Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ironia das ironias! Bulhão Pato é conhecido por algo que não fez, as ameijoas, por um pequeno equívoco, espalhado como falsa notícia. Essas amêijoas não são suas, mas sim uma homenagem (a ele mesmo) do grande João da Matta, o mais célebre dos chefes de cozinha do final do século XIX. Pato era gastrónomo de primeira classe, mas as suas receitas eram de caça, que servia principescamente na casa do Monte da Caparica. Paulo Plantier («O Cozinheiro dos Cozinheiros») dá-nos o menu coevo: Açorda à Andaluza (com azeite Herculano), Perdizes à Castelhana, Arroz opulento e Lebre à Bulhão Pato. Lebres e perdizes são as que Bordalo Pinheiro representa no “Álbum das Glórias”. E João da Matta quis deixar clara a sua admiração pelo seu amigo dedicando-lhe as celebradas amêijoas!
Raimundo António de Bulhão Pato nasceu em Bilbau e morreu no Monte da Caparica (1829-1912), viveu a sua infância no país basco. Em 1837, a família veio para Portugal e em 1845 o jovem inscreveu-se na Escola Politécnica, frequentando, desde muito cedo os meios literários, onde conheceu Herculano, Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho... Com Herculano estabeleceu uma relação intensa, patente nas recordações através das quais conhecemos muitos pormenores biográficos do historiador. Como poeta cultivou a influência romântica. Em 1866 publicou a muito celebrada «Paquita». Apesar dos elogios dos seus contemporâneos, foi como memorialista de primeira água que Bulhão Pato se afirmou. Escritor dotado e de pena fácil dedicou-se ao jornalismo. Amigo de Antero de Quental, sobre este disse: «bem no fundo, Antero foi sempre um romântico. Até no morrer como Werther! No temperamento extremamente sensível, o influxo da educação dos primeiros anos e a natureza do País em que nasceu, desenvolveram-lhe a sensibilidade, e a luta constante. (…) O entusiasmo é bom; mas a crítica é melhor – exclamava ele repetidas vezes. E foi sempre muito mais entusiasta do que um crítico; foi, acima de tudo, um poeta, e como poeta fez a sua obra-prima! Ainda bem!».
Sobre a viagem de Antero de Quental a Nova Iorque, o relato de Bulhão Pato esclarece tudo a propósito da suposta troca com João de Deus. Antero era amigo próximo de Pato, conviviam, nos anos setenta, às quintas-feiras jantavam. «Comia pouco mais que um pintassilgo na sua gaiola; não o atormentava a digestão, que lhe fora tantas vezes cruel! O exercício da palavra, depois do breve jantar, fazia-lhe bem». Pato admirava-o. Sobre a perfeição da verve disse do poeta micaelense: «a língua, que principiava a ser desfeiteada, respeitou-a ele sempre. Percebeu que quanto houvesse moderno, seguindo todas as correntes, numa evolução progressiva, se podia dar dentro dela”. Também Antero estimava Bulhão Pato, de quem disse, em 1873: «literariamente as tuas sátiras são um verdadeiro triunfo; rigor, concisão, simplicidade, - naturalidade. Tens ali versos que hão de ficar na língua». Era um sinal sincero de amiga bondade. O último encontro que houve entre os amigos foi em setembro de 1885, estava Antero em casa de Oliveira Martins no Porto.
A proximidade permite-nos conhecer muitos dos pormenores da vida do mestre Herculano: «viajar (com ele) era, às vezes, ouvir lições de história, na mais elevada, elegante e ao mesmo tempo despretensiosa linguagem”. (…) «Herculano era generoso, mas económico. Comprado Vale de Lobos, aplicou todos os rendimentos ao custeio da propriedade rural e à edificação da casa» (…) «Azeite de prato, como é notório, era coisa que não se conhecia em Portugal”. Foi Herculano quem começou a fabricar o precioso azeite em Vale de Lobos. E Bulhão Pato ainda explica: «Os invejosos mordazes até inventaram que A.H. era homem áspero e brutal no trato. Não conheci ninguém mais sincero, mais simples e ao mesmo tempo mais amorável e sem afetação, delicado».
Um tio distante, editor e cultor de plantas e sementes, Paulo Plantier é autor de uma obra fundamental de Culinária. Falo-vos de «O Cozinheiro dos Cozinheiros» dos anos 1870, reeditadíssimo e esgotadíssimo. Não há gastrónomo que se preze que não deva ter entre os seus canhenhos esta obra preciosa. Hoje respigamos nessa enciclopédia do bom gosto duas preciosas contribuições de escritores célebres. Referimo-nos a António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1816-1878), jornalista prestigiado e autor do célebre romance «O Prato de Arroz Doce», cuja ação decorre no tempo da guerra da Patuleia (1846-47) bem como a Raimundo Bulhão Pato (1828-1912), memorialista exímio, gourmet de caça e nunca de ameijoas (a quem o Mestre João da Mata do Hotel Central dedicou o citado prato do molusco bivalve)
… Mas deixemo-nos de entretantos e entremos nos finalmentes. Comecemos pela carta enviada por Vasconcelos a Plantier, para constar do livro: «Comecemos pelas sardinhas recheadas – Abrem-se e limpam-se interiormente e recheiam-se com cebola picada, salsa e pimentão colorado doce. Este recheio é preparado com azeite e sal refinado. As sardinhas depois de recheadas frigem-se e servem-se. Depois, o Arroz à moda de Valência. Deitam-se na frigideira, com azeite, pimentões verdes, tomates, cebola picada e o sal correspondente e quando estejam meio fritas estas diversas cousas, mistura-se com ela o arroz e conserva-se no lume até estar meio torrado. Então deita-se-lhe água a ferver e faz-se com que parte dela se evapore em duas ou três fervuras. Depois tira-se do lume, coloca-se a certa distância em repouso e serve-se quando o arroz tiver absorvido a água e a calda e tomado a consistência de pudim. E falo da purificação do azeite. Quem não gosta do azeite mal purificado e se queixa do sabor que tem o azeite nacional, pode facilmente remediar esses inconvenientes. É lançar na frigideira uma boa côdea de pão e deixá-la a frigir no azeite. Tire-se depois e sai com ela o mau gosto do azeite. Aí tem meu caro Sr. Plantier, o que eu posso oferecer-lhe para o seu livro. Desculpe a demora e receba os meus agradecimentos pelos figos com que me brindou a minha Josefa que lhe agradece muito. Sou com estima de V. Senhoria amigo afetuoso e grato. (a) A. A. Teixeira de Vasconcelos.
Segue a carta de Bulhão Pato, do Monte da Caparica, o exímio caçador, o memorialista, o amigo de Herculano, com a receita da «Lebre à Bulhão Pato», genuinamente sua: “Esfole-se a lebre, esfregue-se com pimentão e sal; meta-se na vasilha onde deve estar aproveitado o sangue. Vinagre forte e de bom vinho; rodas de cebola, alguns dentes de alho, poucos; uma folha de louro. Como estamos no Monte há de haver um pedacito de chão tratado de horta e na horta um candeeirinho de salsa. Se a encosta próxima for de mato-jardim lá há de estar o aromático tomilho. Venham também uns raminhos de salsa e um tudo nada de tomilho. Passadas doze horas (se forem vinte e quatro não perde) envolva-se a lebre em pranchas finas de bom toucinho. Espeto com ela. De quando em quando constipada à corrente do ar; a espaços borrifada com a vinha e se à falta de sercial ou malvasia algum companheiro previdente tiver trazido uma garrafa de fine Champagne para cortar a água por causa das sezões, minutos antes de vir para a mesa borrife-se a lebre com um copito de cognac. Quente é um assado ótimo e frio um fiambre primoroso”.
É um verdadeiro deleite regressar a este livro recheado de coisas boas de meu tio Paulo.
Ao falar-se, cada vez mais, de património cultural imaterial, temos de considerar a gastronomia e a culinária como matérias fundamentais.
E a verdade é que só podemos compreender as tradições e os costumes cuidando dos alimentos, sejam eles mais ricos ou mais pobres, consoante as circunstâncias, os territórios, as culturas e as economias locais.
Da sopa da pedra ao gaspacho encontramos tudo – desde a abundância à penúria, mas sempre a capacidade humana de superar as dificuldades e constrangimentos… E há a gastronomia popular e a culinária erudita… Há manjares de deuses e literatos.
Se lermos uma das obras-primas da cultura portuguesa gastronómica, percebemos isso mesmo. Falo-vos de «O Cozinheiro dos Cozinheiros», publicado por Paulo Plantier em 1870. Aí encontramos as mais extraordinárias receitas, as suas variantes e a sua história.
Hoje, a sua celebridade é maior no Brasil do que em Portugal, mas lá encontramos as nossas maiores glórias literárias e artísticas. E lá estão, por exemplo, as receitas de caça de Bulhão Pato, o grande memorialista, autor de «Paquita», braço direito de Herculano. E percebemos por que razão as «Ameijoas ditas à Bulhão Pato» não são uma receita do escritor.
De facto, foi João da Matta, o célebre cozinheiro do Hotel Central (o Hotel de «Os Maias») que, em homenagem a Bulhão Pato lhe dedicou o renomado manjar – que, aliás, o literato nunca cozinhou…