BRUXELAS, 1976
Rue Belliard, Berlaymont, Grand Place – na Primavera amena de 1976, tive o gosto de participar numa delegação portuguesa que visitou as instituições comunitárias. Paulo de Pitta e Cunha coordenava o grupo, com eficácia e entusiasmo. Estava em causa a preparação da adesão de Portugal às Comunidades Europeias – com Aníbal Cavaco Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Jorge Miranda, Pedro Roseta… E aí nos encontrámos com o saudoso Camilo Martins de Oliveira – incansável cicerone no labirinto comunitário. Quando tive a notícia da inesperada morte de Paulo de Pitta e Cunha veio-me à memória essa inesquecível missão. E a essa lembrança juntaram-se muitas outras, como tive oportunidade de recordar com o filho Tiago, em S. Sebastião da Pedreira.
Pitta e Cunha foi meu professor no antigo Curso Complementar e sob a sua direção iniciei funções como Assistente na Faculdade de Direito, depois do concurso público de 1977. E volto à lembrança de Bruxelas e às esperanças e expectativas sobre a ligação necessária entre a construção da democracia e a opção europeia. Entre duas reuniões era esse o tema fundamental das nossas conversas – poder garantir que a nova Constituição portuguesa, que se aprovaria dentro de poucos dias, pudesse ser um fator de equidade e de eficiência, de cidadania e de pluralismo. Na transição dos anos sessenta e setenta, a adesão à AELE-EFTA constituíra um impulso decisivo (como se demonstraria no médio prazo) para a abertura política. Pode dizer-se hoje que nessa negociação se iniciou verdadeiramente a democratização. E hoje, com o triste caminho do Brexit, ficámos longe do que muitos considerámos natural – a convergência luso-britânica, que foi decisiva quer no sucesso da EFTA, quer, depois da adesão do Reino Unido às Comunidades Europeias, na negociação para a entrada dos países ibéricos. Com a argúcia e o sentido prático que se lhe conhecia, fomos ouvindo os ecos do seu ceticismo, e muitos dos seus receios confirmaram-se. Apesar de tudo, a integração dos Estados da Península Ibérica foi a que melhores resultados obteve, quer na economia quer na política.
E as memórias sucedem-se, avultando o papel decisivo que Paulo de Pitta e Cunha desempenhou na criação do moderno sistema fiscal português, superando os velhos sistemas herdados das cédulas da décima de guerra de 1641 (que ainda estudei), da reforma de Salazar dos rendimentos normais e da estrutura de Teixeira Ribeiro. Foi ele quem modernizou o sistema tributário português, europeizando-o – e é preciso que as suas lições sejam mais ouvidas, para que muitos erros cometidos sejam superados e para que a justiça e a equidade prevaleçam sobre a tentação exclusiva do crescimento das receitas. Como sempre, ao longo da vida, continuava apaixonado pelo estudo da economia internacional, sobretudo num momento em que a incerteza estava na ordem do dia – após a crise financeira, a pandemia e guerra, numa conjuntura ditada pelo regresso da inflação e da subida dos juros. E a evolução da guerra demonstrava a importância renovada da União Europeia, como instância em que a economia e a política se encontram cada vez mais. A independência política dos Estados modernos é complexa, por isso afirmava com grande coerência: “Advirta-se (…) que a revisão (dos Tratados) constitui um processo moroso e não isento de riscos. E sublinhe-se que o êxito desta progressão da integração depende da retomada de um espírito de solidariedade, o qual esteve bem vivo nos primórdios da construção europeia, mas que hoje, infelizmente, se encontra ofuscado pela reafirmação dos egoísmos nacionais”. Reli, nos últimos dias, os escritos de Pitta e Cunha. Encontrei uma coerência irrepreensível. E o seu sentido crítico merece especial atenção, em nome do equilíbrio entre os elementos nacionais e supranacionais, públicos e privados, de modo a que possamos ser mais produtivos e menos dependentes, em nome do desenvolvimento humano.
Guilherme d’Oliveira Martins