Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O único Museu da Língua Portuguesa existente, até hoje, está em São Paulo, no Brasil. Embaraçosa a sua ausência em Portugal onde, pela ordem natural das coisas e seu sentido literal (língua portuguesa), faria cabimento que também existisse.
É no Brasil, antiga colónia, que é homenageada, museologicamente, pela primeira vez, em todo o espaço lusófono, da CPLP e a nível mundial, quando é tida, para tantos, como imperialista, colonialista, neocolonialista, xenófoba, racista, homo-hegemónica, que atua em nome da uniformidade, fixando a norma e anulando os dialetos.
Embora haja quem alegue que Portugal transferiu para a língua, que tem como sua, um sentimento imperial, não se compreende que perdido o império, com a subsequente descolonização, expulsão e independência, se possa falar em “língua do colonizador” ou “neocolonialista”, quando foram os novos países (incluindo os africanos) que, voluntariamente, viram nesse idioma um instrumento de unidade e progresso adequado ao tempo presente, e não uma forma de exclusão e regressão.
Há que ultrapassar desconfianças e suspeitas de que tudo o que vem do ex-colonizador é mau por natureza, cabendo referir, por exemplo, Amílcar Cabral que reconheceu que uma coisa boa que ficou no continente africano foi a língua portuguesa.
Nem Portugal tem atualmente “força imperial “para a impor, pois além da língua ser de quem a fala, é de excluir uma presunção de superioridade do português europeu, dado que o futuro do nosso idioma já é, e será, protagonizado de fora da Europa, essencialmente a partir da América do Sul e de África, com a predominância atual do Brasil, havendo uma espécie de inversão, com o fim do colonialismo, dos antigos “colonizadores” em territórios “colonizados”.
Quanto ao Brasil não foi pelo facto de, em tempos idos, ter sido colónia que se inibiu de ser pioneiro em homenagear a língua portuguesa, num museu interativo paulista, inaugurado em 2006, reconstruído e concluído em 2019, após um incêndio em 2015, apresentando a sua diversidade, numa viagem por textos escritos, imagens, sons, vídeos, exposições temporárias (algumas de escritores, como Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e Machado de Assis).
O MLP, aquando da sua reabertura, em 2021, foi agraciado, pelo presidente da república de Portugal, com a primeira medalha da mais recente ordem honorífica portuguesa, a Ordem de Camões, destinada a: “(…) a galardoar serviços relevantes prestados à cultura portuguesa, à sua projeção no mundo, à conservação dos laços dos emigrantes com a mãe-pátria, à promoção da língua portuguesa e à intensificação das relações entre os povos e as comunidades que se exprimem em português”.
Significativo também, nesta sequência, um texto conjunto do escritor angolano Agualusa e do moçambicano Mia Couto, que sintetiza o porquê e a importância do museu: “Ao mesmo tempo que ia sendo instrumento de dominação colonial, a língua portuguesa era já o avesso disso: componente fundamental na criação de identidades autónomas, no Brasil, em Angola, em Moçambique, em Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau” (a que acrescentaremos Timor-Leste).
Sugestivo ser em São Paulo a sua localização, urbe com o maior número de falantes de português.
Porquê a sua omissão em Portugal? Ou de monumentos, evocações, sem complexos, deslumbramentos ou sacralizações, mas sim com a dignidade e merecimento que merece? Será que o exemplo tem de vir de “fora”?
“Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) são motivo de reflexão sobre a construção do Brasil contemporâneo, no momento em que se celebram dois séculos da independência brasileira.
BRASIL - O OUTRO LADO DE NÓS
Parece audacioso o título que encima esta prosa. Poderá ser. É verdade que há muitas simplificações na apreciação das relações luso-brasileiras, como por exemplo a suposta irmandade, a coerência entre o que nos une e nos separa, a relação com o idioma comum. A verdade, porém, é que há uma grande complexidade nos elos que nos ligam. Não esqueço os inesgotáveis diálogos que estabeleci e estabeleço, tantas vezes apenas espiritualmente, com o meu saudoso mestre António Cândido, com Hélio Jaguaribe, mas também com o meu querido confrade Celso Lafer, com Fernando Henrique Cardoso, com Alberto Costa e Silva ou com Marcos Vinicios Vilaça. Devo dizer que se trata de matéria em que sou suspeito, uma vez que nasci numa família luso-brasileira. Minha avó Leonor nasceu no Estado de Paraná, na cidade de Paranaguá, de uma família de industriais da colonização alemã. Conheci em casa de meus avós Jordão Emerenciano, nos anos cinquenta, quando se vivia uma situação dramática com a morte de Getúlio Vargas, e não esqueço a gravação de poemas de Manuel Bandeira, que eram um regalo para o ouvido, a começar em “Recife” e no reconhecimento da sabedoria de Totónio Rodrigues. Anos depois, quando estive no Recife, corri à rua do Sol e verifiquei que ainda lá está, e não se chama doutor fulano de tal.
Partilhando muitas preocupações de amigos comuns, como José Carlos de Vasconcelos, gostaria que houvesse maior presença do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil. E recordo saudosamente conversas entusiasmadas com Mário Soares, José Aparecido de Oliveira, António Alçada Baptista, Zélia e Jorge Amado. Era um tempo em que Quincas Berro de Água fazia parte de um certo quotidiano. Com esta recordação bem viva, todos aspiramos a que haja uma maior relevância internacional da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Só uma relação biunívoca e uma compreensão das diferenças e complementaridades (ou se se quiser suplementaridades) poderão beneficiar-nos a todos. Longe de idealizar as relações comuns, trata-se de partir da heterogeneidade, das diferenças e da adaptação para delinear uma agenda de interesses e valores comuns. Se invoquei a experiência familiar, foi para tornar claro que sempre ouvi o teor contraditório dos debates, ora de lá, ora de cá. Tenho à entrada de minha casa a imagem de D. Pedro, enquanto o meu amigo Hélio, me levou a admirar o papel desempenhado por D. João VI na preservação da unidade brasileira. Conhecendo praticamente todo o território brasileiro, não apenas percorri o roteiro das reduções jesuíticas, mas também o impressionante percurso dos Bandeirantes, com a obra de Jaime Cortesão sobre Raposo Tavares nas mãos. E percebe-se bem a multiplicidade de fatores que contribuíram para a construção deste imenso território – podendo perceber-se a diversidade de fatores, lendo Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e naturalmente António Cândido.
UM MUNDO DA LÍNGUA PORTUGUESA
De facto, não há uma lusofonia, mas um mundo da língua portuguesa com muitas diferenças por encontrar e descobrir. E esse mundo da língua comum alberga várias línguas e várias culturas que devemos compreender melhor. Neste ano em que celebramos duzentos anos da independência formal brasileira e em Portugal assinalamos a nossa primeira Constituição, não esquecemos que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves já existia em 7 de setembro de 1822, quando foi dado o grito do Ipiranga, desde 16 de dezembro de 1815. O Rio de Janeiro foi desde então capital de Império e essa circunstância definiu o novo tempo que permitiu ao Brasil definir uma história singular que ainda hoje marca as nossas relações. Eis por que tem razão de ser a referência ao Brasil como outra face de nós. Não se trata de uma idealização, mas sim relação tornada natural, com todas as dificuldades inerentes a uma proximidade quase familiar, com todos os encontros e desencontros dessa paradoxal proximidade. Por isso, Eduardo Lourenço fala do Brasil como um outro “mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eis por que precisamos uns dos outros para nos compreendermos melhor.
A colonização portuguesa, o tráfico de escravos, a relação com África e o papel da população ameríndia são os fatores de formação do Brasil. As diversas mediações articulam-se. Lembremo-nos de Diogo Álvares Correia, designado como “Caramuru” pelos tupinambá, casado com uma índia que contribuiu para o enraizamento da sociedade colonial. Mais do que o controlo da costa é a descoberta do ouro que conduz ao desenvolvimento económico, desde a ocupação do interior e aproveitamento dos rios até à produção agrícola e abastecimento dos mercados urbanos. Cana-de-açúcar, tabaco, ouro e diamantes definem a evolução do sistema económico, bem como a exploração do pau-brasil que inicia a desflorestação. O sistema político é inicialmente influenciado pelo português, com adaptações consuetudinárias. Franceses, holandeses e espanhóis constituem uma concorrência que permite alargar as áreas de colonização e influenciar o sistema de transporte. Com os espanhóis há a competição de que é exemplo o caso de Colónia de Sacramento até ao Tratado de Madrid (1750), mas a monarquia dual facilitará a chegada ao Forte Príncipe da Beira, muito para além do meridiano de Tordesilhas. A coesão social do sistema imperial torna-se possível graças à circulação das elites à influência económica dos cristãos-novos, apesar da ocorrência de tensões – ora influenciadas pela herança holandesa no nordeste, ora entre bandeirantes paulistas e reinóis em Minas Gerais. A Inconfidência Mineira (1789) foi resultado do descontentamento pelo agravamento fiscal e incerteza económica.
RESULTADO DE MOVIMENTO COMPLEXO
O Brasil não é produto do acaso. Corresponde a uma convergência de fatores centrípetos e centrífugos, em que a economia, a natureza e o fator humano criaram condições para a afirmação de um território de grandes dimensões que resistiu à fragmentação hispânica. O Padre António Vieira teve uma influência diplomática e humanista importante. A Universidade de Coimbra foi um fator de coesão e de prestígio para a elite intelectual. A política jesuítica face aos índios foi um elemento estabilizador. A mitologia tupi, o Candomblé como rito afro-brasileiro, o cristianismo e o messianismo que chegaria aos “Sertões” de Euclides da Cunha e a António Conselheiro geraram movimentos híbridos a que se somou a influência puritana holandesa. Com afirma Francisco Bethencourt: “De uma forma geral, o sistema normativo e a religião cristã deixaram quadros de comportamento e de crença sobre os quais se inscreveram boa parte dos desenvolvimentos contemporâneos” (Público, 8.8.2022). Os legados que permitiram a independência de um Brasil unificado são de caráter plural e misto com consequências contraditórias, no contexto de uma cultura na qual destacamos a herança artística de António Francisco Lisboa (o Aleijadino) até à literária de Tomás António Gonzaga.
Nesta sucessão de evocações e descrições de teatros atuais e teatros históricos de tradição cultural e arquitetónica, recorremos em primeiro lugar a um livro de Luis Norton, editado em 1936, sobre “A Corte de Portugal no Brasil”, assim mesmo denominado.
Trata-se efetivamente de um denso e vasto estudo histórico, amplamente fundamentado em numerosos documentos inéditos, designadamente do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, aí incluindo ou complementando-o com vasta correspondência diplomática relativa às negociações do casamento da Arquiduquesa Dona Leopoldina com D. Pedro de Bragança, como bem sabemos futuro Imperador do Brasil e Rei de Portugal.
Para além do interesse histórico-diplomático em si, o estudo evoca e descreve a realidade cultural do Rio de Janeiro na época, vista tanto no ponto de vista de criatividade, como de atividades diversas e ainda pelo património subjacente. E é extremamente interessante, na perspetiva cultural e de infraestrutura, a referência vasta e devidamente documentada aos teatros e espetáculos, bem como da vida da corte e da cidade.
E mais: quando a Família Real ainda se encontrava no Palácio denominado Real Quinta da Boa Vista, o próprio D. Pedro cantou uma área de ópera, dirigido por Marcos Portugal, a quem se deveu a revisão de musica original ali executada para a Corte. Sobre Marcos Portugal esclarece Luis Norton que “o Rei e toda a Família Real apadrinharam o novo maestro que passara a ser um elemento indispensável na orquestração musical da nova Corte brasileira” (pág. 93).
E mais acrescenta que D. Pedro foi ele próprio compositor de mérito, com obras que se destacaram na época e ainda hoje se destacam: cita designadamente “o Te Deum que foi composto para as suas segundas núpcias, uma ópera em português executada em 1832 no Teatro Italiano de Paris, uma sinfonia para grande orquestra, as músicas para o hino constitucional português e para o hino da independência brasileira” (pág. 95).
No que respeita a teatros-espaços/edifícios, temos no livro de Luís Norton a descrição detalhada dos festejos da aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, ocorridos na Corte então sediada no Palácio do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1819. E nesse contexto, o autor refere o Real Teatro do Rio de Janeiro, citando e descrevendo um “painel monumental”, em que figurava a Rainha D. Carlota Joaquina.
E transcreve um curioso documento da época, que se refere a D. Carlota Joaquina “com dois génios coroando-a de louro e sustentando outras tantas coroas de louro, quantas são as Augustas Princesas com que Sua Majestade tem esmaltado o Trono português e que fazem hoje as delícias de duas nações poderosas”, assim mesmo! (pág. 79).
A bibliografia sobre este tema é vastíssima.
Acrescente-se ainda que J. Galante de Sousa refere a existência de mais seis teatros no Rio de Janeiro e mais 11 espalhados pelo imenso território brasileiro, isto ao longo da primeira metade do século XIX. (cfr. “O Teatro no Brasil” ed. Ministério da Educação e Cultura” Rio de Janeiro 1960).
E finalmente, remete-se para o vasto estudo sobre a “História do Teatro Brasileiro”, dirigido por João Roberto Faria, e que precisamente assinala e descreve uma vasta atividade de teatro e de teatros, nesta época, e ao longo da vastíssima extensão do Brasil! (ed. SESCSP e Perspetiva - São Paulo 2012).
E muito mais haveria a dizer sobre este tema!
DUARTE IVO CRUZ
Obs: Reposição de texto publicado em 22.09.18 neste blogue.
Uma viagem não se resume ao tempo em que se realiza. Antegozamo-la nos preparativos, na procura de pistas, na definição dos percursos e até no modo como os poderemos realizar. Depois de partir, e sobretudo porque já definimos o campo de interesse, verificamos que a realidade ultrapassa o que pudemos imaginar. Não se trata de fazer ofício de turista acidental, mas de ir ao encontro de memórias perdidas ou esquecidas, desde as pedras às palavras, dos costumes às reminiscências históricas. A viagem tem sempre um fundamento no instinto nómada que nos acompanha. E é esse prazer de viajar, que nos leva à procura de fragmentos de nós mesmos espalhados pelo mundo. Nada melhor do que ilustrar o que dizemos com um caso prático.
Cidade fantasmagórica, Alcântara, em frente a São Luís do Maranhão, no outro lado da baía de São Marcos, é a recordação de um tempo que já não volta. E como o prazer supremo está em viajar pelo mundo com livros nas mãos e com leituras em dia, eis que Josué Montello nos ajuda na decifração do espírito do lugar: “Na calma da tarde ensolarada, vou andando pelo Largo da Matriz, e não encontro uma única pessoa. Tudo quieto. Não ouço rumor de vida à minha volta. Nem sequer uma revoada de andorinhas estala o seu alarido feliz por cima dos telhados escuros. Se apuro mais o ouvido, interrogando o silêncio que me rodeia, distingo uma rolinha chorando na borda de um beiral. É um choro manso, repetido, que não tem fim” (Noite Sobre Alcântara, Livros do Brasil, 1989). Mas recuemos no tempo. A cidade foi rica e opulenta. Fundada em 1648 foi centro da atividade económica da produção da cana-de-açúcar e do algodão até à abolição da escravatura, no terceiro quartel do século XIX. Trata-se de um conjunto arquitetónico dos séculos XVII e XVIII paradoxalmente preservado, entre ruínas e memórias, pelo abandono dos seus habitantes quando a decadência se tornou inexorável.
O catamaran leva-nos de São Luís até Alcântara. Ao aproximarmo-nos de terra e do velho porto, Danilo, o guia, recorda-nos que aqui houve um povoamento tupinambá, a aldeia de Tapuitapera, fundada por índios tapuias, que os tupis expulsaram. E se a colonização francesa ainda manteve os índios no local, a verdade é que o desenvolvimento agrícola, por um lado, a escravatura negra e um surto terrível de varíola (1663), por outro, afastaram definitivamente os índios da região. Alcântara foi buscar o nome ao lugar de Alcântara em Lisboa, donde provinha António Coelho Carvalho, o donatário da capitania de Cumã. A vila desenvolveu-se porque se tornou um ponto obrigatório nas ligações entre São Luís e Belém do Pará, e porque serviu de base às forças portuguesas que expulsaram os holandeses do Maranhão.
Estamos no Porto do Jacaré. Uns sobem a pé até à povoação pela ladeira, outros preferem seguir no ónibus. Depressa nos encontramos na Rua das Mercês, entre a igreja e a Casa da Câmara. A economia da cidade baseava-se nos engenhos do açúcar, cuja produção uma vez chegada aqui era embarcada para São Luís. Com a fundação da Companhia do Comércio do Maranhão (1682) as fazendas organizaram-se e a cidade tornou-se importante, crescendo significativamente até ao tempo de Sebastião José, quando foi criada a grande Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Além do açúcar, Alcântara era entreposto de gado, de arroz e de algodão, para o mercado inglês, nos alvores da revolução industrial.
Na Praça da Matriz, as ruínas da Igreja de S. Matias, de 1648 no lugar onde houve uma ermida feita pelo índio Maretin e uma igreja dedicada a S. Bartolomeu. O pelourinho com as armas de Portugal foi reposto na praça. Durante muito tempo, ficou deslocado para a Rua da Bela Vista, velha Rua da Amargura, e não se sabe se a designação vem dos castigos infligidos aos escravos, se do facto de ser daqui que se faziam as últimas despedidas dos que partiam para o Reino. Muitos jovens iam estudar para Coimbra, e em grande parte dos casos ficavam-se mesmo pela Europa… S. Matias está em ruínas, e conta-se mesmo que um novo rico de nome Sousandrade teria mandado demolir parte da torre para poder ter melhor vista do seu sobrado. As fazendas em redor chegaram a ter dez mil escravos no momento alto da produção do algodão, em meados do século XIX. Oitenta e uma fazendas de cereais, vinte e dois engenhos de açúcar, vinte e quatro fazendas de gado e cem salinas, eis os números da glória de Alcântara. Nem as epidemias de varíola e de cólera na passagem dos séculos XVIII e XIX impediram este progresso. Havia quem pensasse que a riqueza da cidade seria eterna. Montello ajuda-nos a reconstituir a vida: “Por estas calçadas compridas, ao pé dos sobrados que rodeiam o largo, retiniram esporas de cavaleiros, tacões de botas de soldados e sapatões ferrados de graves ouvidores. Estas pedras foram pisadas por sinhás donas e sinhazinhas. Nelas também estalou o pleque-pleque das sandálias de seda das negras de cintura fina, peito cheio e bunda redonda, que não se deitavam com brancos, negros e mulatos de outro lugar. E junto ao meio-fio, ainda se descobrem as argolas de ferro onde se amarravam os cavalos arreados de prata”.
Em cada sobrado há uma história para contar: amores contrariados, cumplicidades de escravos e senhores, vitórias e derrotas, tiranias e liberalidades. A pouco e pouco, o sonho foi-se desvanecendo. Acabou a escravatura, as técnicas mudaram, a guerra da Secessão americana teve o seu fim e a concorrência do algodão tornou o progresso insustentável. A independência, o melhor acesso de transportes, tudo levou a que o final do século XIX tenha sido um pesadelo. A cidade começou a ser abandonada e depois foi saqueada. Os antigos senhores foram substituídos pelos filhos e netos dos escravos… Este é o pano de fundo de Noite Sobre Alcântara. Natalino e Maria Olívia acompanham-nos. São os verdadeiros protagonistas nesta cidade cheia de espíritos. A pouco e pouco, a cidade vai desaparecendo, literalmente, e Natalino descobre o que antes não suspeita, mas que vai mudar tudo na sua vida, tem um filho homem de uma mulher casada com outro…
E encontramos os dois palácios inacabados dos barões de Mearim e Pindaré. Porquê? O Imperador D. Pedro II poderia ter sido a salvação da cidade decadente, se na vinda ou na ida de uma viagem aos Estados Unidos pudesse ter parado no Maranhão. Visitaria Alcântara e faria jus à sua glória. “Se vier temos de estar preparados”. O barão de Mearim era o chefe do Partido conservador e o barão de Pindaré o chefe do Partido liberal. Ambos se aprestaram a receber D. Pedro de Alcântara. E as construções começaram, a cem metros uma da outra. Vemo-las ainda hoje. São ruínas, são casas imperfeitas e inacabadas. “E se não vier?” – perguntava-se na cidade. “Ficamos de consciência tranquila: cumprimos o nosso dever”. A história, quase caricata, é a ilustração da decadência. E o Imperador não foi e as ruínas das “suas” casas ficaram por lá até hoje são motivo de visita e de ironia.
Na rua Grande, junto aos dois palácios inacabados, voltámos a tomar o ónibus improvisado. E olhámos o longe da Baía de São Marcos, o Maranhão das águas. Descemos a ladeira do Jacaré, lembrando o último diálogo de Natalino e de Maria Olívia. “- Vamos juntos para São Luís?”. “- Não, Natalino. Já lhe disse que fico. Alguns têm de ficar. Vim para lhe dizer adeus”… Alguns têm de ficar!
Por ocasião da preparação dos duzentos anos da independência do Brasil referimos três obras que permitem compreender a realidade cultural brasileira – da autoria de Jaime Cortesão, António Cândido e Celso Lafer.
ENTENDER A FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL Jaime Cortesão (1884-1960) foi um dos portugueses que melhor compreendeu o Brasil, onde viveu o período mais fecundo do seu exílio político. A sua obra é prolífera, permitindo-nos escolher como referêncial “Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil” (Portugália Editora, 2 volumes, 1966), onde encontramos uma análise muito rica da génese do movimento Bandeirante, sobre a política audaciosa de D. João IV no Brasil, tantas vezes pouco lembrada, mas decisiva para a unidade territorial do território, além da consideração da figura de António Raposo Tavares (1598-1659), nascido em Mértola e chegado a S. Paulo em 1618, na comunidade cultural luso-brasileira, quer no plano nacional no Brasil e em Portugal, quer no contexto internacional, como precursor do conceito de Estado moderno. Encontramos dois “bandeirismos” que se completam, na expressão do historiador: «um luso de raiz, espontâneo ou oficializado, implícito, aliás, em toda a história dos descobrimentos e conquistas dos portugueses; outro misto, desencadeando-se sem freio com o vigor rompente das forças naturais, moldado apenas aos acidentes e grandes sulcos geográficos do território; obedecendo a necessidades económicas primárias…». A obra de J. Cortesão é magnífica, de uma assinalável probidade histórica, mostrando a tensão entre duas influências que se digladiaram, bandeirantes e jesuítas, da qual resultaria a grande unidade brasileira. O percurso das bandeiras de Raposo Tavares, de 12 mil quilómetros em 4 anos, desde S. Paulo até Belém do Pará, rompendo o meridiano de Tordesilhas constitui uma das grandes epopeias em prol do conhecimento do mundo desconhecido. Sem pôr em causa a violência, os conflitos, a contradição entre a diplomacia oficial e as ações de facto, o historiador procura dar-nos nota sobre o modo como ocorreu a formação territorial do Brasil, com todas as tragédias e vicissitudes.
A GÉNESE DA LITERATURA BRASILEIRA A obra mais marcante de António Cândido de Mello e Souza (1918-2017) é a “Formação da Literatura Brasileira” (1959), que influenciou várias gerações de professores e intelectuais, permitindo entender a encruzilhada plural de influências da cultura brasileira, como ponte entre diferentes gerações – aproximando Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Usando o método dialético e comparatístico, a partir da sua formação sociológica, pôde dar uma nova luz para a compreensão do caráter poliédrico da poderosa criação literária e cultural do Brasil. Antonio Cândido chama a atenção para os arrabaldes do trabalho crítico e para as razões que determinam de que maneira somos levados a encontrar, conhecer e amar as obras que se tornam prediletas, “sobretudo quando nos fazem companhia pela vida toda numa sucessão de leituras”. Por isso, sobre Darcy Ribeiro (1922-1997), recorda as três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu Estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, referindo que “elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimónias rotineiras”. E assim se incorporavam “os pais dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação”.
A POLÍTICA EXTERIOR DO BRASIL Celso Lafer (1941) é, entre os contemporâneos um autor importante para a compreensão do Brasil. Discípulo de Hannah Arendt e de Norberto Bobbio, tem desenvolvido a sua ação intelectual em torno da relação entre Ética e Política, entre valores e meios técnicos, a partir da exigência de uma racionalidade pública tornada essência do desenvolvimento. Escreveu “Paradoxos e Possibilidades – Estudos sobre a Ordem Mundial e sobre a política exterior do Brasil num sistema internacional em transformação” (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982). Como o seu amigo Hélio Jaguaribe (1923-2018), considera fundamental a convertibilidade do valor da cultura em capacidade criadora, segundo a flexibilidade de “geometrias variáveis”, numa lógica de integração aberta e de uma democracia social complexa. Razão e vontade exigem um compromisso ético que marca os limites do exercício dos dois fatores. Depois do fim da guerra fria prevaleceu um sistema de polaridades difusas, modeladas pelo jogo de duas forças profundas: as centrípetas de unificação e globalização e as centrífugas de fragmentação. Quando lemos “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), compreendemos que a obra se encontra na encruzilhada crítica de obras referenciais como “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre (1900-1987) e da “Formação do Brasil Contemporâneo” de Caio Prado Júnior (1907-1990). Como salienta António Cândido: «trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso afetivo – são pares que o autor destaca no modo de ser ou na estrutura social e política, para analisar e compreender o Brasil e os brasileiros». O tempo confirmou a necessidade de uma análise da realidade brasileira mercê da justaposição de fatores contraditórios – ex parte principis e ex parte populi. Deste modo, poderemos entender que o desafio atual do contexto brasileira se relaciona com a qualidade da democracia e com a eficiência dos instrumentos política de legitimidade, representação e participação.
1. Resta a mágica da tolerância, tida como a grande mágica do mundo lusófono, sinónimo de cordialidade, tolerância com o diferente, com o estranho, com o incomum, com o inusitado, mas também tolerância capaz de mudar o mundo.
Escreve Darc Costa: “Devemos nos orgulhar e glorificar os valores do mundo luso, nossa tolerância, a brandura de nossos costumes, o nosso eclético venerar, a alegria simples que todos que vivem no mundo luso têm mesmo na miséria, e um certo “savoir vivre”, que jamais perdemos nas piores circunstâncias e cuja visão e conhecimento deixam perplexos e atónitos qualquer estrangeiro. Do mundo luso se tem uma mensagem única de esperança: o sinal que a inteligência humana é capaz de saltar por cima das adversidades e se integrar na compreensão do universo total. Do mundo luso vem a possibilidade que temos como género de ousar, aventurar. Somos diferentes e somos especiais. Nós fomos, somos e seremos a mundialização. Este é o nosso destino manifesto” (ibidem, p. 103).
Conclui que o discurso atual da globalização procura impor uma dominação das ideias, dos mercados e das culturas, pela ideia do espaço único. Globalização tida como um discurso de dominação, um discurso que se manipula ou pode manipular, contrário à mundialização, embora seja a versão corrente da mundialização. O que se vê hoje é “uma ideologia, a chamada globalização, revestida num mesmo, monótono e único discurso” (ibidem, p. 109). Por sua vez, a identidade cultural, como a que existe e subsiste no mundo lusófono, tem um passado comum como forma de criar solidariedade, ao contrário da identidade global que não tem quaisquer lembranças para convocar ou reivindicar a consciência formadora de um grupo, pelo que não existe identidade global. Assim, ao invés da globalização, a mundialização não afetou as relações primitivas, continuando a existir as relações centro e periferia sem mudanças nos paradigmas.
Sintetizando: “a mundialização é, antes de tudo, um processo de convivência, …de tolerância, …libertação, de construção de um mundo cada vez melhor. Um processo que continua avançando, apesar do seu uso por um discurso falso, o discurso da globalização. Contudo, o seu término, ou seja, a construção de uma única pátria humana, exige tempo e um demiurgo com características especiais que, no mundo atual, reafirmamos só existe no nosso mundo, o mundo luso” (ibidem, p. 112).
2. Trata-se de uma visão bondosa, bem intencionada, romântica e utópica, algo mitificada, que tem os seus défices, a começar pela ausência de espaço e mentalidade do atual mundo lusófono, entre muros, desde o político, à liberdade de expressão, informação e pensamento, carência de sentido crítico, fenómenos de resistência à mudança, com culto do autoritarismo, do temor reverencial, compadrios e corporizações não tolerantes da criatividade, inovação, evolução e exercício do contraditório, fazendo jus do posso, quero e mando, em desabono da alegada mágica da tolerância, mais patente porque usualmente não posto em causa o poder instituído e a segurança em detrimento da liberdade pela liberdade, gerando um pacifismo per si saudável, é certo, mas limitado.
No país do autor, o Brasil, do mesmo modo que se gosta de o apresentar, por vezes mitificar, como aberto à cordialidade, lhaneza, generosidade, hospitalidade, à diversidade, ao jeitinho afetuoso e informal brasileiro, um idílio, terra de oportunidades e da promissão, uma nação avessa a conflitos, de convivência de géneros, etnias e raças, convém não omitir que tais generalizações nem sempre sobrevivem a um confronto com a violência estrutural (urbana e no campo), ao autoritarismo de vestígios escravocratas, ao mandonismo, coronelismo, desigualdade social e de intolerância, atingindo dos mais altos índices mundiais a nível de insegurança, criminalidade violenta e prisional, desde roubos, furtos, assassínios, latrocínio, narcotráfico, apagamento de populações indígenas, numa epidemia de violência que é o inverso da mágica da tolerância.
Mas é bom, para o futuro, tentarmos superar a fase de estarmos permanentemente malcontentes com aquilo que somos, sabendo valorizar capacidades com potencial positivo em termos de recebimento, absorção, integração e de exportação.
O estratega e neoluso-tropicalista brasileiro Darc Costa, após distinguir entre mundialização (o facto, aquilo que se constata) e globalização (um discurso, aquilo que se pode manipular), defende que os lusos e seus descendentes são os únicos artesãos possíveis da verdadeira mundialização.
Aponta como mágicas mais relevantes da cultura lusa, que lhe permitirão levar adiante a mundialização: a mágica da antropofagia, da mestiçagem, do sincretismo e a da tolerância (“Mundialização, Mundo Luso e Globalização”, Revista de Relações Internacionais da Universidade do Porto, n.º 4, 2003).
Mágica da Antropofagia - “é a propriedade que possuímos, no mundo luso, de apropriarmos, transformando, toda a manifestação cultural exógena”.
Vê como reducionista a explicação de que se trata do resultado da arte que a cultura lusa desenvolveu de adaptar valores e técnicas europeias aos trópicos em geral. Tem-na como uma caraterística única da cultura lusa, dado que nenhuma outra a detém, pelo menos em tal grau. Após afirmar que o lusitano era ibero, celta, fenício, cartaginês, grego, romano, judeu, suevo, visigodo, mouro, cruzado francês e inglês, numa progressiva e paciente assimilação das suas realizações, conclui que este amálgama progressivo dotou os portugueses dos elementos precisos para processar o diferente e torná-lo o igual, quando não o comum”. Dá como exemplo a constituição da cultura luso-brasileira. E acrescenta: “A capacidade de deglutir, de adaptar, de transformar de forma criativa e criadora o que lhe é apresentado, ou lhe é imposto, constitui-se no maior património hoje do povo brasileiro. ... No Brasil, assim como no mundo luso, nada se perde, tudo se transforma em algo que se utiliza. No futuro, assim como o foi no passado, ser mundializado é ser antropofágico” (ibidem, pp. 100, 101).
Mágica da Mestiçagem - é a propriedade que têm os lusófonos do mundo luso de deter diferentes graus de morenidade, em que surge como exemplo paradigmático o Brasil e em que foi e é referência incontornável o contributo de Gilberto Freyre.
Mágica do Sincretismo - é a completa permissividade religiosa. Embora o espaço da lusofonia seja um dos maiores espaços católicos do mundo, detendo o Brasil o lugar cimeiro da catolicidade mundial como país, não somos arrebatados pela mística católica, nem pela santidade. O catolicismo, e respetiva religiosidade, expressa-se no mundo lusófono muito mais por manifestações externas, por procissões e festas populares, dos S. Joões folgazeiros do Porto, dos Santo Antónios casamenteiros de Lisboa, dos Impérios do Espírito Santo, dos amuletos que trazemos, dos bentinhos espalhados pelas gavetas ou trazidos na mala. Com este catolicismo caminham juntos o espiritismo, o candomblé, a quimbanda e os evangélicos protestantes, tudo se miscigenando num caudal de credos e de fé onde impera a mais ampla tolerância religiosa e o mais claro sincretismo religioso. Este sincretismo aceita, quando não incentiva, o esoterismo, ou pretensamente premonitórias do futuro, tipo astrologia, o taro e os búzios.
Trata-se de um mundo luso como que detentor da fé universal, a que, em relação a Portugal, não será porventura alheio o facto de o nosso santo mais popular ser, ao mesmo tempo, o mais internacional (Santo António de Lisboa, é mais conhecido internacionalmente como de Pádua, porque por Itália se santificou, embora nascido em Portugal).
Para além da perspetiva unitária do mundo via diversidade, as navegações portuguesas abriram uma brecha no conceito restrito de humanidade até então dominante na Europa.
A Europa, incluindo a eclesial, ensinada nas escolas, não aceitava que o Homem fosse um ser existente para além do mundo europeu, da romanidade e, quando muito, das periferias africana e asiática. A antropologia europeia do século XV era restritiva, sendo tido como Homem o do mundo arábico-judeo-cristão, do mundo romano e, no máximo, o das regiões periféricas europeias. Pierre d´Ailly, o sábio, seguido no ensino, ensinava que, para além da periferia, o que se achava, em termos de seres vivos, lá para os extremos da terra, eram uns “seres selvagens”,“difícil de precisar se são homens ou bestas”. Para além dos mares pensava-se que houvesse seres que, mesmo parecendo homens, haviam de ser bestas. O episódio do Adamastor, em Os Lusíadas, representa a alegoria deste temor, a figura do “monstro humano”, ensinada por D´Ailly.
Era a tese oficial da Europa, que justificava caçar, dizimar, ocupar, deter, prender, sem problemas de consciência. Foi esta conceção que justificou as hecatombes na América, via extermínio dos Astecas, Maias, Incas, Apaches, entre outros.
Tese corroborada pela teoria aristotélica da inferioridade natural de algumas raças, adaptada à legalização da escravatura, tema enxertado na história do Antigo Testamento da maldição de servidão perpétua rogada por Noé à descendência de Canaã, filho de Cam, de quem se pensava que descendiam os negros (Génesis IX, 25). Outros afirmavam que descendiam de Caim “que havia sido amaldiçoado pelo próprio Deus”. Teólogos e leigos estavam convencidos que a escravatura negra era autorizada pela Bíblia, apesar de alguns, por razões humanitárias, censurarem o tratamento cruel infligido aos escravos.
Portugal não foi exceção à regra, daí a existência de traficantes de escravos ou negreiros, veleiros e mercadores incluindo, não poucas vezes, a colaboração de indígenas com a mesma origem das próprias vítimas, embora desde o início das viagens houvesse vozes portadoras de uma consciência humanista. Para narrar a chegada e a repartição dos escravos africanos a Lagos, no Algarve, o cronista régio Gomes Anes de Azurara entra na narração com um prévio clamor, tipo ato de penitência: “Eu te rogo (ó tu celestial Padre) que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência… E se as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto, conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta humanal natureza, vendo assim diante dos meus olhos aquesta miserável campanha, lembrando-se de que são da geração dos filhos de Adão?” (Crónica da Guiné, cap. XXV).
Álvaro Velho, roteirista da primeira viagem de Vasco da Gama, ao chegar à Guiné, tratou de vincar, para a Europa, que os seus habitantes eram homens com dignidade anotando, num traço de ternura e simpatia para com aqueles povos: “e têm muitos cães como os de Portugal, e assim mesmo ladram”. Um sinal para se compreender a identidade na diferença e que aquela gente era ser humano, tanto assim que tais homens (os da Guiné), são iguais aos daí, que até têm cães, que são iguais e ladram como os daí. No teto da Capela Sistina, Miguel Ângelo pintou uma alegoria: o português a elevar o negro africano.
A maior dificuldade, porém, viveu-se na América, onde pessoas “mui avisadas” diziam que os índios “não eram próximos”, ou seja, não eram seres humanos, “e porfiam-no muito, nem têm para si que estes são homens como nós” (Padre Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil). Os conquistadores queriam mão de obra índia, gratuita. Os frades queriam as almas dos índios, vendo neles homens. Os mercadores e ocupantes de terras queriam súbditos, vendo neles “bestas”, tendo apoio no reino de Castela onde predominava a tese oficial da não humanidade dos índios americanos.
Não admira, assim, que o que causou estranheza à Europa foram os testemunhos a favor dos índios (entre os espanhóis, refiram-se Francisco Vitória, Bartolomé De Las Casas e Francisco Suarez).
Significativa é a Carta do Achamento de Pêro Vaz de Caminha, onde o cronista régio do Brasil tem como principal missão informar que os índios brasileiros são homens, seres humanos: “segundo o que a mim e a todos pareceu esta gente, não lhes falece outra cousa para ser toda cristã”. E acrescenta: “parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos”.
No filme “A Missão”, de Roland Joffé, a mensagem é que os índios são pessoas com dignidade humana, com alma, alfabetizados e cristianizados pelos jesuítas, que os ajudaram a resistir contra quem os tinha como coisas e os queria como mão de obra escrava.
Os índios deixam de ser coisas, porque são homens, logo podem ser cristianizados, pelo que também não podiam ser obrigados a trabalhar, porque eram pessoas, indo-se então buscar os africanos como mão de obra escrava, justificando-se a escravatura africana.
Vi “António das Mortes” no cinema Flamingo, no Lobito. A autoria é do sincrético Glauber Rocha, tão matador de cangaceiros que fez um filme para matar Corisco, outro para matar Coirana. Mal sabia, nesse ano de independência, quem era o brasileiro que filmava sangue como só Godard filmou sangue e que encostava cada cena a canções que, ali onde elas cantavam, qualquer um chorava.
“António das Mortes”, também chamado “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, tinha muitas canções. Uma, “Dar a Volta Por Cima”, é inesquecível. Se algum dia tiver de ajudar alguém que precise de ajuda mas não queira que lhe dêem a mão, estenda-lhe essa canção. Parece críptico: mas basta ouvir os versos falando de um homem de moral que morde a poeira do chão e percebe-se logo.
António é jagunço, assassino: a soldo de coronéis para matar cangaceiros descomandados. O Brasil do passado, talvez, e Deus queira que não, o Brasil do futuro. Como o jagunço, também o cangaceiro pode ser um criminoso a mando. Só que, quando deixa de servir um senhor, o cangaceiro continua criminoso e converte-se num telúrico espírito livre. O cangaceiro brota do seco Nordeste como o mais obstinado dos arbustos. O crime dele agarra-se ao sertão, à crespa paisagem. A sede dele sabe onde encontrar a sobrante, rara, gota de água. O cangaceiro é gémeo de uma Natureza miserável e inóspita. Comungam a escassez, o desapossamento.
Uma sebenta capa cinzenta a cobrir-lhe o corpo vasto, espingarda assassina colada à mão, António, que em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” já matara Corisco, herdeiro de Lampião o príncipe dos cangaceiros, volta agora e volta para matar Coirana, o último rebelde. Porque lhe pagam. É um jagunço: serve os que têm, matando os que nada têm. É esse o maniqueísmo antropofágico do filme de Glauber. Como num western cruel de Peckinpah. Com mais música, uma música inocente e impiedosa, camiliana. De cordel.
Quando a voz do sambista, que dava pelo estranho nome de Noite Ilustrada, canta “dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”, vemos António na sua estrada de Damasco, no meio de camiões de luz, a sofrer a conversão e a mudar de campo. Os negócios de política passam a ser com os outros, os dele só com Deus, o Deus místico dos que nada têm.
Na única, brevíssima conversa que tive com Glauber devia ter-lhe perguntado porque é que a lágrima que no cinema do Lobito juro ter visto António chorar, nunca mais a encontrei ao rever o filme. Glauber ligara do hospital para a Cinemateca, a dias de morrer tão jovem. Atendi-o por acidente e ouvi-lhe mais a nítida respiração arfante do que a longínqua voz. Não o podia cansar.
Ainda hoje procuro a lágrima que António das Mortes chorou só para mim num cinema de Angola. Uma lágrima de dois lados. De um lado penitência, do outro, esperança.
A noite de 26 de abril foi a mais dolorosa desde o seu internamento com Covid 19.
E assim foi chegando o seu momento do tempo final do mundo. Que enfim, receba este nosso adeus, num até sempre!
Aldir, compositor, escritor, formado em Medicina, consagrou-se como “ourives do palavreado” por Dorival Caymmi. É também um dos compositores mais gravados por Elis Regina.
Em 2006 publicou o livro "Rua dos Artistas e transversais" pela chancela da Agir. Neste livro reuniram-se todas as suas inúmeras crónicas.
Aldir Blanc foi um homem à frente do seu tempo, corajoso, tudo denunciando, procurando ater-se ao significado da linguagem das ruas. Nunca viveu à sombra do medo de colocar o dedo nas feridas, mesmo sob condições muito adversas. Agora com as novas ameaças à democracia no país de Aldir Blanc, quando ele fez 70 anos disse, numa entrevista:
Eu vivo de adiantamentos, empréstimos e tal. Mas há muito canalha com casa em Búzios construída com os meus direitos de autor."
E noutra altura:
Quando uma escola de samba vence subvencionada pela mais antiga ditadura africana, o esquema todo está podre. Pode ser que a rua ajude, mas desconfio que não será fácil porque, como se viu recentemente em política, tudo é manipulado.
Amante do jazz, os seus favoritos, Duke Ellington, Coltrane e Mingus, nunca serão esquecidos nas horas de compor. Autor de tantos clássicos como “Mestre-sala dos Mares” ou “O Bêbado e o Equilibrista” Aldir está para sempre entre nós!
Aldir Blanc, verdadeiro património brasileiro, aos 73 anos, tem vivido num profundo e sabido desconforto material. Aldir, sempre tão lúcido, lembremos que o lema dele tem sido "colocar no mesmo barco realidade e poesia, rindo da própria agonia".
Lê-se que os seus amigos e familiares “fizeram uma vaquinha” para o ajudar nestes tempos de doença a fim de poder ser transferido para um outro hospital mais preparado para Covid 19. Solicitavam qualquer doação de qualquer quantia que junta a outra o pudessem ajudar.
Ouvi na TSF que há tempos, ele teria sublinhado deste modo, o facto de ter feito medicina e de se ter especializado em psiquiatria:
"Eu talvez tenha feito boa psiquiatria na época porque eu era, antes, músico, percussionista e letrista".
E se não como explicar a letra “Resposta ao Tempo” de Aldir Blanc?
"Resposta ao Tempo"
Batidas na porta da frente É o tempo Eu bebo um pouquinho pra ter Argumento Mas fico sem jeito, calado Ele ri Ele zomba do quanto eu chorei Porque sabe passar
E eu não sei
Num dia azul de verão sinto vento Há folhas no meu coração é o tempo Recordo um amor que eu perdi Ele ri Diz que somos iguais Se eu notei Pois não sabe ficar E eu também não sei
E gira em volta de mim Sussurra que apaga os caminhos Que amores terminam no escuro Sozinhos
Respondo que ele aprisiona Eu liberto Que ele adormece as paixões E eu desperto E o tempo se rói com inveja De mim Me vigia querendo aprender Como eu morro de amor Pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança Que não soube amadurecer Eu posso, ele não vai poder Me esquecer
“Resposta ao tempo”, um clássico, nunca não parou de atrair grandes vozes, como Milton Nascimento, Leila Pinheiro, Simone e Fafá de Belém.
E eis um mundo que muitos conhecem:
Um mundo mesmo
Cristovão Bastos / Chico Buarque / Paulo César Pinheiro / Paulinho da Viola / Abel Silva / Elton Medeiros
Edu Lobo ou Paulinho da Viola atrevo-me a dizer, que todos em força de espírito pediriam aos deuses que o apelo fosse até à sua cama de hospital e a canção fosse
Me Dá A Penúltima
Eu gosto quando alvorece Porque parece que está anoitecendo E gost quando anoitece,que só vendo Porque penso que alvorece E então parece que eu pude Mais uma vez,outra noite, Reviver a juventude (…)
Aldir, que contigo também aprendi o quanto sempre estive atraída por um ponto distante, íman à Bossa Nova também no Canecão.