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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO XVI

Kenroku-en Garden em Kanazawa.jpg

 

    Mudou certamente, quiçá mais do que os fugidios tempos, o modo em que se dizem os pensamentos e o seu sentir. Mas, do século X de Sei Shonagon ao XIV de Urabe Kenko, através de tantas mudanças, manteve-se o apego nipónico à natureza e seus sinais, o gosto literário das lides amorosas, e o seu culto pela mulher enquanto adorno, ou beleza, ou sedução, tal como a tentação subtil da fuga para a solidão eremítica, em busca do possível buda, mesmo que as orações e purificações rituais se pudessem fazer em templos shintoístas. 

   É bom fazer-se um retiro secreto em qualquer templo budista ou num santuário shinto... Retirar-me num templo perdido nas montanhas e servir Buda. Acabam-se os aborrecimentos e as próprias máculas do coração. Sinto-me purificado...

   Mas, como subtilmente observa Charles Grosbois, seu tradutor, Kenko não condena a paixão, «sal da vida». Descreve complacentemente os arroubos do amor, «o amante molhado de orvalho e de geada, perdido, caminhando sem destino»... Reprova os desejos sensuais, mas diverte-se com a anedota do mágico que perde os seus poderes só por vislumbrar, entre as nuvens, as belas pernas brancas de uma lavadeira... 

   A beleza feminina é apreciada, e o monge Kenko fala das mulheres sem embaraço, como neste trecho: Quanto à mulher, é a beleza do seu cabelo que atrai o olhar. A personalidade de uma mulher e o seu carácter reconhecem-se sobretudo no seu modo de falar, mesmo se ela estiver encoberta por qualquer divisória. Em qualquer ocasião, pelas suas próprias maneiras, ela seduz o coração do homem. Ignorando um sono repousado, não se poupa a qualquer pena e suporta as coisas menos suportáveis, já que o seu coração pensa no amor... ... O que também poderá querer dizer que quem não saborear a vida amorosa será como uma taça de cristal de fundo roto...

   [Abro aqui um parêntese para recordar um trecho do Saint Dominique de Georges Bernanos, que seguidamente traduzo. O santo está na hora da morte:

    Os frades juntam-se para apanhar, se possível, algo da palavra que vai enfraquecendo.Domingos faz um gesto com a mão,eles aproximam-se. Pela humildade do gesto, percebem que tem qualquer confissão pública para fazer, e que sente a  pesar-lhe no coração. Aquele que apareceu ao papa Inocente III num sonho em que levava aos ombros a Igreja de Latrão, e que fora conselheiro de pontífices e de príncipes, árbitro de tantos destinos, mestre e legislador de tantas consciências, terá descoberto, naquele solene instante, com terror, o carácter abstracto, quase terrível, da sua vocação doutrinária? Que escrúpulo o atormentará?

   Põe nos seus irmãos os olhos azuis, o olhar inteiro. «Acuso-me  -  diz o mestre dos Pregadores  -  de sempre ter preferido, à conversa dos velhos, a conversa das mulheres jovens».

   E Bernanos conclui assim a sua lembrança de São Domingos de Gusmão : 

   «A religião do meu filho Domingos é um delicioso jardim, imenso, alegre e perfumado»  -  disse certo dia Nosso Senhor a Santa Catarina de Sena, que o reporta.]

   Pelo outro lado da vida, o monge budista japonês descobre que escolher a frugalidade, recusar qualquer luxo, não possuir riquezas, nem cobiçar os bens deste mundo, é, para todo o ser  humano, o verdadeiro bem. Desde a antiguidade que é raro um sábio ter conhecido a opulência...

   Dilema ou paradoxo, a nossa vida é feita de opções possíveis que nos vão espreitando, posto que, como já disseram os nossos poetas maiores, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...   ...todo o mundo é composto de mudança...

   Trânsfugas da natureza, como nos definiu Ortega y Gasset, nela ficamos todavia enraizados, a ponto tal que, contemplando-a, nos entendemos melhor. Assim escreve Urabe Kenko:

   A sequência mutável das estações revela todas as coisas comoventes. «Intimidade comovente com as coisas, no outono», dirá cada um, «mais sensível do que nunca». É, sem dúvida, verdade, mas é ainda maior a alegria que nasce no coração perante os espectáculos da primavera. No próprio canto dos pássaros ressoa a renovação ; ao sereno raiar do sol surgem os rebentos das sebes. Já a primavera se manifesta : estende-se a bruma, chega a hora em que as flores finalmente desabrocham. Mas também está aí a chuva e o vento incessante que logo as dispersa. Até na verdura frondosa o nosso coração encontra mil tormentos...

   Este monge budista associa sempre o sentimento da natureza aos seus sentimentos amorosos : «Uma noite perfumada pelo olor das ameixeiras, uma lua velada; a hesitação, em pé, junto à cerca. A lua no céu de alva, quando saímos para o parque imperial e sacudimos o orvalho da relva : quem nunca passou por tudo isso, melhor faria em renunciar às doçuras do amor... 

   ... O ser humano será, eternamente, um escravo medroso da sorte, boa ou má, procurando apenas encontrar o prazer, eliminando a dor. O prazer : amar e apegar-se, busca sem fim...

   Os desejos nascem de um contrassenso fundamental sobre o valor das coisas, e causam muita infelicidade. Mais vale não lhes obedecer.

   Mas a interrogação, a perplexidade humana, a própria vontade de bem querer, afinal, talvez não tenham lei nem resposta certa, e certamente são uma cadeia infinita e misteriosa :

   Um eremita, cujo nome me escapa, disse : «Nada me prende já ao mundo, mas todavia continuo afeito à beleza fugidia das estações no céu». Dito que tem toda a minha simpatia.

   Quando tinha sete anos, fiz esta pergunta a meu pai : «Quem é Buda?» Meu pai respondeu : «É um homem que se tornou Buda». Voltei a perguntar : «Como é que esse homem se tornou Buda?» -  «Tornou-se Buda pelos ensinamentos de um Buda», respondeu o meu pai. Perguntei : « Quem era esse Buda que ensinou o outro?»  -  «Foi assim também pelo ensinamento de um precedente Buda!», respondeu o meu pai. Perguntei ainda : «Quem foi o primeiro Buda que começou a ensinar?» Então o meu pai disse : «Teria ele caído do céu, como a chuva, ou cresceu da terra?» E pôs-se a rir.

   Contou a anedota a muita gente. «Fui entalado pelas perguntas do meu filho, até não conseguir responder-lhe»...

   Seja qual for a nossa fé e a nossa cultura, há ânsias e perguntas que nos mordem sempre. Mas também creio que a descoberta constante da beleza na inconsistência ou imperfeição das coisas, e de nós próprios, nos ajuda a vislumbrar aquilo que ainda não alcança o nosso olhar.

    

                                                                    Camilo Martins de Oliveira