Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
XXX. Recordar Camões no Quinto Centenário do seu Nascimento
Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”.
Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema épico divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heroicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tónicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordância de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às Nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “glória de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contem as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. E como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…
Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões (Contraponto, 2024) da autoria de Isabel Rio Novo permite-nos compreender o carácter rico e multifacetado da vida do maior poeta da língua portuguesa.
EXCECIONAL FORMAÇÃO António José Saraiva teve razão ao afirmar que a grande prova da excecional formação de Camões em Coimbra se encontra na sua obra, que ostenta notáveis extensão, profundidade e solidez de conhecimentos. Os primeiros biógrafos e comentadores foram unânimes em reconhecê-lo e quase quinhentos anos de exegeses sobre a obra camoniana permitem que lhes demos razão. De facto, Luís de Camões conhecia bem os textos bíblicos do mesmo modo que os autores latinos e gregos – Virgílio, Horácio, Cícero, Plínio, o Antigo, ou Ovídio. E aí encontrou o paradigma do poeta desterrado, que ilustraria o seu percurso biográfico, marcado por partidas, viagens e ausências. Por exemplo, em Os Lusíadas, o poeta serve-se, com segurança, de todos os epítetos atribuídos à deusa Vénus e, querendo comparar os portugueses modernos aos heróis da Antiguidade, encontra termos clássicos que demonstram a superioridade dos seus conterrâneos. Por cada varão português encontra um semelhante clássico, colhido entre os heróis gregos, romanos e de outros povos celebrados pelos historiadores antigos. De facto, Camões possuía um saber erudito, que abarcava vários domínios do conhecimento, da geografia à botânica, da cosmologia à astronomia, adquirido através não só de leituras diretas de clássicos, mas também das vulgatas disponíveis. A qualidade do seu estilo e o domínio rigoroso da sintaxe, o emprego adequado do vocabulário, decorrem de longas e profícuas leituras, e da convivência desde tenra idade com o latim, que era suposto ser usado no diálogo dentro das portas da escola. Camões conhecia ainda as crónicas históricas portuguesas, sendo amigo do grande cronista Diogo do Couto, tendo ainda o conhecimento de escritores modernos, italianos, castelhanos e portugueses, como Dante e Petrarca, Pietro Bembo, Garcilaso de la Vega, Ariosto, Tasso, André de Resende e Bernardim Ribeiro. Eis por que razão a discussão sobre se Camões fez ou não estudos superiores se torna irrelevante para a fruição da sua obra.
HONESTO ESTUDO COM EXPERIÊNCIA MISTURADO Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões (Contraponto, 2024) da autoria de Isabel Rio Novo permite-nos compreender o carácter rico e multifacetado do maior poeta da língua portuguesa. E o certo é que, apesar da voracidade com que procurava aceder aos livros, a principal biblioteca do épico deverá ter sido a sua memória extraordinária, assente em aturadas leituras – que o levará a dizer “Nem me falta na vida honesto estudo, / Com longa experiência misturado, / Nem engenho que aqui vereis presente…” (Os Lusíadas, Canto X, 154). E como a autora refere, mercê de um trabalho sério e exaustivo, além da quantidade impressionante de referências eruditas e da extraordinária memória, Camões também guardava lendas populares, provérbios, adágios e rifões. E assim vemo-lo influenciado pela tradição lírica galaico-portuguesa e pela poesia provençal, que deixaram marcas em muitas composições escritas na medida velha, isto é, em versos de cinco e sete sílabas, quer nas cantigas de amigo, em que fala a dona, quer nas cantigas de amor em que o poeta toma a palavra em nome do amor cortês. No conhecido vilancete, a partir do mote, “Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura”, encontramos as pastorelas medievais, que ficcionam o diálogo entre o cavaleiro e a camponesa, junto de uma fonte, ainda que nas redondilhas camonianas a rapariga “formosa e não segura” se limite a ser contemplada… No vilancete “Deus te salve, Vasco amigo”, Camões combina a feição bucólica da poesia rural com a retórica petrarquista, substância da medida nova, apresentando o pastor que se sentia fora de si, porque tinha na amada “a alma e a vida”. Contudo Camões surge-nos como um homem da sua época, que pensava e vivia com os valores e preconceitos dos seus contemporâneos, na ciência e nas limitações.
Da criteriosa investigação de Isabel Rio Novo, encontramos detalhes que nos apresentam a personagem com toda a sua riqueza, literato e destemido, reflexivo e aventuroso. Atente-se ao livro de matrículas da Casa da Índia, se bem que o biógrafo Manuel Correia julgue que o poeta teria nascido em 1517, Faria e Sousa descobre o registo de 1550 relativo a uma viagem que não chegou a realizar-se em que se apresenta Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa na Mouraria, escudeiro de 25 anos, barbirruivo, que trazia por fiador seu pai, devendo partir na nave de S. Pedro dos Burgaleses. Ora, se em 1550 Camões tinha 25 anos só poderia ter nascido em 1524 ou 1525, como hoje se julga… Embarcaria, noutra ocasião, para o Oriente como homem de armas, precisando de combater, pois só assim receberia o soldo, podendo acumular certidões de serviço com que poderia, mais tarde, requerer um provimento. Por isso, apesar de o poeta não apresentar provas de mais expedições militares após a guerra ao rei da Pimenta e o embarque na armada do Norte, o certo é que deverá ter participado em várias expedições militares, como pressupõem os biógrafos seiscentistas, que o colocam “servindo a pátria, no verão, com as armas em o mar; no inverno, com a pena em terra”. Para Manuel Correia, Camões foi muito tempo soldado na Índia, dizendo as pessoas de crédito que o conheceram que foi homem de espírito e que em todas as ocasiões de guerra em que se achou deu boa conta de si.
ERROS MEUS, MÁ FORTUNA Quando fala de “Erros meus, má fortuna, amor ardente”, a verdade é que todos esses fatores se conjugaram para o perder. Os erros e a má fortuna sobejaram, mas o amor fora o suficiente. Os exemplos das heroínas abundam, mas escondidas, porventura para proteger as identidades verdadeiras, nos anagramas Aónia para Joana; Belisa ou Sibela para Isabel; Natércia para Catarina; Nise para Inês. Porém, os vários nomes femininos que se encontram na lírica, além das encomendas, muitos são convencionais, tirados da Bíblia, dos autores clássicos ou dos cancioneiros: Dinamene, Elisa, Amarílis, Silvana, Sílvia… E encontramos uma procura rigorosa, em lugar da tradição mítica ou de fantasiosa integração de lacunas. Reúne-se, assim, um conjunto de elementos dos melhores analistas, procurando Isabel Rio Novo encontrar não respostas definitivas e fechadas, mas hipóteses de trabalho sérias, coerentes e verosímeis. Não se trata, pois, de dispor de um Camões completo e perfeito, mas de reunir informações que permitem, em busca da verdade, irmo-nos aproximando da vera efígie, na certeza de que nunca a atingiremos plenamente, por incapacidade nossa e falta de evidências suficientes. Contudo, devemos a Camões “o justo peso das sílabas, o justo espaço do silêncio, a articulação justa”, na expressão de Sophia de Mello Breyner ou “o canto de fúlgida beleza formal, rítmica e melódica, e de espantosa densidade semântica em que se exprime, como nunca na poesia portuguesa, e só voltaria a acontecer algumas vezes na poesia do século XX, a grandeza e a miséria da condição humana”, como disse Vítor Aguiar e Silva. E a 5 de fevereiro de 1585, um alvará concederia à mãe do poeta (Ana de Sá e Macedo) quinze mil réis anuais de tença, havendo respeito aos serviços do pai Simão Vaz e aos de seu filho Luís de Camões, cavaleiro da casa de Filipe I, ficando a dúvida sobre se o poeta, mais tendo vivido, poderia ter evitado a angústia dos últimos dias…
A publicação de “Camões Uma Antologia” de Frederico Lourenço (Quetzal, 2024) constitui um acontecimento importante na celebração dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, aproximando o grande poeta do grande público e de todos os estudiosos.
Uma Antologia reunindo as passagens mais importantes de Os Lusíadas e da poesia lírica camoniana, envolvendo sonetos, canções, éclogas e demais obras significativas é uma necessidade quando celebramos o quinto centenário do mais importante poeta da língua portuguesa. Daí a importância da obra de Frederico Lourenço Camões Uma Antologia (Quetzal. 2024), que pretende responder à pergunta feita por muitos: Por onde começar a ler Camões de modo a poder apreender o significado e o lugar de uma obra fundamental, também para a cultura contemporânea? E ninguém melhor que um classicista para nos ajudar nessa diligência. Daí a importância da matriz latina na poesia de Camões, único na afirmação de um idioma falado em todos os continentes, o primeiro do hemisfério sul, com capacidade de atração multifacetada que ultrapassa em muito a dimensão textual. E importa lembrar que a origem do português está na herança dos trovadores, que um rei poeta tornou língua oficial e que a maturidade do idioma comum foi atingida por um poeta genial, que se tornou símbolo da pátria, não apenas ao cantar as glórias do passado, mas assumindo a erudição e a expressão popular enquanto marcas de uma cultura e contributos de civilização.
O CONTACTO COM A DOCTRINA Virgílio e Horácio estão bem presentes na poesia camoniana e “o que impressiona acima de tudo na poesia de Camões é a profundidade da sua cultura e das suas leituras: daquilo a que os romanos chamariam a sua doctrina”. E Frederico Lourenço insiste em que “se há poetadoctus na história da literatura que possa ser posto ao lado de Virgílio e de Horácio, esse é Camões”. E se não há prova documental da frequência do poeta da Universidade, o certo é que parece evidente o contacto com o ambiente académico através de seu tio D. Bento de Camões, cancelário da Universidade e prior dos frades de Santa Cruz de Coimbra. Além disso, Camões pode ter seguido lições do humanista André de Resende, a quem se deve a criação do neologismo Lusíadas, típico da preocupação neoclássica de encontrar raízes antigas contemporâneas da civilização romana. A verdade é que o épico teve acesso a bibliotecas, ligando intensamente a leitura e a memória. E nas Rimas revela-se um profundo conhecedor de Petrarca e dos seus seguidores em Itália e Espanha. E Os Lusíadas, desde as primeiras palavras, revelam um conhecimento profundo da Eneida e dos principais clássicos latinos. Do mesmo passo, as redondilhas das Rimas pressupõem um conhecimento seguro do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e a dramaturgia do Autos de Filodemo, dos Anfitriões e d’El-Rei Seleuco evidencia o conhecimento certo dos modelos italianos e ibéricos. E se não encontramos em Camões nem Beatriz, nem Laura, como fixações individualizadas, há as raízes trovadorescas das cantigas de amor e de amigo, na medida velha, enriquecidas com a medida nova, trazida por Sá de Miranda. Mas, seguindo a boa lição de Jorge de Sena, a melhor atitude na leitura camoniana é a recusa da tentação biografista, apesar das “puras verdades já por mim passadas”. E quando lemos “Transforma-se o amador na cousa amada / por virtude do muito imaginar” é a inspiração de Petrarca que se nota – “l’amante nell’amato si transforme”… Há, pois, a relevância da poesia como processo criativo próprio, com reminiscências pessoais, quer para proteção da intimidade, quer como afirmação pública do valor próprio. E se há afirmação autobiográfica, ela não se encontra escondida, mas está claramente afirmada em Os Lusíadas, no Canto décimo: “Nem me falta na vida honesto estudo / Com longa experiência misturado” (154).
LIDAR COM UMA OBRA-PRIMA O genial poeta encontra-se, porém, envolto em mistério no caso mais evidente da publicação da sua obra-prima. De facto, não estamos perante uma figura ignorada ou subalterna. Camões não foi um poeta maldito. O período em que morreu, esse sim, foi de angústias e tensões. A publicação do célebre poema obteve um parecer favorável da Inquisição, o que pode surpreender, em contraste com as desconfianças depois encontradas, designadamente no comentário de Faria e Sousa, em 1640. Mas o rei Filipe I de Portugal não escondeu admiração (quiçá política) por quem sabia ser um símbolo de Portugal, em respeito com as decisões de 1581 das Cortes de Tomar… Mas é a história de um pelicano que nos fixa as atenções. Subsistem cerca de 50 exemplares da edição de 1572, iguais em quatro erros, com algumas particularidades, devidas à complexa organização dos vários cadernos que os constituem, avultando a posição do pelicano no frontispício e a diferença na expressão “E entre gente remota edificaram” e “Entre gente remota edificaram”. Deve-se hoje a K. David Jackson, Vítor Aguiar e Silva e Rita Marnoto a demonstração de que a realidade da edição de 1572 é muito mais complexa do que as simplificações que se foram repetindo. E merece atenção o exemplar que se encontra em Austin, na Universidade do Texas, com anotações do padre católico, um indiano convertido, que testemunhou a morte de Camões e que anotou no referido exemplar que o poeta faleceu no hospital sem um manto para se cobrir… Mas, como ler nos dias de hoje a obra de Camões? Ninguém duvida (…) que o seu mundo era profundamente diferente do nosso. Contudo, Os Lusíadas à semelhança da Eneida contém a semente do seu próprio contraditório. Como não encontrar em Virgílio e em Camões nas entrelinhas das obras outras vozes, distantes da lógica imperial, capazes de reconhecer uma lógica emancipadora, decorrente do significado humano da literatura? De facto, também Camões quis que ouvíssemos outra voz, além da triunfalista. “Quis que soasse no seu poema uma voz a transmitir a consciência pesarosa da limitação humana”. E aí está o Velho do Restelo, como voz crítica, com o saber de experiências feito, pondo-nos de sobreaviso para a glória de mandar e a vã cobiça. Daí o alerta do canto nono: “E ponde na cobiça um freio duro / e na ambição também, que indignamente / Tomais mil vezes, e no torpe e escuro / Vício da tirania infame”…
Lembrar Camões (1524-1580) é mais do que louvá-lo. É abrir horizontes para a sua obra, no momento em que, no século XVI, foi com ele, que se atingiu a maturidade da língua portuguesa na poesia.
E não é indiferente dizê-lo, uma vez que falamos de um idioma nascido na poesia dos trovadores e que teve no rei D. Dinis o impulsionador que permitiu tornar a língua vulgar língua de cultura e meio de expressão formal para legistas e tabeliães. Essa decisão permitiu que em três séculos tenhamos podido ter com Camões a afirmação das origens do português moderno e no século seguinte a maturidade da prosa com o Padre António Vieira. Este é um caso especial no contexto das línguas europeias, que justifica plenamente que o dia nacional não se refira a uma batalha ou a um acontecimento político, mas a um ato de cultura que é a evocação da vida de um grande poeta. A língua italiana tem em Dante e na sua “Comédia” a definição suprema do paradigma da língua nacional, mas enquanto nesse caso é a unificação política nacional que determina a adoção do idioma, no caso português é a identidade que se afirma originalmente através da língua. O Estado precede a Nação, como apontou Alexandre Herculano, mas é a afirmação da língua que constitui um fator de congregação. E Camões é um símbolo natural de unificação, que constitui corolário de um caminho no qual a afirmação literária e poética assume um papel agregador fundamental. E a maturidade da poesia antecede a maturidade da prosa e da oratória, numa língua que se vai desenvolvendo pela comunicação da palavra. Como lembrou Vítor Aguiar e Silva, António Sérgio, em primeiro lugar deu um fundamental contributo “para a descoberta de um Camões pensador profundo e dramático”; José Régio elaborou uma admirável análise “interpretativa desta dialética do amor e do desejo”; Rodrigues Lapa advogou o regresso ao texto das primeiras edições das “Rimas” e Jorge de Sena foi quem pôde descobrir com a sua fulgurante inteligência teórica e crítica as virtualidades de um poeta que revelou a vitalidade cultural do seu tempo e a força do diálogo cosmopolita da riquíssima experiência renascentista. E a admiração e amor de Jorge de Sena pelo “maior escritor da língua portuguesa e cremos que um dos maiores poetas do mundo”, na sua própria expressão, merecem uma especial atenção (Cf. V. Aguiar e Silva, Jorge de Sena e Camões – Trinta Anos de Amor e Melancolia. Angelus Novus, 2009). Daí a importância da tese segundo a qual “o génio de Camões é um génio abstrato, ou seja, em que se define o universal concreto hegeliano – o qual consiste na unidade do universal e do particular, “que reduz sempre as emoções a conceitos, conceitos que não são ideias, mas a vivência intelectual delas”. Afinal, haveria que olhar Camões à luz da sua verdadeira grandeza e não de qualquer projeção de uma biografia construída, pouco consistente e tantas vezes falsamente imaginada. E o pecado mortal do biografismo camoniano teria a ver com procurar-se interpretar a poesia do épico a partir de leituras arbitrárias, erróneas e transviadas da vida e obra e da própria poesia de Camões, baseada em muitos poemas apócrifos ou pertencentes a outros poetas. Haveria, assim, um círculo vicioso, desde a utilização de factos supostamente surgidos de modo a justificar as construções biográficas. Daí a importância das revisões críticas de Audrey Bell que visavam desmontar várias invenções tecidas por imaginativos biógrafos. Por isso, Jorge de Sena afirmou em 1951: “Apenas desejo aqui deixar consignada a mais calorosa adesão ao Camões humano que, entretanto, Aquilino Ribeiro tentou, em tão boa hora, ‘desbiografar’, se assim se pode dizer do que não é mais que uma nobre e veemente obra de humanização de um ‘mito’ nacional”. Porém se Aquilino romancearia essa reconstrução, o que importava para Jorge de Sena era essencialmente a necessidade de desconstruir o mito e os ilegítimos aproveitamentos do mesmo…
Como dirá no célebre discurso sobre o Dia de Portugal de 1977, importava «dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência». Jorge de Sena deixava, assim, claro que, «sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo».
Para Jorge de Sena, Camões é «o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo». Fora de qualquer tentação de autossatisfação ou de ilusão, «ninguém, como Camões, desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exatamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares». No essencial, «ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa». Eis a legitimidade própria para considerar Camões como um verdadeiro símbolo, em que o sentido crítico sobreleva quaisquer argumentos de oportunidade. José Bento insistia, aliás, em que Sena não se ficava pelo meio – “procurava sempre a totalidade”. Porventura sem querer, ou querendo-o intimamente, Jorge de Sena deixou nesse dia a mensagem fundamental de um grande poeta e ensaísta moderno. Aliás, em “Sinais de Fogo”, obra-prima, apesar de incompleta, que começa no tempo da guerra de Espanha, sentimos “a tensão existencial entre conhecer e o agir, na vida social, amorosa, sexual, desencadeia a criação poética”, como disse João Fazenda Lourenço. E de facto raramente se terão harmonizado, numa mesma personalidade, o poeta, o dramaturgo, o ficcionista, o crítico, o ensaísta, o erudito, o investigador, o historiador da cultura, o professor, o engenheiro, o cidadão do mundo. E, como afirmou ao grande amigo Ruy Cinatti, aos 22 anos, “Viver é coisa de mar, cheira a horizonte. Que mais é preciso? Só é preciso o que existe – eu é que exijo tudo o que existe”. E o discurso da Guarda remata com o apelo para Camões: «Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida».
ATORES, ENCENADORES (II) O ESPETÁCULO NO PRÓPRIO TEXTO – CAMÕES, CHIADO, JORGE FERREIRA DE VASCONCELOS por Duarte Ivo Cruz
Nesta série de artigos, evocamos sobretudo os que fazem o espetáculo, a partir de textos expressos ou mesmo improvisados, mas suscetíveis de fixação e de expressão teatral. A referência específica a atores profissionais inicia-se e desenvolve-se, como veremos em próximos artigos, ao longo do século XIX mas com grande relevância no século XX e até aos nossos dias: mas a partir dos séculos XVI/XVII, os textos já muitas vezes definem, expressamente e diretamente, a sua dimensão de espetáculo.
Vejamos dois exemplos breves mas relevantes, quanto mais não seja pela qualidade e projeção dos autores respetivos.
E desde logo Camões. Tenho escrito que o teatro de Camões, independentemente de atingir o nível e o significado incomparável de Os Lusíadas ou mesmo da Lírica, além de breve - três peças – assume larga projeção no contexto do teatro renascentista, pela sua óbvia qualidade ou não fosse uma criação camoniana - e pelo próprio sentido “de espetáculo”, o que normalmente não é tanto sublinhado. Aliás é caso para dizer que “sentido de espetáculo”, no mais nobre e qualificado alcance do termo, encontramos também na restante obra de Camões.
Só como mero exemplo, e são tantos ao longo dos 10 Cantos de Os Lusíadas, veja-se a estrutura cénico - dramática do episódio de Fernão Veloso inclusive no contraste entre o trágico e o irónico (Canto V- Estrofe 35):
«Disse então a Veloso um companheiro/ (Começando-se todos a sorrir): / “Olá Veloso amigo, aquele outeiro/ É melhor de descer do que de subir”/ Sim, é respondeu o ousado aventureiro; /Mas quando eu para cá vi tantos vir/ Daqueles Cães, depressa um pouco vim/ Por me lembrar que estáveis cá sem mim”.
Este episódio, repita-se, apresenta um conteúdo em si mesmo teatral, no sentido cénico e de espetáculo. Contem o diálogo, as indicações cénicas (“começando-se todos a sorrir”) e a própria direção/ caracterização do personagem (“o ousado companheiro”) – e ainda, a ironia e graça do texto, que contrasta com a situação em que se enquadra e até – mas não é caso único – com o incomparável sopro épico de Os Lusíadas.
Mas vejamos agora o Auto de El-Rei Seleuco, representado entre 1543 e 1549. Para alem da genialidade do texto, ou não fosse de quem é, traz-nos a curiosidade de dramatizar uma representação do próprio Auto em casa de Estácio da Fonseca, Cavaleiro Fidalgo de D. João III, almoxarife e recebedor das aposentadorias da Corte. Um alto funcionário, diríamos hoje.
E o auto inicia-se com o diálogo irónico do próprio Estácio com o seu moço-criado, acerca dos atores que iriam representar a peça:
«Estácio – São já chegadas as figuras? / Moço – Chegadas são elas quase ao fim de sua vida./ Estácio_ Como assim? / Moço - Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com frisa nem talão de sapato que saísse fora do couce. Ora viram aí uns embuçadetes e quiseram entrar por força: ei-lo arrancamento na mão: deram uma pedrada na cabeça do Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não há de entrar até lhe não derem uma cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não porem uma estopada na calça. Este pantufo se perdeu ali: mande-o Vossa Mercê domingo apregoar nos púlpitos, que não quero nada do alheio/ Estácio– se ela fora outra peça de mais valia tu botares a consciência pela porta fora para a meteres em tua casa»…
Assim seria o chamado meio teatral no século XVI…
Ora, pela mesma época, entre 1545 e 1557, escrevia António Ribeiro Chiado o seu Auto da Natural Invenção. E também aqui se recorre a uma cena de presentação na Corte ou na alta classe mercantil. Temos aqui também o dialogo entre o dono da casa e o seu criado:
“Dono – Almeida!/ Almeida – senhor?/ Dono – Vem cá, vem cá!/ sabes se há –de tomar o porto/ hoje este auto, ou se é morto./ Almeida – E o autor onde está?/ Dono – Em casa de teu avô torto/ ou marmelo pela perna!/ Quem por rapazes governa/ sua casa é mais rapaz/ e rapaz que tratos traz, / com quem a malícia inverna./ Que te mandei todo hoje?/ Almeida – Que mandou vossa mercê?/ Dono – Já nada, pois que assim é, /Não mande Deus que te noja»…
Já havia pois, nesta época, comediantes profissionais e companhias. Aliás Camões, no Rei Seleuco cita o Chiado, quando o Escudeiro Ambrósio diz que “o Moço Lançarote (…) uma trova, fá-la tão bem como vós ou como eu, ou como Chiado”.
E pela mesma época, Jorge Ferreira de Vasconcelos, na comédia Aulegrafia também cita Chiado e põe na boca do personagem D. Ricardo este elogio ambíguo: “Em algumas cousas teve veia esse escudeiro”!
Termino com três citações.
Hernâni Cidade encontra nos Anfitriões de Camões uma “ternura que Plauto desconhece” (in Obras Completas de Camões vol.III); Clarice Berrardbnelli e Ronaldo Menegaz comparam a peça do Chiado com a de Camões, na convergência “de uma auto (B), dentro de um outro(A), mas enquanto Camões nos dá uma trama unida (…) o Chiado vai ao sabor da sua natural invenção traçando os fios e deixando as pontas soltas” (in Autos de António Ribeiro Chiado, ed. Rio de janeiro 1968); e Maria Odete Dias Alves assinala que Jorge Ferreira de Vasconcelos “povoa o palco de figuras portuguesas da sua época: é o ambiente de Quinhentos que vive nas suas paginas” (in A Linguagem dos Personagens de Jorge Ferreira de Vasconcelos - U Coimbra 1972).
Duarte Ivo Cruz
Obs: Reposição de texto publicado em 17.12.14 neste blogue.
Nos cem anos da publicação da “Clepsidra” de Camilo Pessanha (1867-1926) votamos a recordá-lo no confronto que teve com Camões, de admiração, respeito e elogio supremos da cultura universal da língua portuguesa.
UM GÉNIO NA DISTÂNCIA
Camilo Pessanha, na célebre invocação de Camões na gruta de Macau, no dia 10 de junho de 1924, começa por lembrar a tradição de que o épico esteve em Macau e aí escreveu a sua obra-prima. “Tem-se debatido desde há anos a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se aqui desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de certo renascer mais animada algum dia; e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa”. É normal que se contestem as tradições – como se de plantas vivas se tratasse, constituindo o sentimento popular a seiva que as mantém. A tradição é, assim, um símbolo vivo e por isso a sua conferência não punha em causa a verdade dos factos sobre Camões, mas enaltecia a grandeza da figura recordada, adequando quanto se dizia à importância dessa memória. Para Camilo Pessanha não estava em causa a grandeza da figura de Camões e da sua obra, mas sim o relacionamento de uma tradição significativa com a realidade de Macau. E o poeta usa dois argumentos: o território de Macau é o mais remoto a que chegaram e se estabeleceram os portugueses. O longínquo território onde se fala português tem a ver com a essência do poema camoniano – que canta a epopeia marítima do povo – enquanto a inspiração poética é o melhor modo de interpretar o mais fundo de um sentimento cultural e étnico. E a inspiração é emotividade modulada pela educação. O que faz a inspiração para Pessanha é a experiência coletiva sedimentada num espaço e enquadramento natural, que corresponde à metáfora do mundo vegetal e da seiva que se perpetua. E assim o texto assume uma imagem, que nos conduz ao húmus da terra natal. A natureza relevante para a poesia tem a ver, assim, com a forma de vida bucólica.
REMINISCÊNCIA DO TORRÃO NATAL
Se toda a poesia se alimenta da vivência natural das origens de cada um, a inspiração poética portuguesa vincula-se à reminiscência do torrão natal. E em Macau “fácil é a imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos frequentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas (…), das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante (…), e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa”. E aqui encontraríamos uma primeira razão para a inspiração de Camões neste lugar distante, sentindo-o como fonte de inspiração poética portuguesa. Mesmo em condições difíceis de um exílio da pátria, Camões pôde manter viva, em si, a pátria distante, mantendo ativa a sua inspiração. E assim, o génio de Camões teria tido “pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia”. E Pessanha encontra em Camões o símbolo da energia da nação no seu apogeu. E daí a necessidade de colocar a questão da continuidade. E o afastamento da origem ameaça a permanência da inspiração poética. Comparando o passado e o presente, o poeta é levado a invocar as distâncias, entre o zénite e o ocaso. E sente-se pigmeu, se comparado com a geração do épico. Não havia nesse seu tempo decadente uma geração pródiga de energias e por isso o poeta talvez não fosse capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitissem manter a vitalidade criadora quando afastado do ambiente das origens portuguesas, ao contrário de Camões… Trinta anos antes desta incursão literária que, por ser rara e significativa, tem sido muito analisada, há uma carta para Alberto Osório de Castro, de 30 de abril de 1894, na qual fala da passagem do tempo e da deslocação para longe da sua terra-natal. Camilo Pessanha está deslumbrado com a diversidade do Oriente, mas não esconde o desafio da adaptação às novas circunstâncias. “Ai, meu pobre amigo, eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza”. E essa avareza, como metáfora, corresponde à exigência de não perder o efeito vegetal da seiva fecunda trazida da terra-natal e de lutar contra os efeitos do afastamento – o que no caso de «Os Lusíadas» o poeta considera ser marca da genialidade camoniana o facto de manter a permanência da inspiração poética.
UMA GRUTA REFERENCIAL
“É a gruta de Camões, com o seu cenário irremediavelmente mesquinho – mas suscetível, apesar disso, de correção em muitos dos seus defeitos -, esse lugar sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões, que é também o culto da pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses, e enquanto não se extinguem, há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto, em grande parte, o seu poema imortal, e que o local predileto aos seus devaneios do seu espírito solitário era essa colina, então erma, sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido nem bronze”. Em suma, mais importante do que a demonstração história da presença efetiva do poeta em Macau, o que importa é que o épico esteja presente naquele território – como referência, como verosimilhança e como marca da permanência da língua portuguesa no mundo… Como ficou claro há uns anos quando em nome do CNC, com Fernando Pinto do Amaral, homenageamos Camões na gruta: Camilo Pessanha disse, que Camões está ali mesmo por direito próprio, de uma vez para sempre, porque ali estão o seu espírito, o seu talento e a sua influência.
Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II, narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordâcia de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “gloria de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo. No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. Como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…
A intervenção do Cardeal D. José Tolentino Mendonça no dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no Mosteiro dos Jerónimos, merece uma leitura muito atenta e uma reflexão séria.
RECUSAR A IDOLATRIA DO TER Como poderemos entender quem somos, de onde vimos, para onde vamos, sem compreender as raízes, a comunidade, as pessoas, o encontro das várias gerações, o enriquecimento mútuo das experiências e dos exemplos, a atenção e o cuidado com os outros e com o que nos cerca, a troca das aprendizagens, a dignidade do ser e a recusa da idolatria do ter? No recente discurso proferido por ocasião do dia de Portugal, a convite do Presidente da República, o Cardeal D. José Tolentino Mendonça recordou um ensaio de Simone Weil “destinado a inspirar o renascimento da Europa sob os escombros da Segunda Guerra”, onde afirma que “um país pode ser amado por duas razões, e estas constituem, na verdade, dois amores distintos. Podemos amar um país idealmente emoldurando-o para que permaneça fixo numa imagem de glória, e desejando quer esta não se modifique jamais. Ou podemos amar um país como algo que, precisamente por estar colocado dentro da história, sujeito aos seus solavancos, está exposto a tantos riscos. São dois amores diferentes. Podemos amar pela força ou amar pela fragilidade. Mas, explica Simone Weil, quando é o reconhecimento da fragilidade a inflamar o nosso amor, a chama desta é muito mais pura”. E aqui está a raiz do patriotismo e a diferença relativamente aos nacionalismos. Também Eduardo Lourenço tem insistido neste ponto, afirmando que mais do que a glória passada, importa considerar que, cada um, não sendo nem melhor nem pior do que outros, tem o dever de partir da imperfeição para o desafio emancipador e de superação das dificuldades (cf. Portugal como Destino). O amor do país, como patriotismo prospetivo, obriga, assim, à compaixão, como exercício efetivo de fraternidade (cuja importância Marcuse reconheceu a Habermas no leito de morte). Com base na compaixão é que importa ligar as raízes à vivência da comunidade. E a comunidade associa etimologicamente os dois termos latinos cum e munus. Trata-se de ligar um dever comum (munus) a uma tarefa partilhada. Nestes tempos de pandemia fica assim lembrada a primeira tarefa de uma comunidade: cuidar da vida. “Não há missão mais grandiosa, mais humilde, mais criativa e mais atual”. E Camões é recordado por Tolentino Mendonça – na referência à tempestade, que invoca a ideia de vulnerabilidade, “com a qual temos sempre de fazer conta”, já que as “raízes, que julgamos inabaláveis, são também frágeis, sofrem os efeitos da turbulência da máquina do mundo”. De facto, não há super-homens nem super-países, todos temos as nossas forças e as nossas feridas. E o certo é que a raiz da civilização é a comunidade.
O CERNE DO CONCEITO DE PATRIMÓNIO Estamos no cerne da noção de património cultural, como realidade viva, por cuja defesa o diretor do Arquivo e Biblioteca do Vaticano foi reconhecido na atribuição do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva 2020, da Europa Nostra, Centro Nacional de Cultura e Fundação Calouste Gulbenkian. Como salientou a esse propósito José Tolentino Mendonça, “a cidadania europeia é também uma cidadania cultural. E esta liga-se ao tesouro da memória, à pluralidade das tradições e raízes, que através das gerações alicerçam uma identidade e um quadro de valores onde nos reconhecemos. E desafia-nos a não fechar o património cultural no passado. O património cultural é um motor indiscutível do presente e só com ele podemos pensar que há futuro”. E, como disse Agostinho de Hipona, os tempos são três: “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras”. Essa tripla dimensão liga-nos às marcas da história. Daí que o prémio ponha a tónica no património como realidade viva e permanente, material e imaterial, natural e paisagístico, digital ou criação contemporânea, tendo sido anteriormente outorgado a Claudio Magris, Orhan Pamuk, Jordi Savall, Pantu, Eduardo Lourenço, Wim Wenders, Bettany Hughes e Fabiola Gianotti – e agora o júri afirmou-se impressionado com a capacidade que o premiado demonstra ao divulgar a Beleza e a Poesia como parte do património intangível da Europa e do mundo. “Queremos homenagear a sua arte de comunicar não apenas através da sua notável poesia, mas também dos seus artigos de opinião publicados na imprensa portuguesa e italiana. Hoje, quando a Europa e o mundo se confrontam com uma crise sem precedentes, precisamos de ouvir as vozes desafiadoras dos principais intelectuais e artistas”. No discurso dos Jerónimos, o Cardeal lembrou que as tempestades põem a céu aberto as nossas raízes. Daí que devamos construir um pacto comunitário que obrigue a robustecer um pacto intergeracional. Temos de pensar em quem nos antecedeu e em quem nos seguirá. “O pior que nos poderia acontecer seria arrumarmos a sociedade em faixas etárias, resignando-nos a uma visão desagregada e desigual, como se não fossemos a cada momento um todo inseparável: velhos e jovens, reformados e jovens à procura do primeiro emprego, avós e netos, crianças e adultos no auge do seu percurso laboral. Precisamos, por isso, de uma visão mais inclusiva do contributo das diversas gerações. É um erro pensar representar uma geração como um peso, pois não poderíamos viver uns sem os outros”. A aprendizagem é sempre partilha e troca e não podemos dispensar ninguém. E o orador recordou a sabedoria de sua avó, a comunicar, como os antigos aedos, a sabedoria ancestral dos cancioneiros e das tradições.
A ESSÊNCIA DA TRANSMISSÃO A transmissão dos conhecimentos, como aconteceu com os poemas celebrizados por Homero, faz-se de geração em geração, não podendo ser perdida essa extraordinária capacidade renovadora. E o poeta recordou a antropóloga Margaret Mead a dizer, para surpresa dos seus interlocutores, que o primeiro sinal de civilização, não foi a pedra de amolar ou os recipientes de barro, mas um fémur quebrado e cicatrizado… Uma pessoa não foi deixada para trás sozinha”. Alguém a acompanhou na sua fragilidade, cuidou dela até que recuperasse e continuasse a ser útil. E, regressando ao canto VI de “Os Lusíadas”, disse-nos que “a tempestade não suspendeu a viagem, mas ofereceu a oportunidade para redescobrir o que significa estarmos no mesmo barco”. Afinal, Camões, poeta maior e símbolo de todos nós, invoca um país em viagem e foi mais longe, representando o país como viagem. E não nos ensinou ainda Eduardo Lourenço, que mais importante que o destino é a viagem? Esta a nossa marca! Como explica o poeta, ilhéu da Madeira, que não fora a pandemia deveria ter usado da palavra em cerimónia na sua terra natal, esta noção de viagem, ao encontro dos outros e de nós mesmos, torna-se uma espécie de “rasto de fulgor”, parafraseando Maria Gabriela Llansol, que exprime “a ardente natureza do sentido que interrogamos” porque uma grande viagem é como um grande amor, que permite entender, segundo Herberto Helder, “como pesa na água (…) a raiz de uma ilha”. E que é a vida senão esta compreensão?
A língua portuguesa é um idioma global, intercontinental e transnacional, com centenas de milhões de falantes disseminados por várias latitudes.
Tendo tido como ponto de partida a Europa, está essencialmente implantada, nos dias de hoje, em espaços fora do continente europeu, com especial densidade no continente americano e africano.
Indicia-se que o futuro global da futura globalização do nosso idioma será protagonizado e revitalizado de fora da Europa, nomeadamente através do continente sul-americano, via Brasil (o “imenso Portugal”, cantado por Chico Buarque), um país de escala continental e potência emergente.
Os emigrantes que a Europa recebe e de que necessita, também operarão essa revitalização.
Tendo como referência a liderança dos Estados Unidos, com a projeção e prestígio global do inglês, são os descendentes da velha Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro, o que, por agora, se aplica ao Brasil, no que toca ao português.
Todavia, o poema épico por excelência que canta as façanhas e os feitos dos portugueses (“Os Lusíadas”) é omisso quanto ao Brasil.
Camões celebra a epopeia portuguesa em África e na Ásia, mas não na América. Sendo Os Lusíadas parte integrante do imaginário nacional, assinalando e cantando a história do Portugal guerreiro e marinheiro, falta-lhe assinalar, cantar e priorizar as navegações portuguesas que nos levaram até ao Brasil.
Há em Camões e no seu poema épico um Portugal marinheiro omitido, não cantado, nem celebrado, atenta a enorme importância do Brasil para Portugal e para a nossa história, pois embora a viagem de Vasco da Gama seja o motivo central, o assunto principal d`Os Lusíadas é toda a história de Portugal (não a viagem do Gama à Índia).
Nos tempos atuais, para nós, portugueses, a importância do Brasil, por confronto com a Índia, é incomparavelmente superior, fazendo parte do nosso imaginário.
Será que esta amputação terá contribuído para um certo alheamento entre Portugal e Brasil, que foi atenuada séculos depois pela fuga da família real portuguesa às invasões napoleónicas?
José de Guimarães intitulou esta sua obra como “D. Sebastião e Camões”. São dois símbolos que devem ser lidos, como nos ensinou Eduardo Lourenço, com perspetiva crítica. São duas faces da nossa existência coletiva que devem constituir desafios de exigência e rigor. António Sérgio e Jaime Cortesão refletiram sobre a necessidade de darmos sequência positiva ao melhor do que temos feito. Como? Pela fixação, pela criação de riqueza, menos pela lógica exclusiva do transporte. Contra a ideia de improviso e as curtas vistas – importa aproveitar nas melhores condições as nossas qualidades.
Hoje o “Made in Portugal” começa a ser, no mundo, exemplo de qualidade – na moda, no vestuário, na alimentação, nos vinhos, na investigação científica, nas novas tecnologias, nos serviços, no turismo. Poderemos dar muitos exemplos – mas o culto do rigor, da exigência e do planeamento não podem ser esquecidos. É bom preferir o que produzimos, se isso for sinal de maturidade e de qualidade – não se for protecionismo. Há um longo caminho a percorrer, com trabalho, planeamento, educação, ciência e cultura…
Um dia, António Alçada disse-me que ninguém definiu melhor a pátria do que Alexandre O’Neill no seu poema “País Relativo”. Leia-se verso por verso e veja-se como o poeta de “Feira Cabisbaixa” tem toda a razão. Portugal merece o nosso muito especial afeto pelo que tem de relativo, de imperfeito, mas capaz de ser melhor… António Tabucchi compreendeu-o também ao citar o “Pranto de Maria Parda” e ao chamar a atenção para o picaresco, ao lado do épico e do lírico. Nem melhores nem piores, nem heróis do mar nem lixo – apenas nós, capazes de sermos melhores, com capacidade de nos rirmos de nós mesmos…
«País por conhecer, por escrever, por ler... País purista a prosear bonito, a versejar tão chique e tão pudico, enquanto a língua portuguesa se vai rindo, galhofeira, comigo. País que me pede livros andejantes com o dedo, hirto, a correr as estantes. País engravatado todo o ano e a assoar-se na gravata por engano. País onde qualquer palerma diz, a afastar do busílis o nariz: -Não, não é para mim este país! mas quem é que bàquestica sem lavar o sovaco que lhe dá o ar? Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes que há neste país. País do cibinho mastigado devagarinho. País amador do rapapé, do meter butes e do parlapié, que se espaneja, cobertas as miúdas, e as desleixa quando já ventrudas. O incrível país da minha tia, trémulo de bondade e de aletria. Moroso país da surda cólera, de repente que se quer feliz. Já sabemos, país, que és um homenzinho... País tunante que diz que passa a vida a meter entre parêntesis a cedilha. A damisela passeia no país da alcateia, tão exterior a si mesma que não é senão a fome com que este país a come. País do eufemismo, à morte dia a dia pergunta mesureiro: - Como vai a vida? País dos gigantones que passeiam a importância e o papelão, inaugurando esguichos no engonço do gesto e do chavão. E ainda há quem os ouça, quem os leia, lhes agradeça a fontanária ideia! Corre boleada, pelo azul, a frota de nuvens do país. País desconfiado a reolhar para cima dum ombro que, com razão duvida. Este país que viaja a meu lado, vai transido mas transistorizado. Nhurro país que nunca se desdiz. Cedilhado o cê, país, não te revejas na cedilha, que a palavra urge. Este país, enquanto se alivia, manda-nos à mãe, à irmã, à tia, a nós e à tirania, sem perder tempo nem caligrafia. Nesta mosquitomaquia que é a vida, ó país, que parece comprida! A Santa Paciência, país, a tua padroeira, já perde a paciência à nossa cabeceira. País pobrete e nada alegrete, baú fechado com um aloquete, que entre dois sudários não contém senão a triste maçã do coração. Que Santa Sulipanta nos conforte na má vida, país, na boa morte! País das troncas e delongas ao telefone com mil cavilhas para cada nome. De ramona, país, que de viagens tens, tão contrafeito... Embezerra, país, que bem mereces, prepara, no mutismo, teus efes e teus erres. Desaninhada a perdiz, não a discutas, país! Espirra-lhe a morte pra cima com os dois canos do nariz! Um país maluco de andorinhas tesourando as nossas cabecinhas de enfermiços meninos, roda-viva em que entrássemos de corpo e alegria! Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro. Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar, já o passo a meu filho, cansado de o olhar... No sumapau seboso da terceira, contigo viajei, ó país por lavar, aturei-te o arroto, o pivete, a coceira, a conversa pancrácia e o jeito alvar. Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha; entornado de sono, resvalaste para mim. Mas também me ofereceste a cordial botelha, empinada que foi, tal e qual clarim!»