Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Aqui temos referido o Teatro da Trindade na perspetiva tanto da qualidade arquitetónica como do notável historial nas artes do espetáculo que, desde a inauguração em 1867 mantem até hoje. Justifica-se então que se evoque essa tradição histórica, estética e arquitetónica, no contexto muito recente dos espetáculos que assinalam e homenageiam a carreira de Carmen Dolores, a partir da nova designação da sala principal do Teatro, agora chamada Sala Carmen Dolores.
Nada mais justo.
Em primeiro lugar, porque Carmen Dolores ali pela primeira vez enfrentou o público, curiosamente não em espetáculo teatral, mas na estreia em 1943, do “Amor de Perdição”, filme de António Lopes Ribeiro. Antes disso, recorda o programa agora distribuído na homenagem prestada no mesmo Teatro, teria atuado como declamadora na rádio. Mas foi no Trindade que pela primeira vez teve contacto com o público, mesmo que essa estreia tenha sido num filme...
E foi novamente no Trindade que Carmen Dolores enfrenta diretamente o público, agora na companhia denominada Os Comediantes de Lisboa, dirigida por Francisco Ribeiro, com textos exigentes: Giraudoux, Munoz Seca, Marcel Achard e outros.
E em 1951 junta-se ao Teatro Nacional de D. Maria II de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro: e aí participa em espetáculos a partir de dramas e comédias do grande repertório que incluiu autores portugueses como Alfredo Cortez ou Luis Francisco Rebello, o que na época seria de registar...
Cito a propósito, o que escrevi em 2005 no livro “Teatros de Portugal”:
“O Trindade serviu de abrigo a sucessivas companhias de qualidade, desde o Teatro de Arte de Lisboa ao TNP de Ribeirinho, que estreou “À Espera de Godot” de Beckett, da Nova Companhia de Declamação a Amélia Rey Colaço- Robles Monteiro e a Companhia Nacional de Teatro de Couto Viana e voltando atrás, a todos os grande nomes desde Ângela Pinto a Rosas e Brasão, a Palmira , a Vasco Santana e praticamente a todos mais” - e incluindo obviamente Carmen Dolores.
Mas não só: encontramos Carmen em 1958/59 no Teatro Avenida então dirigido por Gino Saviotti, na Nova Companhia do Teatro de Sempre, novamente no Trindade com o Teatro Nacional Popular, e no Teatro Moderno de Lisboa, que funcionou no Cinema Império, e ainda na Casa da Comédia, no Teatro Aberto.
Paula Gomes de Magalhães escreveu um excelente texto publicado no âmbito das homenagens prestadas no Teatro Meridional e no Teatro da Trindade, a partir do texto de “Vozes Dentro de Mim”, da autoria da própria Carmen Dolores (2017), autora também de “Retrato Inacabado (1984) e de “No Palco da Memória” (2013).
E, a partir de “Vozes Dentro de Mim”, tivemos no Trindade, no âmbito das comemorações, um longo monólogo com notável interpretação de Natália Luiza e também notável dramaturgia e encenação de Diogo Infante.
Carmen Dolores, 1944 (in http://www.theapricity.com)
EVOCAÇÃO DA CARREIRA DE CARMEN DOLORES
Evoco hoje uma atriz referencial no teatro, no cinema e na televisão, Carmen Dolores Com a particularidade de ter iniciado a carreira com 19 anos, não no teatro declamado mas no cinema em “Amor de Perdição” (1943) de António Lopes Ribeiro e, no mesmo ano, “Um Homem às Direitas” de Jorge Brum do Canto. Curiosamente, no “Amor de Perdição”, Carmen faz a personagem Teresa e Eunice Muñoz, na altura usando o nome de Eunice Colbert, faz a personagem Mariana.
Recordamos a carreira teatral de Carmen Dolores.
Em 1945, encontramos Carmen na Companhia dos Comediantes de Lisboa, dirigida por Francisco Ribeiro, com um repertório exigente: “Eletra” de Jean Giraudoux, “Pétrus” de Michel Achard e “O Cadáver Vivo” de Leon Tolstoi. Nada disto era fácil na época: mas em qualquer caso, esta estreia valeu a contratação para a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, então em pleno prestígio e atividade cultural e cénica no Teatro Nacional de D. Maria II.
E sublinhamos o âmbito cultural e a exigência das interpretações, designadamente num repertório clássico: “Frei Luis de Sousa”, “Sonho de uma Noite de Verão, “As Astúcias de Scapin”… Mas também em autores contemporâneos na época pouco conhecidos e pouco representados em Portugal: Marcel Achard, Jean Anouille, Alexandre Casona, Luigi Pirandello e outros mais.
E também autores portugueses contemporâneos designadamente “O Casaco de Fogo” de Romeu Correia, ou “Alguém Terá de Morrer” de Luis Francisco Rebello.
Carmen Dolores voltaria mais tarde ao Teatro D. Maria II, em espetáculos dispersos mas relevantes, com destaque para “O Jardim Zoológico de Vidro” de Tenessee Williams e outros dispersos.
Porem, em 1958, encontramos Carmen no Teatro Avenida, como atriz principal da Companhia do Teatro de Sempre, dirigida por Gino Saviotti, que já referimos nesta série de evocações. Aí, há que destacar sobretudo duas grandes interpretações.
Em primeiro lugar, a Sofia de “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão. Já rotulei a dramaturgia de Brandão como a proto-história do teatro moderno português (in “História do Teatro Português” 2002): e precisamente, este “Gebo e a Sombra” constitui ainda hoje uma poderosa reflexão sobre a simbiose da pobreza material com uma pobreza espiritual que atinge os personagens e sobretudo descreve como que um destino de frustração que em muito transcende os aspetos materiais. Mas não só: a peça impõe uma profunda reflexão existencial. O Gebo, só tardiamente percebe ou consciencializa que está errado quando julga que “a felicidade, na vida, é não acontecer nada” e degrada-se moralmente – de tal forma que “Tudo foi inútil”, derradeira frase da peça, proferida pela Sofia, interpretada primorosamente por Carmen Dolores.
E Carmen Dolores, na mesma companhia e na mesma temporada, marcaria a carreira e o meio teatral da época com outra interpretação notável, agora no papel da enteada nas “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello.
Carmen transitaria, no ano seguinte, para o Teatro Nacional Popular, dirigido no Trindade por Francisco Ribeiro. Aí interpretou a protagonista de “Lucy Crown” texto adaptado por Jean Pierre Aumont de um romamce de Irwin Shaw, e a “aleleuia erótica” assim mesmo designada pelo autor, Lorca, intitulada “Amores de Dom Perlimplim com Belisa no seu Jardim”, texto de uma poética difícil.
De 1961 a 1965, integra o Teatro Moderno de Lisboa, cooperativa de atores a funcionar no Cinema Império. Já aqui referimos (in “Atores e Encenadores” X – 11.02.15) esta inesperada, para a época, incursão num repertório (e num horário, pelas 18 horas!…) bem pouco habitual entre nós: sobretudo, a encenação de “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires constituiu uma abordagem inesperada e plenamente conseguida do teatro moderno português - a da renovação da perspetiva histórico-politica na época habitual.
Em 1969 assinalo em duas produções em teatros diversos: “A Dança da Morte” de Strindberg, onde, dirá Luís Francisco Rebello, “atingirá o ponto mais alto da sua carreira de comediante” (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 249) e a “Forja” de Alves Redol encenada por Jorge Listopad. Miguel Falcão recorda os incidentes que marcaram a estreia desta peça, provocados por uma nota da empresa sobre censura, no mínimo pouco clara, incluída no programa (cfr. Miguel Falcão - “Espelho de Ver por Dentro – O Percurso Teatral de Alves Redol” ed. INCM 2009).
Por essa época, trabalhou na Casa da Comédia soba direção de Jorge Listopad em peças de Srindberg (“Dança da Morte” 1969), Durremmatt (“A Dança da Morte em 12 Assaltos”) e Romain Weingarten (“Alice nos Jardins do Luxemburgo” (ambos em 1972).
E assinala-se, a partir de 1974, uma colaboração regular com João Lourenço, que se prolongaria até pelo menos 2006, com interrupções, uma delas aliás de mais de 7 anos em que Carmen Dolores viveu em Paris: de qualquer modo, no Teatro Aberto e no Novo Grupo de João Lourenço participou numa renovação do repertório, designadamente a partir de diversas peças de Bertold Brecht, antes proibidas: cito “As Espingardas da Mãe Carrar” ou, mais tarde “O Circulo de Giz Caucasiano”. E com João Lourenço trabalhou ainda ao longo dos anos 2000.
Carmen mantem-se assim em cena ou em colaborações de recitais poéticos até aos nossos dias.
E em 1984, Carmen Dolores publicou um livro de memórias, a que chamou “Retrato Inacabado”. Ora, é caso para dizer que, decorridos estes 30 anos, o retrato em boa hora continua inacabado, pois a carreira, decorridos que estão 72 anos desde a estreia, não terminou!