Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Na celebração do centenário da “Seara Nova” cabe recordar o papel desempenhado por Jaime Cortesão, com Raul Proença, na direção da Biblioteca Nacional (1919-1927).
Uma tarefa fundamental Jaime Cortesão foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional a 5 de abril de 1919, no rescaldo da morte de Sidónio Pais, sucedendo a Fidelino de Figueiredo. Raúl Proença, que era bibliotecário desde janeiro de 1911, era, há pouco, chefe dos Serviços Técnicos e escreveu, no início de 1919, a Cortesão, dizendo que a saída de Fidelino era dada como certa e que a vaga de diretor iria ser aberta. Na própria Biblioteca, havia uma forte corrente defensora da nomeação de Jaime Cortesão. Coube a Leonardo Coimbra, ministro da Instrução Pública do governo de Domingos Pereira, nomear Cortesão por urgente conveniência de serviço. A entrada do poeta e historiador no velho Convento de S. Francisco teria imediatas consequências. Com base no que vinha sendo trabalhado, com a intervenção ativa de Raul Proença, estudioso e especialista de biblioteconomia, foi publicado com data de 10 de maio, o decreto que aprovava a nova Lei Orgânica da Biblioteca, completada pelo respetivo Regulamento. Aquilino Ribeiro foi nomeado 2º bibliotecário e Álvaro Pinto, fundador de “A Águia” em 1910 e da “Renascença Portuguesa” (1912), chefe dos serviços administrativos. Naturalmente, Proença torna-se o braço direito de Cortesão, substituindo-o nas faltas e impedimentos, num período em que os efeitos da guerra química da frente de batalha em França ainda se faziam sentir intensamente na saúde do novo diretor.
Um plano audacioso O plano de ação da Biblioteca Nacional envolvia “a catalogação, a produção e a autonomia editorial”, bem como a animação cultural com o apoio de um núcleo alargado de intelectuais e artistas. Pouco depois, Álvaro Pinto partiu para o Brasil, para se dedicar à atividade editorial, sendo substituído por Ferreira de Macedo. Proença mantém contacto permanente com instituições congéneres e com os melhores especialistas, vindo a participar no Congresso Internacional de Bibliotecários e Bibliófilos de Paris (abril de 1923). A ação delineada para a Biblioteca abrange a formação técnica dos funcionários, a utilização da tipografia e um ambicioso plano de publicações. São de destacar a edição de 1921 de “Os Lusíadas”, muito elogiada por Carolina Michaelis de Vasconcelos, além de “O Livro de Marco Paulo (sic)” conforme a impressão de Valentim Fernandes (1922), do “Bosquejo da História de Portugal” de António Sérgio (1923), dos “Dispersos” de Oliveira Martins, organizados por António Sérgio e Faria de Vasconcelos (1923) e do início da publicação das Obras de Gil Vicente. Por outro lado, logo em 1919, inicia-se a concretização, que ocorrerá em 1924, da aquisição em Itália do que hoje se designa como “Cancioneiro da Biblioteca Nacional” e que era conhecido como de Colocci-Brancuti. O pequeno volume intitulado “Itália Azul”, de J. Cortesão, descreve a viagem que então empreendeu. E não podemos esquecer a extraordinária iniciativa de Raul Proença da publicação do “Guia de Portugal”, a partir de 1924, em nome do amor à terra portuguesa, à divulgação da riqueza da paisagem e das tradições, minucioso roteiro do país e precioso repositório artístico. Com a colaboração de personalidades marcantes da literatura portuguesa, são seis volumes, divididos em 8 tomos, constituindo um instrumento essencial para a compreensão das raízes portuguesas, completado, depois da morte de Proença, com coordenação de Santana Dionísio, graças à Fundação Calouste Gulbenkian. Citando Unamuno, Raul Proença dizia: “estas excursões não são só um consolo, um descanso e um ensinamento; são além disso e porventura sobretudo, um dos melhores meios de conceder apego e amor à pátria”.
Página essencial da Cultura portuguesa Poucos foram os momentos da nossa história cultural tão ricos como aqueles em que Jaime Cortesão dirigiu com Raul Proença a Biblioteca Nacional. Tal direção definiu como finalidades principais da instituição: conservar o património da cultura nacional, de modo a transmitir às gerações vindouras os frutos da atividade literária e científica do passado. Houve assim uma ação reformadora e criativa, que ultrapassou em muito o âmbito de uma Biblioteca. Recordando-nos das ideias defendidas por Proença nas origens da “Renascença Portuguesa”, tratava-se de “acordar as consciências do sono da rotina e da indiferença”. E Jaime Cortesão assumia intimamente esse entendimento, que se integrava na lógica dos “fatores democráticos”. Nesta ordem de ideias, não houve apenas um Grupo da Biblioteca Nacional, que teria um papel decisivo da criação da “Seara Nova”, mas diversos grupos, que nasceram da formação e convívio dos intelectuais da “Renascença Portuguesa”, agora em torno de Jaime Cortesão (de 1919 a 1927). A “Seara Nova” nasce em 1921 de um desses grupos, no qual encontramos Cortesão, Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão. E quem mais constitui esses grupos? Ferreira de Macedo, Faria de Vasconcelos, David Ferreira, Azeredo Perdigão, Rodrigues Miguéis, Teixeira de Pascoais, Reinaldo dos Santos, Afonso Lopes Vieira, José de Figueiredo, Mário de Azevedo Gomes, Luís Câmara Reis, António Arroio, Gualdino Gomes, Vieira de Campos, Castelo Branco Chaves.
Havia a preocupação de fazer nessas tertúlias uma reflexão aprofundada sobre o futuro de Portugal, fora da lógica de curto prazo e do poder. Mas a ideia democrática obrigava a ouvir prestigiados intelectuais, como Carolina Michaelis de Vasconcelos (animadora da revista “Lusitânia”), Silva Gaio, Vieira de Almeida; políticos como Álvaro de Castro, militares como Machado Santos, Sarmento Pimentel, e até Gomes da Costa ou Aires d’Ornelas, personalidades como Mark Athias, Agostinho de Campos, David Lopes, Simões Raposo, Raul Lino, Ezequiel de Campos e Quirino de Jesus, mas também operários e sindicalistas, como Alexandre Vieira, tipógrafo da Biblioteca Nacional e o Secretário Geral da Confederação Geral do Trabalho, Manuel Joaquim de Sousa. Dentro desse espírito, António Sérgio chega mesmo a convidar, em 1923, integralistas lusitanos para criarem a revista “Homens Livres”, em cujos dois números colaboraram além do próprio, António Sardinha, Proença, Cortesão, Simões Raposo, Aquilino Ribeiro, Afonso Lopes Vieira, Augusto Costa, Castelo Branco Chaves, Quirino de Jesus e Reinaldo dos Santos. E afirma: “Pareceu-nos conveniente o haver um órgão dos homens livres para os homens livres; dos homens vivos para os homens vivos, de qualquer classe, doutrina política ou religião; afirmador, por isso mesmo de uma Ideia Nacional, de uma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias; algo enfim que se parecesse em altitude com refúgio sublime das montanhas, e a que pudesse caber sempre o belo poema de Herédia: (…) Je crois entendre encore le cri d’un homme libre”. A “Seara Nova” foi porventura a mais visível e influente das consequências do movimento de ideias gerado no Casarão de S. Francisco, sob a direção de Jaime Cortesão. Tratou-se de fazer dos “fatores democráticos” a continuidade de um movimento de liberdade que chegou aos nossos dias.
Encerramos, pelo menos para já, estas evocações da vida e obra de Jorge de Sena, para referir a exposição muito recentemente inaugurada na Biblioteca Nacional de Portugal. Intitulada “Jorge de Sena - As Máscaras do Poder”, constitui uma muito interessante mostra evocativa do escritor, que completa um século sobre o nascimento (1919), como aqui referimos e analisamos nos artigos anteriores.
Na documentação distribuída destaca-se um texto da autoria de Isabel de Sena, o qual contém como que uma síntese relevante da vida e obra do escritor homenageado.
No que respeita ao teatro, Isabel de Sena evoca a vasta obra e refere a visão erudita contida em numerosos textos e em especial no livro intitulado “Do Teatro em Portugal”. Cita “O Indesejado”, “Mater Imperialis” e “Amparo de Mãe”.
E nesse aspeto, destacamos, especificamente, na exposição, cadernos contendo textos e referências tanto a obras diversas de Sena como a peças e mais referências de outros escritores, bem como a espetáculos e produções diversas.
Destacamos designadamente manuscritos, cadernos contendo textos dramatúrgicos e/ou de analise, estratos de diários, traduções e sucessivas edições.
Isto, além de cadernos com diversas peças de teatro, correspondência que também as refere, além de livros sobre teatro, sobre cinema e especificamente sobre espetáculos.
Nesse aspeto, Isabel de Sena evoca a recolha de textos “Sobre Cinema”, assim expressamente intitulada.
Mas a exposição comporta ainda numerosos documentos e correspondência que indica títulos ou esboços de expressão teatral, incluindo os que não foram produzidos.
E no que respeita designadamente à correspondência, encontramos cartas enviadas e/ou recebidas de nomes referenciais da cultura portuguesa. Citamos nesse aspeto as cartas de e para Sophia de Mello Breyner Andresen e Francisco Sousa Tavares.
E registe-se ainda que na sessão de inauguração na BNP foram distribuídas reproduções de dois poemas manuscritos. Citamos então a denominada “Epígrafe para a Arte de Furtar”:
“Roubaram-se Deus/ outros o Diabo/ - quem cantarei? Roubaram-me a Pátria /a humanidade /outros ma roubaram/ -quem cantarei? Sempre há quem roube/ quem eu deseje;/ E de mim mesmo/ todos me roubaram/ - quem cantarei? Roubaram-me a voz/ quando me calo,/ ou o silêncio/ mesmo se falo. /- Aqui del-Rei!!”
E mais: foi também distribuída a reprodução de uma composição musical de Jorge de Sena sobre poema de Fernando Pessoa “Sobre Velha Música” datado de 1938-1939.
O que documenta o mais amplo criacionismo artístico do grande escritor!...
“Muitas e muito estranhas que viu e ouviu” (Biblioteca Nacional de Portugal, 2016) de João José Alves Dias é o guia da exposição sobre o primeiro século de edições da “Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”.
UM SUCESSO EXCECIONAL Falamos de um caso excecional de sucesso internacional de um livro português. Trata-se da “Peregrinação”. Pode afirmar-se que a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos perante uma narrativa moderna e uma verdadeira personagem romanesca, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, mas que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – mercador, missionário, soldado, corsário, marinheiro, diplomata... O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos bem a evidência da riqueza e complexidade do relato. "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus". Ao ler a obra, houve quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. A escrita começou uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”. João Alves Dias apresentou numa mostra memorável na Biblioteca Nacional de Portugal em 2016 que deve ser recordada.
UMA GRANDE CURIOSIDADE A “Peregrinação” conheceu logo após a publicação um assinalável êxito. Se o poema “Os Lusíadas” (1572) de Luís de Camões foi traduzido para castelhano (1580), latim (1622), inglês (1655) e italiano (1658), a obra de Fernão Mendes Pinto (1614) foi-o para castelhano (1620), francês (1625), holandês (1652), inglês (1653) e alemão (1671), em edições que conheceram diferentes impressões e edições, tendo algumas delas apresentadas pela primeira vez na mostra da Biblioteca. É fácil de verificar a grande curiosidade gerada pelo livro, mas também o extraordinário interesse suscitado pela vivacidade do enredo e pelo modo atraente como é tratado. Na primeira edição portuguesa, registe-se que o autor é identificado diversamente nas duas dedicatórias ao rei Filipe II, como “nobre e criado dos reis” na primeira impressão, e como “homem de vivo engenho e feliz memória”, na segunda. Também numa é dado como natural de Almada e na outra de Montemor-o-Velho. Na segunda edição (1678), registe-se o comentário do grande bibliógrafo Inocêncio Francisco da Silva: “edição incomparavelmente de mérito menor que a primeira, pois não só lhe tiraram a dedicatória, mas alteraram a ortografia, e o texto, cortando palavras, mudando frases e desfigurando consideravelmente a obra. Anote-se que decorre um ano entre as primeiras licenças, a impressão e a taxa final, de novembro a novembro de 1677 e 1678. A terceira edição (1711) integrará o curioso discurso sobre a conquista do reino de Pegu e eleição de capitão Salvador Ribeiro de Sousa como seu rei no ano de 1600, publicado inicialmente em castelhano em 1617. Encontramos nas diferentes edições um conjunto muito rico de curiosidades que merecem uma atenção muito especial – a começar na edição castelhana da “História Oriental de las Peregrinaciones de Fernan Mendez Pinto português…” (1620). Trata-se da tradução do cónego Francisco Herrera Maldonado, um dos grandes defensores do escritor português, tendo sido um dos exemplares expostos na Biblioteca Nacional de uma edição dedicada a Manuel Severim de Faria. A segunda edição castelhana do mesmo ano é dedicada a D. Duarte de Bragança, marquês de Flechilla e Malágon. A primeira edição em língua francesa (1628) é significativamente dedicada ao Cardeal Richelieu e traduzida por Bernard Figuier (Bernardo Figueira?), Gentil-homme Portugais e apresenta a tradução da já nossa conhecida Apologia feita pelo cónego Herrera Maldonado da obra de Fernão Mendes Pinto. Não será por acaso a dedicatória a Richelieu. O poderoso governante e prelado será, como bem sabemos, doze anos depois um defensor ativo da causa da Restauração portuguesa… A tradução holandesa de 1652 é da autoria de Jan Hendrik Glazemaker, feita em Amesterdão. Houve grandes cortes de texto nessa versão, em especial nas partes onde se aludia a Companhia de Jesus, devendo o autor ter tido como base a versão francesa. Tem sete gravuras com temas alusivos à presença europeia no oriente. A primeira edição em língua alemã também foi impressa em Amesterdão (1671), tem onze gravuras, seis das quais são cópias ou adaptações da edição holandesa, sendo qua algumas foram aguareladas. A primeira edição em língua inglesa (1653) é da autoria de Henry Cogan e dedicada a William Wentworth, 2nd Earl of Strafford, publica a Apologia do cónego Herrera Maldonado e suprime algumas partes relacionada com os jesuítas e S. Francisco Xavier. Saliente-se, porém, que em 1625 fora publicado em língua inglesa numa miscelânea de viagens um resumo da obra sob o título “Obseruations of China, Tartaria and other Easterne parts of the World, taken out of Fernam Mendez Pinto his Peregrination”.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO Ao compararmos a riqueza das diferentes edições da “Peregrinação” nos primeiros cem anos depois da sua publicação, fica-nos a demonstração evidente da importância do livro escrito e impresso. É a memória viva que se transmite, e no caso de Fernão Mendes Pinto (e até de António Faria, que Aquilino Ribeiro considerou ser um outro lado do autor) podemos perceber como o testemunho direto completa o relato formal dos cronistas oficiais. A riqueza dos textos de Diogo do Couto, por exemplo, apenas pode ser inteiramente apreendida e compreendida se tivermos presente a extraordinária riqueza, a imaginação, o trágico e o picaresco explanados brilhantemente pelo mestre do Pragal.
Guilherme d'Oliveira Martins
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