nos da nossa prisão de portas automáticas que acolhem os recrutas de desertos, ainda que tudo isto seja, por óbvio, uma atividade interminável e estritamente pessoal. Olhei através da janela da carruagem em que seguia. Chovia torrencialmente naquela noite de inverno e muito de mim foi o que me uniu à tempestade. Do outro lado do corredor, e já muito bebidos, uns americanos festejavam ruidosamente a eleição de Trump. Voltei ao casulo dos meus pensamentos, tenho para mim que uma solidão quase inalienável faz parte de nós, e cada vez mais achei que a resistência aos nossos erros não começa com grandes palavras, começa com pequenos atos e saiba-se que quando nos entregamos, não temos ideia da dimensão da nossa entrega. Todos nos tornamos adultos tardiamente. Julgo ainda, que, só desaparecemos quando totalmente absorvidos pelo momento: quero dizer com isto que, naquele dia, quando não existi, foi afinal quando desfrutei de tudo o que me foi oferecido e ensinado.

 

Paços de Ferreira

Teresa Bracinha Vieira