Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Nos cem anos da publicação da “Clepsidra” de Camilo Pessanha (1867-1926) votamos a recordá-lo no confronto que teve com Camões, de admiração, respeito e elogio supremos da cultura universal da língua portuguesa.
UM GÉNIO NA DISTÂNCIA
Camilo Pessanha, na célebre invocação de Camões na gruta de Macau, no dia 10 de junho de 1924, começa por lembrar a tradição de que o épico esteve em Macau e aí escreveu a sua obra-prima. “Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de certo renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa”. É normal que se contestem as tradições – como se de plantas vivas se tratasse, constituindo o sentimento popular a seiva que as mantém. A tradição é, assim, um símbolo vivo e por isso a sua conferência não punha em causa a verdade dos factos sobre Camões, mas enaltecia a grandeza da figura recordada, adequando quanto se dizia à importância dessa memória. Para Camilo Pessanha não estava em causa a grandeza da figura de Camões e da sua obra, mas sim o relacionamento de uma tradição significativa com a realidade de Macau. E o poeta usa dois argumentos: o território de Macau é o mais remoto a que chegaram e se estabeleceram os portugueses. O longínquo território onde se fala português tem a ver com a essência do poema camoniano – que canta a epopeia marítima do povo – enquanto a inspiração poética é o melhor modo de interpretar o mais fundo de um sentimento cultural e étnico. E a inspiração é emotividade modulada pela educação. O que faz a inspiração para Pessanha é a experiência coletiva sedimentada num espaço e enquadramento natural, que corresponde à metáfora do mundo vegetal e da seiva que se perpetua. E assim o texto assume uma imagem, que nos conduz ao húmus da terra natal. A natureza relevante para a poesia tem a ver, assim, com a forma de vida bucólica.
REMINISCÊNCIA DO TORRÃO NATAL
Se toda a poesia se alimenta da vivência natural das origens de cada um, a inspiração poética portuguesa vincula-se à reminiscência do torrão natal. E em Macau “fácil é a imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas (…), das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante (…), e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa”. E aqui encontraríamos uma primeira razão para a inspiração de Camões neste lugar distante, sentindo-o como fonte de inspiração poética portuguesa. Mesmo em condições difíceis de um exílio da pátria, Camões pôde manter viva, em si, a pátria distante, mantendo ativa a sua inspiração. E assim, o génio de Camões teria tido “pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia”. E Pessanha encontra em Camões o símbolo da energia da nação no seu apogeu. E daí a necessidade de colocar a questão da continuidade. E o afastamento da origem ameaça a permanência da inspiração poética. Comparando o passado e o presente, o poeta é levado a invocar as distâncias, entre o zénite e o ocaso. E sente-se pigmeu, se comparado com a geração do épico. Não havia nesse seu tempo decadente uma geração pródiga de energias e por isso o poeta talvez não fosse capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitissem manter a vitalidade criadora quando afastado do ambiente das origens portuguesas, ao contrário de Camões… Trinta anos antes desta incursão literária que, por ser rara e significativa, tem sido muito analisada, há uma carta para Alberto Osório de Castro, de 30 de abril de 1894, na qual fala da passagem do tempo e da deslocação para longe da sua terra-natal. Camilo Pessanha está deslumbrado com a diversidade do Oriente, mas não esconde o desafio da adaptação às novas circunstâncias. “Ai, meu pobre amigo, eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza”. E essa avareza, como metáfora, corresponde à exigência de não perder o efeito vegetal da seiva fecunda trazida da terra-natal e de lutar contra os efeitos do afastamento – o que no caso de «Os Lusíadas» o poeta considera ser marca da genialidade camoniana o facto de manter a permanência da inspiração poética.
UMA GRUTA REFERENCIAL
“É a gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correção em muitos dos seus defeitos -, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses, e enquanto não se extinguem, há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte, o seu poema imortal, e que o local predileto aos seus devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então erma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido nem bronze”. Em suma, mais importante do que a demonstração história da presença efetiva do poeta em Macau, o que importa é que o épico esteja presente naquele território – como referência, como verosimilhança e como marca da permanência da língua portuguesa no mundo… Como ficou claro há uns anos quando em nome do CNC, com Fernando Pinto do Amaral, homenageamos Camões na gruta: Camilo Pessanha disse, que Camões está ali mesmo por direito próprio, de uma vez para sempre, porque ali estão o seu espírito, o seu talento e a sua influência.
Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordâcia de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “gloria de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. Como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…
A intervenção do Cardeal D. José Tolentino Mendonça no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no Mosteiro dos Jerónimos, merece uma leitura muito atenta e uma reflexão séria.
RECUSAR A IDOLATRIA DO TER Como poderemos entender quem somos, de onde vimos, para onde vamos, sem compreender as raízes, a comunidade, as pessoas, o encontro das várias gerações, o enriquecimento mútuo das experiências e dos exemplos, a atenção e o cuidado com os outros e com o que nos cerca, a troca das aprendizagens, a dignidade do ser e a recusa da idolatria do ter? No recente discurso proferido por ocasião do dia de Portugal, a convite do Presidente da República, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça recordou um ensaio de Simone Weil “destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Guerra”, onde afirma que “um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando quer esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama desta é muito mais pura”. E aqui está a raiz do patriotismo e a diferença relativamente aos nacionalismos. Também Eduardo Lourenço tem insistido neste ponto, afirmando que mais do que a glória passada, importa considerar que, cada um, não sendo nem melhor nem pior do que outros, tem o dever de partir da imperfeição para o desafio emancipador e de superação das dificuldades (cf. Portugal como Destino). O amor do país, como patriotismo prospetivo, obriga, assim, à compaixão, como exercício efetivo de fraternidade (cuja importância Marcuse reconheceu a Habermas no leito de morte). Com base na compaixão é que importa ligar as raízes à vivência da comunidade. E a comunidade associa etimologicamente os dois termos latinos cum e munus. Trata-se de ligar um dever comum (munus) a uma tarefa partilhada. Nestes tempos de pandemia fica assim lembrada a primeira tarefa de uma comunidade: cuidar da vida. “Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa e mais atual”. E Camões é recordado por Tolentino Mendonça – na referência à tempestade, que invoca a ideia de vulnerabilidade, “com a qual temos sempre de fazer conta”, já que as “raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo”. De facto, não há super-homens nem super-países, todos temos as nossas forças e as nossas feridas. E o certo é que a raiz da civilização é a comunidade.
O CERNE DO CONCEITO DE PATRIMÓNIO Estamos no cerne da noção de património cultural, como realidade viva, por cuja defesa o diretor do Arquivo e Biblioteca do Vaticano foi reconhecido na atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2020, da Europa Nostra, Centro Nacional de Cultura e Fundação Calouste Gulbenkian. Como salientou a esse propósito José Tolentino Mendonça, “a cidadania europeia é também uma cidadania cultural. E esta liga-se ao tesouro da memória, à pluralidade das tradições e raízes, que através das gerações alicerçam uma identidade e um quadro de valores onde nos reconhecemos. E desafia-nos a não fechar o património cultural no passado. O património cultural é um motor indiscutível do presente e só com ele podemos pensar que há futuro”. E, como disse Agostinho de Hipona, os tempos são três: “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras”. Essa tripla dimensão liga-nos às marcas da história. Daí que o prémio ponha a tónica no património como realidade viva e permanente, material e imaterial, natural e paisagístico, digital ou criação contemporânea, tendo sido anteriormente outorgado a Claudio Magris, Orhan Pamuk, Jordi Savall, Pantu, Eduardo Lourenço, Wim Wenders, Bettany Hughes e Fabiola Gianotti – e agora o júri afirmou-se impressionado com a capacidade que o premiado demonstra ao divulgar a Beleza e a Poesia como parte do património intangível da Europa e do mundo. “Queremos homenagear a sua arte de comunicar não apenas através da sua notável poesia, mas também dos seus artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa e italiana. Hoje, quando a Europa e o mundo se confrontam com uma crise sem precedentes, precisamos de ouvir as vozes desafiadoras dos principais intelectuais e artistas”. No discurso dos Jerónimos, o Cardeal lembrou que as tempestades põem a céu aberto as nossas raízes. Daí que devamos construir um pacto comunitário que obrigue a robustecer um pacto intergeracional. Temos de pensar em quem nos antecedeu e em quem nos seguirá. “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”. A aprendizagem é sempre partilha e troca e não podemos dispensar ninguém. E o orador recordou a sabedoria de sua avó, a comunicar, como os antigos aedos, a sabedoria ancestral dos cancioneiros e das tradições.
A ESSÊNCIA DA TRANSMISSÃO A transmissão dos conhecimentos, como aconteceu com os poemas celebrizados por Homero, faz-se de geração em geração, não podendo ser perdida essa extraordinária capacidade renovadora. E o poeta recordou a antropóloga Margaret Mead a dizer, para surpresa dos seus interlocutores, que o primeiro sinal de civilização, não foi a pedra de amolar ou os recipientes de barro, mas um fémur quebrado e cicatrizado… Uma pessoa não foi deixada para trás sozinha”. Alguém a acompanhou na sua fragilidade, cuidou dela até que recuperasse e continuasse a ser útil. E, regressando ao canto VI de “Os Lusíadas”, disse-nos que “a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco”. Afinal, Camões, poeta maior e símbolo de todos nós, invoca um país em viagem e foi mais longe, representando o país como viagem. E não nos ensinou ainda Eduardo Lourenço, que mais importante que o destino é a viagem? Esta a nossa marca! Como explica o poeta, ilhéu da Madeira, que não fora a pandemia deveria ter usado da palavra em cerimónia na sua terra natal, esta noção de viagem, ao encontro dos outros e de nós mesmos, torna-se uma espécie de “rasto de fulgor”, parafraseando Maria Gabriela Llansol, que exprime “a ardente natureza do sentido que interrogamos” porque uma grande viagem é como um grande amor, que permite entender, segundo Herberto Helder, “como pesa na água (…) a raiz de uma ilha”. E que é a vida senão esta compreensão?
A língua portuguesa é um idioma global, intercontinental e transnacional, com centenas de milhões de falantes disseminados por várias latitudes.
Tendo tido como ponto de partida a Europa, está essencialmente implantada, nos dias de hoje, em espaços fora do continente europeu, com especial densidade no continente americano e africano.
Indicia-se que o futuro global da futura globalização do nosso idioma será protagonizado e revitalizado de fora da Europa, nomeadamente através do continente sul-americano, via Brasil (o “imenso Portugal”, cantado por Chico Buarque), um país de escala continental e potência emergente.
Os emigrantes que a Europa recebe e de que necessita, também operarão essa revitalização.
Tendo como referência a liderança dos Estados Unidos, com a projeção e prestígio global do inglês, são os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro, o que, por agora, se aplica ao Brasil, no que toca ao português.
Todavia, o poema épico por excelência que canta as façanhas e os feitos dos portugueses (“Os Lusíadas”) é omisso quanto ao Brasil.
Camões celebra a epopeia portuguesa em África e na Ásia, mas não na América. Sendo Os Lusíadas parte integrante do imaginário nacional, assinalando e cantando a história do Portugal guerreiro e marinheiro, falta-lhe assinalar, cantar e priorizar as navegações portuguesas que nos levaram até ao Brasil.
Há em Camões e no seu poema épico um Portugal marinheiro omitido, não cantado, nem celebrado, atenta a enorme importância do Brasil para Portugal e para a nossa história, pois embora a viagem de Vasco da Gama seja o motivo central, o assunto principal d`Os Lusíadas é toda a história de Portugal (não a viagem do Gama à Índia).
Nos tempos atuais, para nós, portugueses, a importância do Brasil, por confronto com a Índia, é incomparavelmente superior, fazendo parte do nosso imaginário.
Será que esta amputação terá contribuído para um certo alheamento entre Portugal e Brasil, que foi atenuada séculos depois pela fuga da família real portuguesa às invasões napoleónicas?
José de Guimarães intitulou esta sua obra como “D. Sebastião e Camões”. São dois símbolos que devem ser lidos, como nos ensinou Eduardo Lourenço, com perspetiva crítica. São duas faces da nossa existência coletiva que devem constituir desafios de exigência e rigor. António Sérgio e Jaime Cortesão refletiram sobre a necessidade de darmos sequência positiva ao melhor do que temos feito. Como? Pela fixação, pela criação de riqueza, menos pela lógica exclusiva do transporte. Contra a ideia de improviso e as curtas vistas – importa aproveitar nas melhores condições as nossas qualidades.
Hoje o “Made in Portugal” começa a ser, no mundo, exemplo de qualidade – na moda, no vestuário, na alimentação, nos vinhos, na investigação científica, nas novas tecnologias, nos serviços, no turismo. Poderemos dar muitos exemplos – mas o culto do rigor, da exigência e do planeamento não podem ser esquecidos. É bom preferir o que produzimos, se isso for sinal de maturidade e de qualidade – não se for protecionismo. Há um longo caminho a percorrer, com trabalho, planeamento, educação, ciência e cultura…
Um dia, António Alçada disse-me que ninguém definiu melhor a pátria do que Alexandre O’Neill no seu poema “País Relativo”. Leia-se verso por verso e veja-se como o poeta de “Feira Cabisbaixa” tem toda a razão. Portugal merece o nosso muito especial afeto pelo que tem de relativo, de imperfeito, mas capaz de ser melhor… António Tabucchi compreendeu-o também ao citar o “Pranto de Maria Parda” e ao chamar a atenção para o picaresco, ao lado do épico e do lírico. Nem melhores nem piores, nem heróis do mar nem lixo – apenas nós, capazes de sermos melhores, com capacidade de nos rirmos de nós mesmos…
«País por conhecer, por escrever, por ler... País purista a prosear bonito, a versejar tão chique e tão pudico, enquanto a língua portuguesa se vai rindo, galhofeira, comigo. País que me pede livros andejantes com o dedo, hirto, a correr as estantes. País engravatado todo o ano e a assoar-se na gravata por engano. País onde qualquer palerma diz, a afastar do busílis o nariz: -Não, não é para mim este país! mas quem é que bàquestica sem lavar o sovaco que lhe dá o ar? Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes que há neste país. País do cibinho mastigado devagarinho. País amador do rapapé, do meter butes e do parlapié, que se espaneja, cobertas as miúdas, e as desleixa quando já ventrudas. O incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria. Moroso país da surda cólera, de repente que se quer feliz. Já sabemos, país, que és um homenzinho... País tunante que diz que passa a vida a meter entre parêntesis a cedilha. A damisela passeia no país da alcateia, tão exterior a si mesma que não é senão a fome com que este país a come. País do eufemismo, à morte dia a dia pergunta mesureiro: - Como vai a vida? País dos gigantones que passeiam a importância e o papelão, inaugurando esguichos no engonço do gesto e do chavão. E ainda há quem os ouça, quem os leia, lhes agradeça a fontanária ideia! Corre boleada, pelo azul, a frota de nuvens do país. País desconfiado a reolhar para cima dum ombro que, com razão duvida. Este país que viaja a meu lado, vai transido mas transistorizado. Nhurro país que nunca se desdiz. Cedilhado o cê, país, não te revejas na cedilha, que a palavra urge. Este país, enquanto se alivia, manda-nos à mãe, à irmã, à tia, a nós e à tirania, sem perder tempo nem caligrafia. Nesta mosquitomaquia que é a vida, ó país, que parece comprida! A Santa Paciência, país, a tua padroeira, já perde a paciência à nossa cabeceira. País pobrete e nada alegrete, baú fechado com um aloquete, que entre dois sudários não contém senão a triste maçã do coração. Que Santa Sulipanta nos conforte na má vida, país, na boa morte! País das troncas e delongas ao telefone com mil cavilhas para cada nome. De ramona, país, que de viagens tens, tão contrafeito... Embezerra, país, que bem mereces, prepara, no mutismo, teus efes e teus erres. Desaninhada a perdiz, não a discutas, país! Espirra-lhe a morte pra cima com os dois canos do nariz! Um país maluco de andorinhas tesourando as nossas cabecinhas de enfermiços meninos, roda-viva em que entrássemos de corpo e alegria! Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro. Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar, já o passo a meu filho, cansado de o olhar... No sumapau seboso da terceira, contigo viajei, ó país por lavar, aturei-te o arroto, o pivete, a coceira, a conversa pancrácia e o jeito alvar. Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha; entornado de sono, resvalaste para mim. Mas também me ofereceste a cordial botelha, empinada que foi, tal e qual clarim!»
A ideia-mater do soneto baseia-se no conceito final: por o todo também se toma a parte. A parte do todo é um lindo trançado (fita para apertar tranças) com que o poeta traça amoroso monólogo.
Sonetos Luís De Camões, prefácio, seleção, notas e bibliografia de João de Almeida Lucas, Vice-Reitor do Liceu de D. João de Castro – Livraria Clássica Editora A.M. Teixeira & C.A (FILHOS), Lda.
XXXIII - CONVIVENDO ENTRE O NACIONAL E O INTERNACIONAL
A nossa integração na Europa não deve implicar a nossa dissolução como nação.
Não podemos esquecer a nossa dimensão histórica, atlantista, lusíada, lusófona da portugalidade. Esta nossa dimensão abriu-nos ao mundo, pelo que não podemos estar só virados para a Europa.
A língua portuguesa é um exemplo exemplar de uma apetecível e saudável convivência entre o nacional e o internacional, dada a sua dimensão identitária, de coesão, lusíada, de disseminação pelos descobrimentos, de diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea, intercontinental, transnacional, transoceânica, migratória, miscigenada, pluricêntrica, pluricultural, global, internauta e de exportação.
O português não é um idioma menor, mas é um idioma menorizado no plano multilateral a nível internacional. Embora tenha um número crescente de consagrações a nível formal em várias instituições internacionais, não tem, adequada e proporcionalmente, a desejável aplicação prática. E são muitos os portugueses que o promovem, ao usarem outras línguas e deixarem-se deslumbrar por isso, talvez porque julguem ter uma receção mais simpática e afetuosa pelos destinatários, mas secundarizando o português, mesmo quando desnecessário. Apesar de mais falada que outras, há-as menos faladas com maior consagração formal, como o italiano e o russo.
Se uma língua para ser verdadeiramente cosmopolita e internacional tem de ser falada e ouvida nos fora internacionais, deixando de ser um idioma regional, local e paroquial, não pode servir apenas os seus nacionais e utentes internos, nem contribuir para o culto e manutenção do uso confidencial da língua.
Tem de se acreditar nela como uma partilha total, sem graus de pertença, com tipos diferentes de gozo, uso e fruição, desde língua materna, oficial, segunda, estrangeira, internacional, global e de exportação.
É uma alteração fulcral a operar, dada a sua internacionalização, deixando de ter pertenças e sentimentos de posse exclusiva, sendo o preço a pagar pela sua expansão, permanência e subsistência no longo prazo.
E entre o que nos diferencia, prestigiando-nos, e universaliza, internacionalizando-nos, numa coexistência entre o que somos e o que desejamos ser em interação com os outros.
«Os Naufrágios de Camões» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2017) é uma hipótese romanesca que nos obriga a repensar o mito sebastianista e a interrogarmo-nos sobre a figura de Camões.
UM OUTRO CAMÕES Mário Cláudio permitiu-me, entre tantas provas de amizade, conhecer Tiago Veiga e, além do mais, contactar, através dele, com a cultura portuguesa viva – plena de surpresas e de inesperados protagonistas. Quando há uns meses recebi, com amável dedicatória, Os Naufrágios de Camões (D. Quixote, 2017) li-o imediatamente e prometi a mim mesmo aproveitar o mês de Agosto para voltar à prosa, a fim poder gozá-la lentamente, com lápis e caderno de notas, já que me pareceu ser excelente exercício para seguir os passos da complexa investigação imaginada pelo escritor para seu e nosso deleite. Cumpri escrupulosamente o intento. E o livro seguiu-me e seguiram-me Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga, Richard Francis Burton, o descobridor das nascentes do Nilo e inesperado camonista, e Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China. Acontece, porém, que para facilitar o exercício, acompanhei com pormenor a preparação da grande viagem deste ano do Centro Nacional de Cultura, “Os Portugueses ao Encontro da sua História” – à Cochinchina e ao Camboja – e, segundo a conjetura romanesca, foi em Phu Quocq, a maior ilha do Vietname, nas proximidades do Mekong, que Luís de Camões deixou o mundo dos vivos… Portanto, tudo se conjugava para tirar o máximo partido desse reencontro com o universo de Tiago Veiga. E, para tornar as coisas mais apetecíveis, uma vez que Mário Cláudio cultiva a necessária ambiguidade entre a ficção e a realidade, foi-me possível, em dado passo do romance, confundir uma diligência real com o meu amigo José Carlos Seabra Pereira com uma consulta literário-filosófica a propósito do clima que perpassa no “Banquete” de Platão e em Camões, confirmando-se que este leu o comentário de Marsílio Ficino sobre a obra do grego. Afinal, estamos sempre a circular da lá para cá e de cá para lá no espelho que nos é dado quando falamos de literatura… E, falando de moderna investigação, está já demonstrado que no Rossio está mesmo D. Pedro IV e não Maximiliano, por causa do colar da Torre e Espada… Enfim, pormenores.
O OUTRO LADO DO SEBASTIANISMO A experiência de Os Naufrágio de Camões é do puro romance, em que a realidade se mistura com a ficção, mesmo sabendo que estamos no domínio do sonho. E o que encontramos? Uma autêntica revisitação do “sebastianismo” – não só porque o próprio Desejado é enganado no decorrer dos acontecimentos do enredo, mas também porque Camões se vê envolvido na ilusão, do mesmo modo que mais tarde D. Sebastião voltaria falsamente à Ericeira ou a Penamacor. Nesta trama é o próprio épico a ser substituído por um biltre, que se apresenta como se fosse o poeta, podendo mesmo (na conjetura discutível mas estimulante) ser autor da parte final do genial poema. De facto, o enredo parte da hipótese de Camões ter morrido no Oriente. Rassmunsen é claro: “estou em crer que um enorme naco de texto, digamos as últimas estâncias do Canto VIII e os Cantos IX e X, ainda por realizar à data da tragédia marítima, não resultam do punho de Luís de Camões, mas são com toda a verosimilhança da lavra do capitão da nau anual da China”. E o cerne do romance parte da ideia de que o poeta morreu no Camboja. E o capitão, Bartolomeu de Castro, oriundo de Ponte da Barca e amigo de Diogo Bernardes, faz-se passar por Camões. Foi recolhido pelos nativos, rumando a Goa, a Malaca, Chaul e à Ilha de Moçambique, dando continuidade ao poema e mandando-o imprimir em 1572. E assim Os Lusíadas participam, como obra referencial, do drama sebástico. Não é só o rei jovem que desaparece nas areias de Alcácer-Quibir, tornando-se reencarnação do Rei Artur, esperado em manhã de nevoeiro, é também o poema imorredouro que sofre a dúvida sobre a sua plena autoria. Mário Cláudio faz, assim, de Os Naufrágios de Camões uma revisitação do mito das conquistas. E quando seguimos as reflexões e as demonstrações de Rassmunsen o que está em causa? De facto, há uma menor fulgurância da escrita da parte final do poema. “Que as imortalidades, que fingia / A antiguidade, que os ilustres ama…”. Esta vulgaridade choca o neto de Veiga (como Aquilino). Bartolomeu de Castro teria míngua de talento e é exemplo do oportunismo mercenário dos “fumos da Índia”. E o romance dá-nos na primeira parte as deambulações testemunhadas pelo próprio autor… O relato é alucinante, envolvendo diligências científicas e pseudocientíficas, espiritismo, estudos sobre textos em língua tâmil, manuscritos em folha de palmeira, budismo, missionação cristã etc. E o fim do desarvorado Rassmunsen é dramático e patético.
A SOMBRA DE UMA SOMBRA Morto o neto de Tiago Veiga a dizer “Não sei quem sou, nem onde e quando estou”, o romancista põe-se na peugada de Richard Burton, ao perceber que era este que Timothy perseguia no final de sua vida transtornada. E chegamos a Dinamene, “Aquela cativa, / que me tem cativo…”, o amor derradeiro de Camões. Compreende-se como o grande épico pôde atrair a figura do explorador inglês, herói atual – pela sua personalidade pioneira, aventureira e moderna. Burton admirava Camões, de quem se considerava quase um émulo, pelo carácter corajoso e culto: “desordeiro e erudito, familiar de alcouces, desabrido no trato e tão pronto a acariciar as coxas de uma nativa de África ou da Ásia, como a mimosear um camarada com dois murros aplicados na fronha”. E num sonho mediúnico, Bartolomeu de Castro, capitão da nau anual da China, é desmascarado: “É tempo de pormos ponto final à falcatrua, as derradeiras estâncias do grande poema foram de facto escritas pelo nosso homem”… Tratava-se da sombra de uma sombra… E é o relato de Ruy que nos dá a chave do mistério. “Embarcámos em Macau na São Lourenço, a nau anual da China, por entre uma vozearia de adeuses, de pilhérias e imprecações, e mirados de longe pelos nativos”. Iam conduzir Luís de Camões à prisão de Goa. O poeta era acompanhado da jovem Dinamene e de Jau, escravo de Java. E há o naufrágio. “A última imagem de que me restaria consciência haveria de ser a do cavername que, emergindo como um Adamastor, se erguia à minha frente enquanto a barca se empinava até desaparecer connosco, ou sem nós, nas tenebrosas goelas da tormenta”. Era na Cochinchina e o padre-pregador Gaspar da Cruz ali passara. Dinamene morreu. Camões não teria resistido. Dele rapidamente se perdeu a memória, segundo “a tradicional desmemória lusitana”. Em Lisboa, na Rua Nova apareceu um vate a recitar versos com uma pala a tapar a vista cega… Descobriu Ruy que era o comandante da nau da China que fazia das suas. Até ameaçara com violência Antónia Braz, já muito velha, antiga amásia do épico… Seguiu então os passos do farsante. O próprio rei D. Sebastião seria levado a ouvir o biltre a recitar o poema roubado. Veio o desastre de Marrocos e Filipe I tornou-se rei. As coisas mudaram e misteriosamente lemos em Os Lusíadas: “Este receberá plácido e brando, / no seu regaço o Canto, que molhado / vem do naufrágio triste e miserando, / dos procelosos baixos escapado” (Canto X, CXXVIII)…
Se há poeta português que continua a ser desconhecido e injustiçado, apesar do seu talento, ele é Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). É quem mais se aproxima de Camões na sua vida e como símbolo de português com a alma pelo mundo repartida.
Partiu para a Índia, ficou algum tempo no Rio de Janeiro, fez escala em Moçambique, cursou estudos regulares de oficial de Marinha em Nova Goa e foi colocado em Damão, donde desertou, indo até Macau. Fez, pois, a rota do Império e com justiça comparou-se ao lírico e épico de «Os Lusíadas»
Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co’o sacrílego gigante
Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Da penúria cruel no horror me veja; Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante.
Ludíbrio, como tu, da sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura.
Modelo meu tu és, mas… oh, tristeza!... Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza
Só 40 anos de vida, um apurado sentido poético, uma sólida cultura clássica… Alexandre O’Neill homenageou-o. E hoje devemos lê-lo, em vez de seguir as historietas que por aí andam…
Fins de semana compridos, feriados sucessivos, o que seja disso tudo pouco ou nada me mexe na vida. Quanto muito, poderá tal benesse pôr-me à janela da prateleira em que estou posto... E a olhar para fora. A TV também ajuda, não vejo muito, mas nestes dias, sei lá porquê, gosto de percorrer o panorama que me oferece: o início do campeonato europeu de futebol, os noventa anos de Isabel II, as comemorações do dia de Camões e das Comunidades Portuguesas. E dou por bem empregue o tempo que lhes dei. Tenho visto equipas francesas, suíças, albanesas, com jogadores de várias origens e raças em cada uma, emigrantes regressados às pátrias ou, fora delas, mantendo o seu ganha-pão, mas regressando sempre ao carinho da pátria inicial, a de seus pais. Como também emigrados que imigraram mesmo, em primeira, segunda ou terceira geração, na pátria nova, que é agora sua, e que servem amam e festejam. É bonito! É, para mim, cristão de confissão convictamente católica, ou universal, uma imensa consolação: sempre penseissenti que é isso mesmo o cristianismo, essencialmente a comunhão de todos na alegria da vida. Pois só nessa convivência poderemos dizer o nome de Manuel, "Deus connosco"!
Quando me chegam ecos de reações xenófobas, ou ditas nacionalistas, desvalorizando seleções nacionais por estas terem gentes de outras raças e credos, rio-me da ignorância de quem não sabe como, afinal, todos somos filhos de Quem, e em todos nós muitos genes se misturam. E fico um pouco triste ao ver como a grande, essencial, mensagem da Boa Nova, pode ser esquecida na Europa que a Cristandade fez: nenhuma nação é grega ou romana, gentia ou judia, ou seja o que for que fizer diferença, pois Deus, nosso Senhor, manda sol e chuva para cima de todos. Uma nação, ou uma igreja, não é uma seita, é um projeto de união fraterna. E até quase me zango, magoado por esse mal querer ao estrangeiro, com a cegueira tal que não entende que até nas grandes guerras dos europeus, e em terras de Europa, tantos soldados vindos das colónias de África e outros continentes se sacrificaram por pátrias que, só por isso, se tornaram, com pleno direito, as pátrias deles... E não as poderiam representar numa seleção de futebol, a que, aliás, acedem por serem melhores do que outros?
Tudo isto me ocorre também, ao ver, com o gosto familiar que sempre tive por essas "cerimónias", as celebrações militares dos 90 anos de Sua Majestade a Rainha Isabel II. Nos magníficos alinhamentos de tropas britânicas, também se contavam africanos e asiáticos, mais do que súbditos, eles mesmos cidadãos livres da monarquia. Por direito e mérito próprio, numa sociedade e num sistema que, graças a Deus, tanto mais se honra quanto mais souber reconhecer como iguais aqueles que participam no seu projeto de nação cristã, não só pelas raízes, mas hoje, sobretudo, pela universalidade do abrigo que a todas as raças e religiões oferece. A vocação do cristianismo é o fim do nacionalismo religioso, é a alegria livre do convívio reconhecido dos filhos de Deus. Que todos somos.
No mesmo espírito em que o meu pensarsentir tem vivido estes dias, comovo-me, com alegria grata, ao ver representantes do nosso Estado Português festejarem e homenagearem emigrantes, indo até ao sítio de uma "bidonville", ou bairro de lata, onde a coragem, que venceu a miséria, os acolheu, porque já a traziam da madre pátria. Bravos! Tal como, ao longo de todos estes anos - em que chorei a morte de militares portugueses, irmãos meus e africanos, com quem partilhei 25 meses de trabalhos, dia a dia, na Guiné - me tenho enchido de silencioso orgulho e indizível mágoa, ao assistir a uma celebração religiosa islamo-cristã, por todos eles, os mortos, e nós com eles, nesse dia do coração comum, o de Camões universal - que foi, também, não esqueças, o namorado de Dinamene - e das comunidades portuguesas. Nem a nossa saudade, nem tampouco a soberba declamada por outros, poderão curar esta ferida marcada e rasgada pelo destino de tantos africanos, nossos irmãos de armas e de coração, que um processo de descolonização, alimentado de ilusões ou demissões, perdendo a razão humana do seu sentido, abandonou a outros ódios e co-condenou à morte... Como vês, Princesa, há dias em que, no meu pensarsentir, o coração manda muito... Não porque seja alheio a razões que a minha razão, afinal, reconhece, mas porque também vai tendo, ao longo desta vida em que sempre o senti bater, comoções fortes, que não escondo nem consigo esconder, essas todas que amizades profundíssimas ciosamente guardam nos subterrâneos da minha alma...
Estou velho, bem sei. Limitadíssimo. Por isso pouco saio e pouco apareço e digo. Mas muito sinto, sem talvez saber se penso. Digo pensossinto, porque sempre assim fui lidando comigo. Guardo, na memória da cabeça, os sentimentos do coração. E tento voltar a passa-los pelo crivo da razão. Quiçá assim vá conseguindo entender-me na dialética de mim com a minha circunstância: serei um conservador que procura ser justo? E será que o que conservo é, de alfa a ómega, o sopro - que eu possa sentir - do Espírito que criou e renova a face da terra? Na fraternidade universal me sinto mais português, mais cristão, mais feliz. Muitas vezes - a muitos títulos e de muitas maneiras - te tenho escrito que vou sempre aprendendo a amar a imperfeição, pois nela necessariamente nos descobrimos e podemos amar. O amor é a capacidade de passarmos além das nossas limitações.
Assim, fiquei feliz ao ouvir o Papa Francisco, no seu sermão deste domingo, dizer: O mundo não será melhor se se compuser apenas de pessoas aparentemente "perfeitas" (para não dizer "maquilhadas"), mas sim, quando crescem a solidariedade, a mútua aceitação, e o respeito entre os seres humanos. Como são verdadeiras as palavras do Apóstolo: o que é fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte... Palavras respigadas do versículo 27 do capítulo I da primeira carta de São Paulo aos Coríntios, onde também lemos: Mas o que é louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios... E já no versículo 25 explicara: Porquanto o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Pensossinto, Princesa de mim, que a loucura e a fraqueza de Deus têm um nome comum: Amor. E ocorre-me agora uma carta antiga, que te escrevi acerca da Turandot do Puccini, do desenlace comovente e feliz do dilema existencial que preenche aquela ópera: a princesa Turandot, ao perceber que Calaf a ama com mais loucura do que do próprio orgulho dela - e ao ponto de lhe revelar, com risco de vida, o seu nome - grita à multidão ansiosa que o nome de Calaf é AMOR!