Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Gabriel Fauré (1845-1924), compositor francês, foi mestre de capela na igreja da Madalena, em Paris. Gosto de o pensarsentir como um agnóstico de alma profundamente religiosa, e talvez seja no seu Requiem que ele assim tal qual mais se revela. Li algures - não me recordo de onde nem quando - a notícia de que essa obra foi executada pela primeira vez na própria igreja da Madalena, nas exéquias de um paroquiano. No final, o pároco perguntou a Fauré que peça era aquela, pois não a conhecia. O compositor respondeu que era uma missa de requiem sua, o que lhe valeu uma reprimenda e a injunção de não voltar a repeti-la ali, pois no acervo da Madalena já havia coisas dessas em número suficiente... Por outro lado, sei que a primeira intenção de Fauré foi comemorar a morte do pai, terminando a primeira versão da obra já para acompanhar a morte da mãe, dois anos mais tarde. Digo-te isto por sentir que a mansidão da música desta encomenda de almas se inspira muito na devoção de um amor filial.
É verdade que, como muito bem aponta Lionel Salter na apresentação do registo da peça na EMI (entre os Great Recordings of the Century), interpretada pela Orchestre de la Société des Concerts du Conservatoire e os Choeurs Elisabeth Brasseur, sob direção do belga André Cluytens, e com os solistas Victoria de los Angeles (soprano espanhola) e Dietrich Fischer Dieskau (barítono alemão), este Requiem se afasta muito dos modelos clássicos, de Mozart a Cherubini, da ênfase teatral do Requiem dramático de Verdi, em que o homem tremendo de terror fala, balbuciando, em morte eterna, e sobretudo da visão apocalíptica grandiosa de Berlioz, com as suas "fanfarras fulminantes"... O próprio Gabriel Fauré disse, em carta a um amigo, que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram uma cantiga de embalar a morte. Mas é assim que sinto a morte: como feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que um trânsito doloroso. Compreendo Fauré: todo ele, pensossinto eu, se exprime essencialmente nessa prece pelo descanso do coração na mão de Deus, na sua mão direita, como sonhou o nosso Antero, e que o breve Pie Jesu exprime: Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem. / Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem sempiternam. Escuto hoje esse sereno pedido de ternura («piedoso Jesus, Senhor, dá-lhes descanso, / misericordioso Jesus, Senhor, dá-lhes eterno descanso») na voz de Victoria de los Angeles e, já noutro registo, nas dos meninos do Choir of New College de Oxford, sob a direcção de Edward Higginbottom (ERATO). Na verdade, fui buscar ambos os discos, para me acompanharem na reflexão sobre a primeira das Cinq méditations sur la mort - autrement dit sur la vie, de François Cheng (Albin Michel, Paris, 2013). A morte, afinal, terá o mérito de – traduzo - nos levar a tomar consciência do que é, na essência, a noção de vida. Vem-nos ao espírito uma palavra que parece caracterizar essa noção: a palavra «devir». Sim, é isso a vida: algo que advém e que devém. Logo que vinda, entra em processo de devir. Sem devir, não haveria vida: a vida só é vida enquanto devir. A partir daí, compreendemos a importância do tempo. É no tempo que aquilo se passa. Ora, é precisamente a existência da morte que nos confere o tempo. Vida-tempo-morte: eis um todo indissociável, a não ser que seja morte-tempo-vida. Façamos os malabarismos que quisermos, não conseguiremos escapar a essas três entidades concomitantes e cúmplices, que determinam qualquer fenómeno vivo. Pois se o tempo nos parece um terrível devorador de vidas, ele é simultaneamente o seu grande fornecedor. Sujeitar-nos ao seu domínio é o preço que temos de pagar para entrar no processo do devir. Esse domínio manifesta-se por incessantes ciclos de nascimentos e de mortes; fixa a condição trágica do nosso destino, condição essa que também poderá ser fundação de uma certa grandeza.
Nesse sentido, para o sino-francês François Cheng, refugiado em França aos vinte anos, sem saber uma palavra da língua local, hoje membro da Académie Française, poeta e pensador que respira uma espiritualidade alimentada de taoísmo e cristianismo (que descobriu, anos depois de chegar à Europa, em Assis, pelo exemplo da São Francisco), a morte corporal, que tanto nos angustia e assusta, pode revelar-se como a dimensão mais íntima, mais secreta, mais pessoal, da nossa existência. Pode ser esse núcleo de necessidade à volta do qual a vida se articula. Neste sentido, é mesmo revolucionário o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que à morte corporal chama «nossa irmã». Abre-se-nos então uma mudança de perspetiva: em vez de encararmos a morte como um espantalho, a partir deste lado da vida, poderíamos encarar a vida a partir do outro lado, que é a nossa morte. Nessa postura, enquanto estivermos em vida, a nossa orientação e os nossos atos serão sempre impulsos para a vida.
O mesmo Cheng conta, no seu opúsculo Assise - une rencontre inattendue (Albin Michel, Paris, 2014) como, em 1971, no momento em que se naturalizava francês, teve o privilégio de escolher um nome próprio: François. É certo que tal nome tem o condão de significar «francês», minha nova cidadania. Mas a razão mais determinante foi que, dez anos antes, em 1961, me tinha encontrado com o irmão universal que todo o Ocidente conhece, e no qual qualquer ser, mesmo vindo de longe, se pode reconhecer: Francisco de Assis.
O autor deste encantador livrinho, Princesa de mim, que te aconselho a ler, fez questão em publicá-lo anexando-lhe o Laudato si´... esse canto franciscano das criaturas, que acaba assim:
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a Morte corporal, a quem nenhum homem vivo pode escapar. Infelizes os que morrem em pecado mortal; felizes aqueles que ela surpreende a fazer a tua vontade, pois não lhes será ruim segunda morte.
Louvai e bendizei o meu Senhor, dai-lhe graças e servi-o com toda a humildade!
Fiz esta tradução da versão francesa de François Cheng, por dele falarmos agora. Lembro-me todavia de já te ter enviado outra minha versão para português, essa diretamente feita do dialeto úmbrio original, em que foi composto o Laudes Creaturarum - ou Cantico di Frate Sole, assim chamado por virtude da 2ª estrofe (versos 5 a 9) - provavelmente em 1224-25, em São Damião (Assis), onde Cheng também se demorou, 736 anos depois. Para ilustrar o que se diz a seguir, deixo-te hoje, sem tradução, essa estância, como São Francisco a cantou:
Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature, Spetialmente messor lo fratre sole, Lo qual´è iorno, et allumini noi per lui. Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore: De te, Altissimo, porta significatione.
Pelos vistos, Princesa de mim, o nosso Sto. António não teria tido grande dificuldade em traduzir o seu português alfacinha para um dialeto italiano... Quiçá menos ainda em comungar nesse amor universal, divino, telúrico e humano. Já muitos autores observaram também como o texto franciscano «os laços que tece com a cultura latina, essa escrita ornamentada com rimas e assonâncias, poderosamente ritmadas pelo modelo dos salmos...» (Danielle Boillet) ou sublinharam, como Frédéric Ozanam (Les Poètes franciscains en Italie au treizième siècle, Paris 1882), o «valor humano e religioso deste texto». Traduzo:
O poema de São Francisco é bem curto, e todavia nele encontramos toda a sua alma: a sua fraterna amizade das criaturas; a caridade que guiava esse homem humilde e tímido através das querelas públicas; esse amor infinito que, depois de ter procurado Deus na natureza e de o ter servido na humanidade sofredora, a mais não aspirava do que a encontrar a morte.
E é por este santo pobre de Deus que o intelectual, e também poeta, chinês, François Cheng verá em Jesus Cristo a Via (dao) do seu taoísmo de raízes milenares. A fechar esta carta, Princesa, traduzo-te um trecho significativo do Assise - une rencontre inattendue, onde, através dum chinês que escreve em francês também eu experimento um encontro meu que, louvado seja!, é sempre inesperado:
O que ele vê diz-lhe que, apesar de tudo, há sempre razão de louvor. E que outra coisa louvar, se não a própria Criação, com o esplendor do céu estrelado e a magnificência da terra fecunda, essa Criação que, certo dia, a partir do Nada, fez advir o Tudo? Ao louvar, vemos desenrolar-se todo o processo do advento, uma doação total, pela qual só podemos e devemos dizer o nosso reconhecimento. Ele reconhece o facto de que milagrosamente o Ser é, e de que graças a esse facto primeiro, ele mesmo, por minúsculo que seja, ele é. Ao louvar, mergulha totalmente no infinito, no Aberto. Sabe-se parte legítima de uma imensa aventura em devir, a da Vida, com tudo o que ela comporta de desafios e paixões, de dores e de alegrias, de corridas para o abismo e de elevação para a transcendência. Os sofrimentos de cada um e de todos só podem ser ultrapassados no abandono constante à marcha da Via, a única que não nos trairá. Por experiência, Francisco sabe que o que move a aventura da Vida não se limita à potência material, antes é o próprio amor. Por isso, depois de ter louvado as criaturas, cada uma enquanto dom único, ele distingue em particular o destino humano: «Louvado sejas tu, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti; que suportam provações e doenças; felizes os que se mantêm em paz, pois que, por ti, ó Altíssimo, serão coroados!»
Eis o que cantam os versos 23 a 26 do Laudes Creaturarum:
Laudato si´mi´Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore Et sostengo infirmitate et tribulatione.
Beati quelli ke´l sosterrano in pace, Ka da te, Altissimo, sirano incoronati.
Há muita vida, Princesa, para além da vanglória e do conforto, da desilusão e do pessimismo, de tudo o que afinal é esse individualismo tacanho que ensombra os nossos dias...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.06.18 neste blogue.
Sei bem que Jorge Sampaio estimava a música de Gabriel Fauré. Por isso ouso prestar-lhe esta homenagem, igual à que levei até um amigo que não era agnóstico mas frade. Afinal é no nosso coração, mais ou menos desajeitado, que havemos de guardar memórias nossas de quem tanta humanidade nos disse.
Com um abraço do
Camilo Maria
Minha Princesa de mim:
Em carta já datada de 24 de junho de 2018, publicada no blogue do CNC, falei-te de Gabriel Fauré e do seu Requiem. Dizia-te então, citando o compositor francês que eu apelidara de "agnóstico muito religioso", que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram canção de embalar a morte: é uma feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que doloroso trânsito. Gosto intrinsecamente dessa peça sem terrores nem temores, ameaças justiceiras ou fanfarras. Soa-me mais a acolhimento pela ternura de Deus do ser humano que regressa a casa do pai. E, afinal, é isso que Requiem quer dizer: descanso. Eis o que essa missa pede: dá-lhe, Senhor, o descanso eterno. E a esperança logo acrescenta: entre os esplendores da luz perpétua...
Volto a escutar hoje o Requiem de Fauré, lembrando-me de frei Bernardo Domingues, irmão do frei Bento que acorreu ao Porto para o acompanhar à beira do mistério. E a tantos amigos, mulheres e homens, que lá vão partindo na secreta viagem, também lhes faço companhia com essa música toda feita de acenos evangélicos. Talvez não haja alegria maior do que a desse encontro com a misericórdia de Deus e dos humanos todos. Sinto-o muito nesta tarde de sexta feira, quando me chega a notícia de que o frei Bernardo morreu de madrugada.
Melhor do que eu, diz Vladimir Jankélévitch num dos textos de L´Enchantement Musical: O Requiem de Fauré é como o amor e a morte. Depois de tudo o que já foi dito, que mais conseguiremos dizer? E, todavia, é facto: ouvimos os sublimes arpejos do Sanctus e os acentos patéticos do Libera me como se pela primeira vez os escutássemos. O mistério do Ofertório, o alegreto bergamasco do Agnus Dei, o azul seráfico do In Paradisum, todos temas inesgotáveis de meditação e exaltação. [O canto do Agnus Dei, na missa de Requiem, por três vezes pede o descanso para o morto: Agnus Dei qui tollis pecata mundi dona eis requiem. Repara, Princesa de mim, que Jankélévitch chama, a esse andamento em alegreto no Requiem de Gabriel Fauré, bergamasco, sublinhando assim a alegria dançante de uma música que lhe evoca a bergamasca, dança ligeira (como a tarantela) da região de Bérgamo.]
Confidencio-te hoje, Princesa de mim, a minha experiência espiritual na escuta desta obra musical, porque ela me ajuda a uma contemplação evangélica do mistério da vida e da morte humanas. Até pela fraternidade em que esse mesmo mistério se torna presente, nesta irmandade de todos nós, os da mesma humana condição, aqui algures no inacabado (Quelque part dans l´inachevé, outro título de Jankélévitch). No momento em que encaro a morte de um amigo, estou de certo modo a interiorizá-la: há sempre um pouco de nós que morre com os amigos que partem, com qualquer humano que se morre, e há ainda essoutra parte de nós, que fica, bem viva pela força persistente que nos diz como há algo em nós, na comunhão de todos nós, que não irá morrer. Esta é doravante a comunicação mais forte que temos com os que já não vemos agora. Afinal, estamos sempre em comunhão com todos os que são - pela, e na, sua e nossa humanidade - o nosso próximo, confundidos na mesma condição, na vida e na morte.
Recordo-me de que várias das minhas cartas à Princesa de mim, nos interrogavam acerca da fé. Duas delas me ocorreram mais profunda e assiduamente no decurso da minha presente caminhada pela areia fugidia de um deserto desconhecido, ardente talvez, todavia silencioso. Até por dentro me queima, a tal ponto que já nem gritar sei. E com silêncio, como num desafio, à minha mudez responde. Seco de recursos, só a mim pergunto o que tantas vezes implorei em versos velhinhos, como estes que compõem um dos meus Sonetos de Amor Mordido que enviei em carta à Princesa de mim, e o blogue do Centro Nacional de Cultura publicou em agosto de 2013. Rezava a carta: O amor humano é procura e sinal. Como no Cântico dos Cânticos, poderia dizer-te o grito que lanço a Deus:
No deserto cresce o meu desejo por ti tantas vezes destemido: és a minha fome e o meu pedido de ver-te, Senhor, a Quem não vejo...
Minha sede é seres, e só procuro a fonte da sede que me dás; no desejo de ti vivo e duro com sede da sede que me traz
este deserto em que sou despojo, lixo de ser, graça do teu nojo... Esqueleto ebúrneo me levanto,
branco de areia, de morte e de espanto, e de ti te grito a minha fome. E sei que te chamo pelo teu nome!
Ao evocar a definição de fé na epístola aos Hebreus (11, 1), automaticamente ela me ocorre na versão latina da Vulgata: Fides est substantia sperandarum rerum. Traduzo empiricamente: "A fé é a substância das coisas que devemos esperar". Tradução ambígua, significação ambivalente, já que substantia é o que está por baixo, ou seja, o assento ou sustentáculo, o apoio; mas também é o que constitui, isto é, aquilo de que algo é feito. Mas não será a fé isso tudo? Na respetiva tradução direta do grego, o cónego José Falcão escreve: "A fé é o sustentáculo das coisas que se esperam". O professor Frederico Lourenço, por seu turno em tradução direta do grego: "Fé é garantia de coisas que se esperam", versão próxima da francesa de Bible de Jérusalem: "Or la foi est la garantie des biens que l´on espère... Assim sendo, pode pois concluir-se que sem fé não há esperança, da qual ela é, necessariamente, a base, o sustentáculo. Mas a fé surge também enquanto garantia de bens por vir, como se, não havendo ou faltando fé, esses futuríveis não se realizassem. A partir daqui, fará pleno sentido a afirmação latina constante da Vulgata, que traduzi por "a fé é a substância das coisas que devemos esperar", ou seja, que ela é mais do que sustentáculo e sustento, sendo afinal a própria essência delas, a sua realidade atual.
Para qualquer leitor assíduo do Novo Testamento - isto é, da Bíblia propriamente cristã -, tal como para qualquer observador atento da história e escritos dos primitivos cristãos, ressalta a evidência de que a sua fé se vota e devota fundamentalmente à pessoa de Jesus Cristo. A fé cristã é, assim, a confiança posta na pessoa do Verbo feito carne, com o qual, e pelo qual, todos nos tornamos filhos de Deus. Acreditamos na palavra do Senhor Jesus, e por ela sabemos que o bem que devemos esperar, o Reino, já está dentro de nós : Interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, Jesus respondeu-lhes : «O Reino de Deus não vem de maneira observável. As pessoas não afirmarão "Ei-lo aqui" ou "Ei-lo ali". Pois o Reino de Deus está dentro de vós». (Lucas, 17, 20-21). A nós cabe fazê-lo crescer, somos parte integrante da sua vinda.
Quando vier o Filho da Humanidade na sua glória... ...dirá o rei àqueles que estão à sua direita: «Vinde, benditos do meu Pai, e herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Eu tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, eu era estrangeiro e acolhestes-me, estava nu e vestistes-me, estava doente e visitastes-me, estava na prisão e viestes até mim». (Mateus, 25, 34-36)
E dizia ainda: «Bem aventurados os mendigos, porque vosso é o Reino de Deus. Bem aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem aventurados os que chorais agora, porque rireis». (Lucas, 6, 20-21)
Vale a pena citar aqui a tradução, por Frederico Lourenço, dos versículos 1 a 10 do capítulo 5 do evangelho segundo Mateus:
Vendo as multidões, Jesus subiu até à montanha e, sentando-se, vieram ter com ele os seus discípulos. E abrindo a sua boca, ensinou-os, dizendo:
«Bem aventurados os mendigos pelo espírito, porque deles é o reino dos céus. Bem aventurados os que estão de luto, porque eles serão reconfortados. Bem aventurados os gentis, porque eles herdarão a terra. Bem aventurados os esfomeados e os sedentos de justiça, porque eles serão saciados. Bem aventurados os misericordiosos, porque eles serão alvo de misericórdia. Bem aventurados os puros pelo coração, porque eles verão Deus. Bem aventurados os que fazem a paz, porque eles serão chamados filhos de Deus. Bem aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
O Reino de Deus está dentro de nós: o luto ou saudade dorida, a gentileza ou mansidão, a sede de justiça e a misericórdia, a pureza de intenções e o amor da paz, a perseverança no bem, tudo isso, com sua paixão, nasce connosco, é parte integrante da nossa contraditória condição humana. E é essencialmente a nossa fé, desde já substância do bem que um dia nos será dado. O Reino, ensina-nos Jesus, não está fora de nós, antes em nós cresce, se o procurarmos. As suas bem-aventuranças são-nos dadas, como potencialidade e chamamento. A religião cristã é simples, no sentido em que não exige grandes especulações metafísicas ou teológicas, mas tão somente a humanidade benevolente de escutarmos e nos inspirarmos nas palavras misericordiosas de Jesus. E será pelo amor aos outros que nos reconhecerão.
Escrevia estas linhas, quando um telefonema de um hospital de Torres Vedras me anunciou a morte da Isabel Maria, minha Mulher há mais de 55 anos. Na dor que me enche o coração, encontro ainda a alegria de ter assistido, durante esses anos todos, à bondade cristã de uma mulher que amava e procurava a concórdia e a paz, a justiça e a misericórdia, a visão de Deus no coração da humanidade. Foi sempre construindo um pedacinho do Reino de Deus, atenta aos sinais temporais dos bens que devemos esperar, e sempre disponível para o acolhimento, a consolação e a partilha.
Regresso agora das exéquias fúnebres e retomo a escrita. Para acrescentar apenas que escolhi a versão portuguesa de Frederico Lourenço para citar o sermão da montanha, porque gosto das expressões mendigos pelo espírito e puros pelo coração, já que me sugerem a ação do espírito e a do coração por ele movido. Essa é a lembrança que guardo da Isabel Maria, bem perto da fonte da nossa religião.
Persigo sobre a areia só e é fugaz e fugidia a deste deserto nas vagas impressões dos teus muito frágeis passos
São de outrora, de depois ou só de porvir conformes a tempos e modos de sentir porém de ti sempre
Porque como teus só os reconheço ou talvez por mim os adivinhe e me transformem
Já tanto de ti só no coração de Deus existe e eu estou fora ainda por pegadas de vento buscando na saudade o teu caminho
Quando um de nós se perde na demência, só num deserto estranho o outro o pode encontrar. Eis como a comunicação possível se torna monólogo e se inventa outra existência. Perdeu-se alguém, de tão brutal maneira que a própria ausência é impossível de se conceber. No fundo de mim, terei de criar uma presença nova e fazê-la comunicar, por um caminho do espírito que em si só, no seu mistério, guarda o seu segredo.
Quem morreu, sabemos que não está aqui, imaginamo-lo algures ou nenhures, mas sem nunca o ver, e a sua própria incomunicabilidade pertence à ordem natural das coisas. Não lhe pertence. Tortura maior é, sim, procurar quem vemos mas não nos fala, tentar escutar no silêncio o bater de outro coração, desvendar num segredo inacessível essa presença amorosa qe Deus nos esconde. Porquê? Saberás tu responder-me, ouvir-me-ás perguntar-te aonde vais?
Como escrevi, em carta com mais de sete anos, no passado domingo republicada pelo blogue do CNC, "o silêncio interroga o silêncio. E é mais sentida a ferida".
Dizes-me que tens estranhado o meu silêncio, melhor dirias o apagão da minha escrita... Ando apagado, sim, porque me estranho. Quiçá a mudança de habitação, a troca de um meio urbano pelo sossego isolado do campo, envolto em silêncio, me tenha disposto a ensimesmar-me. E nesta minha idade, qualquer encontro a sós comigo, fatalmente me remete para a proximidade desse muro que só transporemos como fantasmas atravessam paredes. Talvez também por não me sentir saudoso, ainda que habitado por muitas lembranças, sobretudo agora, quando o abrir de tantas caixas me confronta com o destino atual de muitas coisas passadas. Calhou-me abrir e reler um opúsculo do José Ortega e Gasset, escrito em 1943, creio que no Estoril, esboço de uma hipótese sobre a saudade, mito e segredo lusitano. Cito-te um trecho que se atém ao que te venho dizendo: Las circunstancias del mundo me han traído aquí y las razones por las que aquí estoy me aconsejan la vida retirada. Mas aunque nada de esto fuese, causas personales me impedirían ya de entrar en la intimidad de Portugal. Ésta solo puede ser vista desde dentro de ella, como la fisiognomía es visión desde fuera. Y "entrar" en un pueblo es lisa y llanamente no solo estar en sus calles sino vivir en él, ser en él. Ahora bien, es aquí donde he empezado a sentir que soy viejo y ser viejo es para el hombre la manera normal de ir dejando de ser, de vivir. A cierta edad el hombre se va volviendo "ausente" allí mismo donde está,se va alejando de las cosas y éstas comienzan a non serle. Es la iniciación de un proceso que termina en el "espectro", idea ésta muy profunda que los primitivos tenían del muerto. La muerte que ellos no concebían (por supuesto, nosotros tampoco) se les representaba como una pervivencia en nueva forma. Los muertos siguen viviendo una "vida espectral".
Ortega y Gasset, o mesmo que dizia que a filosofia é a forma que toma a juventude ao florescer e amadurecer no homem velho, escreve no tal esboço de ensaio que te lembro: La Saudade no es un tema portugués, sino el tema portugués por excelência. Si algún otro pude situar-se a su vera es, acaso, la "Descoberta". Ambos polarizan la realidade histórica que es Portugal. Y resulta que son una contraposición: la "Descoberta" es el ansia de irse, la "Saudade" el ansia de volver. La ex-patriación (una vez) y la re-patriación permanente: antes e después de la Descoberta. Portugal es el "hijo pródigo" de si mismo. Qué es en él lo más autentico, el irse o el volver? Aquéllo lo hizo una vez: esto lo há hecho y lo está haciendo siempre. Cada dia, cada hora, el português vuelve a si.
Aqui tens, Princesa, como entre eu e mim me sinto agora. Sabendo ainda que tudo o que disse, diga ou hoje possa dizer, outros já disseram ou dirão melhor. Neste momento, sobretudo pensossinto que uma súbita mudança das referências do meu quotidiano - do próprio quadro físico da minha vida - logo me tornou, sozinho, na alcançável (?) referência de mim. Em novos ares, só em mim poderei reconhecer-me, procuro encontrar-me não com o que fui, mas com um ser familiar e simultaneamente estranho, e nesse sentido sou o filho pródigo de mim.
Quiçá tal seja uma conversão, sou como Saulo derrubado, que se levanta e já é Paulo. Ou como Mateus, no quadro do Caravaggio, que Cristo aponta e um raio de luz toca no peito, Mateus que leva a mão ao próprio coração que se pergunta: Eu, Senhor? Assim este Advento me vem trazendo outro Natal: sempre me fascinou no cristianismo essa nova de Deus ter tornado humana a sua transcendência. O Mistério da Encarnação é, desse modo, a contemplação de uma incógnita: qual é a relação ontológica de Deus com o homem, o mundo, a história? Por este Natal de 2016, ocorre-me um caudal largo e sereno de questões que, no decurso da minha vida, sempre vieram bater a uma qualquer porta bem dentro de mim: onde está Deus? poderei encontra-lo? E, ao longo dos anos, vou sentindo e pensando que cresce em mim essa torrente invisível do meu renascimento no perpétuo Natal do cosmos.
Por isso mesmo sempre digo e desejo FELIZ NATAL! - seja feliz o vir à luz do nosso livramento. O Reino de Deus começa por uma criança que nunca envelhece. Repito: desejo-te - a ti e a todos os que lerem esta carta - a continuação de um Feliz Natal!
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 18.12.2016 neste blogue.
Quando, há anos atrás, me arrisquei a traduzir cartas do Marquês de Sarolea à Minha (sua, dele) Princesa de mim (dele), nem sonhava com meter-me nesta alhada de lhe continuar o hábito epistolar e acabar indefinidamente escrevendo cartas a esta (tu mesma) indefinida Princesa de mim. Talvez deva esclarecer melhor o assunto, já que tanto insistes em limpar o teu nome e seres absolvida de qualquer eventual responsabilidade pelos meus devaneios senis... E já o fiz, sabes bem que sim, mas repeti-lo-ei ao editar em papel de livro, como tantos insistem, as cartas da minha crise. Por agora, vou dormindo sestas, e escutando-me. Sem disfarce nem traduções, escrevo-te umas cartas, relatos simples do meu pensarsentir. É sempre bom partilhar.
E falando de partilha, deixo-te agora esta mensagem tão linda que recebi de velho amigo, feliz com a dádiva de neto seu: hoje o Rodrigo (tem sete anitos) ficou em casa, doente, e para não ser só TV mandei-o para o quarto fazer uma cópia. Assim foi, mas apareceu também com uma oração que escreveu (juro que não lhe pedi para escrever nem ajudei com nada!):
Oração deJesus: A vida é a melhor coisa que nos aconteceu. A vida é tudo para nós. A vida tem que ser bem aproveitada. A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor. Nós agradecemos a graça e a bondade da vida.
Sem querer meter-nos em filosofias, nem fazer epistemologia (ou seja, evitando irritar-te!...), lembro o famoso dito cartesiano: penso, logo existo. Talvez nem seja preciso pensar muito, a vida é um dado, não só no sentido de estar aí sem que eu tenha feito por isso, mas como dádiva... Assim escreveu o Rodrigo: A vida fez um favor e nós temos que retribuir esse favor. Drogado em leituras, pensamentos e lembranças, ocorre-me um passo das Obras de António Mora (Fernando Pessoa), quando se refere ao paganismo do heterónimo Alberto Caeiro: Como o que está na inteligência tem de estar primeiro nos sentidos (aqui dito sem inútil filosofia, mas apontando apenas o facto material), o paganismo tinha que ser instintivo, de sensibilidade, antes de poder ser novamente uma ideia formada e consciente. Era preciso, para que pudesse renascer o paganismo, que começasse por aparecer um pagão. Digo-te eu: para que nasça a vida é só preciso que haja vida. Neste sentido, a vida humana é a consciência inata dela própria: vivemos e sabemos que vivemos, simplesmente porque estamos vivos. E creio que o paraíso eterno mais não é do que viver com o Deus dos vivos. O inferno não terá fogueiras nem gemidos, será simplesmente o esquecimento da vida, o nenhures dos mortos, nada.
Todos nós conhecemos pessoas que padecem de síndromas estranhos, malefícios esquisitos, que desde meninas as retiram da vivacidade de qualquer convívio social. Não lhes falamos nem as escutamos, mas, mesmo assim, comungamos com elas na vida. Respeitamo-las, quiçá com mais sentido e cuidadoso carinho, por nelas reconhecermos a vida que nós próprios somos, porque, diz o Rodrigo, a vida é a melhor coisa que nos aconteceu, a vida é tudo para nós. A atenção ao outro, o cuidar dele, é o nosso único modo possível de, como lembra o Rodrigo, nós agradecermos a graça e a bondade da vida. Arrisco-me a dizer-te, Princesa de mim, que a alegria da vida é sempre necessariamente recíproca: na vida dos outros reconhecemos, como num espelho, a nossa própria vida. Pensossinto, mesmo, que esse é o nosso modo comum de sermos todos Mãe, essa cuja vida, apesar dos incómodos, enjoos e cuidados, se alegra na felicidade que sente vibrar no seu ventre.
Assim termino esta carta, bem mais jovem do que quando a comecei. É certo que a doença, sofrimento e morte de tantos amigos, recentemente, me abalaram, sobretudo por me doer a dor deles, e por me faltarem, repentinamente, memórias e marcos do meu percurso nesta terra. Mas, afinal, o miúdo Rodrigo, profeticamente, veio lembrar-me de que todos temos uma única referência comum, que é a vida. Essa que, diz São João na sua epístola, se manifestou: vimo-la, damos testemunho dela e anunciamo-vos essa Vida eterna... ...para que também vós estejais em comunhão connosco... ...Tudo isto vo-lo escrevemos, para que a nossa alegria seja completa.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 04.03.2016 neste blogue.
A nação judia, livre e independente, dispõe-se a colaborar com os seus vizinhos árabes livres, para promover a verdadeira independência de todos os países semitas do Médio Oriente... - afirmava Ben Gurion um dos pais e primeiros governantes do atual estado de Israel. Aliás, foi ele quem pronunciou a declaração de constituição e independência do estado de Israel, em 14 de maio de 1948.
Já no século I da nossa era, Flávio José, judeu, cidadão romano, cronista ou historiador de seu ofício, propunha, na sua obra Antiguidades Judaicas (I, 180; VII, 67), a seguinte etimologia para o topónimo Jerusalém: Visão da Paz. O topónimo terá raiz muito antiga, surge no século XIX antes de Cristo gravado num figurino egípcio: Rushalimin.
Em Lettrines, março de 1967, Julien Gracq escrevia: Jerusalém, cometa histórico cuja história quase se reduz a um longo rasto inflamado, pousada na sua colina como foguetão em rampa de lançamento - tanta fúria de eternidade em tão pequeno corpo - cidade Pítia, cidade epiléptica, soluçando sem tréguas do transe do porvir...
No seu Éthique de la Considération, a professora de filosofia na Universidade de Paris-Est-Marne-la-Vallée, Corine Pelluchon, que tem a idade da minha filha Teresa, cita São Bernardo de Claraval, pai da reforma beneditina de Cister e pregador de Cruzada - sim, esse mesmo, o tal que é evocado, em azulejos do nosso mosteiro de Alcobaça, pelos seus monges e conversos, obreiros da colonização agrícola de grande parte de Portugal, nos tempos d´El Rei Dom Afonso Henriques, o Fundador:
Bernard de Clairvaux écrit au pape Eugene III en exil: «Lembra-te de que nasceste de uma mulher!» É impossível governarmos sem nos lembrarmos, nós mesmos, de que saímos nus do ventre de uma mulher, de que somos um ser engendrado. Para mim, todavia, a humildade, mais do que uma virtude, é antes do mais um método. Porque nos permite purificar o olhar, e deixarmos de estar em pleno poder e domínio, que são as tentações constantes do humano. A humildade é uma experiência que despoja o indivíduo dos seus atributos sociais, permitindo-lhe agarrar a sua nua humanidade, e ter compaixão para com outro, e então compreender o seu próprio lugar no mundo, sem perder o sentido da justa medida. Isso que hoje falta a tanta gente brilhante...
Lembrei-me destes passos e trechos - ouvidos ou lidos há mais ou menos tempo, sem precisão de datas ou ocasiões, pois que cada vez mais indiferentes se me tornam as horas e distâncias - ao refletir hoje, dia 27 de janeiro de 2018, na memória do Holocausto. Que a lembrança da barbárie nazi e de tantas outras perseguições e injustiças de que judeus foram vítimas possa levar hoje Israel a pensarsentir, não ressentimento ou vingança, nem sequer desforra - muito menos a custas de populações de cristãos e muçulmanos palestinos, inocentes de genocídios e, na sua esmagadora maioria, povos há mais tempo radicados na Palestina do que os judeus de origem caucasiana e descendentes de outros convertidos, que o movimento sionista veio trazendo para aquelas paragens, ali adquirindo e, depois, expropriando terras, nem sempre de forma condizente com as leis e usos locais, menos ainda com o respeito devido a paisanos sujeitos, primeiro, ao domínio otomano (até 1917) e, a seguir, ao do mandato britânico (de 1917 a 1945).
Recordo, comovido, um trecho de Pour l´Amour de Bethléem, ma Ville Emmurée, de Vera Baboun, eleita, em 2012, presidente da Câmara Municipal de Belém, professora universitária, católica palestina, de origem árabe e arménia, mãe de cinco filhos, viúva de um palestino morto por forças israelitas de ocupação: Acontecia-me ir diretamente, à saída da escola São José, assistir à missa das 17horas na igreja de Santa Catarina. Lembro-me especialmente desse dia de maio, mês da Virgem Maria. Tinha 16 anos. Estava sentada na nave, com a farda da escola, e a pasta ao lado. Escutava a homilia. Foi então que o padre pronunciou esta frase: «As bênçãos e as graças escondem-se no coração dos sofrimentos. Aprendei a fazê-las nascer!» Falava em árabe, e fascinava-me o ritmo, mesmo se ainda não lhe percebia o sentido. De regresso a casa, apressei-me a apontá-la num canto do diário íntimo que então escrevia. Tal como a ouvira. «As bênçãos e as graças escondem-se no coração dos sofrimentos. Aprendei a fazê-las nascer!» Quem era eu então? Uma filha de boa família, que se ia casar, tão jovem ainda, com um rapaz vindo também de um meio considerado bem. Tinha pais amorosos. A vida era bela! Não conhecia o sentido da palavra «sofrimento». E todavia aquela frase ia mudar a minha vida.
Acrescento, Princesa de mim, mais duas breves citações do livro de Vera Baboun, porque também nos fazem refletir:
Trinta e sete anos depois, Belém está muito mudada. Do lado de Jerusalém, um muro com oito metros de altura encerra-nos cada vez mais hermeticamente... ...Doravante, a avenida de Hebron, a artéria principal, dantes com tanta vida, que levava a Jerusalém, é um beco sem saída... ...O muro impõe-se à nossa vida quotidiana, pesando sobre cada um dos nossos movimentos, penetrando insidiosamente nos nossos espíritos...
Geralmente, a primeira pergunta que os visitantes fazem ao presidente da Câmara de Belém é «Fale-nos das relações entre cristãos e muçulmanos!», como se estas devessem ser necessariamente más. Mas não é assim. Cristãos ou muçulmanos, em Belém vivemos sempre juntos. Quando era nova, todos os nossos vizinhos eram muçulmanos e mantínhamos as melhores relações do mundo. Vinham a nossa casa, íamos a casa deles. Partilhávamos almoço ou jantar. Jogávamos futebol na rua, rapazes e raparigas, muçulmanos e cristãos. Hoje, face ao muro, seja qual for a nossa religião, nós, Palestinos, somos todos arrumados pelo mesmo labéu.
O detestável surto de terrorismo cego que se reclama de inspiração islâmica (imagina, Princesa, outro qualquer movimento de violência "evangélica" que se pretendesse sequaz da expulsão dos vendilhões do Templo) tem gerado reações que, cada vez mais, tendem a apontar motivações religiosas ao espírito bélico e suas inerentes sevícias e injustiças gritantes. Juízo que, apesar de substanciado por atos e factos indesmentíveis, não deixa, finalmente, de ser temerário pela extensão generalizadora e discriminatória que fomenta, e pouco lúcido pela estreiteza da compreensão da própria natureza humana. Não chegarei ao exagero de afirmar que em cada um de nós habita um médico e o seu monstro, mas sei que todos sofremos a tentação de impulsos para o bem e para o mal. Muitos textos religiosos, da Bíblia ao Corão, e outros ainda, conservam palavras de ordem, pretensamente reveladas ou ditadas por divina voz, incitando a uma qualquer guerra santa, que todavia podem ser interpretadas pela perspetiva do bem, sobretudo para quem crê que se Deus fala o fará por bem. Claro que há nisto muito de subjetivo ou, se preferires, de cultural. Mas também é verdade que, em todas as religiões, incluindo as monoteístas, desde sempre despertaram movimentos de universalização da igual dignidade humana e de paz.
A vida religiosa ou qualquer vida conscientemente espiritual, é sempre uma relação e, como tal, necessariamente subjetiva ou, melhor, intersubjetiva. Se esta aparente banalidade que acabo de te escrever pode ser facilmente captável por pessoas praticantes de diferentes formas de religião - no sentido de tentativa de comunicação com o transcendente, o invisível, ou o poder ignoto -, já a sua instituição social - no sentido cripto-jurídico de ideia que se corporiza em organizações providas de funções normalizadas e hierarquias gestoras - poderá torna-la em propriedade mobilizadora de um poder político, de vocação totalitária ou discriminatória, de que temos tantos infelizes exemplos históricos (e os judeus basto sofreram de perseguições). A Igreja Católica ainda hoje carrega o peso institucional que lhe foi moldado, no século IV, pela sua "constantinização", isto é, pela assimilação de conceitos e relações, regras e práticas, jurídicas e rituais, próprias do Império Romano e seu aparelho de Estado. Quem se dedicar um pouco - ou talvez mesmo muito - à leitura de textos coevos perceberá melhor o balanço de deve-e-haver dessa transformação das comunidades cristãs primitivas (as dos séculos I, II e III) na cristandade romana bizantina e latina do século IV. No judaísmo, quiçá por nunca ter convertido o poder imperial, a tradição religiosa (melhor diria: as tradições) foi-se transmitindo descentralizadamente pelas sinagogas da diáspora, em que, além da Torah, Jerusalém era um ponto de reencontro e união espiritual em redor da Promessa. Nesse sentido, o mito da Cidade do Templo, de David e Salomão, com mais ou menos veracidade histórica ou evidência arqueológica, é certamente respeitável e, pelo seu símbolo teológico da prometida Cidade de Deus, admirável.
Mas isso não faz dela a capital política do recente estado de Israel, não só por razões abundantes de ordem histórica, política e jurídica, como ainda pelo facto de 55% dos atuais cidadãos israelitas se declararem não religiosos. E muitos israelitas judeus contestam a fundamentação religiosa exclusiva de Jerusalém-capital e defendem os direitos dos palestinos. Aliás, Israel é o segundo estado judaico do mundo (com 5 milhões de habitantes), sendo os EUA o primeiro (com 6 milhões e meio). Nessa América, onde constituem + ou - 2% da população têm uma representação de 33% do Congresso. O que ninguém contestará: na verdade, estão lá por mérito próprio, não por serem judeus ou como tal considerados. São representantes do povo americano, a que pertencem. E assumindo várias nacionalidades e culturas, vivendo entre as gentes, praticando a sua religião, outra, ou até nenhuma, as comunidades judias são testemunhas de um princípio fundador da nossa civilização: Deus, o Ser, o Nome, a Palavra, escolheu o ser humano para, no tempo histórico, ir fazendo do universo a Jerusalém Celeste.
Aquilo a que hoje se chama «a Política» nada deve considerar nem resolver sem olhar para as pessoas, as populações, os povos, com suas vidas. Sem excluir ninguém, antes procurando sempre acolher os mais abandonados. Por isso, Princesa de mim, te deixo com mais uma citação de Vera Baboun, que talvez nos ajude a meditar (traduzo-te o epílogo de Pour l´Amour de Bethléem):
Belém é o paraíso dos indesejados. Abrigamos o «Presépio», um lar que acolhe as crianças nascidas fora do casamento; e ainda outro abrigo, animado por freiras, que recebe mulheres espancadas ou violadas, vindas de toda a Palestina: um excelente hospital para crianças atrasadas mentais; outro, novo, para tratar dependências da droga... Porquê? Porque a piedade, a paz, o amor são o credo da Natividade. Foi sobre isto que nos construímos. Aqui estamos, cristãos de Belém, para lembrar ao resto do mundo o que aqui se passou. Belém não é apenas uma cidade, é um modo de ser, uma unção de paz que apenas pede para se espalhar pelo planeta. Mas, ai de nós, enquanto a nossa cidade, que foi o berço do Príncipe da Paz, estiver emuralhada, não reinará a paz. Nós somos o estandarte da paz, os seus guardiães e defensores. Não merecemos esta desgraça. Em Belém se encontra a gruta onde Nosso Senhor, pelo seu nascimento, mudou o calendário do mundo! A humanidade poderia dar-lhe bom ou mau uso, mas foi sinal de uma civilização nova, de uma nova leitura do nosso destino. Possa o mundo aperceber-se disso, antes de que seja tarde demais!
Ninguém pode hoje provar e demonstrar que Jesus Cristo nasceu mesmo numa gruta ou em Belém. Mas tal não tira qualquer força à mensagem emitida, à vocação da paz. Tampouco sabemos tudo, ou nem sequer muito, da história de Jerusalém, que conheceu muitos e desvairados conquistadores e reinantes, vindos de perto e de longe, confessando fés diferentes (até as cruzadas lá impuseram um reino cristão). Mas, para além do conhecimento histórico, e ainda aquém de definitivas decisões políticas, pensemos em Rushalimin - Jerusalém, e desejemos, com a força das varas todas do nosso coração A Visão da Paz.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2018 neste blogue.
Habituei-me a escutar a soprano francesa Sandrine Piau cantando árias de Haendel e Mozart, e revejo com alguma frequência o registo videográfico da ópera Alcina, em que o seu desempenho da personagem com o mesmo nome me comove profundamente. Esta manhã descubro-a noutras interpretações, que me encantam mais do que surpreendem : em canções de vários compositores franceses dos séculos XIX e XX, em que se faz acompanhar por Le Concert de la Loge, dirigido, ao violino, por Julien Chauvin. Mas não será deste álbum - que a editora Alpha intitulou Si j´ai aimé e publicou este ano - que te falarei aqui e agora. Esta presente carta minha vai curta, quero tão somente deixar-te o texto original e a minha versão portuguesa (que é muito simples e não pretende ser criativa) do poema de Victor Hugo - Extase - que, posto em música pelo meu homónimo Camille Saint-Saëns, abre esta colectânea. Não o faço por grande amor ao romantismo, ou a Victor Hugo em especial, mas porque bebi, no canto deste poema, um pensarsentir tão simples, tão lindo e tão forte - que logo o reconduzi à leitura desse passo do Livro da Sabedoria que nos é proposto neste primeiro domingo de Novembro, quando já se anuncia um tempo novo e nos vamos aconchegando à misteriosa ternura do Natal que vem aí. Vai este passo do capítulo 11 para o 12 :
Perante Ti, Senhor, o mundo inteiroé como um grão de areia na balança, como a gota de orvalho na manhã. De tudo Te compadeces, porque és omnipotente e não procuras ver os pecados, mas o arrependimento. Amas tudo o que existe e não odeias nada do que fizeste... ...Tu amas a vida, Senhor... ...o teu espírito incorruptível está em todas as coisas...
Assim me ocorreu como poderia ter sido Victor Hugo inspirado quando disse aos anos rápidos : A minha alma tem mais chama do que vós cinzas! / O meu coração mais amor do que vós esquecimento! Vamos então ao Extase:
Puis-que j´ai mis ma lèvre à ta coupe encore pleine; Porque aos lábios levei o teu cálice cheio;
Puisque j´ai dans tes mains posé mon front pâli ; E em tuas mãos pousei meu pálido rosto;
Puisque j´ai respiré parfois la douce haleine Porque fui respirando o hálito suave
De ton âme, parfum dans l´ombre enseveli; Da tua alma, perfume em sombras amortalhado;
Puisqu´il me fut donné de t´entendre me dire Porque tive a dita de te ouvir dizer
les mots où se répand le coeur mistérieux; palavras em que se verte o coração misterioso;
Puisque j´ai vu pleurer, puisque j´ai vu sourire Porque vi chorar, já que vi sorrir
Ta bouche sur ma bouche, et tes yeux sur mes yeux ; A tua boca na minha, os teus olhos nos meus;
Puisque j´ai vu briller sur ma tête ravie Porque vi cintilar e encantar-me a cabeça
Un rayon de ton astre, hélas! Voilé toujours; Um raio do teu astro, que triste fado encobre;
Puisque j´ai vu tomber dans l´onde de ma vie Porque vi cair na onda da minha vida
Une feuille de rose arrachée à tes jours Uma folha de rosa arrancada aos teus dias
Je puis maintenant dire aux rapides années : Posso agora dizer aos anos rápidos :
- Passez ! Passez toujours! Je n´ai plus à vieillir! - Passai! Passai quanto quiserdes, que velho não ficarei !
Allez-vous-en avec vos fleurs toutes fanées; E passai levando as vossas flores todas murchas, pois
J´ai dans l´âme une fleur que nul ne peut cueillir! Trago na alma uma flor que ninguém pode arrancar !
Votre aile en le heurtant ne fera rien répandre Nem lhe tocando poderá vossa asa entornar
Du vase où je m´abreuve et que j´ai bien rempli. O vaso que me mata a sede e trago bem cheio.
Mon âme a plus de feu que vous n´avez de cendre Tem mais chama a minha alma, do que vós tendes cinzas
Mon coeur a plus d´amour que vous n´avez d´oubli! Meu coração mais amor do que vós esquecimento !
O dom do amor, seja como ele for, é a primeira graça de Deus. E o poeta, qualquer poeta, é, na sua alma, um pastor que, como os bem aventurados puros de coração, durante toda a vida conduz, sem cansaço, medida ou duração, pelos longos caminhos da transumância, essa inicial e essencial memória da infância.
Nesta terça feira, 5 de Novembro, recebi um livro escrito pelo meu amigo José Manuel de Braga Dias: As Cores do Tempo (Causa das Regras, Oeiras, Outubro de 2019). Nele achei muitas coisas bonitas, talvez por me saberem a sentidas verdades de gente. Coisas que afinal todos partilhamos, como estas:
Nesta sexta feira grisalha e um tanto quanto chuvosa e ventosa em que, neste ano de 2019, aterrou entre nós a celestial festa de Todos os Santos, as minhas ferrugens obrigaram-me a participar pela televisão na missa celebrada na Igreja de Santa Beatriz da Silva, em Lisboa. Eis um dia de alegria muito íntima - tão íntima que me faz chorar - e todos os anos a comemoro com o todo de mim, pois que é memória não de mortos mas de vivos, alguns dos quais foram habitantes do meu sangue antigo, muito antes de eu mesmo saber que por eles existo, outros da minha vida remota já ou próxima ainda, das minhas casas, amizades e amores, encantos e desilusões, inquietações, anseios e interrogações... E mais tantos, tantos, com quem partilhei ou quis partilhar a minha fé, sem contar com todos os de mim ignorados companheiros, que creio sempre amigos, não sei, mas necessariamente comungantes da mesma humana condição.
Gosto deste amor universal que nos abraça na festa dos vivos, e tão solar e feliz me faz sorrir em dia aparentemente cinzento: reúno-me com a vida que não vejo agora - com a dos que, incluindo meu irmão mais novo, saíram este ano da nossa vista - e essa miríade de incógnitos de mim, agora junta, na memória presente do amor eterno, à de todos aqueles mais próximos cujas lembranças, dia após dia, me povoam de afetos a alma.
Eis-me assim a pensarsentir, simultaneamente, o desprendimento e o reencontro, como se estivesse em Antan, o lugar situado no meio do universo e centrodessa fábula e parábola que é o maravilhoso livro da polaca Olga Tocarczuk (Nobel da Literatura 2019), intitulado - traduzo da versão francesa - Deus , o tempo, os homens e os anjos...
No centro de Antan, Deus elevou uma colina que todos os anos é invadida por uma nuvem de besouros. Por isso a gente lhe chama a Montanha dos Besouros. Porque Deus trata de criar, e o homem de inventar nomes. Mais adiante, quase a chegar ao fim do livro, a escritora conta-nos, em curto trecho intitulado O Tempo do Jogo:
«No sétimo mundo, os descendentes dos primeiros homens viajaram de país em país e acabaram por chegar a um vale mirífico. "Vamos lá, disseram eles, vamos construir uma cidade e uma torre que atinja o céu, para permanecermos um só povo e não nos deixarmos dispersar por Deus..." Logo se entregaram ao trabalho, juntaram pedras e utilizaram alcatrão como cimento. Assim edificaram uma cidade imensa, no meio da qual se erguia a torre. Acabou por atingir tal altura que, lá de cima, se conseguia ver o que estava para além dos oito mundos. Quando o céu estava limpo, os que trabalhavam lá em cima faziam uma pala com as mãos - para não serem cegos pelo sol - e conseguiam enxergar os pés de Deus, tal como o corpo monstruoso da serpente devoradora do tempo.
Com a ajuda de paus, alguns deles tentavam sondar o espaço acima das suas cabeças.
Deus observava-os com inquietação e pensava consigo: "Enquanto forem um só povo e falarem uma só língua, só poderão agir à sua maneira... Vou confundir as suas línguas e encerrá-los dentro deles próprios. Farei com que já não se entendam entre eles. E então se levantarão uns contra os outros. E Me deixarão, a Mim, em paz." E Deus fez o que tinha decidido.
Os homens dispersaram-se pelos quatro cantos do mundo, e tornaram-se inimigos uns dos outros. Mas guardaram a lembrança do que tinham visto. Ora, aquele que viu a cerca do mundo sofre mais do que ninguém a sua condição de prisioneiro».
Já no primeiro capítulo - O Tempo de Antan - está escrito, todavia, que Antan está rodeada por dois rios: o Negro, profundo e sombrio, que se junta, no moinho, ao Branco, pouco fundo e vivo. Então se encontram os seus cursos, primeiro "lado a lado, indecisos, intimidados por essa aproximação tão aguardada". Logo se "precipitam um no outro e se perdem no seu abraço. E o rio que dali nasce já não é Branco nem Negro, mas é poderoso e faz girar sem pena a roda do moinho". Será porque os quatro pontos cardeais de Antan estão guardados pelos arcanjos Rafael, Gabriel, Miguel e Uriel, como nos diz o conto? Ou antes não estará Olga Tokarczuk a evocar uma revelação apocalíptica (perdoa-me a forma enfática) de São João, lida na missa de hoje? Assim:
Eu, João, vi um anjo que subia do Nascente, trazendo o selo do Deus vivo. Ele clamou em voz alta aos quatro anjos a quem foi dado o poder de causar dano à terra e ao mar: «Não causeis dano à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus.» E ouvi o número dos que tinham sido marcados: cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel. Depois disto, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. E clamavam em alta voz: «A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro.»
Esses todos, diz-nos depois o mesmo São João, "são os que vieram da grande tribulação, cujas túnicas foram lavadas e branqueadas pelo sangue do Cordeiro."
Só de pensarmos nele já nos faz bem o amor universal.
Afligido por dores insistentes - e que me vão acometendo com maior frequência - tenho todavia passado uma deliciosa manhã outonal, posto em casa e avistando os campos largos em redor, e que, aqui e ali, vão amarelecendo e despindo-se. Escuto música da Renascença e do Barroco nascente, interpretada por Il Giardino Armonico sob direção de Giovanni Antonini. Gratificante álbum este, reunindo peças de dezassete compositores, produzido e editado pela Alpha-Classics, sob o título genérico de La Morte della Ragione, claramente respigado de um verso do Cancioneiro do grande Petrarca (Canzoniere, CCXI): Reinam os sentidos, é morta a razão. Contudo, quer esta música, quer a sua ilustração por imagens de Hyeronimus Bosch, de Caravaggio, e doutros pintores dos séculos XVI/XVII levam-me a refletir sobre o ensinamento de Erasmo (Moriae Encomium, ou Elogio da Loucura, capítulo XXXVIII) sobre as duas formas da loucura (traduzo): Na verdade, há dois tipos de loucura: a primeira é a que as fúrias vingadoras fazem surgir dos infernos sempre que, soltando as suas serpentes, introduzem no coração dos mortais o ardor da guerra ou a insaciável sede de ouro... A segunda é muito diferente desta, já que é loucura filha da Loucura e, portanto, aquilo que no mundo mais desejável é. Produz-se de cada vez que uma doce ilusão do espírito liberta a alma de angustiantes cuidados e a mergulha em alegrias maiores.
Haverá, quiçá, outras mais loucuras. Talvez as que são simultaneamente origem e fruto de prazeres vários, por regra geral ditos prazeres da carne. Ao contemplar, neste preciso instante, cenas do Jardim das Delícias, do Bosch, ocorre-me uma sentença de Stéphane Audeguy, escritor francês, no seu artigo sugestivamente intitulado L´Empire de l´Incandescense (Le Nouveau Magazine Littéraire, nº 21, setembro de 2019) sobre Georges Simenon, erotómano inveterado, que se gabava de ter conhecido carnalmente 10.000 mulheres. Traduzo: De facto, o jovem Simenon, aluno de padres, depressa perdeu qualquer vocação religiosa, posto que se impunha que escolhesse o seu campo em matéria da origem do mundo. Ou, mais precisamente: a partir do momento em que Simenon faz a experiência essencial dessa desordem do mundo que se chama prazer gozado, deixa de acreditar seja no que for.
Gustave Flaubert, quando viajava por Itália em companhia de sua irmã Carolina e do marido desta, Émile Hamard, perturbou-se, em Génova, com a visão da Tentação de Santo Antão de Breughel, ao ponto de, em carta a seu amigo Alfred Le Poittevin, com data de 13 de Maio de 1845, confidenciar que a obra do pintor flamengo o incitara a escrever, para teatro, sobre tal tentação... ou loucura: A Tentação, de Breughel: uma mulher deitada, nua, com um Amor a um canto... Enquanto olhava para a Tentação de Breughel, chegaram um senhor e uma senhora que se foram logo embora. A expressão dos seus semblantes diante daquelas telas era algo de muito profundo como estupidez. Cumpriam um dever...
Nos seus apontamentos de viagem (Notes de Voyage - Palais Balbi, à Gênes - La Tentation de Saint Antoine, de Breughel), o mesmo escritor diz mais: Ao fundo, de ambos os lados, sobre cada uma das colinas, duas cabeças monstruosas de diabos, meio vivos, meio montanhas. Em baixo, à esquerda, Santo Antão entre três mulheres, e ele a desviar a cabeça para evitar as carícias delas; elas estão nuas, brancas, sorriem e procuram envolve-lo nos braços. Frente ao espectador, mesmo na parte de baixo do quadro, a Gula, nua até à cintura, magra, com a cabeça ornada de ornamentos vermelhos e verdes, triste cara, pescoço demasiado longo e esticado como o dum guindaste, desenhando uma curva na direção da nuca, com clavículas salientes lhe apresenta um prato cheio de coloridos petiscos. Homem a cavalo num barril; cabeças surgindo do ventre de animais; rãs com braços e a saltar no chão; homem com nariz vermelho em cima dum cavalo disforme, rodeado de demónios ; dragão alado a planar, tudo no mesmo plano. Conjunto em formigueiro, grasnando e gargalhando, em jeito grotesco e arrebatado, sob a bonomia de cada pormenor. Tal quadro parece-nos inicialmente confuso, mas, depois, torna-se estranho para a maioria, divertido para alguns, algo mais ainda para outros: para mim, apagou toda a galeria em que está exposto, já nem sequer me lembro do resto...
No próprio texto da Tentation de Saint Antoine, Flaubert escreve um monólogo do santo eremita, ao ler um passo da Bíblia que diz: «A Rainha de Sabá, conhecendo a glória de Salomão, veio tentá-lo, propondo-lhe enigmas». Como é que ela contava tentá-lo? Também o Diabo quis tentar Jesus! Mas Jesus triunfou porque era Deus, e Salomão graças, talvez, à sua ciência de mágico. E como tal ciência é sublime! Pois o mundo - assim me explicou um filósofo - forma um todo cujas partes todas se influenciam umas às outras, como órgãos do mesmo corpo. Trata-se de conhecer os amores e as repulsões naturais das coisas, e pô-las depois em jogo?... Poderemos então modificar o que nos parece ordem imutável?
Eis a questão, Princesa de mim, que me ocorreu durante a leitura daquela afirmação do Audeguy, acima citada: a partir do momento em que faz essa experiência da desordem do mundo, que é o prazer gozado, Simenon deixa de acreditar seja no que for. Mas será assim o prazer desordem sempre e, concomitantemente, inimigo original da fé? Em cada vez que experimento e sinto prazer, será que o delicioso desabrochar dos meus sentidos é advertente sinal de rebelião e insurreição? Tal, na verdade, parece ter sido frequentemente a conclusão de muito pensamento moral e religioso. Daí a estima em que eram tidos os chamados exemplos de culpabilização, penitência, sofrimentos, sacrifícios e sevícias auto infligidos em castigo desse pecado, ou dessa fraqueza moral, que seria cair na tentação da carne, obra do diabo ou, simplesmente, razão primeira de relaxamento e desordem vital. Aliás, essas fraquezas da carne, em representações pictóricas ou literárias, são quase sempre a cedência e cadência de homens (machos) ao demoníaco poder de sedução de mulheres nuas ou fêmeas oferecidas... Tanto isto nos diz sobre a misoginia da nossa cultura, e de Santo Agostinho e o maniqueísmo... A tal ponto, que até o que, nos quadros de Breughel e doutros, nos pode parecer meramente cómico ou alegórico, se torna, nos comentários de Flaubert, numa profunda impressão de carne despida para o sexo. Pelo que me parece legítimo perguntar-nos, Princesa de mim, que obscuras razões levaram a que o prazer que Deus criou para que se fosse gerando a vida tivesse sido estranhamente "convertido" em algo abominável e digno do fogo de qualquer suposto inferno. Lê as Bem Aventuranças da Boa Nova, bem como - ainda segundo Jesus Cristo - o inquérito a que cada um de nós será submetido no dia do Juízo. Fala-se aí de sexo ou de misericórdia?
Noutra ordem de reflexões, também me pergunto porque é que o século XVIII, o das Luzes, do triunfo do iluminismo racional, terá sido, sobretudo na pátria dos filósofos, uma época tão prolífera da literatura libertina e da própria libertinagem dos comportamentos. Ordem e desordem, como as duas faces de Janus? Ou não será que um certo rigorismo moral é de per si provocador, catalisador de revoltas, ousadias e atos desordeiros? Como também poderemos pensar que, afinal, o pecado maior não estará nas fraquezas da carne, mas no orgulho do espírito, seja este religioso (iluminado pela revelação divina, tantas vezes mal entendida) ou laico (iluminado pela razão humana, tantas vezes abusiva). A primeira edição, que eu conheça, de La Philosophie dans le Boudoir ou les Instituteurs immoraux, do Marquês de Sade, data de 1795, e apresenta-se como obra póstuma do autor de Justine. O respetivo subtítulo elucida-nos de que se trata de Dialogues destinés à l´éducation des jeunes demoiselles. Isto é: uma obra, quase compêndio, de iniciação à libertinagem. Não vou comentá-la, nem observar de perto a pornografia ali descrita em cenas a que, com certeira ironia, Roland Barthes chamou "pornogramas." Mas como o livro está recheado de considerações filosóficas sobre o prazer, a liberdade, a natureza, a religião e a política, traduzo-te uma delas, referente ao filósofo Dolmancé, personagem que, provavelmente, representará Sade (como mostrarei adiante): Só sacrificando tudo à voluptuosidade é que esse indivíduo infeliz chamado homem, sem culpa de ter sido atirado para este triste universo, poderá conseguir semear algumas rosas sobre os espinhos da vida. Mas não esqueçamos o retrato do autor dessas afirmações: Alto e de bela figura, olhos vivos e espirituosos, mas em cujos traços também se desenha algo de duro e um pouco mau... ...o ateu mais famoso, o homem mais imoral... ...a corrupção mais completa e mais inteira, o indivíduo mais malevolente e celerado que pode haver no mundo... Afinal, parece que a raiz do mal estará num qualquer uso da nossa consciência. Ora, a consciência humana é um paradoxo entre a natureza, em sentido bruto, e a graça como destino. Pelo que pensossinto que os moralistas, em vez de pregarem códigos minuciosos e castigadores, talvez devessem promover a promoção das consciências da gente para a liberdade da vida.
As línguas dos povos ou, melhor dizendo, a língua que o povo fala é, nos seus modos vários e evolutivos, nas suas modas vocabulares, sinal atento de como vão mudando os valores, com suas referências (a cultura), e os comportamentos das gentes. Recordo, Princesa de mim, como, há décadas atrás, ser relaxado significava ser descuidado, relapso, imoral; nos tempos hodiernos, relaxar é descontrair, procurar sentir-se bem, recuperar tranquilidade e gosto da vida. Independentemente das normas por que nos regemos, a aspiração universal do ser moral é ser feliz. Apesar de se ter enformado em igrejas e doutrinas viciadas na "delícia" da pregação e exercício duma certa "justiça imperial", o próprio Cristianismo, logo nos seus textos neotestamentários e patrísticos, ressuma a esse anseio de felicidade, gosto de viver, alegria de libertação. Este profundo e antiquíssimo impulso do ser humano para a vida (ou, como escreveu S. João, para que seja completa a nossa alegria) não deve, não pode, ser ignorado. Não te digo isto agora, Princesa de mim, em defesa e promoção de libertinagem, mas a pensar na ordem da caridade, ou progresso do amor, de que nos fala São Bernardo, o reformador cisterciense da Ordem de São Bento. Um milénio, ou quase, antes de nós. Noutro contexto cultural e não só. Mas, mutatis mutandis, e fazendo nós algum esforço de entendimento do dito na sua própria circunstância, talvez possamos animar-nos um pouco com o olhar da clemência divina sobre a nossa sempre paradoxal condição. Traduzo trechos dos Sermones in Canticum Canticorum,coisas que um monge medievo disse e escreveu sobre o poema erótico que é o Cântico dos Cânticos:
O rei introduziu-me na adega do vinho e ordenou em mim a caridade (Cântico dos Cânticos 2, 4). Eis qual me parece ser o sentido literal do primeiro capítulo: em conformidade com os seus desejos, a esposa teve um interlúdio doce e íntimo com o seu bem amado e, assim que este se afastou, regressa para junto das moças. Foi de tal modo excitada e acesa pela vista e palavras do Esposo, que parece etilizada. E como as moças se espantam com tal novidade e lhe perguntam porquê, responde que não há que estranhar que ela tenha sido aquecida pelo vinho, já que entrou na adega. Eis aqui o sentido literal. Em sentido espiritual, ela também não nega estar embriagada, mas de amor, que não de vinho...
A fechar esta parábola, ou enigma, não sei, chama-lhe o que quiseres, minha Princesa de mim, não resisto a traduzir-te, da versão original francesa da Bible de Jérusalem, os versículos 3, 4 e 5 da parte 2 do primeiro poema do Cântico dos Cânticos:
Como macieira entre as árvores de um pomar, assim é o meu amante entre os rapazes. À sua tão desejada sombra me sentei, e é tão doce o seu fruto ao meu sabor. Levou-me à adega, e o estandarte que sobre mim levanta é amor. Sustentai-me com bolos de passas, reanimai-me com maçãs, pois que de amor desfaleço. Pôs o seu braço esquerdo sob a minha cabeça e com o seu direito me abraça.