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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NÃO ESQUECER CAMILO…

Regresso sempre com redobrada admiração ao percurso controverso e atribulado, mas fascinante, de Camilo Castelo Branco. Passam por estes dias duzentos anos sobre o nascimento do extraordinário cultor das nossas língua e literatura, sendo tempo de não o esquecer. Só uma personalidade capaz de  incorporar as dimensões contraditórias da vida pôde ser um criador tão fulgurante, capaz de revelar na sociedade em que viveu as mais inesperadas características. Foi um romancista sobre quem alguns julgaram que tinha uma fórmula de sucesso, no entanto, se virmos com atenção, verificamos a genialidade, o conhecimento profundo da História e da complexidade humana, a grande curiosidade, a cultura excecional e a capacidade de entender o mundo social e político (de José do Telhado ao Bispo de Viseu). Percorrendo as fundamentais “Memórias Fotobiográficas (1825-1890) de Camilo Castelo Branco” do meu amigo José Viale Moutinho (Caminho, 2009) – fico com a consciência clara sobre quem foi o homem e o intelectual, que primeiro se tornou entre nós profissional da escrita. Dele disse Trindade Coelho: “Glória nacional, dir-se-ia que, na febre com que trabalha e produz, é desígnio de Camilo dar um livro a cada português que saiba ler. Cérebro portentoso, conhecedor profundíssimo da língua, génio criador e obreiro incansável, ele tem escrito muitíssimo e escreve como ninguém”.  E um dia o romancista confessou o segredo da sua inesgotável criatividade: “Eu sou um homem que conto a minha vida quando não posso, por ignorância, contar a vida alheia”. E uma vida “atrapalhada”, como a sua, deu sempre abundância de temas.

As Memórias do Cárcere são, no seu drama e vitalidade, um momento crucial para a compreensão do romancista, que é o principal protagonista do seu romance. E aí encontramos o rei D. Pedro V, incólume como figura moral, em visita à Cadeia da Relação do Porto, onde encontra Camilo preso. E antecipa a sentença judicial, que se tornou um julgamento humano. “O rei deu alguns passos no meu quarto e reparou um instante num livro aberto, que era um Plutarco, na Vida dos Varões Ilustres. Observou-me fitamente, e disse-me: - Estimarei que se livre cedo. (…) Saiu Sua Majestade e, ao descer as escadas, proferiu as palavras iniciais deste capítulo: - Isto precisa de ser completamente arrasado”.  Num tempo de pusilanimidade, vem ao espírito a honradez e a sinceridade do homem público. E se Camilo escreveu Amor de Perdição em quinze dias, os mais atormentados da sua vida, nos tempos da cadeia, a verdade é que se lembrava que desde menino ouvira contar a triste história do tio paterno, Simão António Botelho, e assim pôde compor uma obra-prima inscrita a letras de ouro nas nossas letras e artes. Quando lemos A Queda dum Anjo, sob a sombra de Calisto Elói, retrato severo de uma sociedade de transição, entre o rural e o urbano, o fechado e o cosmopolita – o romancista confessa a seu amigo Castilho que “quisera um livro didático ameno (…) que sem dizer que ensinava ensinasse”. Os temas multiplicam-se, parecendo as novelas “querer demonstrar que sucedem casos incríveis”. E como acontece no Retrato de Ricardina, num volte-face “venceu a verdade, onde já agora e tão somente, lhe é permitido vencer – nas novelas”. Mais do que romântico, Camilo foi um retratista único da sociedade que o gerou e em que viveu. Eis por que a sua leitura continua a ser necessária.   


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 17 a 23 de março de 2025


Passam dois séculos sobre o nascimento do genial romancista Camilo Castelo Branco. Com uma obra riquíssima que ilustra a força e a diversidade da identidade da nossa cultura, podemos dizer que a sua leitura continua a ser indispensável.

 


Ao José Viale Moutinho, em solidariedade camiliana


Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.


COMPREENDER QUEM SOMOS
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que Camilo fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamo-nos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.


IRONIA E CONHECIMENTO HISTÓRICO
Com ironia e profundo conhecimento histórico, Camilo Castelo Branco fala-nos de um tempo longo, apreensível nos pequenos pormenores. Veja-se na apreciação da obra histórica de Oliveira Martins, o caso do Mestre de Aviz, que não poderia ser marido legítimo de D. Filipa de Lencastre sem dispensa de votos de clérigo, de que apenas foi libertado quatro anos depois do casamento… Há misteriosas condicionantes que influenciam inesperadamente os acontecimentos. E o romancista conclui na análise da obra que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. E o historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. Contudo, esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. Se há lapsos seriam de influência nula e outras consultas, “com um grande e malogrado escrúpulo”, não dariam ao autor novos elementos relevantes. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos.


FIGURA FUNDAMENTAL
Probo romancista, bibliógrafo irrepreensível, cultor da língua como poucos, leitor exemplar, comentador dos acontecimentos com sentido prospetivo, conhecedor da História do País e dos seus povos, Camilo Castelo Branco é um caso especial nas literaturas da língua portuguesa, digno de ser exemplo por tudo quanto nos deixou numa escrita viva e atraente, servida por uma panóplia ampla de personagens que caracterizam em termos dinâmicos a sociedade portuguesa, num panorama que abrange o Portugal antigo e o Portugal moderno em cada uma das suas especificidades. Eis a sua atualidade como referência fundamental da perenidade da arte e da literatura. Ao assinalar os dois séculos do nascimento do romancista de Seide  e quando se encerram as comemorações do quinto centenário de Camões, é oportunidade para celebrarmos a língua que se projeta no mundo através de quantos fazem da palavra o meio por excelência para afirmação da liberdade, do respeito mútuo, do sentido solidário e de uma vontade emancipadora.


NOTA – O presente texto está desenvolvido no número 218 da revista Colóquio - Letras


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de janeiro de 2025


Preparando o segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco que ocorrerá no dia 16 de março a Imprensa Nacional e o Pato Lógico lançaram o livro “Camilo Castelo Branco – Amores de Perdição” da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada com ilustrações de Jorge Margarido.



O ELOGIO DA LEITURA
O incentivo à leitura, designadamente dos mais novos, obriga a uma atenção especial à divulgação dos autores clássicos e das suas obras fundamentais. A Imprensa Nacional criou uma nova coleção intitulada “Grandes Vidas Portuguesas – Portugal de Ontem, de Hoje e de Sempre, através de Vidas de quem o fez Grande” e no âmbito dessa iniciativa, acaba de publicar um pequeno volume dedicado a um dos maiores romancistas portugueses de sempre – Camilo Castelo Branco. Em vésperas de se iniciar a comemoração dos duzentos anos do seu nascimento, estamos perante a melhor oportunidade para dar ao grande público uma pequena mas sugestiva biografia para os mais jovens do primeiro escritor português que fez da escrita uma profissão exclusiva. Numa linguagem acessível e cuidada e com elevado sentido pedagógico, as autoras usam a sua experiência para nos apresentar não só os momentos fundamentais de uma vida atribulada, mas também as linhas essenciais de uma obra multifacetada que projeta para a opinião pública o testemunho de vida do seu autor. Pode dizer-se, assim, que podemos usufruir simultaneamente de duas dimensões – a vida e a obra de alguém que representou de modo exemplar o período atribulado em que viveu – abrangendo a guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel, a implantação do regime liberal após a Convenção de Évora Monte (1834), a revolução de Setembro, a Patuleia e a Maria da Fonte e a acalmação ditada pela Regeneração. O percurso seguido por Camilo Castelo Branco compreende a tensão existente entre as ideias liberais dos meios urbanos e as resistências conservadoras dos meios rurais. O ambiente familiar, a memória da infância e da adolescência, o conhecimento de vida adquirido entre Lisboa e Vila Real vão fornecer ao romancista matéria-prima que lhe permitirá dar aos seus leitores um panorama extremamente rico nos temas e nas personagens.


UM TEXTO NECESSÁRIO
Temos, assim, um texto de grande utilidade, dando-nos um pano de fundo muito rico apto a caracterizar o país profundo na sua diversidade, obrigando a uma síntese entre as tradições vetustas do mundo rural e as influências dos ventos europeus da modernidade. De facto, a criatividade do romancista permite prender a atenção dos leitores ao tratar de temas envolvendo amores contrariados, conflitos familiares ancestrais, resistências em relação ao progresso, caciquismo, chegada dos emigrantes de torna-viagem, confronto entre campo e cidade. Contudo, Camilo é também um inovador na escrita e no estilo, não sendo o romântico de escola, antecipando-se mesmo nos terrenos naturalistas. Durante quase 40 anos, entre 1851 e 1890, escreveu mais de 260 obras, ou seja, mais de seis livros por ano. Prolífero e fecundo escritor, deixou, assim, obras de referência que se singularizam na literatura portuguesa. Quando esteve preso na Cadeia da Relação do Porto, sob a acusação de crime de adultério pela relação com Ana Plácido, legou-nos em “Memórias do Cárcere” (1862) um retrato duro mas pleno de interesse vital sobre as duras condições de vida no histórico estabelecimento, onde se vivia a pesada justiça oitocentista, tendo como fio condutor a experiência vivida na primeira pessoa em confronto com outros testemunhos de vida, que Camilo quis deixar para a posteridade, desde as histórias de um falsário à biografia de Zé do Telhado, passando por parricidas e infanticidas e ainda pelo pobre homem que matou o burro dum abade.


UM ENCONTRO HISTÓRICO
Visitando a Cadeia em 23 de novembro de 1860, o Rei D. Pedro V não regateou elogios ao romancista, declarando desejar vê-lo libertado, para poder prosseguir o seu brilhante percurso literário. Nesse período, apenas entre 1862 e 1863, Camilo publicará onze novelas e romances, atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. É deste período “Amor de Perdição”, escrito na Cadeia em quinze dias, inspirado numa história familiar, mas, como esclareceu oportunamente, totalmente original, longe de qualquer tendência autobiográfica. Simão Botelho e Teresa Albuquerque protagonizam um intenso amor, elogiado na sua sinceridade plena. Em termos literários e considerando uma obra notável,  Jacinto do Prado Coelho considera Camilo «ideologicamente flutuante […] mantendo-se um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes». Assim, o seu romantismo é «um romantismo em boa parte dominado, contido, classicizado», havendo ao «lado do seu alto idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom-senso ligado às tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do seu romantismo».


De facto, esta visitação da vida e da obra do romancista de S. Miguel de Seide permite compreender a importância de Camilo, dando aos seus leitores oportunidade para beneficiarem da genialidade de um grande narrador.


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

De 28 de outubro a 3 de novembro de 2024


O ano de 2025 será o da comemoração do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, e importa preparar tal acontecimento.

 

 

CELEBRAR UM GRANDE ESCRITOR
Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.


Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.


COMPREENDER O TEATRO HUMANO
O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. E é esse o tema que aqui trago, a propósito da relação que estabeleceu com Oliveira Martins. Permito-me, por isso, acompanhar um exercício de reflexão crítica a propósito da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal, obras inaugurais da Biblioteca de Ciências Sociais. O historiador tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que, como veremos, estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surge assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse.


A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Veja-se como, para a 3.ª edição, depois da apreciação de Camilo, o autor introduz pormenores de grande relevância quanto à embaixada de D. Manuel ao papa, quanto à matança dos judeus de 1506 ou quanto à descrição do terramoto («Casas, palácios, conventos, mosteiros, hospitais e igrejas, campanários, teatros, fortalezas, pórticos, tudo, tudo caía, tudo ardia.»), onde procura uma maior intensidade literária…


«A história do sr. Oliveira Martins lê-se devagar, atentamente, porque a cada página se encontram induções, panoramas, lances de vista que obrigam a reflexão». Quem o diz é Camilo, a propósito da «História», demonstrando um extraordinário zelo e uma sólida fundamentação. «É mister às vezes agrupar os personagens subentendidos nas ilações para que eles operem e afirmem os sucessos de que derivam as opiniões históricas do autor». O ler devagar que o autor de Amor de Perdição aconselha aos leitores corresponde à contrapartida do método usado pelo historiador: o de ligar uma leitura aturada das fontes escritas à interpretação literária, como ligação naturalista ao mundo da vida, e nunca como mera abstração formalista. As induções, os panoramas, os lances de vista obrigam, de facto, à reflexão, porque resultam em regra de profunda reflexão. E isso é muito evidente na História, onde o escritor não se exime a fazer uma interpretação dos acontecimentos, que se projeta sempre na atualidade, com a preocupação de entender a história como referida a um corpo vivo que persiste no tempo, carecendo de uma interpretação atualista.


Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano» (Oliveira Martins e os Críticos da História de Portugal, IBNL, 1995, pp. 20-21).


Guilherme d'Oliveira Martins
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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXI. JANTAR À PORTUGUESA

 

Eu prometi que voltaria a Camilo Castelo Branco e aqui regresso ao rico mundo dos seus fantasmas. Ele bem merece. Ajuda-me o José Viale Moutinho, incansável na busca literária das melhores referências à comesaina.

Lembrava-me há dias que a frase tantas vezes ouvida às nossas mesas “Comi como um Abade” é uma citação ipsis verbis do João Semana, nas “Pupilas do Senhor Reitor”, que se lamentava por ter ainda de ver uma doente, D. Leocácia, depois daquele opíparo ágape… E já repararam que um bom cozinhado é como um bom texto, com as palavras certas nos lugares certos, os condimentos adequados com boa sintaxe e riqueza vocabular… Lembram-se o que disse o Bispo de Viseu sobre a religião?

Camilo dava tudo por um bom caldo verde e tripas. Fialho de Almeida perdia-se por umas perdizes bem temperadas. Ramalho orgulhava-se de fazer as melhores batatas fritas do orbe. João Penha fazia sonetos ao presunto e ao salpicão. Paulo Plantier reuniu as melhores receitas de escritores. João da Matta fez as ameijoas que levam o nome de Bulhão Pato, sendo este um dos maiores fazedores de pratos com a melhor caça e não com ameijoas.

Mas vamos ao nosso mestre de Seide, num livro menos conhecido, mas não menos importante. Falo de “Quatro Horas Inocentes” (1872). A descrição é, a todos os títulos deliciosa, e poderia passar-se em qualquer das nossas casas, desde que se mantenha o bom hábito de comer à mesa, a horas, com o vagar necessário e os bons manjares. Vou, por isso dar a palavra ao nosso querido Camilo, para deleite dos nossos sentidos, dos nossos ouvidos e do nosso espírito.

Um breve conselho, a humanidade fez-se não para comer alimento em manjedoura nem para a comida rápida e cheia de ingredientes de má catadura. E já agora, mais duas notas: comer vem de cum e edere, que significa alimentar-se em companhia. E não se esqueça o ditado popular, que à mesa não se envelhece, porque a conversa e o encontro significam a memória viva que nos eterniza.

“Ao domingo, depois de ouvirem a missa, cuidavam do jantar à portuguesa, d’arroz, sopa e cozido: depois, para ajudar a natureza iam dar um passeio impando o bucho grávido e estoirido. Ao lusco-fusco, as portas se trancavam, e marido e mulher, numa só alma, e numa cama só, ressonavam em sorna e doce calma, e tinham sonhos doces qual toicinho-do-céu ou pão-de-ló. Ao romper da manhã, subtil e lesta, desvelada se erguia a esposa meiga, e o almoço fazia. A xícara de chá, pão com manteiga lobrigava o marido se o olho crasso e ramelado abria, em dias festivais, em dias d’anos era a pitança mais choruda e gorda: os anjos invejavam aquela e pingue sorda que os conjuges radiosos nas festivas barricas emborcavam (…) São moda agora uns fofos vaporosos omelettes soufflés denominados, e omelettes sucrées. São etéreos de mais estes bocados, e mesmo incompatíveis c’o estomago sincero português”.  

No fundo, o sábio de Seide tinha razão – “ao pé de um bom estomago coexistiu sempre uma boa alma”…

É um problema eterno de “Coração, Cabeça e Estômago”…

 

Agostinho de Morais

 

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30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XX) INESGOTÁVEL CAMILO

Camilo Castelo Branco é um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar grande talento narrativo, capacidade de evocação única e exigência de profissional, que se equiparam aos dos maiores escritores, como Dickens ou Balzac…

O biógrafo Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas. Esse cálculo é feito nitidamente por defeito. Foi muito maior a criação do romancista. E quanto ao rigor, não devemos esquecer a sua cultura enciclopédica e o respeito dos seus contemporâneos pelas suas opiniões. Oliveira Martins retificou a primeira edição da «História de Portugal» com base nas apreciações que pedira ao mestre Camilo.

É impressionante a amplitude de conhecimentos que permanentemente cultivava e o à-vontade com que lidava com as fontes coevas. No tocante ao uso da língua, nunca se deixou deslumbrar pelos arrebiques escusados, antes ligando a clareza à diversidade vocabular, para ser fiel às particularidades e diferenças culturais. É inigualável. E não é preciso entrar em comparações com outros dos nossos melhores – Camilo é único. Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861 e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade.

De personalidade marcada e feitio tantas vezes agreste, Camilo tem, na sua longa obra, severas apreciações críticas que atingem mil suscetibilidades. Houve, por isso, razões para ódios e suspeições, mas, à distância, ao lermo-lo fica-nos a grande riqueza da matéria-prima com que lida - a vida de uma sociedade marcada por diferenças profundas, que só poderiam ser retratados e compreendidos por quem tivesse capacidade de ver o tempo à luz do largo prazo… Tendo-se arrependido de alguns repentes, podemos entendê-los, para além das simplificações imediatistas…

Sendo uma referência do período romântico, Camilo está para além das classificações formais. Se “Amor de Perdição” é um paradigma da obra do grande romancista, a verdade é que encontramos sinais das novas tendências naturalistas. «Tenho sido realista sem o saber. Nada me impede de continuar». E afirma no prefácio de “Eusébio Macário”: «Eu não conhecia Zola foi uma pessoa da minha família que me fez compreender a escola com duas palavras: "É a tua velha escola com uma adjetivação de casta estrangeira, e uma profusão de ciência (…) Além disso tens de pôr a fisiologia onde os românticos punham a sentimentalidade: derivar a moral das bossas, e subordinar à fatalidade o que, pelos velhos processos, se imputava à educação e à responsabilidade" compreendi e achei eu, há vinte e cinco anos, já assim pensava, quando Balzac tinha em mim o mais inábil dos discípulos».

Jacinto do Prado Coelho considera-o «ideologicamente flutuante […] Camilo mantém-se um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes» e também diz que «o romantismo de Camilo é um romantismo em boa parte dominado, contido, classicizado» e que há ao «lado do seu alto idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom senso ligado às tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do seu romantismo». Isso mesmo o torna referencial.

Em «O Tempo de Camilo Anotado Ano por Ano», José Viale Moutinho, organizador da obra do romancista, com grande mestria, leva-nos a partir da vida do autor de «A Queda de um Anjo», através dos agitados acontecimentos do país. E sentimos como há um enredo romanesco, donde tudo parte, na existência atribulada de Camilo, lisboeta quase por acaso, combatente das lutas civis. Desde muito cedo, há tendência para se embrenhar em polémicas, para formular juízos severos, para criar anticorpos… Em Ribeira de Pena, em 1843, escreve e afixa na porta da matriz versos ofensivos a uma família importante da vila. Então, para salvar a pele, foge para Vilarinho de Samardã… Em 1846, devido a uma série de artigos publicados no Porto em que criticava o Governador Civil de Vila Real, é barbaramente agredido… Foge com Patrícia Emília para a cidade invicta, mas é acusado por um tio de roubo, sendo ambos presos. Com traços romanescos, porém, o tio confessará depois que era falsa a acusação, feita apenas para travar a fuga… Em 1850, sai a lume o seu primeiro romance «Anátema»… A sua criação será inesgotável.

Estes breves exemplos ilustram uma vida sentimental intensa, que culminará no caso de Ana Plácido, e numa vida familiar dramática. Este é, no entanto, o pano de fundo, de uma persistência admirável enquanto profissional da escrita. Ele confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre».

GOM

 

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CAMILO CULTOR DA MEMÓRIA…

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TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Diário de Agosto * Número 31

 

Chego ao fim deste Diário de Agosto. Muito ficou por dizer.

 

Hoje falo do Bruxo de Seide. Sim dum bruxo, que soube usar a língua e a narrativa como um modo de enfeitiçar… Camilo Castelo Branco é, por certo, o escritor português que mais sistematicamente cultivou o património e a memória. Ah, como é enganadora a sua fama! Profundo conhecedor do Portugal profundo, deu-nos nos seus romances um retrato rigoroso sobre as tradições, as angústias e as aspirações mais inóspitas e escondidas. Conheceu bem a Patuleia, nas suas diferentes componentes – desde o culto das tradições, das hostes do General Póvoas, à força incontida do inconformismo… E a sua biografia é um verdadeiro alfobre de temas que foi desenvolvendo e desconstruindo ao longo de um conjunto inumerável de títulos. Não se pense, porém, na superficialidade do escritor. Longe disso. Leitor insaciável, reunia informações e documentos, que conhecia como ninguém, e que faziam dele um dos nossos escritores mais cultos. É um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um verdadeiro cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar a um grande talento narrativo, uma capacidade de evocação única e a exigência de um profissional de primeira água, equiparável aos maiores de sempre, como Dickens ou Balzac… Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas.

 

Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861, com palavras de admiração, e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade.

 

Como escritor que se empenhava num verdadeiro drama quotidiano, confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre».

 

Oiçamo-lo então nas páginas inesquecíveis de “A Queda de Um Anjo”:

 

   «Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do

   círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado da Agra de Freimas.

   Os deputados eleitos até àquele ano, no círculo de Calisto Elói, eram coisas

   que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo.

   Pela maior parte, os representantes dos mirandeses tinham sido uns rapazes

   bem-falantes, areopagitas do café Marrare, gente conhecida pela figura desde o

   botequim até S. Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a

   veia, não preferia antes beber da garrafeira do Mata, ou outro que tal

   ecónomo dos apolíneos dons.

   Em geral, aquela juventude esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões

   lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus

   comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais

   necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regímen da

   constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de

   Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso

   parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever

   ao deputado, incumbindo-lhe trabalhar na nomeação de um vigário chamorro,

   ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a

   política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não

   respondia à carta do influente, nem o requerente sabia onde procurá-lo fora

   do Marrare. 

   Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de

   Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi

   recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da

   igreja, e por quantos tiveram notícias da sua parlenda.

   O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império

   das razoáveis conveniências, e centralizou-se na maioria. A verbosidade,

   porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da

   junta de paróquia.

   Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o

   procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este

   desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu

   o juízo avantajado que ele propriamente fazia da sua vocação oratória.

   Mostrou as fauces do abismo escancaradas para travarem Portugal, se os

   sábios e virtuosos não acudissem a salvar a Pátria moribunda. Calisto Elói,

   enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a

   esposa, e disse, como o agricultor Cincinato:

   — Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal

   cultivados este ano.

   Estavam próximas as eleições.

   A autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o

   Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou

   instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de

   Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de

   espetáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a

   bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do

   concelho ao governador civil que pedia a sua demissão para não sofrer a

   inevitável e desairosa derrota.

   Quis assim o Governo aliciar no círculo algum proprietário, que

   contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns

   lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade

   o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele,

   proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como

   parvajolas que eram.

   Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministério que os povos de

   Vimioso, Alcanissas e Miranda se tinham levantado com selvagem

   independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas

   serras.

   Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que, beliscado na sua

   vaidade, assanhou-se contra o Governo, escrevendo umas feras objurgatórias,

   as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as

   mãos na cabeça e demitir-se.

   À exceção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que

   não tinha o nome simpático aos eleitores votava em Brás Lobato, professor de 

   instrução primária, secretário da junta de paróquia, e ex-sargento das milícias

   de Mirandela. Parece que votara em si o mestre-escola. Afinal, maculou a

   alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de

   Calisto! Fragilidade humana!

   Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memória com as suas

   leituras de história grega e romana. Era isto entroixar ciência e enfeixar flores

   para o Parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, a

   fim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que

   tinham sido o tabernáculo da moral humana guardado pelo temor de Deus.

   Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a

   manhã raiava até horas de almoço, ia à margem do Douro, que lhe lambia a

   ourela da quinta, declamar, como Demóstenes nas ribas marítimas, ao estridor

   de um açude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e

   lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sábio treslera, ou

   coisa má lhe entrara no corpo. A Sra. D. Teodora Figueiroa, vendo o marido

   assim tresnoitado, seguia-o às vezes, de madrugada, espreitava-o de um

   cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se também, dizendo: «Dão-me com o

   homem em doido!»  

      (A Queda de Um Anjo)

 

   Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

    De 31 de outubro a 6 de novembro de 2016

 

Acaba de ser publicado o primeiro volume de «Camiliana», onde se reúnem «Todos os Contos, Novelas Curtas e Romances Breves» de Camilo Castelo Branco, com recolha, prefácio e notas de José Viale Moutinho (Circulo de Leitores, 2016).

UM CASO SINGULARÍSSIMO

Camilo Castelo Branco é um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar grande talento narrativo, capacidade de evocação única e exigência de profissional, que se equiparam aos dos maiores escritores de sempre, como Dickens ou Balzac… Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas. Hoje sabemos que esse cálculo é feito nitidamente por defeito. E quanto ao rigor, não posso esquecer a sua cultura enciclopédica e o respeito dos seus contemporâneos pelas suas opiniões. Oliveira Martins retificou a primeira edição da «História de Portugal» com base nas apreciações que pedira ao mestre Camilo. É, de facto impressionante a amplitude de conhecimentos que permanentemente cultivava e o à-vontade com que lidava com as fontes coevas. E no tocante ao uso da língua, nunca se deixou deslumbrar pelos arrebiques escusados, antes ligando a clareza à diversidade vocabular, para ser fiel às particularidades e diferenças culturais. Nesse ponto é inigualável. E não é preciso entrar em comparações com outros dos nossos melhores – Camilo é Camilo. Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861 e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade. De personalidade marcada e feitio tantas vezes agreste, Camilo tem, na sua longa obra, severas apreciações críticas que atingem mil suscetibilidades. Houve, por isso, razões para ódios e suspeições, mas, à distância, ao lermo-lo fica-nos a grande riqueza da matéria-prima com que lida - a vida de uma sociedade marcada por dualismos e diferenças profundos, que só poderiam ser retratados e compreendidos por quem tivesse oportunidade crítica e capacidade de ver o tempo à luz da duração e do largo prazo… Tendo-se arrependido de alguns repentes, hoje podemos entendê-los, porque permitem perceber os acontecimentos para além das simplificações imediatistas…

 

UM IMPORTANTE ACONTECIMENTO

A publicação deste primeiro volume de «Camiliana» (Círculo de Leitores) corresponde a um acontecimento tanto mais assinalável quanto é certo continuarmos a ter falhas graves na disponibilização ao público de obras fundamentais da nossa literatura. Aqui reúnem-se «Todos os Contos, Novelas Curtas e Romances Breves» de Camilo Castelo Branco, com recolha, prefácio e notas de José Viale Moutinho. Longe da polémica dos cânones, ou seja, de saber se o génio de Seide foi romancista ou novelista, contista ou escreveu crónicas romanceadas, a verdade é que na criação camiliana, independentemente do fôlego maior ou menor, a verdade é que encontramos, invariavelmente, um poder narrativo superlativo. Folheie-se este suculento volume e confirme-se essa qualidade extraordinária. Permito-me, a título de exemplo, falar de «Que Segredos são Estes?», publicado nas «Noites de Insónia», e mais recentemente na antologia «As Novelas de Camilo»… É um texto notável, pequeno mas muito tenso, a que não faltam os ingredientes fundamentais. «O enfermeiro-mor da casa da saúde conduziu-me ao quarto de Duarte. Com certeza, se eu o encontrasse desprevenidamente, não o conheceria. O espasmo dos olhos seria bastante a desfigurar-lhe as outras feições, quase sumidas na desgrenhada cabeleira e nas barbas. Imobilizava-lhe o semblante a sinistra quietação da demência contemplativa». Duarte Valdez era um amigo do narrador, mas a vida transformara-o num farrapo… E o drama resume-se à consciência pesada pela responsabilidade de duas mortes. Valdez dizia ter morto as duas mulheres que amara… «Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgaríssima pergunta: - Como as mataste tu? – Despedaçando-as uma contra a outra. Pode ser que o leitor esteja sorrindo, porém, que o tremor daquelas palavras vibrava tanto no seio do aflito moço que uns calafrios me correram a espinha, e o turvamento das lágrimas me embaciou a vista…». E fica a curiosidade de saber se não estamos perante um vulgar assassino. Longe disso… A narrativa desenrola-se no registo onírico e fantasmático em que o amor e a morte se confundem, urdidos sabiamente pelo novelista, que nos transmite com economia de palavras, mas com grande densidade de emoções, algo cuja verosimilhança é evidente… Em «O Tempo de Camilo Anotado Ano por Ano», o organizador da obra, com grande mestria, leva-nos a partir da vida do autor de «Amor de Perdição», através dos acontecimentos do país e do mundo. E sentimos como há um enredo romanesco, donde tudo parte, na existência atribulada, e nem sempre evidente, de Camilo. Desde muito cedo, há tendência para se embrenhar em polémicas, para formular juízos severos, para criar anticorpos… Em Ribeira de Pena, em 1843, escreve e afixa na porta da matriz versos ofensivos a uma família importante da vila. Para salvar a pele foge para Vilarinho de Samardã… Em 1846, devido a uma série de artigos publicados no Porto em que criticava o Governador Civil de Vila Real, é barbaramente agredido… Foge com Patrícia Emília para a cidade invicta, mas é acusado por um tio de roubo, sendo ambos presos. Com traços romanescos, porém, o tio confessará depois que era falsa a acusação, feita apenas para travar a fuga… Em 1850, sai a lume o primeiro romance do novel autor - «Anátema»… Estes breves exemplos ilustram uma vida sentimental intensa, que culminará no caso de Ana Plácido, e uma vida familiar dramática. Este é, no entanto, o pano de fundo, de uma persistência admirável enquanto profissional da escrita. Ele confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre». Ao longo de 669 páginas, a duas colunas, temos muita matéria reveladora da inesgotável qualidade camiliana. E mesmo em «A Via Sacra», cujo fim desconhecemos, resta-nos a certeza de que a intensidade narrativa dispensa epílogos…      

 

Guilherme d’Oliveira Martins

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