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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 17 a 23 de dezembro de 2018.

 

«Princípio de Karenina» de Afonso Cruz (Companhia das Letras, 2018), que acaba de ser publicado, nasceu da viagem ao Vietname e ao Camboja, organizada pelo Centro Nacional de Cultura, em 2017.

 

GEOGRAFIAS DENTRO DE NÓS
O objetivo dessa viagem seria encontrar vestígios dos portugueses nesses lugares tão distantes – e, no dizer do autor, “porventura, encontrar essas mesmas geografias dentro de nós”… A novela agora vinda a lume tem ainda com outra origem o texto escrito por Afonso Cruz para o espetáculo “Pasta e Basta”, da autoria de Giacomo Scalisi com cocriação de Miguel Fragata e que mistura “teatro e culinária, fazendo das receitas uma metáfora da própria criação, enquanto encontro de ingredientes de várias proveniências”. A obra parte da ideia de um pai que escreve à filha que não conhece para contar-lhe a sua própria história, que é, afinal, de ambos. “Esta história, minha e de tua mãe, é também tua. (…) No lugar onde me encontro, a felicidade é um luxo, e talvez por isso, porque pela primeira vez me encontro numa situação verdadeiramente desesperada, tenha alcançado aquilo que o conforto ou a abundância ou a segurança nunca me deram, esse estranho júbilo que se deixa afetar pelo mundo, pelas suas circunstâncias e que, malgrado a dor que nos rodeia, mantém em nós um sorriso intocado, invulnerável, por debaixo das aparências mais desconcertantes ou sofridas”. Estamos, deste modo, perante uma entrega e uma troca de natureza emocional. E a viagem à Cochinchina visa “encontrar e perceber aquilo que está mais perto de nós, aquilo que nos habita”. Estamos perante uma busca que leva a ir “para lá do longe”, o que significa a procura de quem somos, “com as relações mais próximas, com os nossos erros, com as nossas paixões, com as nossas dores e, ao somar tudo isto, entre sofrimento e júbilo”. E assim talvez se possa ir ao encontro da felicidade. “Cochinchina era para o meu pai o lugar para lá do lugar. Uma pessoa podia pecar, mas a Cochinchina era o meta-pecado, a fera suprema, o ponto onde a razão enlouquece, estava para lá de Deus. Uma pessoa podia imaginar a extensão do mundo, mas a Cochinchina era um passo além da nossa imaginação. Como nunca tinha sentido uma paixão verdadeira, ainda não sabia que a mesma definição se poderia aplicar ao amor: fera suprema, enlouquecimento da razão, ponto para lá de Deus ou da imaginação”… E aqui nos encontramos perante um mistério que precisa de ser desvendado. Este pai encontrou o amor com a mãe desta filha que desconhece e está distante. “A tua mãe, por não falar corretamente, tinha a poesia do que erra, que, por vezes é a mais bela”.

 

UM SENTIDO RELATO DE AMOR
E toda a história é um sentido relato de amor. O apelo “Quando chegas?”, logo após o nascimento daquele pequeno ser que era sua filha – tem especial intensidade, como a tentativa de comunicar com a sua própria mãe no leito de morte para lhe dizer que teria de partir ao encontro do amor distante. “Mas fora ela quem partira”. Encontro e desencontros. Que é, afinal, a vida? O amor antigo esmorecera e um novo amor distante tornara-se vivo e bem presente. E o certo é que naquele momento era o amor de sua mãe que ele lembrava como definitivamente perdido, enquanto realidade próxima. E a morte sobrepôs-se à vida. Para complicar tudo, se a partida foi impedida pela morte da mãe, a verdade é que sua mulher anuncia-lhe que está também grávida. “Tinha-se instalado um grande dilema: magoar uma ou magoar outra, o que deveria escolher? E as nossas famílias? E tu? E a gravidez da minha mulher? E os meus princípios? Não havia maneira nenhuma da sair moralmente ileso daquela situação. E, mais uma vez, a conversa foi adiada, precisava de meditar sobre tudo o que me acontecia, interior e exteriormente”… A distância alargou-se. E os adiamentos sucederam-se. A criança que se anunciava não nasceu e a mulher ficou impossibilitada de ter filhos. A pouco e pouco, veio o efeito progressivo da idade. Subitamente chegou, inesperada, a viuvez, por um choque anafilático provocado pelas picadas de um enxame de abelhas… Mas “não me dera conta de que tudo desaparecera da minha vida, a minha mãe, a tua mãe, o meu pai, o meu melhor amigo, a minha mulher. Não me dera conta de que não fora somente o meu passado a desaparecer, tinha feito a mesma prestidigitação com o futuro: nessa atividade fastidiosa que é viver e a vida plena (e não plena), também tu tinhas desaparecido”… É o momento em que decide ir ao encontro da sua segunda família na Cochinchina. E lembra o princípio de “Anna Karenina” de Tolstoi que dá título à novela: “Todas as famílias felizes se parecem, todas as infelizes são infelizes à sua maneira”. Do mesmo modo que invoca a expressão de Aristóteles: “As pessoas são boas de uma maneira, e más de inúmeras”…

 

A TREMENDA MEMÓRIA
Uma busca no Vietname e no Camboja obriga a lidar com a tremenda memória da guerra. Em Ho Chi Minh procurou a morada de onde recebia a correspondência. Era um restaurante, e aí obteve a informação de que a amada teria partido para Phnom Pehn, capital do Camboja. E a procura prosseguiu, mas a história que encontrou no novo destino confirmou as piores suspeitas. Havia uma carta que não tinha sido enviada e o negrume da notícia da morte. O guia, perante a trágica desilusão, aconselhou-o a visitar Angkor Vat – “o maior templo jamais construído foi esquecido e rapidamente ficou coberto de vegetação (…). A sumptuosidade é já prolegómeno da ruína, mas é precisamente o esforço de edificar, conhecendo à partida o triste destino desse ato, que coroa a vida”. Mas acontecem milagres. Numa viagem de negócios no aeroporto de Hanói, ouviu o nome de sua filha. Talvez fosse coincidência, mas não era. No avião para Hue, conseguiu sentar-se a seu lado. “Conversámos mas não nos podíamos compreender, eu falava a minha língua, tu dizias alguma coisa na tua, não tínhamos um idioma comum para comunicarmos. (…) Evidentemente que não te disse que era teu pai, por vários motivos: não saberia como fazê-lo sem parecer louco, não teria forma de te explicar o que quer que fosse. Adiei, Fá-lo-ia na altura certa, agora que te tinha encontrado…”. Um pequeno saco de cannabis ditaria, porém, o destino final desta novela. “De todas as coisas que fiz, as duas mais importantes foram ter-te dado a vida e ter-te salvado a vida”… E vem a lembrança o dominicano Frei Gaspar da Cruz que acabou por converter uma única pessoa – que morreu antes do frade regressar… Mas, afinal, foi preciso viajar até aos antípodas para encontrar a verdadeira terra – a alegria e a plenitude do outro…  

 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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  De 14 a 20 de agosto de 2017

 

Na preparação da viagem do CNC ao Vietnam e Camboja damos conta de ecos das fontes de Diogo do Couto, Tomé Pires e Francisco Rodrigues…

 

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UMA CIVILIZAÇÃO ANTIGA

Chegou aos nossos dias, graças ao Professor Charles Boxer, um texto inédito de Diogo do Couto, onde este nos dá conta da descoberta pelo rei do Camboja, quando caçava elefantes, pelos mais espessos matos que havia em todo aquele reino, de uns edifícios magníficos que constituem as preciosidades de Angkor... Nesse texto, há um encontro emocionante de culturas, uma que se descobre a si mesma e outra que vem de longe em sua busca... Após a chegada à Índia, os portugueses cedo obtiveram informações sobre a Ásia, que antes não possuíam, compreendendo, por exemplo, que Malaca constituía o centro de atividade comercial do Índico e que o primeiro parceiro económico da região era a China. Quando os portugueses chegam às Molucas e a Cantão descobrem que a península de Sião tem maiores potencialidades do que se pensava inicialmente. Quer o «Roteiro» de Francisco Rodrigues, quer a «Suma Oriental» de Tomé Pires confirmam, porém, o relativo desinteresse pela Indochina por parte dos comerciantes por ausência de uma clara vantagem mercantil. Apesar de ser um entreposto dos chineses, Sião não vai ser considerado de início nos percursos comerciais relevantes para os portugueses. A ida de uma pequena esquadra à Baía da Cochinchina em 1523 deveu-se, assim, ao facto de se tratar de uma zona com forte influência chinesa. Fernão Peres de Andrade terá sido o primeiro a visitar a região em 1516. Duarte Coelho foi dos portugueses que mais vezes circulou junto à costa, tendo sido incumbido por Jorge de Albuquerque, Capitão de Malaca a ir explorar a enseada da Cochinchina, onde terá colocado um ou dois padrões e uma inscrição com seu nome na Ilha de Cham (Cu Lao Cham) datada de 1518, segundo informação de Fernão Mendes Pinto. Este descreve a referida costa com detalhe, incluindo dificuldades de navegação, sistema de ventos, correntes, paisagens, produções, comércio e o negócio do sal. Contudo, a instabilidade política na zona não permitirá a permanência de um contacto estável. Apesar de tudo, há algum investimento dos portugueses no estudo das rotas marítimas e da cartografia da região – o que permitirá o desenvolvimento do interesse pelas costas do Dai-Viet e o acesso dos primeiros missionários. O que acontece é que os portugueses passam a utilizar a Cochinchina para acesso ao relacionamento com o comércio das costas da China. E, deste modo, nos anos quarenta do século XVI, a Indochina torna-se, contudo, domínio da influência dos mercadores mercenários, aventureiros que agiam por sua conta, até porque a China tinha, de algum modo, renunciado a exercer o seu domínio na área. As receitas fiscais obtidas em Malaca e no comércio com a China tinham, porém, uma dimensão significativa, que tornava marginal a importância económica das trocas com a Indochina.

 

UM COMPLEXO JOGO DE XADREZ

Entretanto, os reinos de Champá e do Camboja procuram alianças que lhes proporcionem o renascimento político. Os Chams buscam apoio junto dos malaios, adversários dos portugueses, e os khmers do Camboja decidem-se, sob a influência dos nossos mercadores, a tomar contacto com Malaca e a reforçar as relações com as autoridades portuguesas (1550). A esta fase corresponde o reforço da iniciativa dos missionários. Gaspar da Cruz vai ao Camboja para pregar, mas os khmers vivem um momento de euforia, estando imbuídos pelos valores tradicionais e por um certo triunfalismo político – que afastará por um quarto de século a ação dos missionários católicos. Este contratempo religioso é, no entanto, compensado pela concessão feita pelos chineses do entreposto de Macau, que pemite o reforço do interesse político-económico relativamente à Indochina Meridional – já não na dependência de Malaca, mas na esfera chinesa, com a vantagem de não sofrer influência muçulmana. Apesar da conjuntura desfavorável, com perda de importância de Sião, conquista de Ayutuia pelos birmaneses (1569) e fechamento do Camboja às rotas do mar da China, os khmers vão jogar alternadamente, consoante as circunstâncias, com os mercadores chineses, portugueses, chams, japoneses e malaios. E uma nova oportunidade parece surgir quando em Dai-Viet surge a pretensão autonomista das províncias do sul, através do Senhorio de Nguyens. Com a crise dinástica portuguesa e a monarquia dual (1580), há uma convergência de interesses ibéricos, Manila precisa de apoio na Baixa Indochina e urge uma coordenação peninsular na política do Sueste Asiático. Momentaneamente, há uma aproximação com Sião contra a influência holandesa, mas falta aos portugueses apoio e autoridade políticos, prevalecendo apenas a lógica dos mercadores e mercenários. A pouco-e-pouco, as rivalidades dos clãs cambojanos tornam difícil o controlo da situação pelos portugueses – cabendo a Sião o domínio no Camboja. Errando estrategicamente, surdos aos apelos de Sião, os portugueses irão perder uma após outra as suas posições na Indochina, com declínio inexorável das trocas entre a Cochinchina e os portugueses de Macau.

 

UMA NOVA ATENÇÃO…

Depois do Édito de expulsão dos missionários do Japão (1614) e da saída compulsiva dos portugueses (1639), os jesuítas de Macau reorientam-se para a Indochina, com alguns cristãos japoneses. É o tempo das missões no Senhorio dos Nguyens (1615) e no Camboja (1616). O rei cambojano procura, assim, contrariar a influência siamesa. Os portugueses procuram aproveitar-se desta oportunidade, jogando com os conflitos locais no Champa e em Tonquim. Mas o peso crescente dos holandeses inquieta os tailandeses, o que os leva a virarem-se claramente para os portugueses, designadamente quanto ao armamento, em especial no aprovisionamento de canhões. Mas a presença portuguesa é limitada e reduzida a comerciantes sem poder económico. O isolamento japonês parece favorecer os portugueses, mas as condições económicas são muito precárias. E os holandeses não cessam de ganhar influência. Os missionários portugueses dão lugar aos franceses e à Propaganda Fide – e mesmo a influência de Macau perde-se, enquanto Malaca deixa de ser praça portuguesa (1641), e reduz-se drasticamente o peso dos portugueses no Camboja e no Senhorio dos Nguyens... É certo que até meados do século XVII a presença portuguesa na Indochina permanece, quase exclusivamente ligada a Macau; mas os mercadores e as comunidades mestiças asseguram uma influência limitada e assente no papel individual dos portugueses, com determinadas especialidades técnicas (por exemplo, quanto ao armamento), mas confundindo-se, paradoxalmente, com os holandeses. Apesar de tudo, o balanço do relacionamento entre os portugueses e os antepassados dos vietnamitas é positivo. A imagem dos portugueses era identificada com a expressão «casa da vinha» (Bò Dào Nha) – correspondente a um país que nunca declarou a guerra, que transmitiu novos conceitos e ensinamentos e que abriu bons negócios, tendo o Padre Francisco de Pina (1585?-1625) tido um papel pioneiro na divulgação e estudo da língua anamita, antecipando o célebre dicionário de Gaspar Amaral. Quando Marguerite Duras nos dá o seu «Indochina, meu Amor...» - vamos aos confins da história e compreendemos como as diferenças e os mistérios nos enriquecem!

 

 Guilherme d'Oliveira Martins