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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

  


CX - O RECONHECIMENTO CULTURAL A MARIA BETHÂNIA 


1. Caetano Veloso, irmão de Bethânia, escreveu:

“Pouco antes de eu completar quatro anos de idade, nasceu nossa irmã mais nova, para quem eu escolhera o nome de Maria Bethânia, por causa de uma bela valsa do compositor pernambucano Capiba, que começava com estas linhas majestosas e, à época, indecifráveis para mim: “Maria Bethânia, tu és para mim/a senhora do engenho”, e era grande sucesso na segunda metade da década de 40, na voz potente de Nelson Gonçalves”, acrescentando: “(…) ninguém se sentia com coragem de (…) pôr esse nome “tão pesado” num bebê. Como havia várias sugestões (…), meu pai resolveu escrever todos os nomes em pedacinhos de papal que, depois de dobrados, ele jogou (…) e me deu para tirar na sorte. Saiu o da minha escolha. Meu pai pôs (…) um ar resignado (que era uma ordem para que todos se resignassem) e disse: “Pronto. Agora tem que ser Maria Bethânia”. E saiu para registar a recém-nascida com esse nome. Recentemente, ouvi de minhas irmãs mais velhas (…) que meu pai escrevera Maria Bethânia em todos os papéis. Não é de todo improvável (…) na expressão resignada de meu pai era visível (…) um intrigante toque de humor. Mas, embora me encha de orgulho o pensamento (…) de ter trapaceado para me agradar, eu sempre preferi crer na autenticidade do sorteio (…)” (Verdade Tropical, edições quasi).   

Sugestivo começo e apresentação de quem nasceu em Santo Amaro da Purificação, no estado da Bahia, de onde não queria sair, e se mudou para São Salvador, para estudar, quando ia fazer 14 anos e o mano, Caetano, 18, onde Bethânia teve como primeiro vínculo de amor o “Dique do Tororó com suas águas de um verde mutante e misterioso”, o que também encantava o irmão, o que a levou a gostar da mudança e a querer variar, satisfazendo novos interesses.   

Curioso o modo como irmã e irmão saíam juntos para concertos, musicais, peças de teatro, exposições, filmes, festas populares ou de orixás, com uma solução conciliatória com o pai: “ele me disse que, já que eu advogava com tanta ênfase a frequência de Bethânia em eventos culturais como necessária para a sua formação como menina especial, ele admitia que ela saísse à noite, desde que fosse sempre comigo e que eu fechasse com ele um compromisso de responsabilidade com ela”.       

Esta dupla insólita, inaceitável, inacreditável e surpreendente, para tantos, teria uma simbólica e soberana libertação no Rio, de onde datam as aparições de MB usando peruca de cabelos lisos e um pedido explícito a Caetano para que nunca mais opinasse como ela deveria orientar o seu trabalho ou seu modo de vida, o que representava, segundo o irmão, “o golpe de misericórdia na responsabilidade sobre ela que meu pai me tinha outorgado - e significou para mim um considerável alívio. Para ela, era a emancipação oficial “.       

2. “Carcará” é tido como o primeiro grande êxito de Bethânia, num tom metálico e sonante dramaticamente eficaz, um sucesso de massas e de plateias politizadas, quando substituiu Nara Leão, a convite desta, no musical Opinião, no Rio, a que muitos se seguiriam: “Explode Coração”, “Coração Ateu”, “Esse Cara”, “Negue”, “Mel”, “Grito de Alerta”, “Álibi”, até duetos famosos como: “Sonho Meu” (com Gal Costa) e “É de Manhã” (com Caetano Veloso).   

Se o seu testemunho musical, como embaixadora e intérprete, é incontestável na divulgação e promoção da língua portuguesa pelo mundo, numa voz singular e universal, exportando-a e extravasando os limites lusófonos e lusófilos, também o é como declamadora ou cantante de poetas, entre estes os portugueses Sá de Miranda, José Régio (“Cântico Negro”), Manuel Alegre (“Senhora do Vento Norte”), Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Anderson, os últimos a quem dedicou os álbuns “Imitação da Vida” e “Mar de Sophia”.     

Foi agraciada, este ano, pelo governo português, com a medalha de Mérito Cultural, em cujo comunicado se destaca o inestimável trabalho feito na divulgação dos poetas portugueses “declamando-os, cantando-os e contribuindo de forma impar para a sua popularização não só no Brasil como em diversas partes do mundo”, fazendo deles artistas populares, a que já se antecipara, em 2010, a medalha da Ordem do Desassossego, em homenagem da Casa Fernando Pessoa pela sua difusão da obra pessoana.     

Apesar de também já ter recebido a medalha de Mérito Municipal (pela CM de Lisboa) questiona-se: por que não outros agraciamentos de reconhecimento de todo o seu legado cultural em benefício dos povos lusófonos e da universalização do nosso idioma (incluindo um doutoramento honoris causa de universidades portuguesas)?

Embora meritória esta medalha de Mérito Cultural parece-nos, assim, insuficiente (em paralelo com a do irmão, este ano também agraciado, como, a propósito, opinámos, neste blogue: CVII - A Língua Portuguesa no Mundo, Os Méritos Culturais de Caetano Veloso).    


10.11.23
Joaquim M. M. Patrício

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


CVII - OS MÉRITOS CULTURAIS DE CAETANO VELOSO


1. Apesar de se assumir, em primeiro lugar, como brasileiro, houve sempre em Caetano Veloso (CV) uma admiração e deslumbramento pela língua portuguesa. Não há nele ressentimentos em relação ao nosso idioma, que não tem como “imperialista”, “colonialista”, neocolonialista”, “racista”, aceitando-o como um mosaico de falas dos mais variados lugares, pois não há Portugal sem Brasil, sem África, sem as Índias, o Extremo-Oriente, sem o mundo por onde nos deslocalizamos e dispersamos geograficamente, sem uma vocação de extroversão, porque como profundamente o compreendeu Fernando Pessoa, não há o português e a lusofonia sem a língua portuguesa.


Há décadas, quando no seu país natal havia declarações desfavoráveis sobre a língua portuguesa, isolada da dos falantes dos países vizinhos e de todo o continente sul americano, CV foi uma das vozes que se fez ouvir para afirmar que tinha todo o orgulho em falar português, dada a sua singularidade na diversidade e ser um elemento diferenciador dos outros povos da América Latina e das Américas.


Este sentimento de amor e afeição ao Brasil e à língua portuguesa, e por arrastamento a Portugal e aos lusófonos, manifestou-o no decurso da sua vida e sólida carreira, ao afirmar: “O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória”, “Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara” (Verdade Tropical, edições quasi). 


Não há melhor exemplo, para celebrar o idioma cmum, que a canção “Língua”, onde têm cabimento e se evocam Camões, Pessoa, Carmen Miranda, Chico Buarque de Hollanda, Glauco Mattoso, Arrigo Barnabé, Maria da Fé, a Flor do Lácio Sambódromo, a Lusamérica, Guimarães Rosa, a Mangueira, Luanda, Scarlat Moon Chevalier, sendo dela os versos: “Minha pátria é minha língua”, “A língua é minha Pátria/E eu não tenho Pátria, tenho mátria/Quero fátria”.


Como escritor fala-nos da “bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal”, no movimento Tropicália e a preocupação que houve em não se confundir com o luso-tropicalismo de Gylberto Freire que tem “como algo muito mais respeitável”, de Agostinho da Silva, “o fascinante português fugitivo da salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização”, que “Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações”, sem esquecer que “A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna”.       


Em 1985, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cantou o fado “Estranha Forma de Vida”, em português de Portugal, desconhecendo que Amália estava presente, subindo esta ao palco, perante uma ovação emocionada da assistência, gesto decisivo para o ressurgimento do fado e um reencontrar do público com a fadista, numa atitude desafiante e ousada, tanto mais que, segundo CV, “(…) eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações”.     


2. Foi este artista que universalizou canções como “Alegria, Alegria”, “Você é Linda”, “Leãozinho”, “Língua”, que recentemente (19.09.23) recebeu a medalha de Mérito Cultural do governo português, que assim se apresenta: “Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso”.   


Criada “(…) para distinguir pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, pela sua dedicação ao longo do tempo a atividades de ação ou divulgação cultural” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84, de 13.04), a medalha de Mérito Cultural atribuída a CV, embora merecida, é insuficiente, dado o seu destinatário, in casu, ser um dos maiores defensores e divulgadores da nossa língua, como cantor e músico, além de compositor, produtor, escritor, como património comum lusófono e da humanidade. 


A distinção, meritória, peca por “inacabada”, embora reforçada pela atribuição a agraciados, entre outros, como Maria Bethânia, sua irmã (música/língua portuguesa), Agustina Bessa Luís (literatura), Álvaro Siza Vieira (arquitetura), António Ramos Rosa (poesia), Campo Arqueológico de Mértola (património cultural), Centro Nacional de Cultura (divulgação cultural), Eduardo Lourenço (filosofia/ensaio), Eugénio de Andrade (poesia), Eunice Muñoz (teatro), Fernanda Montenegro (teatro), Jorge Borges de Macedo (história),  Manoel de Oliveira (cinema), Maria João Pires (música), Orquestra Gulbenkian (música) Roberto Barchiesi (língua portuguesa).   


Daí ser justo questionarmo-nos duma eventual atribuição da Ordem de Camões, de um doutoramento honoris causa (em que a universidade espanhola de Salamanca se antecipou), incluindo o prémio Camões, este na sequência de uma interpretação mais ampla do prémio atribuído a Bob Dylan (Nobel da literatura) e Chico Buarque (Camões), por critérios não movidos por uma interpretação literal e estritamente literária.        


Portugal e a língua portuguesa não se complementam nem realizam tão só na Europa, havendo um compromisso e desígnio estratégico atlântico e global que se afirma levando a Europa e o Mundo à lusofonia e esta à Europa e ao Mundo, sendo a língua portuguesa o seu motor e veículo primordial, havendo que reconhecer, a esse nível, o contributo crucial de CV.


20.10.23
Joaquim M. M. Patrício