Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O “Guia de Portugal” constitui uma obra fundamental, escrita sob o impulso de Raul Proença, a partir de 1924, reeditada e completada na sua versão original pela Fundação Gulbenkian, graças a Santana Dionísio com o grafismo Raul Lino. O país descrito é muito diferente do atual, mas a colaboração de personalidades marcantes da cultura portuguesa faz dos seis volumes, divididos em oito tomos, um precioso instrumento para a compreensão das raízes portuguesas. Jaime Cortesão, Miguel Torga, Jorge Dias, Aquilino Ribeiro, Reinaldo dos Santos, Teixeira de Pascoais, Vitorino Nemésio, Ferreira de Castro, Egas Moniz, Rodrigues Miguéis, Afonso Lopes Vieira e António Sérgio são os autores de textos essenciais que mantêm atualidade. E Proença cita Unamuno; “estas excursões não são só um consolo, um descanso e um ensinamento; são, além disso e porventura sobretudo, um dos melhores meios para encontrar apego e amor à pátria”.
Se refiro o “Guia de Portugal” como pequeno monumento pátrio, é para salientar a importância do conhecimento e da compreensão do património cultural, como realidade aberta e viva. Quando lemos a “Viagem a Portugal” de José Saramago, compreendemos como esse percurso tem subjacente o exemplo deixado por Raul Proença. “Ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já”. Eis o que está em causa. Se fomos mundo afora, temos de conhecer o que temos dentro. E quando hoje se exige um esforço sério e determinado para a recuperação económica – num tempo em que o trabalho cultural foi seriamente afetado pela pandemia, como pela crise financeira, urge delinear uma ação capaz de ligar os objetivos de desenvolvimento sustentável e de recuperação do atraso. A reforma que se nos exige é assim educativa, profissional, científica, cultural e artística. Não falamos de medidas avulsas ou de uma visão centrada no consumismo e no curto prazo. A qualidade na aprendizagem, a exigência e o rigor são mais importantes que nunca. Só poderemos recuperar e avançar se cuidarmos de adequar os objetivos e os meios. E, na introdução histórica, ao “Guia”, António Sérgio salienta a necessidade de conhecer melhor a história, de impulsionar os estudos científicos e de favorecer a fixação e o investimento reprodutivo, reformando o organismo da produção.
Pôr a cultura no centro das nossas preocupações não é considerá-la como mero ornamento, mas como catalisador, numa palavra, como um incentivo ou um impulso criativo e inovador. E assim as artes e a investigação científica tornar-se-ão naturalmente complementares, tendo em vista a equidade, a eficiência e o progresso. Eis por que razão por exemplo o turismo cultural, pedagógico e científico e a mobilidade das pessoas devem ganhar em rigor e qualidade. Valorizemos a relação com a natureza e a paisagem, as artes tradicionais, o artesanato, a gastronomia, mas também a capacidade inovadora dos cientistas, pensadores e artistas contemporâneos. O turismo literário é apenas um exemplo e permite-nos usufruir do talento e da sensibilidade dos nossos escritores. E as qualidades da natureza, do clima e das gentes serão fatores de enriquecimento da qualidade de vida e da criatividade. Poderíamos falar de outros artistas e de outras artes, mas lembremo-nos de Eça de Queiroz, de Camilo Castelo Branco, de Guerra Junqueiro, de Teixeira de Pascoais, de José Régio, de Fernando Pessoa, de Miguel Torga, de Aquilino Ribeiro, de Agustina Bessa Luís, de Fernando Namora, de Orlando Ribeiro ou de Ruben A. – e a riqueza dos roteiros que podemos construir em torno da sua memória, das suas casas, numa integração natural, enriquecida pelo talento literário… O património cultural é vida. Sejamos capazes de ligar com imaginação essa referência à capacidade de sermos mais exigentes, de modo a recusarmos o fatalismo e a inércia.
O célebre quadro de José Malhoa «Praia das Maçãs» (1926) constitui a ilustração do que dissemos. Aqui está o mar e o encontro da terra. Estamos no limite do Mediterrâneo no Atlântico. Como compreender Portugal sem esta ligação que torna a Península Ibérica base para a aventura do mundo?
Numa homenagem a José Ruy o grande mestre da Banda Desenhada e à memória de Amadeu Ferreira, que tanto deu à causa da língua portuguesa e da língua mirandesa, citamos um texto publicado há pouco no DN…
A MAGIA DA PALAVRA
Fernão de Oliveira, autor da primeira “Gramática da Linguagem Portuguesa” (1536) alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”.
Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no “Livro do Desassossego”. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores. A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros. A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y. E Pascoaes não se resignou: «Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal». Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…
Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: «Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram».
Jean Graton, criador da personagem Michel Vaillant, morreu aos 97 anos em Bruxelas. É uma das grandes referências da escola franco-belga da “linha clara”, com Hergé, Greg, Tibet, Jacques Martin, E.P. Jacobs, Franquin, Albert Uderzo e René Goscinny. Nascido em Nantes em 1923, Jean Graton cultivou duas paixões - arte e desporto – transformando-as em grande sucesso nas pranchas da banda desenhada, ao criar em 1957 o piloto de Fórmula 1 Michel Vaillant (Miguel Gusmão em Portugal).
Os começos nas histórias de quadradinhos deram-se na revista Spirou (“As Mais Belas Histórias do Tio Paulo”). No ano de 1953, já na revista "Tintin", publica "A primeira corrida", traduzida em português, no "Cavaleiro Andante" no mesmo ano. Era a primeira de muitas narrativas curtas de temática desportiva.
"Michel Vaillant" estreou-se em 12 de junho de 1957, em histórias de quatro páginas, tendo "A 24.ª hora" sido publicada em português no "Falcão". "O grande desafio" (1958, "Cavaleiro Andante" n.º 357) seria a primeira de 70 histórias longas, que levariam o piloto francês, filho de um construtor de automóveis, a competir na Fórmula 1, em motas, stock cars, ralis e karts. A opção pelo mundo da competição automóvel, segundo Jean Graton escreveu no primeiro volume integral da série, surgiu porque "gostava de desenhar automóveis e conhecia bem o mundo das corridas". Por isso, "o meu herói foi um piloto".
O portal Lambiek, dedicado à banda desenhada, que eu frequento muito, refere que o artista francês era muito rigoroso no tocante ao desporto automóvel e fazia bastante pesquisa, incluindo idas a corridas, a fábricas e encontros com especialistas e pilotos. "Jean Graton participou em corridas e ralis em quase todo o mundo, tendo-se apaixonado pelo Rali de Portugal e ganhando a amizade de Alfredo César Torres, grande nome do automobilismo em Portugal. É impressionante a documentação que foi recolhendo, o que dava uma grande verosimilhança às ilustrações e às narrativas. Desde 1982 que Jean Graton tinha a titularidade plena dos seus direitos de autor, tendo criado a sua própria editora, Studio Graton, com a participação do filho, Philippe Graton, que se tornou, entretanto, argumentista das histórias de Michel Vaillant, que continuam a publicar-se. Quando Jean Graton se reformou em 2004 tinham sido já editados cerca de 70 álbuns da série com o piloto.
É muito difícil de explicar aos neófitos o extraordinário sucesso de Jean Graton em todo o mundo, mas em especial no caso de Portugal. Vários são os álbuns referem Portugal, podendo dizer-se que teve na divulgação turística entre nós um papel fundamental. Duas das suas aventuras decorrem inteiramente no nosso país: "Rali em Portugal" (1969) e "O homem de Lisboa" (1984), e esta última com um enredo de base policial.
Ao longo de quase 50 anos, a série aos quadradinhos foi um reflexo da realidade desportiva, com o herói a manter-se jovem e a acompanhar não só a evolução dos automóveis como a de várias gerações de pilotos com quem confraternizou e competiu como: Graham Hill, Jackie Stewart, Jacky Ickx, Niki Lauda, Ayrton Senna, Michael Schumacher ou o português Pedro Lamy (em "A prova", 2003). Perdemos um grande amigo de Portugal e um mestre da Banda Desenhada.
Teve lugar há poucos dias um leilão histórico, no qual foi vendido por 3,2 milhões de Euros o primeiro original da capa do “Lotus Azul” da autoria de Hergé. Apesar da polémica sobre a proveniência da ilustração, o valor atingido bateu todos os records em relação à Banda Desenhada. A editora Casterman que colocou o desenho em leilão com uma base de licitação entre 2,2 e 2,8 milhões de euros, viu ultrapassadas as melhores expectativas em cerca de um milhão de Euros, o que surpreendeu todos os especialistas. Fica, porém, demonstrada a celebridade inigualável de Hergé, referência da BD e também da Arte Pop (ao lado de Andy Warhol e Roy Lichtenstein. A história continua rodeada de mistério, uma vez que há quem duvide que aquilo que foi contado corresponda exatamente à verdade. No entanto, o que importa é que, mesmo sabendo das dúvidas, houve quem se dispusesse a largar os cordões à bolsa num valor inimaginável – digno do milionário Carreidas. E talvez a polémica tenha contribuído para animar este leilão histórico. Sobre as razões que levaram a Casterman a vender este pequeno tesouro também se suscitou muita especulação – muitos disseram que tal se deveria a dificuldades financeiras da casa editora. Recorde-se que o anterior record do preço atingido por uma prancha de BD cabia também a Tintin com 2,6 milhões de euros para os originais de umas páginas de guarda para as publicações da casa de Tournai. Na versão oficial, o editor teria considerado que esta versão da capa seria de muito cara execução, pela grande superfície de negro exigida na quadricromia. Por isso, Hergé teria oferecido a versão não aceite a Jean-Paul Casterman, filho do editor, que a teria guardado religiosamente dobrada (como se nota na imagem) durante cerca de oitenta anos… Neste momento, não nos importará entrar nesta discussão – sobre se foi ou não uma dádiva de Hergé… O importante é dar nota do valor extraordinário atingido no leilão.
Este acontecimento, coincide com o anúncio pela Fundação Gulbenkian da grande exposição antológica que será inaugurada no Outono deste ano e que trará a Lisboa os mais importantes originais de Hergé…
Também hoje assinalamos os oitenta anos do encontro do Capitão Haddock com Tintin, em 9 de janeiro de 1941, no “Le Crabe aux Pinces d’Or” (O Caranguejo das Tenazes de Ouro). Para o efeito reproduzimos o desenho de Plantu, publicado na primeira página do circunspecto “Le Monde”. É caso para dizer “tonerre de Brest”, “Mille Miliards de Mille Sabords”, “Sacré de cercopithèque…”. Os tintinófilos estão todos de parabéns, uma vez que este companheiro de Tintin, que ele trouxe ao caminho da virtude e se tornou amigo inseparável é uma referência essencial. Plantu invoca a cena do esparadrapo em “Tintin au Tibet”, transformando-o na representação do terrível vírus Convid-19, de que nunca mais nos vemos livres.
Se dúvidas houvesse sobre o sucesso que se anuncia para a grande exposição de Hergé em Lisboa, parece que todos temos de reservar o nosso tempo, o nosso entusiasmo e a nossa curiosidade para a grande mostra anunciada, com mil milhares de milhões de surpresas…
Adolfo Simões Müller (1909-1989) foi um ativo militante da leitura e dos livros. As gerações dos anos trinta a sessenta do século passado tiveram a influência das suas iniciativas. Como diretor de “O Papagaio” (1935-1941), foi um dos introdutores da Banda Desenhada em Portugal, ou do que então designávamos como “histórias aos quadradinhos”. As Aventuras de Tintin e a influência da obra de Hergé foram dadas a conhecer em Portugal graças à revista dirigida por Adolfo Simões Müller – na qual colaboravam Júlio Resende e José Viana. Portugal foi o primeiro país do mundo a traduzir as Aventuras de Tintin, e o primeiro a colori-las. Devemos lembrar o papel desempenhado pelo Padre Abel Varzim nesta ação pioneira, que trouxe a obra de Hergé para Portugal, através da empresa da Rádio Renascença, dirigida por Monsenhor Lopes da Cruz, que acolheu de braços abertos a sugestão da aposta na narrativa ilustrada da escola belga do que designamos como da “linha clara”. Num momento em que havia muitas dúvidas sobre a Nona Arte, é de saudar a coragem de quem cedo compreendeu a importância dessa pedagogia de grande alcance, capaz de ligar Literatura, Arte e Cinema.
Hoje, quem passa pelo jardim das Amoreiras encontra o busto do jornalista e escritor, numa justa homenagem a quem desenvolveu uma obra prolífera reveladora de uma orientação sábia sobre o modo de melhor captar os mais novos, não apenas para as letras, mas sobretudo para a curiosidade intelectual e para o espírito de aventura. Depois de ter frequentado a Faculdade de Medicina, cujo o curso abandonou, enveredou pelo professorado e pelo jornalismo. Foi secretário de redação do jornal “Novidades”, fundador e diretor até 1941 do jornal infantil “O Papagaio”, diretor do ”Diabrete” (1941-1951), do “Cavaleiro Andante” (1952-1962), do semanário juvenil “Foguetão” (1961) e do “Zorro” (1962-1966). Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, José Ruy, José Garcês, José Manuel Soares foram alguns dos autores portugueses que colaboraram nas iniciativas de Adolfo Simões Müller – ombreando com tantos autores europeus consagrados. Foi ainda diretor do gabinete de estudos de programas da Emissora Nacional de Radiodifusão e produtor de programas para a rádio, tendo sido autor do primeiro folhetim radiofónico, com a adaptação da obra de Júlio Dinis “As Pupilas do SenhorReitor”.
Estreou-se na literatura com o volume de poemas “Asas de Ícaro” (1926). Foi, porém, a literatura infanto-juvenil que o celebrizou, tendo escrito “Caixinha de Brinquedos” (1937, Prémio Nacional de Literatura Infantil) e “O Feiticeiro da Cabana Azul” (1942, galardoado com o mesmo prémio). Para o público juvenil foi a grande animador da coleção “Gente Grande para GentePequena” (edições Tavares Martins), na qual publicou obras biográficas como “A Pedra Mágica e a Princesinha Doente”, sobre a Madame Curie; “O Capitão da Morte”, sobre Robert Scott; “As Aventuras do Trinca-Fortes”, sobre Camões; “O Homem das Mil-Invenções”, sobre Thomas Edison; “O Grande Almirante das Estrelas do Sul”, sobre o Almirante Gago Coutinho; “O Piloto do Navio Fantasma”, sobre Richard Wagner; “O Exército Imortal”, sobre Gutenberg; “A Lâmpada que não se Apaga”, sobre Florence Nightingale; “O Príncipe do Mar”, sobre o Infante D. Henrique; “O Fidalgo Engenhoso”, sobre Miguel de Cervantes; “Através do Continente Misterioso”, sobre Serpa Pinto; “O Mercador da Aventura”, sobre Marco Polo; “A Primeira Volta ao Mundo”, sobre Fernão de Magalhães (Prémio Nacional de Literatura, de 1971); “A Pista do Tesouro”, sobre Baden Powell; e “O Contador de Histórias, sobre Hans Christian Andersen.
Adaptou para os mais jovens “Os Lusíadas” (1980), “A Peregrinação” (1980), “A Morgadinha dos Canaviais” (1982) e “As Pupilas do Senhor Reitor (1984). Em 1982 recebeu o Grande Prémio da Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian pelo conjunto da sua obra., onde ainda se incluem: “Meu Portugal, Meu Gigante” (1931); “Jesus Pequenino(1934), “A Última Varinha de Condão” (1941); “Historiazinha de Portugal” (1944; “A Última História de Xerazade” (1944; “Dona Maria de Trazer por Casa” (1947), “O Livro das Fábulas” (1950) ou “A Viagem Maravilhosa de Comboio” (1956), num extraordinário conjunto de mais de 70 obras.
Podemos designá-lo como “O Mágico das Letras”, uma vez que não só foi um incansável cultor da divulgação literária, mas também um permanente pesquisador dos melhores autores nacionais e europeus na Banda Desenhada, a fim de desenvolver o interesse cultural e científico dos mais jovens, num momento em que era necessário romper com a elevada taxa de analfabetismo de que o país sofria. As resistências e as críticas de alguns não se aplicavam a Simões Müller, uma vez que foi um exemplo de cuidado extremo com a utilização da língua portuguesa.
No começo do ano, na velha tradição do Borda d’Água faz-se o juízo do ano.
I. Começo pela tremenda Pandemia Covid-19. Sinto que há condições esperançosas para 2021. A existência de vacina não resolve ainda o problema, mas permite aumentar as condições de imunidade. Portanto, olhando a bola de cristal, vejo que a segunda metade do ano vai permitir termos condições favoráveis para o mundo recomeçar a girar sem grandes solavancos. No entanto, há sete questões fundamentais, a não esquecer: (i) Não devemos baixar a guarda – a prevenção continua a ser a grande solução ao nosso alcance; (ii) a máscara é antipática, mas tem de ser usada devidamente – sem o nariz de fora e sem ficar pela barbela; (iii) A lavagem das mãos é essencial, e deve ser repetida amiúde; (iv) a distância social tem de se fazer; (v) o arejamento dos lugares onde estamos é preciso; (vi) nunca devemos facilitar, temos de estar sempre de pé atrás; (vii) procurar usar os meios que nos permitam comunicar uns com os outros… As condições são cumulativas, umas não devem esquecer as outras. E mesmo depois da vacinação, vamos ter de manter durante um período largo estas cautelas, uma vez que o vírus vai sofrer mutações e ainda vamos ter um tempo largo de jogos do gato e do rato ou da cabra-cega… E não esqueço o bom exemplo de Ignaz Semmelweis (1818-1865), o médico húngaro do século XIX, que percebeu como combater uma misteriosa febre pós-parto que estava a matar muitas mulheres numa enfermaria. A culpa era dos seus colegas que não lavavam as mãos. Foi, porém, incompreendido e acabou ostracizado num manicómio. Só depois de morto viu a sua posição reconhecida, quando Louis Pasteur formulou a demonstração científica sobre o efeito das bactérias na génese das doenças. Hoje, não há qualquer dúvida. O que importa é entender que as formas preventivas são aliadas da saúde.
II. Quem me conhece, sabe a minha tristeza por causa do Brexit. De facto, as dificuldades finais nesta negociação indesejável deveram-se à circunstância de haver britânicos que continuam a achar que o Império da Rainha Vitória ainda existe. Há muito que caiu e quando se negoceiam as pescas, por exemplo, não há outro remédio se não aceitar a globalização e a interdependência. Basta ler a Carta das Nações Unidas para o entender. Ninguém pode reivindicar a exclusividade da propriedade numa parcela do mar ou do globo terrestre. Leiam-se as opiniões sensatas e veja-se como não é possível esquecer que o grande mercado comercial do Reino Unido ainda é a Europa, que os mercados financeiros e os respetivos serviços não irão manter-se fieis a Londres, se as condições concorrenciais se degradarem, ou que os Estados Unidos não desejam ser uma colónia britânica… Agora, resta-nos esperar para ver as consequências efetivas de uma decisão tão absurda e imponderada… Continuarei anglófilo. Mas nada posso fazer. E espero que Mr. John Bull não se deixe dominar pela tentação da cegueira. Não sei francamente que se passará. Mas a incerteza será a regra, sobretudo se olharmos para a evolução da pandemia a somar à pressão interna das opiniões públicas, quando estas perceberem que o mundo de hoje é muito diferente do que existia no fim da Segunda Guerra… Releiam-se as palavras de Churchill em Zurique e perceba-se como o conceito de soberania partilhada é condição de paz e de sustentabilidade geoestratégica… Para já, quando tiver de fazer a revisão meu MG, vai ser uma carga de trabalhos… A ver vamos…
III. Uma última e boa notícia… Está marcado para 21 de outubro o lançamento mundial do próximo álbum das aventuras de Astérix. Nesse dia, serão postos à venda cinco milhões de livros da nova aventura, com publicação simultânea em Portugal e em vários países. Em ano de novo álbum, os autores Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, os sucessores de Goscinny e Uderzo, revelam algumas pistas. Há uma protagonista feminina que vai complicar as vidas de Astérix e de Obélix, e que estará à guarda de centuriões romanos. Daí o pedido de "três voluntários para guardar a prisioneira" - que deve ser bastante simpática, pois toda a guarnição levanta a mão e se voluntaria. Há uma prancha inédita é muito mais explícita. Como diz Jean-Yves Ferri, estão lá várias pistas e afirma: "Antes de começar a trabalhar neste álbum, tinha pensado fazer viajar os nossos eternos irredutíveis até esta região que..." Não diz mais nada, afinal é tradição que as 48 páginas do álbum só sejam conhecidas exatamente no dia de lançamento. Aliás é normal haver uma alternância entre as aventuras passadas na aldeia e fora dela. Quanto ao desenhador Didier Conrad, que vive nos Estados Unidos, este acrescentou um desafio: " Ora reparem bem nos pormenores. Observem o desenho à esquerda e pensem um bocadinho!" Mas há várias informações nesta prancha que podem ajudar. A de que o druida Panoramix precisa de deixar a aldeia gaulesa e se ausentar. Ele acorda de um sonho e grita. Explica que "um velho amigo meu está a pedir a minha ajuda! Está a tentar contactar-me!. Deve ser grave. Ele não é do género de me importunar sem razão!" Se Obélix acha que Panoramix apenas está a inventar uma desculpa para não continuar o jogo, Astérix fica em dúvida sobre a importância do apelo do amigo. No entanto o druida garante que terão de viajar. Não sem antes preparar a poção mágica para se protegerem, e aí sim: "Partimos o quanto antes!" E a última pista é "a viagem é muito longa!". Este é o 39.º álbum das aventuras de Astérix, o quinto com assinatura desta dupla após Astérix entre os Pictos, em 2013, O Papiro de César em 2015, Astérix e a Transitálica em 2017 e A Filha de Vercingétorix em 2019. O novo álbum já está na fase final de conceção e, 60 anos após o aparecimento desta série de banda desenhada, regressa com um novo título depois de ter batido vários recordes no mundo editorial: 385 milhões de álbuns vendidos em 111 línguas e dialetos - em Portugal sai também em língua mirandesa. Temos assim um aliciante para o Novo Ano…
Três poetas, três poemas e a recordação deste tempo, mesmo cheio de incertezas. Vasco Graça Moura, José Régio e Vinícius de Moraes escrevem para lembrar. É a memória das tradições e de tantas presenças que agora regressam que merecem lembrança…
«Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados!»
Agostinho de Morais
AQUELA FAVA
espero que me calhe aquela fava que é costume meter no bolo-rei: quer dizer que o comi, que o partilhei no natal com quem mais o partilhava
numa ordem das coisas cuja lei de afectos e memória em nós se grava nalgum lugar da alma e que destrava tanta coisa sumida que, bem sei,
pela sua presença cristaliza saudade e alegria em sons e brilhos, sabores, cores, luzes, estribilhos... e até por quem nos falta então se irisa
na mais pobre semente a intensa dança de tempo adulto e tempo de criança.
Vasco Graça Moura
NATAL
Mais uma vez, cá vimos Festejar o teu novo nascimento, Nós, que, parece, nos desiludimos Do teu advento!
Cada vez o teu Reino é menos deste mundo! Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos, Festejar-te, — do fundo Da miséria que somos.
Os que à chegada Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos, Somos — não uma vez, mas cada — Teus assassinos.
À tua mesa nos sentamos: Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome; Mas por trinta moedas te entregamos; E por temor, negamos o teu nome.
Sob escárnios e ultrajes, Ao vulgo te exibimos, que te aclame; Te rojamos nas lajes; Te cravejamos numa cruz infame.
Depois, a mesma cruz, a erguemos, Como um farol de salvação, Sobre as cidades em que ferve extremos A nossa corrupção.
Os que em leilão a arrematamos Como sagrada peça única, Somos os que jogamos, Para comércio, a tua túnica.
Tais somos, os que, por costume, Vimos, mais uma vez, Aquecer-nos ao lume Que do teu frio e solidão nos dês.
Como é que ainda tens a infinita paciência De voltar, — e te esqueces De que a nossa indigência Recusa Tudo que lhe ofereces?
Mas, se um ano tu deixas de nascer, Se de vez se nos cala a tua voz, Se enfim por nós desistes de morrer, Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!
José Régio
POEMA DE NATAL
Para isso fomos feitos: Para lembrar e ser lembrados Para chorar e fazer chorar Para enterrar os nossos mortos — Por isso temos braços longos para os adeuses Mãos para colher o que foi dado Dedos para cavar a terra. Assim será nossa vida: Uma tarde sempre a esquecer Uma estrela a se apagar na treva Um caminho entre dois túmulos — Por isso precisamos velar Falar baixo, pisar leve, ver A noite dormir em silêncio. Não há muito o que dizer: Uma canção sobre um berço Um verso, talvez de amor Uma prece por quem se vai — Mas que essa hora não esqueça E por ela os nossos corações Se deixem, graves e simples. Pois para isso fomos feitos: Para a esperança no milagre Para a participação da poesia Para ver a face da morte — De repente nunca mais esperaremos... Hoje a noite é jovem; da morte, apenas Nascemos, imensamente.
Pode dizer-se que o mestre dos romances de espionagem, se escreveu sobre o “crime quase perfeito”, foi de facto o “Espião Perfeito”. Porquê? Porque perfeito é completo e uma vez que não poderemos entender a Guerra Fria e o seu clima tenso e enigmático sem ler John le Carré, cujo nome de batismo era David John Moore Cornwell. Nasceu em Poole, Inglaterra, em 1931. Frequentou um colégio privado em Sherborne. Mudou-se para Suíça aos 16 anos, onde se matriculou na Universidade de Berna, para estudar literaturamoderna. Foi lá que, no final da década de 1940, foi recrutado para o MI-5 do Inteligent Service britânico por um amigo dos “serviços”, onde esteve de 1950 a 1964. Foi professor de francês e de alemão em Eton, o prestigiadíssimo colégio da elite britânica, numa altura em que começou a trabalhar efetivamente como agente secreto, o que lhe permitiria encontrar matéria de sobra para a sua escrita. Na Universidade de Oxford, para onde foi depois de estar em Berna, espiava possíveis simpatizantes soviéticos. O centro de operações onde trabalhou foi na Cruzon Street na capital britânica. Em 1960, mudou-se para a Alemanha, agindo com estatuto diplomático, o que lhe permitiu estar no fulcro dos acontecimentos da Guerra Fria. Era o tempo em que lhe estavam confiadas complexas tarefas, como fazer interrogatórios, realizar escutas telefónicas e dirigir agentes. Pôde, porém, apreender minuciosamente tudo o que era importante nessa tarefa. Foi então mordido pelo bicho literário, dedicando-se, a partir de 1964 exclusivamente ao romance, após o sucesso de O Espião que Saiu do Frio, saído a lume pela primeira vez em 1963 – “a melhor história de espionagem que jamais lera”, segundo o celebérrimo Graham Greene (seu colega no MI-6). Foi este livro — a sua terceira obra — que o lançou mundialmente. A obra foi aprovada pelos serviços secretos porque era “pura ficção do início ao fim” e, por isso, não representava riscos de segurança. Isto, ao contrário do que pensavam os críticos internos de Greene, que entendiam estar este sempre a pisar o risco quanto aos segredos que conhecia. Ainda assim, foi-lhe exigido que usasse um pseudónimo. Seguir-se-iam outras obras, como: O Alfaiate do Panamá, inspirado em O Nossos Agente em Havana de Graham Greene, Single & Single, O Fiel Jardineiro, Amigos até ao Fim, O Canto da Missão e Um Homem Muito Procurado. O agente George Smiley, tornou-se uma personagem célebre, ligando-se intimamente a Le Carré - “baixo e roliço, com óculos pesados e cabelo ralo (...), protótipo do solteirão falhado de meia-idade com um emprego sedentário”, segundo a descrição que dele faz uma velha amiga em Um Crime Quase Perfeito (1962), o segundo romance do escritor, depois de Chamada para a Morte (1961).O “The New York Times” recorda que John le Carré recusou sempre que os seus livros fossem inscritos para prémios literários. No entanto, muitos críticos consideraram que as suas obras são literatura de primeira água. Em Portugal, publicou um total de 25 obras desde 1969, por várias editoras (Edições 70, Europa-América, Presença, D. Quixote etc.)… Muitos dos seus livros foram adaptados para o cinema ou para a televisão: O Espião que saiu do Frio (com Richard Burton, óscar do melhor ator, filme realizado por Martin Ritt em 1965), A Gente de Smiley e A Toupeira, com Alec Guiness no papel de agente Smiley. Em 2016 surpreendeu ao publicar a autobiografia O Túnel de Pombos, onde evoca uma infância difícil: abandonado aos cinco anos pela mãe, com quem se reencontrou aos 21, dominado por um pai autoritário e mau carácter duvidoso, a certa altura preso por fraude. O seu último livro, Agente em Campo, foi publicado em 2019 e mostra Le Carré europeísta convicto e ativo opositor do “Brexit” , a olhar criticamente para a política britânica, bem como para a América de Trump e para a Rússia de Putin. É muito significativo que um autor arguto e inteligente como John Le Carré tenha preservado mesmo depois de 1989 e da queda do muro de Berlim a mesma lucidez sobre o curso de acontecimentos no mundo, em circunstâncias perigosas e incertas. Eis uma leitura essencialíssima, ainda por cima de um grande escritor…
Quando há alguns anos houve alguém, decerto por menos conhecimento (é o menos que pode dizer-se), acabou com o feriado do Primeiro de Dezembro, houve um justo coro de vozes a recordar que se tratava de tentar esquecer uma primeira data da nossa identidade histórica e por isso primeiro feriado civil da República. De facto, logo no ano de 1910, a primeira comemoração profana foi a da libertação da Pátria de 1640. E esse momento foi tão importante que, por exemplo, do alto de uma guarita no Largo do Carmo, Francisco de Sousa Tavares afirmou que a libertação de 25 de abril de 1974 era a data mais importante depois do Primeiro de Dezembro de 1640. A 1 de dezembro de 1910, simbolicamente, também nasceu o que viria a ser a origem da “Renascença Portuguesa”, através da revista “A Águia” de Álvaro Pinto, na continuidade da qual Raul Proença e Teixeira de Pascoais protagonizariam o debate essencial sobre o patriotismo – para um, prospetivo e futurante, para o outro, saudoso e poético, mas para ambos crucial para a definição da cultura portuguesa: lírica ou trágica, mas igualmente picaresca… Se a Revolução de 1820 invocou a Regeneração, que em 1851 daria lugar a um compromisso de acalmação política para quase sessenta anos, a República de 1910 arvoraria a ideia de Renascença, que viria (depois do interregno ditatorial) a tornar-se raiz da democracia do último quartel do século XX. Eis por que faz sentido a lembrança da Restauração da Independência invocada neste Primeiro de Dezembro! Sim, sobretudo quando a fragmentação das autonomias ibéricas do Reino de Espanha demonstra o bem fundado da decisão da independência do ocidente peninsular. Senão vejamos sete pontos sacramentais: 1) O caráter marítimo do ocidente ibérico (“terras de Espanha, areias de Portugal”) e a vontade dos portugueses, para usar a explicação de Herculano, dão a Portugal uma identidade própria que se projeta universalmente; 2) Filipe I, nas Cortes de Tomar, teve consciência disso mesmo ao reconhecer expressamente a independência e o estatuto de Portugal, que se perderia com Olivares; 3) Na guerra dos trinta anos (1618-1648), a casa de Habsburgo que governava a Espanha, levou-nos para um conflito europeu e global que contrariou claramente o interesse estratégico de Portugal; 4) O apoio da França de Richelieu a Portugal no conflito seiscentista permitiu romper com um caminho inexorável de agravamento da decadência através de uma Corte tornada de Aldeia; 5) Perante a ameaça global da Holanda, havia que romper com a tentação de Conde-Duque de Olivares de unificação peninsular num só reino, sem as prerrogativas da independência antiga de Portugal; 6) Os conjurados de 1640 recusaram assim a tal “Corte na Aldeia” e ao dar o golpe sabiam que iriam iniciar uma longa luta de sobrevivência nacional, que começou na tentativa de mobilizar recursos para fazer uma política colbertiana - ouvindo Luís Mendes de Vasconcelos, Conde da Ericeira, Severim de Faria, Ribeiro de Macedo, e seguindo as diligências diplomáticas na Holanda junto dos Cristãos-novos do Padre António Vieira) e terminou na exploração do ouro e dos diamantes do Brasil, sem o investimento na fixação, o que muito nos atrasou… ; 7) O certo é que Portugal seguiu um curso de independência, de acordo com a sua “maritimidade” e o desenvolvimento de uma língua, que se tornaria elemento congregador de várias culturas e alfobre de várias nações… Ao lermos alguns dos nomes dos quarenta conjurados, compreendemos que havia uma resistência, que se tinha solidificado perante a lógica autoritária de Madrid e a insensibilidade de Filipe III. Do mesmo modo, havia uma tomada de consciência de que o império iria desfazer-se, não só o do Índico (já fortemente enfraquecido), mas sobretudo o do Atlântico Sul e do Brasil. Eis os nomes: Antão Vaz de Almada, António Luís de Meneses (Marquês de Marialva), Francisco de Noronha, Francisco de Sousa (Marquês das Minas), D. Jerónimo de Ataíde (filho de D. Filipa de Vilhena e por ela armado cavaleiro com seu irmão Francisco Coutinho), Dr. João Pinto Ribeiro, João Sanches de Baena, Luís de Almada, Martim Afonso de Melo, Pedro Afonso Furtado, D. Rodrigo da Cunha (Arcebispo de Lisboa), Tomás de Noronha (Conde dos Arcos), Tomé de Sousa, Tristão da Cunha de Ataíde… Os nomes envolviam o clero, a nobreza e o povo – e reconstituíam a resistência que tinha levado ao trono o Mestre de Avis em 1385. Eis por que não se trata de uma celebração isolada, mas da afirmação perene de uma vontade de emancipação. E lembremos o que disse António Sérgio no pós Alcácer Quibir: «Perante a vaga do trono português, sucedeu-lhe Filipe II de Espanha, que nas cortes de Tomar jurou as condições em que reinaria: a sua ideia não foi a absorção de Portugal, mas uma monarquia dualista, em que tínhamos perfeita autonomia, no mesmo pé do que Castela. Cumpriu religiosamente o que prometera; e foi seu neto Filipe IV, ou melhor o conde-duque de Olivares, quem, iludindo-as, provocou mais tarde a revolta dos Portugueses». Regressa à lembrança o sonho do Príncipe Perfeito, de um Império de base ibérica, com um rei português e Lisboa como centro de gravidade dessa realidade universal. Como salientou Vítor Sá: «A restauração da independência de Portugal trouxe ao primeiro rei da nova dinastia, João IV, inimigos poderosíssimos, dificuldades diplomáticas e militares, que acabaram por ser vencidas nas linhas de Elvas, com o exército português já instituído por bons mestres (Schomberg). «Mostrou-se o povo, mais uma vez, como boa matéria-prima quando enquadrado por boa élite» — concede António Sérgio. Na conjuntura restauracionista teve lugar a primeira tentativa para se «assentar em bases firmes a economia da metrópole», com a política do conde da Ericeira. Mas essa tentativa resultou frustrada pela «sorte grande» que foi a descoberta das minas do Brasil».
Estabeleceu-se a certa altura o mito urbano a propósito da Coluna do Rossio, que honra a memória do Rei D. Pedro IV. Certamente um partidário da causa absolutista, derrotada em Lisboa no dia 24 de julho de 1833, data do desembarque das tropas liberais comandadas pelo Duque da Terceira, fez espalhar com insistência a notícia-falsa de que a figura que encima o monumento não seria a do Rei de Portugal, mas de Maximiliano, o malogrado imperador do México. Vejo, aliás, alguns pseudo-cicerones de Lisboa, montados ou não em tuk-tuks, cheios de ignorância e prosápia, a repetir essa patranha, que não tem ponta por onde se lhe pegue. De facto, tratou-se de uma falsidade maldosa. O problema, felizmente, há muito está esclarecido e o facto de estar patente no Museu da Cidade, no Palácio Pimenta, uma mostra evocativa dos 150 anos da inauguração do monumento, que se aconselha, permite recordar a verdade dos factos e calar de uma vez por todas essa brincadeira de mau gosto.
Recorde-se que o Imperador Maximiliano (1832-1867) era o irmão mais novo do Imperador Francisco I da Áustria, tendo apenas dois anos de idade quando o nosso D. Pedro morreu. Relacionou-se, sim, com D. Pedro II, Imperador do Brasil, tendo sido um fugaz Imperador do México, a convite de Napoleão III, na sequência da invasão francesa daquele território. Viria, contudo, a ser fuzilado em 1867, cerca de três anos depois de ser proclamado Imperador, e temos memória visual desse funesto acontecimento num quadro célebre de Manet. Nunca chegou a consolidar a sua posição, pela fragilidade da investidura, não tolerada pelos patriotas mexicanos, e igualmente pelo desenvolvimento da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, com vitória dos Unionistas-Republicanos e derrota dos Sulistas – Confederados…
A ideia de construir uma estátua em honra de D. Pedro seguiu-se imediatamente à morte do Rei em Queluz, no ano de 1834. A mostra agora levada a cabo, no ano do bicentenário da Revolução Liberal, está no piso superior do Palácio Pimenta e revisita a história de um monumento, que demorou mais de 35 anos a ser erigido, com “três cerimónias de lançamento de primeira pedra, três concursos públicos e duas demolições, várias comissões de gestão e outras tantas polémicas”. Para além de peças inéditas do acervo do Museu de Lisboa – caso dos testemunhos que foram colocados na base da estátua, descobertos em 2001 -, a mostra conta com obras procedentes do Museu Nacional dos Coches, da Biblioteca de Arte da Fundação de Calouste Gulbenkian, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e do Arquivo Histórico do antigo Ministério das Obras Públicas.
A estátua de bronze é de Elias Robert, o pedestal foi executado por Germano José Salles, e o risco é do Arquiteto francês Jean Davioud. O monumento tem 27,5 metros de altura e é composto de envasamento, pedestal, coluna e estátua. O pedestal é de mármore de Montes Claros e a coluna de pedra lioz de Pêro Pinheiro, a estátua de bronze. Na base do pedestal, há quatro figuras femininas representando a Justiça, a Prudência, a Fortaleza e a Moderação, qualidades atribuídas ao Rei-Soldado, entrelaçadas por festões e os escudos das 16 principais cidades do país. A parte inferior da coluna tem quatro figuras da Fama em baixo-relevo. A coluna coríntia, canelada é encimada pela estátua que representa o Rei em uniforme de general, coberto com o manto da realeza, a cabeça coroada de louros, ostentando na mão direita a Carta Constitucional por ele outorgada em 1826.
A lenda falsa sobre a estátua assenta na ideia de que o monumento teria sido aproveitado a partir de um outro projeto concebido para o referido imperador Maximiliano do México. No entanto, porque o imperador foi fuzilado pouco antes de a estátua ter sido inaugurada, prontamente teria sido esta reaproveitada para o projeto do Rossio, o que explicaria as – supostas – semelhanças da estátua do rei português com a figura do imperador mexicano. No entanto, vários estudiosos, entre os quais o historiador José-Augusto França em A arte em Portugal no século XIX, demonstraram inequivocamente que a peça apresenta claros sinais de se tratar da figura nacional portuguesa: as armas nos botões do fardamento, o grande colar da Torre e Espada – Valor, Lealdade e Mérito (aliás, bem visível em imagens de pormenor que têm sido publicadas) além da Carta Constitucional. Recentes descobertas na base da estátua, em meados de 2001, durante obras de restauro, confirmam tratar-se da figura de D. Pedro IV: em especial, dois frascos de vinte centímetros cada, contendo documentos e uma fotografia revelada em albumina.
Neste momento, não há qualquer razão para haver dúvidas. D. Pedro é D. Pedro, o seu a seu dono. E o Rossio fica a merecer uma visita cuidada, quando o quarteirão da antiga Suíça se aprimora, o Teatro Nacional invoca a filha gloriosa do homenageado, trazendo-nos à memória Garrett, bem como Mestre Gil e a camoniana figura (fazendo esquecer a memória pesada dos Estaus). No outro quarteirão, à sombra das ruínas do Convento do Carmo, há uma grande diversidade de boas memórias: o Café Nicola do tão esquecido Bocage, a casa dos pais de Eça de Queiroz, onde o romancista ficava quando estava na capital e o velho Café Gelo, que invoca poetas e escritores (de Aquilino a Cesariny) que anunciaram a modernidade… A Sul, temos as embocaduras das Ruas Augusta e Áurea, o Arco da Rua dos Sapateiros e a tradicional Tendinha (fundada em 1818, onde se bebia o melhor vinho de Colares). Em toda a Praça, temos pavimento ondulado, em calçada à portuguesa, por iniciativa do General Eusébio Pinheiro Furtado… E aqui fica a recordação, sem esquecer a nostalgia dos antigos e pioneiros anúncios luminosos da Mabor e do Brande Constantino (a fama que vem de longe) e na esquina para a Rua do Ouro o velho placard desaparecido do “Diário de Notícias” onde sabíamos as últimas novidades… Aqui me encontrei há muitos anos já com o estro do meu amigo Carlos Fradique Mendes (aqui invocado no Passeio Público por Bernardo Marques), passeando com o saudoso Doutor José Pedro Fernandes, que escreveu um romance sobre esse nosso encontro.