Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Dizes na tua carta que sentes por cima da cabeça uma estrela que te olha de há muitos, muitos anos-luz, e que tão mal te conhece afinal!
Será assim? daqui te pergunto?
Será que foi ela que te chegou fora do tempo ou tu nunca deixaste que ela te visse?
Tantas vezes acontece, doce amiga, que dores nos abraçam de tal jeito que ficamos num nó, entregues a nós, e tanto que até nos chega a incapacidade de voar, estorvamos mesmo o próprio espaço que ocupamos e ficamos embaciados a outras realidades.
Não sei como te transmitir de outro modo o que te queria dizer, mas o tempo, o tempo de quando em vez é altar da vida, e teima em nos colocar de joelhos, e talvez ao contrário do que julgas, a estrela que referes tem no céu um mundo solidário que te abrange.
É bem difícil, querida amiga, entender que há vida mesmo quando ela se oculta.
Minha amiga;
Com um forte abraço te peço que tenhas sempre à mão os bocadinhos de ser feliz como quem tem de regar o verde do mundo.
Mais: recorda que há muita inutilidade nas coisas importantes. Escolhe, pois, um caminho pouco andado e sentirás uma liberdade diferente a cada passo: verás que talvez estejas na cadeia à qual te decidiste.
Querida Dulce,
Peço-te que te lembres que espero por ti na porta de cima do dia, à qual já prometemos novo sentido.
Cuida que se atares à tua memória ninho ou casa, a cada dia que te quiseres ver ao espelho da estrela anos-luz, é teu o conhecer que te aguardo aqui como sítio definido.
Existe um tempo em que não se sendo feliz, não se perdendo a vontade de estar atento a outro lugar, é-se feliz com o que se vive, e, tolera-se tudo com a tolerância que esconde a procura de outro caminho. Nesse tempo se apoia uma esperança secreta de descobrir um outro ser feliz excluído de obediências e de estranhos estares, e guarda-se fundo os secretos intuíres de que uma música entrou no nosso pensar e vamos procurar-lhe a fonte e fugir por aí. Fugir de ser feliz daquele modo de então.
Necessariamente vem sempre à memória o primeiro beijo de amor incondicional: o Zezinho do lado – o menino da casa do lado – veio propor irmos brincar às escondidas, tínhamos ambos 5 anos, e eu respondi ternurenta e triste:
«A minha mãe não me deixa ir brincar. Estou de castigo. Pintei os lábios com verniz das unhas.»
E o Zezinho com uma lágrima a escapar, deu-me um beijo na testa e fugiu a correr para a casa dele, para chorar tudo o que havia a chorar por não brincar comigo, e por eu estar tão triste, e assim enrolado no cobertor da sua cama a soluçar, deixou-se ficar naquela tarde.
Meu Deus este sim, que tempo de felicidade e que existirão outros é seguro, quando, depois de bem crescidos pensarmos na sua conquista.
Contudo, vai-se sabendo com os anos que passam, que falta a mãe para proibir ou dar autorização seja ao que for, e que esta realidade é condição indispensável da felicidade. Falta o aconchego de existir a avó que ralha e dá mimo infinito e o tio-avô que oferece uma caixa de alumínio pintada com fadas e flores e com os melhores caramelos do mundo; as criadas que dão torradas com manteiga e açúcar ao lanche; a bisavó que dá ordem para que seja dada a gemada: o irmão que nos olha cúmplice e rosado de tanto afecto, e, ainda às escondidas, a avó que vai fazendo caramelos com a nata do leite e manda que se escondam para serem dados no dia seguinte, enrolados em pratas de cores de sonho. Sim, o dia seguinte era preparado na segurança do dia anterior. Depois, chega o pai, e tem no bolso do sobretudo um cachorrinho mínimo que vai ganindo aos nossos beijinhos encantados. Dormirá connosco enrolado numa mantinha, dentro de uma caixinha de cartão.
E é de tudo isto feita a felicidade que se procura recusando a que nos coube forçadamente optar quando a casa desmorona e as pessoas desaparecem para locais indefinidos e definitivamente ocultos do nosso olhar.
Agora e afinal já estamos na terceira ou quarta ou quinta busca da felicidade, e, como me dizia o Alçada é muito difícil caminhar para o amor e ele sempre e naturalmente à nossa frente, potencialmente a poder afastar-se sem ruído e de jeito definitivo, e também a esconder-se num precipício de onde se atirará seguro das imensas mãos que o ampararão estonteadas, por desconhecerem o seu poder de voar.
Aí, ou vamos com ele, como agarrados a uma cria nossa, ou, verdes de folhagem de tantas lágrimas quando os olhos já não choram, arriscamos na mesma; a chave, carcereira do ar afadiga-se a dar a volta, e, é incrível como os candeeiros das ruínas se acendem cheios de esperança quando compreendemos enfim que a admiração é branca, a febre é insónia, a felicidade é vingativa, a dor é focinho vermelho, os ossos, um trabalho de cinzas e o porão da vida, cobaia dos nossos sentires, consome-se, enquanto a minha abelha leva até ti o mel e numa noite abandonada de jeito a poder dormir tranquila, assim fui partindo herdeira do musgo que forra os palácios, afinal cheios do odor bruto de tantas manhãs.
E para enfrentar todo este grande e último desafio, o amor preparou-me as armas do duelo. As dores contaram os passos. A felicidade virou-se tranquila, quando tudo se imolou e não houve fim no fim.
Se for possível, doce Inês, não apanhes tu um comboio exausto, segura sim, um coto de vela e acende-a: é tua, infinitamente e não faz perguntas.
Tua amiga
Isa
PS Queria dizer-te que soube que estiveste com o Alçada. Também a mim nada me disse da Teresa. Sei que para ele a Teresa é uma inconformidade com o limite – já o escreveu - e tem nela um espanto de ternura muito dele. Talvez telefonares para a mãe dela não seja má ideia. A Teresa é muito só e mais ainda quando desaparece para o meio da gente que não sabe fazer viagem. Como calculas então o seu itinerário é o de seguir as suas próprias pegadas e não regressa de lá até ser borboleta. Assim a conheço.
Fizeste-me pensar nesta questão a que chamas de ganas gigantes da escrita minha, e, se acaso eu der conta de uma resposta que a interprete, dirás tu, se sim.
Às vezes, muitas vezes? julgo que escrevo uma obra – permite que assim a chame - de tipo indefinido, assumindo a perigosa honra de a escrever como quem vive uma morte. Penso muito nisto e, se assim for, cabe aqui uma atitude febril que necessariamente vem do interior e mergulha em ruturas, horizontes, compreensões, triunfo de vontades radicais, denúncias, disciplinas indiscretas, nervosas mesmo, até que uma escrita paciente dá lugar à gigantesca impaciência da liberdade, àquela que sacode o jugo, aquele exato jugo que até transforma os pontos de vista de um mundo que se atreva a não ser igual ao mundo. Então aí, levanto-me da cama num ai que morro tão escrava se nada escrever que até a política e a história e os gnus da savana me recusam a essência de repelir os males remediáveis como se só me restasse entregar o homem ao homem ou eu a mim.
E escrevo, então e muitas vezes, mesmo doente, escrevo; mesmo agarrada a uma pátria sem território ou as lágrimas não se escoassem lá onde e aonde se não sabe.
Assim a hereditariedade da morte, essa safada e tranquila condição que não cauciona qualquer recusa ou não trocasse cigarros com a vida, transforma-se, para se proteger, numa palavra escrita, e assim materializa uma esperança como possibilidade humana, e essa possibilidade não é, nem nunca foi, colonizada, e, talvez por isso, surja na minha escrita com ganas de gigantesco ímpeto.
João que o grande perigo é julgarmo-nos no céu das ideias onde se perpetuam as relações de subordinação, e, não nos termos como temíveis imposturas urbi et orbi. Aceita-se a desigualdade real de todas as condições como se existisse um lugar onde o homem pode descansar da humanidade. Logo, a escrita que tem ganas de gigante talvez seja aquela que conhece ser mais humano o esconder do jogo do que a paisagem bucólica de muita da humanidade exposta.
E levanto-me de novo ou não tivesse ainda diante de mim uma mulher que morre e vive alvo permanente do atirador emboscado, e, sabendo-se presa, escreve sobre muitos assassinos potenciais, apenas passageiramente inaptos para lhe interromper o destino.
Enfim incapaz de se corrigir, eis algo que pode abraçar uma mão que escreve e que adquiriu uma mentalidade de amor e guerra, ambos, sabe-se, atiram mil tiros no preciso momento em que o relâmpago da evidência ilumina o conhecimento. E escreve-se uma e outra vez! E o olhar dos olhos não é modo itinerante, nem qualidade saída dos limbos se se não escrever mais claramente que talvez os acontecimentos não tenham acontecido o suficiente. Quais? Todos os que estão fora do sentimento de um violino, de uma palavra, de uma tinta, de um murro, de uma memória, enfim de tudo o que não conheça o jeito da pluralidade
E que saudade de uma gratidão fundamental e eu a merecesse.
«Escrevo a minha última carta de Klow, antes de partir de regresso ao meu lar lusitano. Como disse, encontrei a Sildávia como sempre – amena e simpática. E a Bordúria continua cheia de medos e desconfianças. Depois dos sinais apaziguadores em 1989, regressaram velhos fantasmas e designadamente o grande fantasma de Plekszy-Gladz, que eu julgaria totalmente banido. Mas não, voltam subtis e ambíguas referências a essa tremenda personagem, em nome de um estranho nacionalismo. É, afinal, a projeção do que hoje vivemos no velho continente.
Falta memória das guerras civis – e, em lugar de uma ligação entre o debate de ideias e a aceitação regulada dos conflitos, deparamo-nos com a ilusão de que tudo se pode resolver com um qualquer chefe omnipresente e omnisciente – como quis ser esse Plekszy-Gladz de má memória. O seu bigode até chegou a servir de símbolo de marca de automóvel e de decoração… É verdade que ainda não chegamos a tanto, mas a bigodaça volta não volta aparece. Entretanto o meu amigo Oliveira da Figueira desvaneceu-se. Partiu de Klow sem me dizer para onde iria.
Sei que os seus negócios vão indo razoavelmente, mas sobretudo o seu espírito aventureiro está mais vivo que nunca… Entretanto, fui matando saudades entre velhos amigos e ofereceram-me uma pequena imagem de Tintin com dois sildavos no tempo em que ele chegou aqui pela primeira vez, ainda ninguém sabia a história e a existência deste país, que continua a ser uma referência histórica e romanesca. Nada vos disse sobre a política. É uma pequena democracia multipartidária, com um governo de coligação com moderados de várias cores. Continua a ser uma monarquia constitucional quase republicana, com a divisa “Eih Bennek, eih blavek” – Aqui estou aqui vou ficar, centrada na velha lenda da rosa com espinhos e do cuidado necessário para não nos picarmos nela. Com uma Europa e um mundo em convulsão, os jornais, as rádios e as televisões dão-nos a notícias costumeiras…
Por mim parto com saudades. Até à vista caros amigos da Sildávia.
CONTINUAÇÃO DE UMA CARTA QUE RECEBEMOS DE KLOW… 22 de janeiro de 2019
Prosseguimos a missiva que recebemos do nosso colaborador e amigo Agostinho de Morais, que ainda se encontra na cidade de Klow, capital da Sildávia.
«Continuo a deambular por esta cidade tão acolhedora. Ontem mesmo voltei a estar com o meu amigo Oliveira da Figueira, numa amena conversa. Lembrámo-nos que a sua primeira aparição nestas aventuras aconteceu em 1932, como personagem de «Os Charutos do Faraó», num episódio em que Tintin é atirado ao Mar Vermelho, por engano, num sarcófago egípcio. Salvo «in extremis», o nosso herói encontrou-o na embarcação que milagrosamente o recolheu. Oliveira da Figueira diz: «se puder ajudá-lo, posso fornecer-lhe a preços competitivos qualquer artigo de que necessite». Começou então por um conjunto flamante de gravatas, às riscas, às bolas ou com figuras exóticas. Seguiu-se um lote de magníficos sabres, com lâminas de Toledo, mil outras bijuterias e muitos brindes: um despertador, escova de dentes etc… Tintin saiu carregado de inutilidades, com um balde, um regador, uma gaiola com papagaio, uns esquis, tacos de golfe, uma casota e uma coleira de cão, além de um despertador. E ingenuamente confessa: «Ainda bem que não me deixei levar pela conversa dele. A tipos como este acabamos sempre por comprar uma série de coisas inúteis»… Já na costa árabe, Oliveira da Figueira demonstrará a sua inefável arte de convencer. Chamam-lhe «o-branco-que-vende-tudo»… E ele reconhece-se orgulhoso: «Então que tal? Chama-se a isto eficiência! E o melhor é que os meus clientes voltarão». De facto, voltam, mas quem aparece a protestar (sem razão, é certo) parece ter ingerido um naco de sabão, que lhe produz mal-estar pelas bolas de sabão que o atormentam. Daí a maldição: «Antes da Lua Nova, o meu Senhor, o Xeque Patrash Pacha, ter-te-á castigado»… Encontramos mais tarde Figueira no «País do Ouro Negro», obra iniciada em 1939, interrompida pela guerra e recomeçada em 1948. Aí, ajuda Tintin a encontrar os segredos do Dr. Müller, descobrindo um subterfúgio.
Mascarado de sobrinho do comerciante, sob o nome de Álvaro, com um aspeto bizarro, levemente atrasado, quase invisual é supostamente vítima de uma estória que o português vai contando sem parar para distrair quantos visavam impedir o acesso aos segredos do vilão. É extraordinária a capacidade efabulatória de Oliveira da Figueira. Inventa que o sobrinho é filho de um criador de caracóis, vítima de uma trama terrível que envolve uma mulher rica que morre de desgosto aos noventa e sete anos e a influência de duas imortais palavras, ditas em português, «Oh! Oh!», cujo sentido, alcance e influência nunca chegamos a conhecer… Depois, em «Carvão no Porão» («Coke en Stock», publicado no «Cavaleiro Andante», em 1959 e 1960, sob o título «Mercadores de Ébano»), Tintin e o seu amigo, Capitão Haddock, pedem apoio e hospitalidade em Wadesdah. Lembro-me, aos sábados de manhã, da expectativa que tínhamos antes de ler a continuação das peripécias. Oliveira da Figueira recebe surpreendido e assustado a visita noturna, com a cidade em estado de sítio, cheia de cartazes a pedir a captura de Tintin. «Que faz aqui, desgraçado? Não sabe que tem a cabeça a prémio?». Há agitação e um conflito entre a Arabair e o Emir…
Tintin diz que precisa absolutamente de ajudar o Emir e Oliveira da Figueira informa que ele teve de fugir para casa de Patrash Pacha. Tintin e Haddock treinam desesperadamente o equilíbrio das bilhas à cabeça, para que possam não dar nas vistas, mascarados de mulheres árabes, cobertas com burkas. O resultado do treino é desastroso. Os estragos são enormes e os cacos enchem o armazém do comerciante arruinado, que se vê na obrigação de dizer às clientes que as bilhas estão esgotadas. No momento da verdade, tudo parece salvo, mas eis que uma mulher árabe descobre a barba hirsuta do capitão e foge escandalizada. O desastre anuncia-se, mas no final tudo se arranja graças ao apoio providencial de Oliveira da Figueira. Recordámos gostosamente estes episódios. E verifiquei que o meu querido Oliveira da Figueira continua igual a si mesmo. Não sei que idade tem. Continua a cuidar-se. Nenhuma das suas qualidades se encontra adormecida. E fala, fala, fala… Comunicou-me, porém, que partirá para um lugar que não me quis revelar qual para dirigir os seus negócios… E hoje fico-me por aqui. Continuarei a informar-vos sobre o que encontrei neste país adorável…
Fica onde estás ano velho ou não dominas tu agora tudo o que se passou e que sempre no tudo e à tua beira esteve o mesmo erro? Que mais queres que te leve para além da manta de brisa marítima confiada apenas aos que se vão e sobrevivem? Diz-me, que mais queres? A mim me tiveste e sou eu que saio de manhã ou tu que partes pela noite? Não sei. É teu jeito retomares o interrompido antes de partires para acrescentares novas dúvidas, e que pelas mãos dos homens e das mulheres elas cheguem ao novo ano pois que esse é teu desejo-força. E a que horas o fazes? Não perguntes. Diria que a nenhuma em especial. Foste fazendo enquanto te oferecias a ser vivido e isso é de uma importância vital e sem misericórdia igual à de quem colhe campos de algodão e se fere e se sangra e só assim se afirma lá num canto onde descobre o quanto se pode suportar.
Ano velho te digo que sempre eu mesma e meus vizinhos, reconfortantes, cruéis, reais conheceram o espinho que astuciosamente se escondeu entre nós, e, todavia a denúncia não teve lugar, ou o amor não fosse também género de ligadura que reclama cidade e reconhece cidadãos, guerras, mercados, escolas, notícias, versos e tudo o que se vai buscar para voar connosco. As fotografias? Claro que se intuem nos pratos, na comida, nalguma gaveta da mobília, nos credos e nos sermões, nos seios descobertos ao amor e nas razões e o que é a vida? As fotografias? ano velho? têm a maior e a menor das fés: acreditam-se num instante.
E sim, já me sentei pacientemente no banco de uma igreja escutando de ti um Evangelho e aceitando o papel de um homem que me deixou instruções antes de uma viagem. Em tudo, o passado nos impele, ano velho, e, precisamente da mesma maneira. Não sei o que ainda não experimentei ou o que está para vir, mas sei que isso será infalível e terá de ser suficiente.
Ninguém será esquecido.
Ano velho, de ti não soube a que hora é a eternidade, mas atenta que percorri os degraus de baixo devidamente, e, ainda subo, e conforme subo, lá bem no fundo reconheço um Nada enorme, e, a minha robusta alma a fazer-lhe frente ou, não soubesse que, ao ano novo que chega, não existe mesmo melhor modo de lhe dizer, aqui estou! e vou chamar-te canteiro, postigo, orla, prazo, légua, encontro, caminhante