Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO…

cada roca com seu fuso.jpg

 

PARADOXOS ATENIENSES…
11 de junho de 2019


A antiga Grécia discutia os paradoxos como modos de entender a lógica e a racionalidade como formas falíveis de entender a realidade. Conhecemos os paradoxos de Zenão, que nos conduzem ao entendimento de que se nos limitarmos a seguir um método puramente geométrico, podemos chegar a conclusões absurdas. Aquiles torna-se incapaz de vencer uma lenta tartaruga, do mesmo modo que uma seta nunca chega ao seu alvo. Tudo isto, porém, apenas no domínio de um mero pressuposto lógico ou matemático. Se eu considerar que na corrida em que se confrontam Aquiles e a tartaruga, contando esta com um pequeno avanço, a distância que falta percorrer a qualquer um dos dois calcula-se sucessivamente achando a metade do último percurso, vou ter de concluir que Aquiles não vencerá a antagonista porque é infinita a possibilidade de calcular a metade da metade da metade… Aquiles nunca passa a tartaruga, uma vez que quando chegar à posição desta, ela se encontra já mais à frente. E quando o herói chegar à segunda posição da tartaruga já ela não estará lá, e assim sucessivamente atá ao infinito. O mesmo se diga da possibilidade da seta atingir o alvo – sendo infinitas as operações para achar a chegada ao destino… Nunca conseguiremos fechar essa operação… Dir-se-á, contudo, que o paradoxo de Zenão é forçado e visa denunciar um raciocínio falso. Mas o amor dos paradoxos pelos atenienses atinge a maior sofisticação no caso da Nave de Teseu. Quando regressou da gloriosa missão a Creta para pôr fim ao Minotauro, poupando assim os jovens atenienses, Teseu, apesar de se ter esquecido de içar as velas brancas, o que determinou o gesto desesperado de Egeu, ao pensar que tudo correra mal, o certo é que iniciou a tradição para os atenienses de preservarem e glorificarem a Nave celebrizada. Contudo, a Nave foi-se degradando, com os seus trinta remos e dois majestosos mastros, obrigando a profundas reparações e substituições periódicas. E então começou a pôr-se a dúvida sobre se a Nave de Teseu continuava a existir apesar dos materiais originais já estarem substituídos. Onde estava a autêntica Nave de Teseu? Era a embarcação que estava restaurada no Porto de Atenas ou correspondia aos velhos despojos que restavam num velho armazém da cidade? A discussão eternizou-se pelos séculos. A Nave seria a mesma se as suas propriedades e a sua identidade se mantivessem. O próprio Leibniz interveio no aceso debate, dizendo: seria a mesma Nave se e apenas se X e Y tivessem as mesmas propriedades e as relações. Assim, tudo o que seria verdade para X (a Nau restaurada) sê-lo-ia para a Y (a antiga) se ambas tivessem as mesmas propriedades e relações; assim, tudo o que seria verdade para X seria também verdadeiro para Y e vice-versa… A resposta iria, assim, depender da análise concreta das propriedades da Nau, dos remos e dos mastros. O tempo passara, a memória de Teseu perdia-se na lembrança dos atenienses e a função dos elementos talvez se tivessem modificado, já que a Nau deixara de navegar. E o enigma manteve-se, porque o paradoxo continuava bem vivo…

 

E em matéria de paradoxos e jogos de palavras, não resisto a citar os “Dois Gatos” do genial Bocage, o meu querido parente, Elmano Sadino


“Dois bichanos se encontraram
Sobre uma trapeira um dia:
(Creio que não foi no tempo
Da amorosa gritaria).

De um deles todo o conchego
Era dormir no borralho;
O outro em leito de senhora
Tinha mimoso agasalho.

Ao primeiro o dono humilde
Espinhas apenas dava;
Com esquisitos manjares
O segundo se engordava.

Miou, e lambeu-o aquele
Por o ver da sua casta;
Eis que o brutinho orgulhoso
De si com desdém o afasta.

Aguda unha vibrando
Lhe diz: ''Gato vil e pobre,
Tens semelhante ousadia
Comigo, opulento, e nobre?

Cuidas que sou como tu?
Asneirão, quanto te enganas!
Entendes que me sustento
De espinhas, ou barbatanas?

Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão;
Tu lazeras, e dormimos
Eu na cama, e tu no chão.

Poderás dizer-me a isto
Que nunca te conheci;
Mas para ver que não minto
Basta-me olhar para ti.''

''Ui! (responde-lhe o gatorro,
Mostrando um ar de estranheza)
És mais que eu? Que distinção
Pôs em nós a Natureza?

Tens mais valor? Eis aqui
A ocasião de o provar.''
''Nada (acode o cavalheiro)
Eu não costumo brigar.''

''Então (torna-lhe enfadado
O nosso vilão ruim)
Se tu não és mais valente,
Em que és sup'rior a mim?

Tu não mias?'' - ''Mio.'' - ''E sentes
Gosto em pilhar algum rato?''
''Sim.'' - E o comes?'' - ''Oh! Se como!...''
''Logo não passas de um gato.

Abate, pois, esse orgulho,
Intratável criatura:
Não tens mais nobreza que eu;
O que tens é mais ventura.''

Agostinho de Morais

 

 

BOCAGE – O NOSSO GRANDE FABULISTA…

teste (2).jpg 

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 22

 

Elmano Sadino é o nosso árcade simultaneamente mais conhecido e mais incompreendido. É por certo aquele cuja vida mais próxima se encontra de Camões, mas a sua epopeia atribulada chegou até nós cheia de sombras, que levam muitos a não reconhecer as suas absolutas qualidades. Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é, na sua época e no conjunto da cultura portuguesa, alguém que associa plenamente o lirismo, a tragédia marítima e o picaresco do escárnio e maldizer, nesses pontos pode dizer-se é um português paradigmático, que nos permite apreender qualidades e limitações, e a consciência plena de que não temos um carácter idealizado, mas as virtudes e defeitos de uma natural imperfeição, com uma capacidade aventureira multifacetada e tantas vezes inesperada. Hoje cuidamos dos seus escritos educativos, na tradição de Esopo (620 a. C, - 564 a. C,), Fedro (século I, d. C.) e La Fontaine (1621-1695). Aí encontramos em poesia cuidada a interrogação sobre o género humano, através da rica metáfora dos animais… E eis como Bocage se revela um educador fino – claríssimo, pedagógico, cultor essencial da língua pátria. O português é esmerado, por parte de alguém que cultivou como poucos a palavra certa e a ideia clara e distinta. Veja-se, aliás, um primeiro exemplo, no célebre poema “A Raposa e as Uvas”. Como os melhores clássicos, não diz de mais nem de menos. Apenas a palavra que se espera, sem desperdício algum. E quando pensamos que a sentenciosa raposa já tudo disse, eis que se deixa enganar pela subtil parra que lhe cai no caminho…   

 

«Contam que certa raposa, 
Andando muito esfaimada, 
Viu roxos, maduros cachos 
Pendentes de alta latada. 

De bom grado os trincaria, 
Mas sem lhes poder chegar, 
Disse: “Estão verdes, não prestam, 
Só os cães os podem tragar!” 

Eis cai uma parra, quando 
Prosseguia seu caminho, 
E, crendo que era algum bago, 
Volta depressa o focinho».

 

E sobre um leão e um porco, aqui nos fala. Não cuidemos, porém, de uma visão literal. Do que aqui se fala é da gente que sem emenda persiste nos erros, sem cuidar de aprender com a experiência e de aproveitar as boas oprtunidades…

 

«O rei dos animais, o rugidor leão, 
Com o porco engraçou, não sei por que razão. 
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna 
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna): 
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes, 
Poder de despachar os brutos pretendentes, 
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça, 
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça; 
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar, 
E a sua ocupação dormir, comer, fossar. 
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria, 
Soltavam contra ele injúria sobre injúria 
Os outros animais, dizendo-lhe com ira: 
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!» 
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais, 
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais! 
Dos filhos para o génio olhai com madureza; 
Não há poder algum que mude a natureza: 
Um porco há de ser porco, inda que o rei dos bichos 
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos».

 

Não esqueço as minhas raízes Azeitonenses, e ainda para mais a ancestralidade liga-me a Elmano Sadino, pelos Barbosas. E fui encontrá-lo na Índia em Damão e depois em Macau. Eis por que razão Setúbal não deve ser aqui esquecida. Bocage amigo, corre-te nas veias o mesmo sangue de Fernão Mendes do Pragal!… Dói-me tantas vezes a indiferença… Não esqueço o juízo do elefante perante o discurso do burro. E que tal desdita não se apresente aqui. Lembremos sim o nosso grande poeta!

 

Agostinho de Morais  

 

 

 

AEPC.jpg


A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

O INJUSTIÇADO BOCAGE…

Bocage, em gravura de Francisco Bartolozzi.jpg

 

DIÁRIO DE AGOSTO (XXI) - 21 de agosto de 2017

 

Se há poeta português que continua a ser desconhecido e injustiçado, apesar do seu talento, ele é Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). É quem mais se aproxima de Camões na sua vida e como símbolo de português com a alma pelo mundo repartida.

 

Partiu para a Índia, ficou algum tempo no Rio de Janeiro, fez escala em Moçambique, cursou estudos regulares de oficial de Marinha em Nova Goa e foi colocado em Damão, donde desertou, indo até Macau. Fez, pois, a rota do Império e com justiça comparou-se ao lírico e épico de «Os Lusíadas»

 

     Camões, grande Camões, quão semelhante
     Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
     Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
     Arrostar co’o sacrílego gigante

 

     Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
     Da penúria cruel no horror me veja;
     Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
     Também carpindo estou, saudoso amante.

 

     Ludíbrio, como tu, da sorte dura
     Meu fim demando ao Céu, pela certeza
     De que só terei paz na sepultura.

 

     Modelo meu tu és, mas… oh, tristeza!...
     Se te imito nos transes da Ventura,
     Não te imito nos dons da Natureza

 

Só 40 anos de vida, um apurado sentido poético, uma sólida cultura clássica… Alexandre O’Neill homenageou-o. E hoje devemos lê-lo, em vez de seguir as historietas que por aí andam…

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO

por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ATORES, ENCENADORES – XLII

s340x255.jpg

AGUSTINA BESSA-LUÍS E O TEATRO DE REVISTA

Como sabemos, as ligações de Agustina Bessa-Luís ao teatro são vastas e sólidas - e no que se refere à sua própria criação, extremamente qualificadas, numa aplicação do seu enorme talento literária às artes de espetáculo. Lembremos a qualidade e heterogeneidade temática e mesmo estética da sua dramaturgia, desde a estreia em 1958 com “O Inseparável ou o Amigo em Testamento” (1958), a que se seguiu uma obra teatral variada mas, insiste-se, sempre qualificada - “A Etrusca” (1961), “A Bela Portuguesa” (1986), “Estados Eróticos Imediatos de Soren Kierkgaard” (1992), “As Fúrias” (1994) ou “Garrett - O Ermita do Teatro” (1998): e estas duas últimas sublinham uma abordagem filosófica, aliás sempre presente na vasta obra da autora.

“O Inseparável” só foi estreado em 1969. Na altura, escrevi que a peça “não é uma obra fácil nem para o público, nem para os intérpretes, muito menos para o encenador“ - Augusto de Figueiredo, que aliás elogiei, bem como aos intérpretes Hermínia Tojal, Graça Vitória, Fernanda Figueiredo, Andrade e Silva, Carlos Duarte, António Machado (in EN - 4 de Agosto 1969). Eugénia Vasques, por seu lado, refere a expressão “existencialista (de) teatro marcadamente narrativo” desta primeira peça de Agustina (in “Mulheres que Escreveram Teatro no Século XX em Portugal” – 2001).

Podemos acrescentar ainda, no que toca às artes do espetáculo, os filmes ou textos televisivos com a colaboração direta ou decorrentes de adaptações de Agustina, designadamente os de Manoel de Oliveira (e também de João Botelho) com destaque, pela hibridez, entre espetáculos, para o guião e os diálogos do “Party - Garden Party nos Açores” (1996). Mostra tudo isto, insista-se, um sentido de espetáculo da criação agustiniana, que encontramos a cada passo nos próprios romances, com as caracterizações de personagens, as dialogações, a “encenação” global subjacente… E os exemplos seriam infindáveis.

Assim, no romance “Prazer e Glória” (1988) Agustina tece uma teoria geral do texto dramático relativamente à arte de representar: “por um sistema de acústica e ampliação de som que transmite todas as modulações da voz, o ator poderá exprimir o seu desempenho, sem ter de o transformar em caricatura. Era nisso que pensavam os gregos, ao construir os fossos teatrais, cujo registo de som resultava perfeito, e um murmúrio podia ser ouvido no último degrau” (capitulo VIII).  

Mas hoje, o que aqui trago é a evocação de Agustina como diretora do Teatro Nacional de D. Maria II, de 1990 a 1993, e designadamente, como veremos adiante, de “Passa por Mim no Rossio - Antologia de Revista à Portuguesa” com texto e encenação de Filipe La Féria, que esteve em cena no D. Maria durante longos meses. E bem se justificou esse excecional sucesso, como veremos adiante.

Antes, assinale-se que o repertório do TNDMII no quadro diretivo e na responsabilidade cultural de Agustina marcou sobretudo uma atualização dramatúrgica de grande qualidade, designadamente de autores contemporâneos pouco ou nada (na época – e ainda hoje?) conhecidos em Portugal. Recordamos peças como “Retrato do Artista Quando Velho” de Tomas Bernard Minetti; “Mete-se um Pau na Boca” de Enzo Forman: o “Dueto a Solo” de Tom Krupenski; a “Zerlina” de Ermman Broch: e noutro plano estético e epocal “O Leque de Lady Windermere” de Oscar Wilde. Estamos a falar das peças encenadas pela companhia do TNDMII no período da direção de Agustina: e podemos assinalar também, um importante programa de intercâmbio com outras companhias e espetáculos nacionais e estrangeiros.

Com isto, entramos na evocação de um espetáculo algo insólito mas de repercussão excecional, e que foi precisamente a já aludida revista “Passa por Mim no Rossio” de Filipe La Féria no TNDMII (1991-1992). Note-se entretanto que não foi esta a única revista encenda no Teatro Nacional: a própria Companhia Rey-Colaço Robles Monteiro, concessionaria durante perto de 40 anos, produziu uma dezena de vaudevilles e revistas entre 1931 e o início da década de 60. E neles encontramos, como autores/atores, nomes referenciais do teatro português do século XX: por exemplo João Villaret, Maria Lalande, Adelina e Aura Abranches, Álvaro Benamor, Amélia e Robles eles próprios, Pedro Lemos, Paiva Raposo, Erico Braga, Helena Félix… em suma, o melhor que houve, durante décadas, nos atores e encenadores portugueses.

Mas o mérito do texto de Filipe La Féria decorre também da evocação de sucessivas revistas que, desde a primeira, em 1856 (“Fossilismo e Progresso” de Manoel Roussado) marcaram o teatro e a cultura portuguesa. Dentro de uma linha própria do género, de referência direta ou indireta à realidade contemporânea, o texto de La Féria retoma quadros, cenas, diálogos, personagens de 40 revistas que cobrem um século e meio de teatro e de crítica mordaz à sociedade portuguesa - e isto, sem perder atualidade.

Mérito de La Féria, como autor do texto, mas mérito também de Agustina Bessa-Luís, a qual, no programa, “justifica” esta incursão revisteira no teatro oficial: “A revista é ainda um meio de sacudir os espíritos calados e de ilumina-los de riso. Os portugueses vão ao teatro para provarem que têm razão. Porque a razão é coisa tão fantástica que só o teatro a consagra e a ama”…

Foi realmente um grande espetáculo. E vale a pena recordar nomes do teatro declamado que integraram, com qualidade inesquecível, este elenco de revista: citamos Eunice Muñoz, Catarina Avelar, Irene Isidro, João Perry, Varela Silva, Ruy de Carvalho, Curado Ribeiro, Lurdes Norberto, Henriqueta Maia, e outros mais. (cfr. “Passa por Mim no Rossio” - programa do espetáculo e texto da revista – 1991-1992)

DUARTE IVO CRUZ

ATORES, ENCENADORES - XLI

manelboc.jpg

O TEATRÓLOGO BOCAGE, DO PRÉ-ROMANTISMO AO PÓS-EXPRESSINISMO

Assinalaram-se ontem (15 de Setembro) os exatos 250 anos do nascimento de Bocage: e no próximo dia 21 de Dezembro deste mesmo ano de 2015, poderemos e deveremos evocar os exatos 210 anos da sua morte, prematura mesmo na época, mas sobretudo sofrida, fisicamente e psicologicamente. Vida curta, agitada e infeliz, num contexto epocal difícil, mas sobretudo, num desfasamento, digamos assim, entre o talento e a potencialidade mental e sobretudo criacional do escritor, o seu extraordinário talento, e a sucessão de episódios dramáticos que o marcaram – e não interessa hoje ponderar os graus de responsabilidade própria ou alheia atribuíveis.

Se no ponto de vista digamos profissional – mesmo na ambiguidade que na época, a expressão envolvia no que toca ao teatro – Bocage não foi propriamente ator ou encenador, as ligações ao teatro são conhecidas, como dramaturgo sem dúvida – mas também como agente de uma representação cénica que marca toda a sua vida e toda a sua obra: pois não é eminentemente “teatral” por exemplo a descrição que dele faz no célebre soneto:

”Magro, olhos azuis, carão moreno,/Bem servido de pés, meão de altura/triste da facha/ o mesmo de figura”… ou o terminal e profundamente neurasténico “Já Bocage não sou!”… `cova escura/ meu estro vai parar desfeito em vento…/Eu aos céus ultrajei!/ (…) Oh! Se me creste, gente impia/Rasga meus versos, crê na eternidade!”

A vida de Bocage representa, em si mesma, como que uma antecipação ambígua da sua época histórica e literária. E isto porque, mantendo-se formalmente fiel aos ritmos do tempo, designadamente como membro da chamada Nova Arcádia, a sua obra poética anuncia já, e de que maneira, um teor romântico que se antecipou ao próprio romantismo “oficial”, digamos assim: “foi um dos poetas do seu tempo que mais contribuiu para a formação do gosto romântico, que em breve teria em Garrett e Herculano a sua expressão vitoriosa” escreveu Hernani Cidade (in “Bocage a Obra e o Homem” -1966). E Fidelino de Figueiredo relaciona a sua estadia em Goa e as evocações decorrentes com a criação camoniana, considerando Bocage como nada menos do que “outro grande poeta, devoto camonianista, que em muitos sonetos sobre as suas peregrinações pela Ásia expressou a mesma fobia da pequena cosmópolis goiana” (in “História Literária de Portugal” – 1944).

Em qualquer caso seria um erro situar a vida e obra de Bocage, exclusivamente na perspetiva de uma predefinição romântica. Tenha-se presente, insista-se, a sua ligação á Nova Arcádia com a designação árcade de Elmano Sadino e mesmo a sua colaboração nos “outeiros”, festas literárias conventuais que duraram até meados do seculo XIX.

Os autores da Nova Arcádia, fundada por Caldas Barbosa, fazem uma ligação ao teatro pré-romântico: Mas precisamente aí, o teatro de Bocage não acompanha os sinais, ténues que sejam, da renovação dramatúrgica de alguns companheiros “neo-Árcades”.

E no entanto, há que reconhecer, o teatro de Bocage, ficam aquém da sua portentosa poesia. Escreveu “elogios dramáticos” e “dramas alegóricos”, usando uma terminologia cara na época: “Força do Fado”, “O Novo Século”, ”A Virtude Laureada” ou o “drama histórico Afonso Henriques ou a Conquista de Lisboa”, onde utiliza uma linguagem já na época desfasada da cena. Por exemplo:

“Enviado de Osmin chegou ao campo/ Almançor entre nós bem conhecido/ Pelo audaz coração e fero orgulho:/ A audiência que pede o Rei lhe outorga/ E ao régio pavilhão convoca os chefes: Por ti, Senhor e por Arnaldo espera”…

Traduziu ainda ou adaptou algumas peças de autores franceses (“Eufémia ou o Triunfo da Religião” de Arnaud, “Erícia ou a Vestal” de Auchet) ou “Atília Régulo de Matastásio. E Fidelino de Figueiredo refere ainda traduções de Delille e Castel, salientando que “a perfeição superior da arte de versejar, (que) foi a glória dos árcades, mas da qual cabe o cetro a Bocage” (ob. cit.).

Sobre Bocage escreveu designadamente Artur Anselmo: “Toda a sua vida decorreu em conflito entre dois momentos distintos: um momento passado traduzindo a adesão a uma escola ou a uma ideia, e um momento presente afirmando essa escola ou ideia “ (in verbete na Enciclopédia Verbo vol. 3). E assim é, nesta simbiose dramática, em sentido figurado e em sentido literal que foi, é, a vida a e a obra de Bocage.

Ora bem: em 1967, Luzia Maria Martins, escreve e dirige no Teatro Estúdio de Lisboa uma peça denominada precisamente “Bocage, Alma sem Mundo”. Trata-se de uma dramatização épico-narrativa da vida e época de Bocage, num conjunto de mais de 30 personagens que vão desde o protagonista obviamente, à corte que o rodeia e despreza, aos militares envolvidos na política, a comerciantes e vagabundos, nobre e plebeus… tudo ligado pela intervenção de um narrador e de um coro de três palhaços. (cfr. Luís Francisco Rebello in “100 Anos de Teatro Português” – 1984)

E é de assinala outro “Bocage” quase contemporâneo, (1965) de Romeu Correia, onde destaquei “uma dimensão para-épica que não chega a ser a ser brechteana mas valoriza muito a componente narrativa com o seu envolvimento temporal” (cfr. Duarte Ivo Cruz in “História do Teatro Português” – 2001).João Gaspar Simões aliás considera este “Bocage” “Admiravelmente grã-guinholesco” (in “Crítica VI – Teatro “ – 1965).

Finalmente: há anos, a tradição de ditos populares de Bocage mantinha-se viva. Por exemplo, uma história de interrogatório na polícia da época. Assim:
(Policia empunhando uma pistola) – “Quem és?; Donde vens? Para onde vais?” (Bocage) - Chamo-me Bocage, venho do Café Nicola, e vou para o outro mundo se disparares a pistola!”


DUARTE IVO CRUZ