Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Em Yuste, foi entregue na passada semana o Prémio Europeu Carlos V. Recordamos aqui o marido da Imperatriz Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e a tradição bem portuguesa do Dia da Espiga, que invoca a Cultura da Paz e a salvaguarda do meio ambiente e da proteção da Natureza.
A quinta-feira de Ascensão é, em Portugal, como aliás na Europa, um dia de grandes e antigas tradições. Se entre nós a data deixou de corresponder a um feriado, por troca com a festividade do Corpo de Deus, o certo é que grande parte dos feriados municipais tem essa invocação. No mundo rural havia mesmo o uso muito antigo de subir a um monte, como sinal de dedicação espiritual, de exigência pessoal e de homenagem à Ascensão aos céus do Senhor Jesus, quarenta dias depois da Páscoa e dez dias antes do Pentecostes. Mantém-se, porém, a tradição de feitura de um ramo que assinala o Dia da Espiga, que pode variar de região para região, mas tem a sua base definida. Em regra, é constituído da seguinte forma, por seis elementos: por uma Espiga de trigo, que corresponde ao desejo de fartura de pão; por Malmequeres, que simbolizam a abundância; por Papoilas que representam o amor e a vida; por um ramo de Oliveira pelo anseio de bom azeite e pelo apelo à paz; por um ramo de Videira, que almeja um bom vinho e muita alegria; e o Alecrim ou Rosmaninho que se ligam ao desejo de saúde e força. Diz-se que o ramo da Espiga deve ser guardado em casa, junto da porta de entrada, como sinal de bom augúrio, “não devendo ser perturbado na sua quietude, e apenas sendo substituído no ano seguinte por outro ramo de igual composição, mas mais viçoso”.
NATUREZA, DIGNIDADE E CULTURA DA PAZ Esta simbologia, invoca três fatores de grande relevância e atualidade: o equilíbrio entre a humanidade e a natureza, a dignidade da pessoa humana como centro da vida comunitária e uma cultura de paz como base fundamental do aperfeiçoamento humano. Sendo a sociedade imperfeita, cabe-nos um esforço determinado no sentido da perfetibilidade. Pela experiência, pela aprendizagem, pela atenção e pelo cuidado, trata-se de usar o gradualismo como modo fazer da sociedade um lugar de diálogo e de emancipação. Esta ideia leva-nos à recente declaração do Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ao receber o Prémio Europeu Carlos V, que afirmou não ser a guerra coisa do passado, já que as divisões persistem e crescem, enquanto estamos a queimar a única casa comum. “Há famílias obrigadas a fugir de guerras ou de eventos climáticos extremos, numa escala não vista há décadas”. Urge compreender que “a paz é ilusória e a invasão da Ucrânia está a causar sofrimento e degradação do país e do povo”. Daí ser tempo de reinventar o multilateralismo, sem renunciar a uma identidade aberta – “em lugar das balas, devemos recorrer aos arsenais diplomáticos”.
As negociações, a mediação, a conciliação e a arbitragem têm de ser exaustivamente consideradas, a fim de se resolverem pacificamente os conflitos. “O discurso de ódio, a polarização, o racismo e a xenofobia espalham-se à velocidade de um clique e perante o crescimento destes movimentos, é necessário defender a humanidade e rejeitar o discurso que explora as diferenças e mina a coesão territorial”. A pandemia expôs “fraturas chocantes” e, num olhar para a atualidade, as diferenças entre ricos e pobres e a crise do custo de vida estão a empurrar milhões para a pobreza. É urgente, assim, construir um mundo mais justo, mais inclusivo e digno que não deixe para trás ninguém. “Não pode haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos humanos. Não há justiça sem igualdade”. De facto, importa articular as preocupações ligadas à paz na Europa e no mundo com a defesa e salvaguarda do meio ambiente e, no entanto, “uma ganância grotesca está a punir as pessoas mais pobres e vulneráveis, enquanto destrói a nossa única casa”.
A circunstância atual obriga a uma reflexão muito séria e determinada que permita integrar os grandes desafios humanos perante os quais nos encontramos. A guerra às portas da Europa é a ponta de um vulcão em atividade descontrolada. A situação da Ucrânia apresenta um perigoso impasse caracterizado pela persistência de uma perigosa destruição mútua. Desde o Médio Oriente ao Sudão, verifica-se a incapacidade de regulação por via diplomática. Contudo, além da força do ódio, prevalece o egoísmo suicida da sociedade do consumo e do desperdício, que afeta gravemente a sustentabilidade humana e ambiental. Algumas vozes, porém, reivindicando soluções imediatas e totais, apenas contribuem para arrastar os problemas e para justificar adiamentos dando espaço a quantos recusam solidariedade em relação às gerações futuras. Em lugar de medidas urgentes para garantir a justiça distributiva e preservar a equidade entre gerações persiste a ideia de que não vale a pena contrariar uma suposta fatalidade quanto à destruição do nosso planeta único…
Josquin des Prés compôs para Carlos V, aquando da morte de Isabel de Portugal, a canção Mille Regretz:
Mille regretz de vous habandoner Et deslonger votre fache amoureuse, J´ai si grand dueil et paine douloureuse, Qu´on me verra bref mes jours definer
Mil penas por vos abandonar E afastar-me de vosso amoroso rosto. Tenho tão grande luto, dor e desgosto, Que em breve verei meus dias definhar
A mesma melodia serviu para Luiz de Narváez arranjar uma Canción del Emperador, sem vozes, mas com harpa renascentista, por ocasião da abdicação e retiro final do soberano em Yuste.
E com o título Circunderunt me gemitus mortis ("Gemidos de morte me cercaram"), Cristóban de Morales, por ocasião da morte do imperador, compõe um motete:
M´ont encerclé Da morte os gemidos
les gémissements de la mort, me cercaram,
les douleurs de l´enfer de inferno doridos
m´ont encerclé me rodearam
Há depoimentos coevos de como se passaram os derradeiros dias do imperador Carlos V. Para te lembrar aqui, retenho apenas aqueles que claramente se referem aos seus últimos desejos Entre estes, o pedido de lhe trazerem para a beira do leito final dois quadros de Ticiano, que estavam pendurados noutra sala dos seus modestos aposentos em Yuste : A Trindade, postumamente conhecido como A Glória de Carlos V, em que, ajoelhados em adoração, aparecem Isabel de Portugal e Carlos seu marido - obra encomendada entre 1551 e 1554 - e o retrato da imperatriz, pintado também depois da morte desta. Ambos os quadros, companheiros de exílio, dizem muito dos sentimentos mais íntimos e secretos, sonhos, preocupações e afectos, do imperador.
A Trindade ou A Glória de Carlos V, como lhe queiras chamar, representa-o, com sua mulher, em acção de louvor e graças diante da Santíssima Trindade, e rodeado de gentes e símbolos vários do seu império e vitórias, do seu serviço de Deus, num ambiente evocativo do que seria o juízo final da sua vida, que Isabel não viveu a tempo inteiro, mas partilhou. O retrato desta é testemunho de como, mesmo depois de morta, continuou a ser companheira sua e das obras da sua religião. Não resisto a traduzir-te aqui um trecho sentido da historiadora Michèle Escamilla inserto no Charles V que escreveu com Pierre Chaunu:
O imperador, sentindo-se morrer, reclamou uma imagem da Virgem diante da qual falecera a imperatriz - Isabel de Portugal, a belíssima e caríssima esposa, morta de parto no 1º de Maio de 1539 -, e o crucifixo que ela então tivera nas mãos; esse crucifixo que ele, desde aquela hora, guardava no seu quarto - com vista à sua própria morte - tal como nove velas bentas em cera branca, provenientes do mosteiro catalão de Monserrate; pois ele votava, desde que viera a Espanha pela primeira vez, a essa Virgem negra, velada pelos beneditinos, uma grande devoção.
Terá sido nesse momento de adeus final, a que não faltou a leitura da Paixão de Cristo segundo S. Lucas, que Bartolomeu Carranza de Miranda terá proferido estas palavras: Eis que deste livro se vai lendo a Vossa Majestade. Mas quando já não conseguirdes ouvi-lo, pousai os vossos olhos aqui. E quando já não puderdes ver, procurai-o no vosso coração e na vossa memória; confiai nesse Senhor que morreu por vós, e na sua misericórdia; pois tal como Vossa Majestade mais do que uma vez defendeu a sua causa e os interesses da santa fé católica, também Ele saberá defender os vossos no céu. Não tendes de ter medo, com a ajuda de tal Senhor, não deixeis o demónio perturbar-vos pela lembrança dos vossos pecados, como ele sói fazer, neste falecimento. Rei, ponde toda a vossa esperança naquele que já pagou o preço; porque, posto que haveis feito, pela vossa parte, o que devíeis, recebendo os sacramentos da Igreja, o demónio doravante já não mais poderá fazer-vos qualquer mal.
Esta exortação final custou a Carranza problemas, suspeitas de heresia, inquisições e prisões, pois houve quem o acusasse de que, afinal, teria dito «que não há pecado, a Paixão de Cristo é suficiente para a salvação», ou seja, de ter defendido o ensinamento protestante da sola fide: a fé só nos salva. Valer-lhe-á, mais tarde, São Pio V, o papa dominicano (o tal que, não quis trocar o seu fradesco hábito branco pelo esplendor das vestes pontifícias - e por isso mesmo os papas ainda hoje vestem de branco e, no caso do jesuíta Francisco, mesmo só de branco sem outros "luxos") que ordenou à Inquisição espanhola que o mandasse libertar e o transferisse para Roma... A história de frei Bartolomeu Carranza, ele também frade dominicano, amigo próximo de Carlos V e de Filipe II, prestigiado teólogo e professor, perito conciliar em Trento e que, depois de por várias vezes ter recusado ser bispo e cardeal, mesmo apesar da insistência do imperador, acabou por aceder a arcebispo de Toledo, primaz de Espanha, tem muito que se lhe diga, sobretudo em relação a tensões internas da Igreja de Espanha, e a afrontamentos gerados pela crescente omnipotência do poder da Inquisição. Carlos V era conhecido pelas suas amizades ou simpatia com "erasmistas", católicos sempre suspeitos de heresia, como, em Portugal, foi Damião de Góis que, aliás, foi defensor da universitária Lovaina, domínio do imperador, aquando do cerco que lhe moveu Francisco I de França. Vir-lhe-ia tal gosto dos seus tempos de mocidade flamenga, talvez mesmo do seu mestre Adriano de Utrecht, que chegou a papa (Adriano VI), contra o voto dos cardeais mais "conservadores" e o seu próprio desejo. Na verdade, esse cristão austero e livre não nutria qualquer apetência pelo chamado "trono pontifício", por entender que o fausto da cúria ou corte papal pouco se inspirava no evangelho. Deus fez-lhe, pouco depois, a vontade, chamando-o a Si um ano após a sua eleição. Mas tal homem sempre guardou prestígio e influência sobre o imperador, que chegou a confessar que o pouco de bom que tinha a ele lho devia... Carranza, apesar de Carlos V se ter ressentido da sua aceitação final do arcebispado de Toledo, já no tempo de Filipe II, filho em quem abdicara do trono de Espanha e da Borgonha, recebeu dele a absolvição in articulo mortis: frei Bartolomeu Carranza estava junto do imperador nessa hora.
Não te esqueças, Princesa de mim, de que Erasmo de Roterdão foi nomeado conselheiro do duque Carlos de Habsburgo, futuro imperador Carlos V, e rei de Espanha, no ano em que este fazia dezasseis de idade. E ao príncipe que assim lhe fora confiado, o autor do Elogio da Loucura dedicou, no mesmo ano, a sua Instituição do Príncipe Cristão. Traduzo-te um trecho do capítulo XI dessa obra:
O príncipe nunca deve encarar seja o que for com precipitação, mas em circunstância alguma ele mostrará mais firmeza e circunspeção do que no momento de decidir entrar em guerra. O poder é, em grande parte, consentimento do povo, e foi esse consentimento que primeiro esteve na origem dos Reis. Se qualquer discórdia surgir entre Príncipes, por que não recorrer primeiro a uma arbitragem? Há tantos bispos, tantos abades e eruditos, tantos sábios magistrados, cujos conselhos poderiam regular o conflito mais oportunamente do que uma multidão de carnificinas, de saques e calamidades universais. Quando o Príncipe tiver feito, por minucioso cálculo, a soma de todos esses males, acabará por pensar então: serei eu só a causa de tantas infelicidades? Tanto sangue humano derramado, tantas viúvas, tantos lares de luto, tantos anciãos privados de seus filhos, tantos pobres reduzidos à mendicidade, total ruína dos costumes, das leis e da piedade, deverá tudo isto ser imputado a mim somente? Serei eu quem deverá pagar tal dívida a Cristo? Um bom Príncipe procurará sempre adquirir a glória sem efusão de sangue nem desgraça para ninguém. Não tenho qualquer dúvida, ilustríssimo Príncipe, que te animem tais intenções: assim o requer teu nascimento, tal como a tua educação, confiada a homens tão excelentes quanto íntegros. Quanto ao resto, rezo para que Cristo tão bom e tão grande persista em fazer prosperar os teus esforços tão meritórios. Deu-te um império em que não correu sangue; oxalá assim seja sempre! Ele alegra-se por ser chamado Príncipe da Paz.
Numa Europa dividida pelas lutas da Reforma e Contra Reforma, pelas ambições de Francisco I de França, retomando as rivalidades antigas com a casa de Borgonha, parte da herança genealógica e política de Carlos V, e aliando-se com o próprio império Otomano contra o imperador e os Habsburgos de Áustria, cumprir com tais propósitos não era fácil... Tampouco o Papado ajudou sempre as causas mais justas ou mais promissoras de apaziguamento e paz. Uma das maiores infelicidades de Carlos, que sempre lhe pesou na consciência e magoou o coração, foi o saque de Roma cometido por tropas suas, em desordem por atraso do soldo, em 1527. Os dois grandes revezes políticos que o afligiram antes de abdicar foram não ter conseguido afastar a ameaça turca, nem reunir numa só Igreja a cristandade latina europeia. No íntimo de todos estes desgostos de si, surge sempre, até à hora da morte, dois anos depois de abdicar, a carência ou saudade de Isabel de Portugal. A imperatriz teria sobre Carlos V uma influência que se exercia mais pelo carácter e comportamento dela, do que por coisas que fosse dizendo. Reservada, austera e devota, não sofria, todavia, como seu marido, de períodos de intensa melancolia. Referindo-se a Marcel Bataillon (Érasme et l´Espagne), Jacques Le Brun (Le Pouvoir d´Abdiquer - essai sur la déchéance volontaire, obra que nos fala das abdicações de Diocleciano, Carlis V, Ricardo II, Jaime II e Filipe V) escreve que o retiro para Yuste é o termo de uma série doutros: Assim, desde 13 de Abril de 1527, quando ainda não o marcavam a idade, nem o cansaço, nem a doença, Carlos V, em momento crítico, retirou-se ao mosteiro de Abrojo, para aí passar a Semana Santa. A data não é indiferente: está-se na expectativa de acontecimentos temíveis, a descida sobre Roma de hordas imperiais que nada parecia poder impedir; e é efetivamente em maio de 1527 que se fará o saque de Roma. Esse tempo de espera, mesmo que não se pudesse prever a extrema gravidade do acontecimento, passou-o o imperador na solidão de um mosteiro.
É no quadro de uma vida de piedade, da qual temos muitos indícios, que se incluem esses retiros, mesmo no coração das suas atividades: testemunhos relatam as práticas piedosas do imperador, que tinha o hábito de compor, ele mesmo, orações e de se retirar «no fervor da oração»... ... como se, na teia das intensas atividades exteriores, se abrissem instantes de solidão e oração; então se revelaria, no próprio coração do exercício do poder, uma retirada do poder ou, pelo menos, um aquém ou um além do poder, causa de espanto para os contemporâneos e para a posteridade...
Tenho para comigo, Princesa de mim, que a religiosidade de Carlos V o rasgava, o dividia entre o "faz tudo" de Deus, servidor da fé católica e da monarquia universal, e o príncipe que aprendera como será vazio de sentido e força o poder exercido à margem das aspirações dos povos, e quão difícil é conseguir que estas se conjuguem. Na Trindade de Ticiano, pinta-se a glória maior do imperador: com sua mulher, agradece e bendiz, entrega a Deus a sua obra e o humano cansaço dela... Foi famoso pela bravura e intrepidez nos campos de batalha, e venceu em muitos. Também pela gula, por apetites de manjares vários e muitos, que regava, à flamenga, de boa cerveja fria. E, a par dos arrebatamentos ascéticos, caía com gosto em tentações eróticas, com proles patentes antes do casamento e depois da morte de Isabel. Mas quem somos nós, Princesa de mim, para negar que, graças a Deus, o ser humano é sempre circunstância e contradição...
O que não impede alguém de ter fidelidades íntimas, por temperamento inato ou por educação. Aquele que muitos dizem ter sido o primeiro e o último imperador da Europa, era visceralmente um homem ecuménico. Confrontado com a hostilidade de Francisco I de França, que vencera e aprisionara em Pavia, dar-lhe todavia, mais tarde, em casamento, sua irmã Leonor, viúva de Dom Manuel I de Portugal, seu sogro. Em sinal de paz desejada e seguro de aliança. Perante a instabilidade crescente de uma cristandade europeia, que se ia dividindo entre católicos e protestantes - e os virava uns contra os outros - definiu em 1521, na Dieta de Worms, uma política, assim resumida por Joseph Pérez no seu Charles V, Empereur des deux monde: desaprova Lutero, ao qual censura de ofender a tradição secular da Igreja, mas tem repugnância em reduzir o cisma pela força das armas: preferiria que um debate levasse as duas partes a chegarem a acordo. Por outras palavras, é de um concílio universal que ele espera a solução. Mas a reunião de tal concílio pressupõe três condições prévias: que o papa o convoque; que os luteranos aceitem participar; que a Europa cristã esteja em paz. É por isso que o concílio, quando finalmente se reúne [em Trento], apenas poderá tomar nota da divisão religiosa da Europa e de que a reforma que iniciará só irá abranger os territórios que tiverem permanecido fiéis à Igreja de Roma.
Se Adriano VI não tivesse morrido em 1523, um ano depois de eleito papa, talvez tudo fosse diferente. Mas Clemente VII, que lhe sucedeu, era um Medici que, como diz Pérez, "estava demasiado preocupado com manter, em Itália, um equilíbrio subtil entre as potências rivais - Francisco I e Carlos V - para que pudesse dar satisfação ao imperador, convocando o concílio que daria a Carlos V superior autoridade ; além disso, o papa não estava preparado para reconhecer que Lutero tinha alguma razão de querer reformar a Igreja"... Só após muita inútil guerra, incluindo o saque de Roma, em 1527, o mesmo papa, em 22 de Fevereiro de 1530, entregará a Carlos V a coroa de ferro dos reis lombardos e, dois dias depois, no trigésimo aniversário do marido de Isabel de Portugal - e quinto da vitória deste sobre Francisco I, em Pavia - a coroa de oiro do Sacro Império. Doravante,Carlos V passa a ser verdadeiramente imperador : até aí fora apenas rei dos Romanos e imperador eleito. Pela última vez na História, um papa coroou um imperador do Sacro Império.
Nem tais vitórias, nem tanta honraria, pensossinto, Princesa de mim, venceram a melancolia da incompletude em Carlos de Habsburgo. Tal como prazer algum ou aparente conforto lhe apagou o possessivo desgosto da viuvez, depois da morte de Isabel. A desilusão alimentou o seu cansaço político. O adeus de Isabel terá sido o seu único pesar de amor. Eis o que, com infeliz inabilidade, eu quis dizer, há três anos atrás num dos meus Sonetos de Amor Mordido, como última oração de Carlos V, abdicado, em Yuste:
Jovem amigo - o Lourenço Correia de Matos, historiador meticuloso - chamou-me, com justeza e justiça, a atenção para o facto de me ter referido a Francisco Borja como escudeiro mor da imperatriz Isabel de Portugal, cargo que nunca existiu, quando ele, efetivamente, era seu estribeiro mor. Na verdade, ao traduzir do castelhano (Caballerizo Mayor) confundi-me no português e escrevi escudeiro, em vez de estribeiro... Já, dias antes, em consulta médica, me queixei de, sem causa próxima aparente, eu andar a "esternuar" muito. Aconteceu misturar-me em francês - foi a língua que falei até aos meus cinco anos - , mas o clínico ficou surpreendido e, quiçá por não saber a que dicionário recorrer, nem ter tido muitos pacientes emigrantes em França, não se lembrou de "éternuer". Disse-me: "Desculpe, mas não percebo o que quer dizer"... E logo me lembrei e disse: "Espirrar, senhor doutor". Erro meu, bem pesado de consequências: continuo espirrando sem saber porquê...
Creio que foi Gregório Marañon que escreveu, no segundo capítulo das suas Meditações sobre o Tejo, com o título Suspiros em Lisboa, esta frase acerca da imperatriz de que te venho falando: Outra princesa lusitana, a pálida e divina Isabel, foi o único amor do Titã da Europa, Carlos Quinto. Ao lê-la, tal como vem citada no Charles Quint do Pierre Chaunu e da Michèle Escamilla, espirrei outra vez. Não pelo assim dito, nem pelo seu contexto, mas por logo me terem ocorrido os efeitos da seca sobre o caudal e a qualidade da água do rio Tejo, que também é português, mais agravados ainda pelo desvio de águas suas para as regas espanholas em Múrcia, por quase 300km de canal. Nem Toledo escapa, e foi aí que Marañon meditou sobre o rio Tejo, capítulo apenas do seu Elogio e Nostalgia de Toledo... Mas volto a Isabel de Portugal, segunda dos sete filhos de El-Rei Dom Manuel, o Venturoso, e da rainha sua esposa, Maria, filha dos Reis Católicos. A autêntica política matrimonial seguida por ambos os reinos ibéricos (Portugal e a recente Espanha surta da união de Aragão e Castela) ambicionava uma união peninsular. A decisão de Carlos V casar com Isabel foi, na origem, uma opção política. Cito o historiador espanhol Manuel Fernandez Alvarez: Não haja dúvida alguma de que Carlos V aceitou essas núpcias depois de aturado cálculo mental, que combinava interesses económicos e internacionais [...] O facto de Carlos V e Isabel se terem tornado mais tardeum casal simbólico e exemplar, visceralmente unido por um amor crescente, e que as ausências forçadas do Imperador idealizaram, constitui um dos mais belos capítulos da vida de Carlos V... Muitas adolescentes sonharam com destinos bebidos em histórias de principescos casamentos, cheios de felicidades e filhos. Mas a História desfia sucessos menos radiosos de enlaces politica e diplomaticamente determinados, muitas vezes - e talvez sobretudo para as mulheres - duros sacrifícios de liberdades e consciências humanas a razões dinásticas ou estratégicas. E não te esqueças, Princesa de mim, de que, em muitos casos, houve que disfarçar falhanços, insucessos, ódios até, repúdios, traições... e sei lá mais quê! Menos terão sidos os matrimónios reais autenticamente felizes, poucas as satisfações além do dever cumprido. Por isso mesmo se inventaram tantas histórias de amores lindos, mais próximas de contos de fadas do que de realidades quotidianas...
O matrimónio de Carlos V e Isabel de Portugal é uma exceção brilhante e bem lembrada, pese embora a tragédia da morte precoce da imperatriz, que ensombreceu o mundo de então, entristeceu uma corte, fez do primeiro dos criados da Senhora, o Duque de Gandia, maior companheiro e confidente do imperador, um religiosos jesuíta - logo depois de ter enviuvado também - e de Carlos V o soberano cansado que se retiraria, quinze anos mais tarde, para o mosteiro jerónimo de São Justo (Yuste). Mas cito-te vários testemunhos coevos da forte impressão de Isabel no seu tempo e sua gente. Antes, todavia, deixa-me lembrar que Isabel e Carlos eram primos direitos, já que as respetivas mães eram ambas filhas dos Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão. A montante da comum árvore genealógica surge ainda outra Isabel, filha de Dom João I de Portugal, casada com Filipe o Bom, duque de Borgonha, mãe de Carlos o Temerário, bisavô do imperador: El-Rei de Boa Memória era, pois, quinto avô deste, pela casa de Borgonha e, também, tetravô dele e da imperatriz, pela linhagem luso-espanhola.
A esta chamou frei Luís de Léon, biblicamente, perfecta casada, e o cronista espanhol Francisco Lopez de Gómara mujer propria para casada. E o sevilhano Pedro Mexia, testemunha do casamento, escreveu que a Imperatriz pareceu a todos ser a mais bela princesa que alguma vez houve no mundo, o que era bem verdade, mas igualmente dotada de uma alma bela e boa... O que frei Prudêncio de Sandoval, autor, meio século depois da morte do imperador, da Genealogia de Carlos V maximo, fortissimo rey d´España, confirma assim: Si era hermosa en el cuerpo, mucho mas lo fue en el alma. Seguindo o itinerário de Michèle Escamilla (no seu Charles Quint, escrito com Pierre Chaunu), respigo um texto de Alonso de Santa Cruz, filho do alcaide de Sevilha, que assistiu ao casamento: A Imperatriz tinha a tez muito clara e o olhar cândido, falava pouco e a sua voz era grave e doce; tinha olhos grandes, boca pequena, nariz aquilino, peito miúdo, lindas mãos, garganta alta e bela; era muito reservada, talvez demais: «era de su condición mansa e retraída, más de lo que era menester». Honesta, silenciosa, cheia de gravidade, de devoção, de retraimento e de discrição, a tal ponto que lhe repugnava pedir ao Imperador fosse o que fosse, mesmo para ela própria, e mais ainda solicitar-lhe favores para terceiros; de sorte que se pode dizer que o Imperador tinha encontrado uma mulher à sua altura e convindo ao seu carácter.
Até parece que Alonso de Santa Cruz, quase uma década depois da morte da imperatriz, ditou a Ticiano o retrato de Isabel (datado de 1548) que Carlos levou consigo para Yuste, e hoje está no Prado, em Madrid. Reprodução do mesmo retrato ilustra a capa do disco do Brabant Ensemble que, dirigido por Stephen Rice tem gravada a missa Mort m´a privé de Thomas Crecquillon, de que te falava em carta anterior. Em próxima, voltarei à abdicação e retiro final de Carlos V, h deixo-te agora com um sentido elogio do beneditino Prudêncio de Sandoval à virtuosa imperatriz, feito sobre documentos coevos da grande senhora, que o monge comentou décadas depois da morte daquela: Estando a Imperatriz em sofrimentos de parto que com muita dor prolongavam o grande padecimento em que se encontrava e a iam esgotando, disse-lhe a parteira : «Sereníssima Senhora, não vos castigueis a reter os vossos gemidos, mas soltai um grande grito que vos aliviará». Ao que a Imperatriz respondeu, em português: «Não me faleis tal, minha comadre, que eu morrerei, mas não gritarei».
Cena donde reputados historiadores franceses do nosso tempo (Chaunu e Escamilla) acharam bem concluir: Sim, Carlos V encontrara, muito além de toda a esperança, uma mulher à sua altura, cujo domínio de si igualava o seu: uma verdadeira imperatriz.
A missa Mort m´a privé começa com uma canção, como que em jeito de Introitus, que traduzo para terminar esta carta:
Oeil esgaré, mon coeur de toi faict plaincte, Car il rechoit par ton regard l´ataincte, Qui te detient en cruelle pryson; Et qui plus est, ne sçay quant et comment Le tireray de ce mal et tourment.
Olho perdido, de ti se lamenta meu coração, De queixar-se tem justa razão, Pois pelo teu olhar recebe a ferida, Que te retém em cruel prisão; Tampouco sei, nem quando nem como, é soída A hora de o tirar de tormenta tão sofrida
Quando te falar na abdicação de Carlos V, todos estes sentimentos também lhe trarão sentido.