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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXV

 

Minha Princesa de mim:


De cada vez que venho ao Japão, guardo pelo menos um fim de semana para estar niponicamente instalado num ryokan, em Kyoto. Tenho encontro marcado com um certo Japão, talvez esse de quando esta cidade capital se chamava Heian-kyo (de 794 a 1185). E capital foi ela, por mais de mil anos, até à restauração Meiji (1868). Chama-se Kyoto desde o início do primeiro governo de bushi (guerreiros), instalado em Kamakura por Minamoto no Yoritomo, no final do período Heian. Aos Minamoto sucederam (1333) os Ashikaga (período Muromachi), estes por sua vez substituídos (1568) pelos reunificadores do poder no Japão: Oda Nobunaga e Toyotomi Hideyoshi (período Azumi-Momoyama, até 1600). Seguiu-se o longo shogunato Tokugawa, que fez de Edo, a leste de Kyoto, o seu centro. Para aí se mudaria a capital imperial, depois de restabelecido o poder político efetivo do imperador Meiji sobre o bakufu ou governo shogunal. E Edo passaria então a ser Tokyo, ou capital de leste. Kyoto conservaria a sua designação de capital imperial e uma certa quintessência do Japão. A era Heian inicia-se com a mudança da capital imperial de Nara para a actual Kyoto. Fê-la o imperador Kammu - que, por sua, mãe descendia da linhagem Yamato, originária de coreanos expulsos da sua península pela dinastia Tang da China - nascido em 737, imperador desde 781 até morrer em 806. Podemos pois considerar este chefe político, militar e religioso, confucionista letrado, um contemporâneo de Carlos Magno que, como sabes, era analfabeto. Por essa altura também, era califa abássida de Bagdad o famoso Harun Al-Rachid. Deste voltarei a falar-te, contando-te a refutação que o historiador e filósofo magrebino-andaluz Ibn Khaldun (1332-1406) faz das anedotas que se contavam tradicionalmente sobre as razões que levaram o califa a condenar à morte, em 802, o seu vizir barmécida Jafar Ibn Yahia. Por agora, seguindo o conselho do hadith (ou dito do profeta Maomé) que manda "procurar a sabedoria, mesmo que seja na China", citarei o sábio muçulmano sobre a questão da linhagem e da legitimidade que, na Bagdad abássida que refiro, era coeva da que se levantou, na distante Nara, relativamente ao imperador Kammu. Neste caso, Kammu sucedeu a seu pai - Konin, ele mesmo de linhagem imperial menos elevada - apesar da humildade relativa da origem coreana de sua mãe. Sobre a "casa" e a nobreza dos clientes e dos protegidos serem as dos seus senhores e em nada dependerem das suas próprias linhagens, escreveu Ibn Khaldun o seguinte (e imagino o teu superior sorriso, minha Princesa...): A nobreza sólida e verdadeira pertence apenas aos clãs poderosos. Quando os membros de um clã poderoso se agregam protegidos vindos de fora da sua linhagem, ou tomam escravos ou clientes com que estabelecem laços estreitos, esses tornam-se, até certo ponto, partes do clã com o qual se identificam como se fosse deles. Pela sua participação no clã, acabam por pertencer, duma certa maneira, à mesma linhagem. Disse o Profeta: "Todo o cliente pertence ao mesmo grupo que os seus senhores, seja ele escravo, protegido ou aliado". E conclui assim: É o que acontece a todos os clientes e servidores das dinastias. A sua nobreza vem-lhes da sua sólida dedicação como clientes e servidores de uma determinada dinastia, e do passado de muitos dos seus antepassados ao serviço desta. Assim os clientes turcos dos Abássidas e, antes deles, os Barmécidas puderam usufruir de uma "casa", e da nobreza, e edificar a glória da sua família, graças à sua sólida dedicação ao serviço da dinastia abássida. Jafar Ibn Yahya constituiu para si uma "casa" e chegou à mais alta nobreza graças à sua posição de cliente de Al-Rachid e sua família, e não graças à sua origem persa. O pior foi quando ele "abusou"... Mas essa história contar-te-ei depois. Hoje fico pelo Japão, na era Heian. Trouxe comigo, em francês, as Notes de l´hiver 1039, nesse ano redigidas por Fujiwara no Sukefusa que, em 1038, foi nomeado, sob o imperador Go Suzaku, Chefe da Chancelaria Privada. No sistema aristocrático-burocrático de governo em Heian-kyo, os altos funcionários costumavam anotar quotidianamente - além das previsões fastas ou nefastas do dia, tal como registadas num almanaque ou preditas por algum adivinho, cartomante ou astrólogo - as diligências, despachos e decisões do exercício governativo, bem como vicissitudes várias da vida da corte. O objetivo assumido de tais diários era facultar aos descendentes e herdeiros a informação necessária a estes poderem, mais tarde, situar-se no complexo sistema burocrático, de modo a posicionarem-se para as melhores oportunidades de colocação. Na verdade, o sistema japonês, ainda que inspirado na organização confucionista da dinastia chinesa Tang, preferia fazer a seleção das nomeações por recomendação, influência familiar ou mera relação de parentesco, do que através de concurso público. As alianças matrimoniais com a linhagem sagrada da família imperial podiam ser alavancas poderosas para a colocação de membros de outras famílias. Assim, a família Fujiwara não só conseguiu colocar 20 membros entre os 25 mais altos funcionários do governo, como atingiu enorme influência sobre imperadores por serem estes seus netos ou bisnetos. Dos 32 imperadores Heian, 14 ascenderam ao trono com menos de 8 anos de idade, sendo o poder efetivo exercido pelo regente ou tutor (Sêshô) que, à maioridade do Tennô (celeste imperador), passava a designar-se por Kampaku. Este foi sendo sempre um Fujiwara que governava a corte e nomeava os governadores das províncias que a alimentavam com arroz e outros produtos. A nobreza da capital entretinha-se com as artes da caligrafia, pintura, prosa e poesia. Até que, por volta de 1185, a família Minamoto, com a força dos seus bushi e a motivação de populações desagradadas com o excesso de sofisticação que não lhes parecia muito útil, se apoderou do poder efetivo e o exerceu a partir de Kamakura, ficando Kyoto como residência da simbólica figura imperial. Assim se iniciou um período novo da história do Império do Sol Nascente, que conduziria ao afrontamento, durante séculos, de vários senhores feudais, até que a introdução de armas de fogo pelos portugueses, no século XVI, facultou as ações militares de pacificação e unificação do Japão. Mas por quatro séculos, o tal conceito de linhagem, família e pertença, levou muitas vezes "casas" inteiras (familiares, servos, clientes e soldados) a serem mortos ou cometerem sepuku (ou harakiri, suicídio ritual) quando o seu senhor era derrotado e executado. Curiosamente, até aos finais do século XIX, quando a restauração Meiji impôs alguns conceitos e normas jurídicas europeias, a ideia de família (e o conceito de ie, "casa"), no Japão, era mais decorrente da necessária perenidade da mesma do que de laços biológicos: a adoção era frequente, os artesãos, artistas e atores que se "criavam" nas famílias profissionais ganhavam e guardavam o nome destas, acabavam por pertencer-lhes... O que para ti, europeia, nórdica e católica, aristocrata antiga, talvez seja difícil de entender é que este conceito de família, de "casa", é, de por ele mesmo, simultaneamente fechado e aberto. Fechado enquanto se propõe assegurar a perenidade do nome, da tradição e do património familiar; aberto enquanto acolhe nessa mesma instituição familiar - por adoção, clientelismo ou criadagem - todos os indivíduos necessários à garantia da permanência dessa instituição. Os laços de sangue serão os primeiros fatores, mas não excluem as alternativas que permitam, de acordo com um direito consuetudinário, a continuação da linhagem. Vai longa esta carta, regressarei contigo a Kyoto e outras histórias que mais agradavelmente te contaria ao calor de uma lareira ou durante um passeio pelos nossos parques. Mas ainda insisto em te recordar o que disse numa dessas conferências que fiz sobre o Japão, que tanto tento compreender: Quando, em 1869, o Governo Meiji mandou Mitsukuri Rinsho traduzir os códigos franceses, sugerindo que deles logo se publicasse uma tradução literal intitulada Código Civil Japonês, para que o novo sistema jurídico convencesse as potências ocidentais de que o Japão era também um país civilizado, gerou-se polémica e muita controvérsia acerca da respetiva proposta, redigida, sob a direção de Eto Shimpei e Inoue Kowashi, por um professor da Sorbonne - que veio então residir em Tokyo - Gustave Emile Boissonade de Fontarabie, daí resultando que o tal código só em 1898 fosse promulgado. Ponto fulcral de divergências e discórdias foi, precisamente, o direito da família e sucessório. Argumentavam os adversários nipónicos da aplicação, no seu sistema jurídico, dos princípios ocidentais da igualdade dos indivíduos e da liberdade contratual na esfera jurídica da família, que o conceito de "casa" (ie) e os sentimentos por ele engendrados eram intrínsecos à sociedade e aos valores tradicionais japoneses. Em 1891, um deles, Hozumi Yatsuka, publicou esta declaração: " Com a disseminação do cristianismo na Europa, o Pai nosso que estais no céu veio monopolizar o amor e respeito de todos os homens. Talvez por isso os Ocidentais negligenciem a devoção aos antepassados e o caminho da piedade filial. Com a disseminação de doutrinas de liberdade, igualdade, fraternidade, rompem a importância dos costumes étnicos e dos laços de sangue. Talvez por isso já não exista entre eles um sistema de "casa", mas uma sociedade de indivíduos igualitários, apoiada por leis individualistas"... Inquietante pode ser esta nossa humana condição, quando nos confrontamos com sentimentos e juízos uns dos outros... Mas tão motivadora, também, de interrogações e procura! Imagina que li hoje, no Mainichi Shimbun, um artigo de um sociólogo japonês que se interroga sobre a crise universal da família nuclear e ocidentalmente tradicional. E, passando por inúmeras situações inéditas e controversas, finalmente propõe à nossa reflexão, não qualquer ideia afirmativa e exclusiva, mas a demanda - eu diria feita a pensar sentir - de formas de família que sejam acolhedoras e verdadeiramente comunitárias. Reflito. Ou, se quiseres, pensossinto no assunto. Atento a sociólogos, filósofos, analistas e pensadores vários. Mas, sendo um clássico " bota de elástico", guiado pelo coração que se agarra a um princípio: Amor omnia vincit.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:


   Muitas das pessoas a quem facultaste a leitura da minha última carta, me telefonaram ou escreveram para me dizer que achavam lindo o texto, mas muito triste...


   Quanto à lindeza, sempre disse que os gostos não se discutem. E, no tocante à tristeza, tampouco irei discuti-la, mas nele não pus, nem depois senti, tristeza alguma. Antes, pelo contrário, nele tenho respirado uma muito íntima e profunda alegria, como se me tomasse um canto de amor...


   Afinal, subjacente às histórias ali contadas ou tão somente sugeridas e deixadas à adivinha, está sempre uma presença amorosa, fiel, ora comovida ora saudosa, sustentada pela sua própria fortaleza, na perseverança do seu ser, que a projeta como tal, na vida e na morte, na eternidade ou no tempo, na materialidade ou imaterialidade do espaço, em quaisquer circunstâncias, reais ou simplesmente imaginárias. 


   Já não importa qualquer lembrança nem a falta dela, a memória do amor não pode ser efémera porque nenhum amor é efeméride, o amor é ontologicamente busca de nós em encontro, nunca, nunca jamais em solidão. Ninguém se imagina em amor sozinho.


   Reparei, sem surpresa, aliás, em dito colhido na entrevista a uma jovem socióloga norte americana que, singelamente, afirmava que um dos riscos dos tempos que correm é a ausência de vocações. Não estava a fazer campanha clerical de arregimentação de "vidas consagradas", apenas falava de "callings" (chamadas) e de respostas a desafios autênticos da vida. Falava de amor ou, melhor, do amor num mundo que, por tão ensurdecedor, vai ficando surdo. Cada vez escutamos menos, ou ouvimos pior, os apelos que também nos são dirigidos. E todavia talvez a disponibilidade para os ouvir - e a diligência de os escutar - nos pudesse mudar os apertados horizontes do mundo em que vivemos.


   Para além das românticas fantasias que, quais mantos diáfanos, envolvem as suas apresentações "mediáticas", o amor é essencialmente, a perseverança de um cuidado atento numa peregrinação partilhada. Transpõe momentos de cansaço e irritação, ultrapassa tentações de desistência ou renúncia, atura fielmente os outros e assim também nos ensina a aturar-nos a nós mesmos... Sobretudo, vai-nos pedagogicamente demonstrando como a paciência e a persistência necessariamente decorrem da nossa condição de imperfeitos. As virtudes todas, a nossa própria fortaleza, cultivam-se na imperfeição constitutiva da nossa condição humana. Tampouco os falhanços são derrotas, mas antes apelos e incitamentos a que nos superemos.


   A experiência de situações-limite como a de quotidianamente convivermos com entes queridos que presencialmente vemos esfumarem-se, mais do que perplexidade, causa-nos sofrimento e dor. E, todavia, a perseverança do nosso compromisso com aquela vida - para além dos momentos de cansaço e, quiçá, irritação - paulatinamente, e em luminoso segredo, vai construindo uma bola que, não de neve, mas de ternura mansa, nos encherá de serena alegria.


   Apesar de contraditório - ou talvez por isso mesmo - o ser humano é um percurso de surpresas.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIV


Minha Princesa de mim:


   Ando a viver todos os dias com um fantasma. Não me assusta nem faz por isso, tampouco emite sons lúgubres, ou se ri de mim à socapa. Nem sequer se esvanece e desvanece, é quase silencioso, não se faz notar, nem se esconde. Só um cego olhar ausente, desatento a tudo, nos deixa adivinhar que tão ensimesmada peregrinação entre a gente é o vagar vadio de quem já se nos não prende. Anda alhures, talvez não saiba por onde, como não sabe que é por aqui que me aparece. Acontece-lhe esquecer o meu nome, como o de muitas coisas deste mundo que, cada vez mais, sente como detestados invasores do labiríntico universo interior em que arreganhadamente tenta resguardar-se - pois no seu sonho sente sempre salva a vida. A demência é uma forma de sobrevivência que imagina fantasmas. Mas que sobreviverá, em si mesmo, do próprio fantasma que esta manhã acordou no quarto que lhe tem sido familiar, sem saber onde estava? Desde então só se passeia pela casa que sempre lhe pareceu grande, e hoje lhe é enorme, dizendo a cada passo: «Não me lembro de nada, não me lembro de nada...» Será tão somente uma nebulosa consciência de que non memoro, ergo sum («Não me lembro, logo sou»)?


   No Japão, o teatro traz à ribalta os espíritos das coisas e os atores desconhecidos de antigas histórias fantásticas. A obra literária de Ueda Akinari (1734-1809), designadamente a intitulada Ugetsu monogatari (Contos de Chuva e Lua) inspira-se muito no , desde logo no próprio título: Ugetsu (chuva e lua) é um termo carregado de sentido para um japonês: acaba de chover e a lua está semi escondida na bruma, tempo ideal para aparições. Aparições que são criações ou artifícios da memória ou da falta dela, ou ainda, como se canta no nosso hino nacional, vozes que se sentem entre as brumas da memória... Quando lembramos um ente querido que já se morreu, reinventamo-lo - por isso abraçamos a persona revivida mais do que, na verdade, a pessoa que saiu da cena desta vida e dela está agora ausente. Quando "convivemos" com o ser vago e vagabundo que se passeia ainda pelos caminhos desta nossa vida, é conscientemente que atingimos uma pessoa aparentemente presente, mas já dramaticamente ausente da comunicação possível em tempo próprio.


   O conto A Casa nos caniçais, de Akinari, que a seguir resumo, ilustra bem o que acima tento dizer. Os trechos em itálico são traduções de textos autênticos do autor japonês:


   O carácter indolente de Katsushiro, nascido numa família de abastados proprietários rurais, leva-o, em tempos de guerras feudais, à beira da miséria. Para se restaurar, busca mudança em circunstância de mudanças e, graças ao apoio de antiga relação, torna-se negociante em sedas de Ashikaga, o que o leva a ausentar-se de casa e a separar-se provisoriamente de Miyagi, sua bela e fiel mulher. A turbulência bélica e social da época vai-se alastrando e acaba por afastar os tão unidos e amantes cônjuges, obrigando-os a um isolamento mútuo, sem convívio nem notícias. Até que, movido pela solidão e pela saudade, Katsushiro se decide a enfrentar os riscos inerentes à circunstância em que vivem: põe-se a caminho de casa, em esperançosa busca da mulher amada. Mesmo supondo que esta se tivesse tornado numa habitante das regiões subterrâneas, e já não fosse deste mundo, impunha-se encontrar-lhe o rasto e erigir-lhe, pelo menos, um memorial funerário...


   Àquela hora, já o sol se tinha submergido no ocidente. Sob as nuvens de chuva prestes a cair, reinava a sombra, mas disse para consigo que não poderia perder-se, pois estava numa aldeia que muito tempo habitara; continuava a andar, afastando as ervas de verão. A velha ponte desmoronara-se no leito do rio e os cascos dos potros já ali não ressoavam. Os campos, desleixados, voltaram a ser baldios e já não se distinguiam as sendas de antanho. As moradias dos que lá tinham vivido já não existiam. Aqui e além, algumas raras casas que subsistiam pareciam habitadas, mas já não se assemelhavam ao que tinham sido. Assim se quedava ele, perplexo, perguntando-se em qual daquelas casas teria morado, quando, a mais ou menos vinte passos, descobriu, à luz das estrelas que as nuvens filtravam, um pinheiro rasgado por um raio, que dominava ao redor. Era certamente aquele que marcava a sua casa e, em espontâneo movimento de alegria, avançou: a casa nada sofrera. Parecia que alguém a habitava, pelas frinchas da velha porta cintilava a luz de uma lâmpada: estaria ali um estrangeiro? E se, por acaso, fosse Ela que ali estivesse? Ao pensá-lo, sentiu o coração bater com mais força, aproximou-se do portão e tossiu para se anunciar. Lá dentro, alguém sentiu a sua presença e perguntou desconfiadamente: «Quem está aí?» Apesar de envelhecida, era certamente a voz de sua mulher... Estaria ele a sonhar? Com o coração em angústia, respondeu: «Sou eu! Eis-me de volta! Tal como dantes, continuais a habitar, sozinha, esta terra coberta de caniços... É admirável! Reconhecendo-lhe a voz, logo ela lhe abriu a porta: toda de negro e coberta de sujidade, de olhos cavos e cabelos entrançados a cair-lhe pelas costas, não lhe pareceu que estivesse ali a mulher de outrora. Esta, ao ver o marido, nada disse, desfez-se em lágrimas...


   
Entrecortada de choros e suspiros, foi longa a conversa da saudade e do reencontro, da alegria e da dor, da humanidade e do sonho. Até que, para lhe acariciar um soluço, ele lhe disse: «É sempre breve a noite»... e deitaram-se lado a lado. Narrando o decurso da noite, Ueda Akinari dá o passo do sono para o despertar, do sonhado para o experimentado, do real subjetivo para o real objetivo, ou seja, do que se vê por dentro apenas para o que se julga estar a observar. Muito cansado da jornada, Katsushiro dormiu  profundamente, e só de manhã, quando a chuva vem refrescar-lhe o rosto e a luz de alva lhe vai abrindo os olhos, perceberá que não está deitado em casa alguma, que não há qualquer porta de entrada ou saída nem, pior ainda, está a seu lado a mulher que ele julgara ali deitada... Estava ou era invisível...


   Ou nem uma coisa nem outra. Talvez apenas fosse a solidão feita pessoa e fantasma, ou persona e máscara de uma peça de Nô. Como se o espírito simultaneamente habitasse e viajasse entre dois mundos.

 

Camilo Maria   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim: 

 

   Vários leitores me contactaram para saber um pouco mais da Galla Placídia falada na minha última CARTA. Pareceu-me interessante o que acerca dela já te escrevera, anos atrás e aqui reproduzo... 

 

INTERVALO 

Galla Placídia Augusta tem, na história da gente real, uma grandeza tão mítica como a de Dido, rainha de Cartago, que Eneias desprezou para ir fundar Roma... Ou talvez maior, precisamente por ter sido real, no tempo e no modo, o seu sonho, o seu esforço, a sua coragem e devoção. Filha de Teodósio Magno, será por essa linhagem imperial - que sempre estimou acima de tratações, sucessos e desaires - filha e irmã, mulher de imperadores... e afinal mãe, só por essa linha de fidelidade, do último imperador do Império Romano do Ocidente, Valentiniano III, morto assassinado em 455. Digo-o último, sim, porque todos os outros que se foram registando depois, até Rómulo Augusto, destituído em 476, data "oficial" do fim de tal Império, foram surgindo de manobras, crimes e intrigas, sucessivas tentativas vãs de  aguentar uma aparência de estado, já sem soberana linhagem nem a Virtus romana... Galla tinha duas forças: a do carácter teimoso e resoluto, e a da sua profunda fé e devoção cristã. Esta tê-la-á ajudado a aceitar casar-se com o visigodo Ataulfo e o romano Constâncio, e ainda a tratar e contratar com rivalidades romanas e ameaças bárbaras. A pertinácia, o faro político, ou sentido de Estado e permanência, lhe terão ditado o raciocínio e as decisões. O que, sempre, sempre, mais me tocou nessa história, eivada de intrigas e banalidades políticas, foi a possivelmente única vitória final de Galla Augusta: ela já não assistiu ao fim atroz do imperador seu filho, e fora antes finalmente inumada em Roma (junto a seu pai, é certo e significativo), em vez de repousar no mausoléu que para si mandara edificar (e ainda hoje existe) em Ravena (na altura capital do Império).  Mas, ainda que a título póstumo, viu a vitória do dogma da hipóstase das duas naturezas de Cristo, divina e humana, reunidas numa só pessoa, defendido pelo seu amigo, o papa Leão Magno ( que salvou Roma de Átila), no concílio de Calcedónia, em 451, um ano após a sua morte. Refiro este episódio da história teológica, porque Galla Augusta viveu com a obsessão da compatibilidade do divino e do humano, e vendo na pessoa de Jesus Cristo o sinal de Deus para o devir do Império Romano, a união da cidade dos homens com a cidade de Deus...  Foi essa também a obsessão de Jerónimo Savonarola. Nenhum deles, com mil anos de distância, teria, penso eu, visões teocráticas da sociedade política. Tinham, isso sim, uma entranhada fidelidade, muito íntima, ao sentido da legitimidade. Para Galla Placídia, Roma deveria acolher, tratar, federar-se até, com os bárbaros que a cercavam e penetravam, desde e para que mantivesse a unidade que a linhagem imperial garantia, e que a fé nova do império, o cristianismo que o papa representava, necessariamente consagrava. Para frei Jerónimo, não havia outra linhagem que não a vontade democrática (que afrontava e tinha expulso de Florença a tirania dos Medici, e questionava os usos, abusos e costumes do papa Borgia, Alexandro VI), cabendo aos profetas lembrar ao povo a justiça que Deus de todos nós espera e reclama.  Entre a princesa romano-bizantina de sangue e o frade mendicante nascido numa família de Ferrara, da qual pouco ou nada se sabe, tudo será diferença: a época e a circunstância, a categoria social, a inspiração das ideias e desejos, a motivação dos atos. E, todavia, passa por eles o mesmo sopro. Que lhes segredou que, se não houver fidelidade e abertura, retidão e justiça, muito se poderá perder e talvez tudo, ou quase, esteja errado. A princesa morreu sem violência, só previu o que iria acontecer ao seu império, ao seu sonho e dinastia. O dominicano foi finalmente enforcado e queimado em praça pública. E, para que o povo não guardasse relíquias do profeta, lançaram ao rio Arno as suas cinzas. Menos de um século depois, Lutero proclamava, em revolta e oposição a Roma e a muitos príncipes, a reforma protestante que, profeticamente, Savonarola, pressentira crescendo no coração dos povos, mas ignorada por quem, como dever primeiro, deveria escutar os outros... Há quem teime em servir Quem (e cá me lembro do Quem do "Ano da morte de Ricardo Reis") não possa morrer, como disse Sophia na sua "Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal": Nunca mais a tua face será pura, limpa e viva, nem o teu andar se poderá nos passos do tempo tecer. E nunca mais darei ao tempo a minha vida, nunca mais servirei senhor que possa morrer... Cito de cor - da memória do coração - ocorreu-me esse poema lindíssimo ao pensar em Carlos V. Creio que este imperador, mais ainda do que o Duque de Gandia, que o servia, e à imperatriz, poderia ter assim sentido a morte de Isabel de Portugal. Quiçá dois desastres íntimos  - daqueles que põem à prova qualquer fé - terão abalado Carlos de Habsburgo, e levá-lo a abdicar, para se retirar no mosteiro dos jerónimos de Yuste: a morte da mulher tão admirada e profundamente amada, e a incapacidade de consolidar uma aliança política e de fé, numa Europa que as desavenças entre católicos e protestantes dividiam, e o cerco otomano ameaçava... É certo que derrotou e fez prisioneiro Francisco I de França - o tal que, contra ele, tentou alianças com forças da Reforma e com os muçulmanos - mas o sonho que da cidade de Deus tinha era mais largo e magnânimo, para que todos vivessem em paz uns com os outros e com o Senhor de todos. Era hispano-austríaco, amorosamente casado com uma portuguesa, mas nascera na Flandres, percebia as razões dos movimentos da Reforma e as contra-razões de Roma... Talvez tenha começado a morrer à morte de Isabel, quando se sentiu tão só com o seu cansaço. Os sonetos nº. 3, 4 e 5, de amor mordido, são convívios com estas personagens. 

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:   


   Amigo meu referiu-me hoje uma frase lida, salvo erro, na revista Marianne. Tal dito recordava que, muito depois de Descartes ter afirmado Cogito, ergo sum, agora - pelo menos aparentemente - temos mais tendência a acreditar em Sou visto, logo existo. 


  
É hoje prática corrente e universal, que políticos e outras figuras públicas multipliquem périplos e aparições para "ganharem maior visibilidade", pois se julga que à aparência corresponde essencialmente o reconhecimento... Donde resulta ser a política, por exemplo, cada vez mais uma disciplina do "marketing".


   Ocorreu-me entretanto, por inopinada inspiração, um passo da narrativa de Max Gallo, historiador francês, intitulada La Chute de l´Empire Romain (XO Éditions, Paris 2014), que passo a traduzir:


   No primeiro de janeiro de 417, o imperador Honório decide partilhar, pela segunda vez, o cargo de cônsul com o general Constâncio e, ao remeter-lhe as insígnias dessa função - e a de patrício, que coloca Constâncio em pé de igualdade com a família imperial - torna Galla Placídia noiva do general.


   Galla Placídia deixa o imperador Honório pegar-lhe na mão e pô-la na de Constâncio. 
 


   Assim, ela própria quis que Honório surgisse como mestre de obra daquela união.


   Aprendera, durante os seis anos que fora obrigada viver no meio dos bárbaros godos, que de modo algum são as aparências que contam, mas sim o que elas escondem.


  
E era ela filha do imperador Teodósio o Grande, o tal que dividiu o império romano em dois, deixando um a cada um dos filhos: o império do ocidente ficou para Honório, a quem sucederia o sobrinho Plácido Valentiniano (419-455), filho de Galla Placídia e do general Constâncio e, por desígnio de sua mãe, último imperador de Roma. Um parágrafo desta narrativa de Max Gallo vai resumir as núpcias de Galla e Constâncio de modo muito especial:  


   Na Primavera do ano de 417, celebram-se as bodas. O general Constâncio pavoneia-se, o imperador Honório triunfa. Galla Placídia está de mármore.


  
E agora me ocorre um comentário mais íntimo, que fui buscar ao Memorial do Convento, do Saramago:


   ...mas isto é certamente defeito dos olhos que usamos, porque aí vem justamente uma mulher, e onde nós víamos um homem velho, vê ela um homem novo, o soldado a quem perguntou um dia, Que nome é o seu, ou nem sequer a esse vê, apenas a este homem que desce, sujo, canoso e maneta, Sete-Sóis de alcunha, se a merece tanta canseira, mas é um constante sol para esta mulher, não por sempre brilhar, mas por existir tanto, escondido de nuvens, tapado de eclipses, mas vivo, Santo Deus, e abre-lhe os braços, quem, abre-os ele a ela, abre-os ela a ele, ambos, são o escândalo da vila de Mafra, agarrarem-se assim um ao outro na praça pública, e com idade de sobra, talvez seja porque nunca tiveram filhos, talvez porque se vejam mais novos do que são, pobres cegos, ou porventura serão estes os únicos seres humanos que como são se vêem, é esse o modo mais difícil de ver, agora que eles estão juntos até os nossos olhos foram capazes de perceber que se tornaram belos. 


   Fecho os meus olhos, Princesa de mim, vou dormir, talvez sonhar à sombra de um sorriso que agora me ilumina e humaniza. O vero, o bom, o belo, o essencial é, consoladoramente, invisível à vista. 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Tumular me surge a manhã deste Sábado Santo. Acordo e levanto-me num dia cinzento, silencioso e quieto. Da varanda larga do meu quarto, avisto os campos inumados numa atmosfera incolor até ao horizonte. Não bole uma folha nas árvores dos pomares que acompanham a encosta até à estrada deserta de carros e pessoas. Desço ao meu gabinete, ponho-me à escuta das Lamentações de Jeremias, em composições de vários autores, de Alexandre Agricola a Orlando di Lasso, passando por Cristobal de Morales e Jacob Arcadelt, interpretadas pelo Egidius Kwartet, em julho de 2007 na Laurentius Kerk Mijnsheerenland, na Holanda. Cada Lamento é rematado pela conhecida exortação: Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum... Abro os olhos e, cá em baixo, já vejo, no quadro desta janela, a minha sakura florida e viçosa, a lembrar-me lição sage da natureza onde a permanência se descobre na humildade da constante mutação das coisas. No pensarsentir humano, chamamos-lhe conversão ou metanoia. Associamos-lhe, em regra, a ideia de arrependimento e penitência, ou renúncia (para melhor troca?). Mas nesta manhã cinzenta de Sábado Santo, quando o nosso silêncio ecoa o do Senhor Jesus, envolto em panos no segredo do seu sepulcro, e ainda o sofrimento e morte que vai ferindo tantos humanos por esse mundo fora, a flor da cerejeira que trouxe do Japão sorridente me acena com a promessa da alegria maior que encontrarei na simples contemplação do amor redentor de Deus, se assim o quiser também seguir a fidelidade do meu pensarsentir. Medito em como o próprio transitório pode, em silêncio, revelar-nos, num só vislumbre que seja, a inesgotável permanência... E ocorre-me essa resposta de Higuchi Ichiyo (1872-1896), jovem escritora (e autor clássico das letras japonesas, morta tuberculosa com apenas 24 anos) à pergunta sobre o que a faz mais feliz: Desde logo, não são roupas de brocado. O que me faz feliz é a natureza. Há uma verdade, uma honestidade na natureza que por vezes me traz o sentimento de comunicar com as flores silenciosas e a lua tranquila. Esqueço então completamente o mundo flutuante (ukiyo). É como se dançasse no centro de uma esplêndida flor, a propósito criada para aquele instante. Eis como são os meus momentos de felicidade.


   
Acontece-me recordar palavras de Jesus, ao dar comigo em busca de comunhão e paz: Não quero sacrifício, mas misericórdia. A ideia de sacrifício, aliás, traduz sobretudo, vezes demais, a do pagamento duma obrigação ou dívida para com a divindade, como se cumprir um dever ou uma renúncia fosse, em si e por si, ato sacralizante e sempre meritório, transformador do profano em sagrado. Menos vezes entendemos que a misericórdia não é um ato individual, nem qualquer renúncia à espera de compensação. Misericórdia é partilha de coração, com tristezas e alegrias, vida e afetos, êxitos e fracassos, na comunhão do amor. Isto é, anima-se, vive por todos, com todos e em todos. Ninguém pode amar sozinho. Nem sequer perdoar é solitário, o perdão é sempre recíproco: assim leio a parábola do filho pródigo, em que vejo como o pai, ao perdoar o filho, procura também perdão para si. A misericórdia é, necessariamente, uma relação indissociável. O ofertório maior do sacrifício do próprio Filho de Deus só tem sentido no vínculo indestrutível ao Verbo redentor. No seu sepulcro, Jesus inumou consigo a humanidade inteira, para dali ela surgir nova. Qual flor que desabrocha, a meditação sobre o Santo Sepulcro é também momento de alegria. Faz-me feliz pensar que todos podemos comungar na esperança que só o amor partilhado traz.


   Este Domingo de Páscoa surge-me solar, caloroso, criador. É certo que ninguém assistiu à Ressurreição, apenas alguns poucos viram o túmulo vazio, só Maria Madalena viu e falou com o Mestre que, aliás, primeiro confundiu com um jardineiro... Interpelando este, confessou que buscava o seu Senhor, e é essa procura que veicula e realiza o primeiro encontro. Contudo, não pode tocar-lhe: Jesus já não é uma presença física, torna-se naquele que, em comunhão eucarística, os seus seguidores deverão, ao longo da história, reconhecer e anunciar através da partilha do pão. O "sagrado" cristão viverá pela fraternidade humana: as bem aventuranças são bênção do Cristo glorioso descendo sobre quem der de comer ao faminto, de beber ao sedento, praticar a justiça e construir a paz. O beneficiário dessa solidariedade é o próprio Jesus, que, com cada um de nós, vive no coração do Pai. Na celebração eucarística e comungante da Páscoa, mesmo quando solitária, mais do que muitos, estamos todos unidos na alegria da libertação da morte pela comunhão fraterna. A Boa Nova não veio para nos ensimesmar. Veio para nos anunciar a vida que é essa alegria de nos amarmos uns aos outros. Efetivamente, na busca e construção da justiça e da paz. 


   Assim este teu amigo, Princesa de mim, foi refletindo na celebração confinada desta Páscoa cristã.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Verifico, com surpresa, talvez mágoa, não sei, que as notícias e comentários de órgãos de comunicação católicos portugueses se referem à recente visita do papa Francisco ao Iraque enaltecendo sobretudo a coragem, a resposta ao desafio dos riscos, a "loucura" que apelidam de profética, etc., sem se lembrarem de que aquela peregrinação foi a de um homem de fé, que nos trouxe a contemplação essencial desta virtude teologal e das outras duas: esperança e amor. O espírito cristão parece, assim, quase ausente do nosso sentimento da aventura quotidiana... ou será que preferimos, a uma visão íntima, mística, da vida e da história, a emoção proporcionada por feitos humanos, à nossa medida? 


   Por outro lado, surpreendeu-me também um boletim do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, órgão da Conferência Episcopal Portuguesa, em que se destacava um suplemento do Jornal de Notícias sobre o cardeal José Tolentino Mendonça, um dos fundadores do tal boletim, seu diretor durante anos e que tem sido, em tempos recentes, assunto de artigos bastante encomiásticos, pelo mesmo publicados.


   Na verdade, de Tolentino ou outra pessoa qualquer um de nós pensará, por bem, o que lhe parecer, e o Jornal de Notícias está no seu direito de publicar o que melhor entender. Os eventuais leitores, por seu lado, farão sobre o que lerem um juízo conforme ao exercício do espírito crítico de cada um. Pessoalmente, é-me indiferente que Maria João Avillez escreva que aquele clérigo é a única pessoa que consegue trazer o sagrado para perto dela, ou que "o investigador" Luís Mah o considere único e veja nele o próximo papa. Já me escandaliza que um boletim do episcopado que ele fundou e dirigiu reúna todo esse material numa espécie de panfleto propagandístico, com um título que retoma o dito da jornalista Avillez: «Ninguém como ele nos traz o sagrado para tão próximo de nós».


   Aliás, também me parece assaz incorreta a afirmação da mesma jornalista, ali reproduzida: «O Papa Francisco sabia bem o que fazia quando foi pescar este padre ainda jovem no nosso mar português». Cheira-me a tentativa de ligar umbilicalmente à figura extraordinária do papa atual o perfil de José Tolentino. Sabemos que a carreira vaticana do atual cardeal português se iniciou ainda no pontificado de Bento XVI, embora já sob o patrocínio do cardeal Gianfranco Ravasi, padrinho de um dos mais conhecidos grupos de pressão da Cúria Romana. Foi em 2011 que foi nomeado, pelo papa Ratzinger, consultor do Conselho Pontifício para a Cultura, presidido pelo cardeal italiano. 


   Sabes bem, minha Princesa de mim, quanto me repugna falar dos outros, precisamente pelas mesmas razões que me levam a aborrecer (no sentido antigo, etimológico, de ter horror a) as campanhas malévolas ad hominem ou as mitoconstrutoras pro homine, umas e outras claramente fulanistas. As pessoas podem discutir gostos e ideias, não têm, nem devem, discutir-se umas às outras enquanto tais. E é por isso que te recito agora um poema de frei José Augusto Mourão, o.p., que foi professor de semiótica de José Tolentino que, aliás escreveu o prefácio ao seu livro de poesia reunida (O Nome e a Forma, Pedra Angular, 2009), donde os versos seguintes são retirados, com os meus votos de que Tolentino consiga vir ainda a partilhar da respiração mística que anima o sopro poético daquele seu falecido mestre:


                            introito


          não somos a fonte
          nem o rio
          mas a sede,
          o desejo do permanecer
          e do louvor
          corre em nós como o rio
          e a fonte
          nunca passaremos do átrio
          o santo dos santos sobre que se detêm
          os nossos pés
          é a vida misteriosa de Deus


          a hora é para suspirar,
          para louvar,
          para pedir a água eu irrigava o Templo
          e no batismo nos introduziu
          no mistério de sermos hoje o templo do Espírito


         II


          Nós somos o corpo que o Amor reúne
          nós procuramos todos um colo onde repousar
          dos trabalhos e dos dias,
          do desamor e das trevas
          que também nos assaltam
          e nos tolhem


          nós procuramos a paz e o perdão
          sem disfarces nem armas


          que a misericórdia de Deus nos cubra
          neste momento de graça e de perdão


   Creio mesmo, Princesa de mim, que estes versos do frei José Augusto, já falecido, são todos os dias repetidos pelo papa Francisco e por todos aqueles que, sem ambições nem narcisismos, vão procurando achegar-se a essa presença do amor misericordioso, bem maior do que algo a que se possa chamar sagrado, pois é o próprio Deus em comunhão connosco.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Guilherme d'Oliveira Martins chamou-me a atenção para o facto de, na minha última carta, eu atribuir a autoria de uma quadra de Mário de Sá Carneiro a António Ferro: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto, / e hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim. Tem toda a razão  o meu amigo Guilherme: na verdade - e tal qual os transcrevo - estes versos integram um conjunto de quadras feitas e reunidas por Sá Carneiro numa poesia intitulada Dispersão que, aliás, dá  nome a um livro, publicado em 1914, mas composto em maio de 1913, marco cronológico das edições da obra poética do autor. Terá acontecido que  António Ferro, amigo de Mário, usou aquela primeira quadra de Dispersão como epígrafe (ou dedicatória) de um livro de poemas seus: Saudades de Mim. Li-os em 1957, ano da sua publicação, e nunca mais vi o livro. Mas a quadra de Sá Carneiro, que o encabeçava, ficou-me na memória e, quiçá por tê-la lido no livro de Ferro, associei-a a este. Mas terá sido assim? Estaria essa quadra mesmo lá? Eis que é antiga a lembrança, nada posso garantir para além de ter decorado esses versos... Curioso ainda é o facto de eu não encontrar, entre as dezenas de milhares de livros da minha biblioteca pessoal, a obra de António Ferro, mas de lá estarem as opera omnia de Mário de Sá Carneiro, cujo 2.º volume, na edição da Ática (em 1953), dá pelo nome de Poesias e inclui Dispersão e suas quadras. Neste volume, o adolescente que eu então era registou a data em que o adquiri: CALMO (as letras iniciais do meu nome e apelidos) 1956. Possuo ainda outras edições das Poesias, incluindo do poema Diapasão, como, por exemplo, a do Círculo de Leitores (1990) ou a chamada Obra Essencial, planeada por Fernando Pessoa, conforme desejo expresso do autor, e editada pela E-Imprimatur em 2016. Dessa respigo estes trechos do poema de Pessoa (1934) cujo título é SÁ CARNEIRO:

 

                     Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
                     Com rosas e estrelas em um mundo novo.

 

                     Nunca supus que isto que chamam morte
                    Tivesse qualquer espécie de sentido...
                    Cada um de nós, aqui aparecido,
                    Onde manda a lei e a falsa sorte,

 

                   Tem só uma demora de passagem
                   Entre um comboio e outro, entroncamento
                   Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
                   Mas seja como for segue a viagem.

                   [...]

                   Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
                   Há almas pares, as que conheceram
                  Onde os seres são almas.

 

                 Como éramos só um, falando!
                  Éramos como um diálogo numa alma.
                  Não sei se dormes... calma,
                  Sei que, falho de ti, estou um a sós.

 

   A releitura destes versos traz-me memórias da amizade, em tempos bem mais antigos, entre Montaigne e La Boétie: esqueço a distância do tempo e das culturas, pensossinto a igual consciência de pertença e comunhão com o próximo. A morte de um amigo é sempre também um pouco de mim que me deixa só. [E todos nós o teremos experimentado, sobretudo depois de chegados a uma certa idade: ainda quando iniciava esta carta para ti recebi a nova da morte, consequente a uma contaminação por covid 19, do meu grande amigo e compadre Miguel João Rodrigues Bastos. Tê-la-ei sentido mais, talvez por não ter sequer havido uma despedida, nem a possibilidade de eu dar um abraço amigo à família...]  

   Quando, em carta anterior à presente, Princesa de mim, citei a quadra que de cor guardava, não pretendia falar doutro tema que não fosse a meditação que então fiz contigo. Hoje, já que veio à baila Mário de Sá-Carneiro (o hífen entre apelidos pondo-lhe o nome "à francesa", tal como ele quis durante o "exílio" parisiense), falaremos mais sobre o poeta.

   No prefácio que escreveu para a edição do Círculo de Leitores acima referida, Nuno Júdice começa por afirmar; Podia-se começar por uma constatação: a de que a escrita de Sá-Carneiro  é uma escrita doente. Não é uma doença física, mas «qualquer coisa de intermédio», como ele próprio diria - entre o corpo e a alma. E esta divisão reflete-se dolorosamente na sua imagem do mundo, transportando para o interior da ficção e da poesia um drama que o consumirá até ao instante do suicídio. Esse «qualquer coisa de intermédio» acima referido é verso de um poema, o 7, de Indícios de Ouro:

 

                    Eu não sou eu nem sou o outro,
                    Sou qualquer coisa de intermédio:
                    Pilar da ponte de tédio 
                    Que vai de mim para o Outro.

 

   Este é de 1914, mas já em 1911, no seu A um suicida, Sá-Carneiro escrevia:

 

                    Tu, morreste.

 

                    Foste vencido? Não sei.
                    Morrer não é ser vencido,
                    Nem é tão pouco vencer.

 

                    Eu, por mim, continuei
                    Espojado, adormecido,
                    A existir sem viver.

 

                   Foi triste, muito triste, amigo, a tua sorte - 
                   Mais triste do que a minha e malaventurada.
                   ... Mas tu inda alcançaste alguma coisa: a morte,
                   E há tantos como eu que não alcançam nada...

 

   Pensossinto que a morte, precisamente por ser certa e certeira, não é algo que deva estar ao nosso alcance. Não é preciso. Ela virá, e nunca sabemos nem o  dia, nem a hora. O que podemos sempre tentar alcançar é a vida, na medida possível  do nosso alcance. Afinal, é ela a nossa vocação, a alma que nos anima (perdoa-me o pleonasmo). E a vida é-nos dada, não nos pertence: chama-nos, mesmo que para fora de nós. É no dom de si mesmo que se semeia o amor e se comunica (e comunga) a vida. Mais um dos nossos humanos paradoxos: se o grão de trigo lançado à terra não morrer, permanecerá sozinho. Mas se morrer dará muito fruto. Quem amar a sua vida perdê-la-á... (João, 12, 24-25). E até sem citar os evangelhos, Georges Bataille escreveu que l´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort... 

   O drama, a tragédia, de Sá-Carneiro foi nunca ter percebido que é grande ilusão alguém ter saudades de si mesmo. Como, afinal, num texto publicado na revista Athena, nº. 2, Novembro de 1924, escreve, a dado passo, Fernando Pessoa: Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade nesta vida. Só a arte, que fez ou que sentiu, por instantes o turbou de consolação. São assim os que os Deuses fadaram seus. Nem o amor os quer, nem a esperança os busca, nem a glória os acolhe. Ou morrem jovens ou a si mesmos sobrevivem, íncolas da incompreensão ou da indiferença. Este morreu jovem, porque os Deuses lhe tiveram muito amor. Dito que não é assim tão contrário ao que escrevo acima, já que pensossinto que tais deuses não morrem de amores.

   Mas para nos dar uma visão pela perspetiva de um crítico literáriotrago-te agora, Princesa de mim, uns trechos de João Gaspar Simões, que recolhi do estudo que esse crítico publica em apresentação do poeta. Pensando também como teriam certamente cabimento nas considerações da minha carta anterior, se então me tivesse lembrado de Sá-Carneiro, logo quando parti duma citação de versos seus pelo António Ferro. Vamos a Gaspar Simões:

   Os simbolistas, de acordo com os progressos da psicologia, inverteram os termos da inspiração. O poeta deixou de se inspirar na natureza, para se inspirar em si mesmo. Já não precisa de olhar as águas para ver que as mágoas correm como elas. Começa por olhar as suas mágoas e só depois procura, no domínio dos símbolos, quer naturais quer espirituais, uma correspondência equivalente...   ...O simbolismo é, portanto, um movimento poético em que o centro da poesia está no poeta. O poeta constitui-se fulcro do poema. A poesia não é uma introversão do mundo no poeta; o poeta é que o extroverte. O mundo está nele: dele, poeta, é preciso partir para encontrar o mundo...

   ... Tendência nativa, vento de feição - eis que o simbolismo nos trouxe os mais subjetivos dos nossos poetas. Mário de Sá Carneiro é a quinta essência desse simbolismo: será mesmo o seu símbolo vivo. 

   Todavia, não foi por isso que citei a primeira quadra de Dispersão. Fi-lo tão somente por ter guardado comigo aqueles versos, durante muitos e muitos anos. Talvez por eles me terem dito algo que, aos meus quinze anos, já sentira como tentação de auto refúgio e que, a pouco e pouco, paulatinamente, por lindos que os versos fossem, penseissenti que devia ultrapassar, buscando na minha circunstância, não a minha essência impossivelmente reconhecível, mas a minha existência efémera na sua razão de ser estando. 

   Finalmente, Princesa de mim, devo confessar-te que, ao reler escrupulosamente o poema Dispersão, alertaram-me a memória três outras quadras que, se bem recordo agora, me impressionaram há quase sete décadas, negativamente. Aqui vão:

 

                    Como se chora um amante,
                    Assim me choro a mim mesmo:
                    Eu fui amante inconstante
                    Que se traiu a si mesmo.

 

                   Não sinto o espaço que encerro
                   Nem as linhas que projeto:
                  Se me olho a um espelho, erro - 
                  Não me acho no que projeto.

 

                  Regresso dentro de mim
                  Mas nada me fala, nada!
                  Tenho a alma amortalhada,
                  Sequinha, dentro de mim.

 

      E concluo com a primeira: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto... Pois não será a ensimesmar-nos que daremos com uma saída airosa para qualquer crise do drama da nossa tão paradoxal condição humana. Não sei em quê a educação e o meio possam ter contribuído para Sá Carneiro ter sido o que foi. É esse um problema a que me não quero abalançar - escreveu, em 1940, João Gaspar Simões. Tampouco quero fazê-lo, mas talvez se possam situar já na infância do poeta algumas das raízes do tão doentio narcisismo que o desesperou. Perde-se no labirinto de si, não só o órfão de mãe mimado por avós e uma ama, e cujo pai se ausenta frequentemente, mas todo aquele que, talvez por outras razões, acaba por se sentir apenas na saudade de um si mesmo utópico que, por ser imaginável, ele próprio todavia desconhece. O encontro de mim com eu mesmo só será possível pelo Outro, que me dá a minha auto descoberta na minha circunstância. Na cultura japonesa, por exemplo, a contemplação da natureza é anterior à poesia. E brevemente te falarei, em rebusca do Japão, do conceito de fusosei, que o filósofo Watsuji Tetsuro define com elemento estrutural da existência humana. E talvez seja interessante comparar o livro dele, intitulado, na versão francesa Fudo, le milieu humain com uma obra de Teilhard de Chardin, lida também na minha adolescência, Le Milieu Divin.

   O velho que hoje sou aprendeu desta vez que até as falhas de memória podem abrir-nos portas para novas peregrinações. Bem haja, Guilherme amigo! 

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Vieram ter comigo agora uns versos de António Ferro que li na minha adolescência. Se a memória me não trai, diziam, mais ou menos, isto: Perdi-me dentro de mim / porque eu era labirinto / e hoje quando me sinto / é com saudades de mim... Mas não garanto a justeza da citação, vai para sete décadas que os li.


   Na teima de alguém se enfronhar no seu eu (ou no que julga ser ele) acaba sim, por se perder, pois o eu mesmo é uma utopia. Quiçá saudades de mim sejam, mais propriamente, saudades da infância, do tempo natalício da consciência de si. Tempo de relações zelosas, em que o mimetismo vai construindo esse paradoxo do ser humano ser ele, a sua alteridade e o que os rodeia. E pela vida adiante vamos sempre sendo eu e a minha circunstância ou, talvez melhor dizendo, a minha circunstância e eu. E será o dasein, isto é, o "ser ou estar aí", como que um momento dialético, algo só existencialmente verificável em dado instante desse entendimento do si mesmo com a sua circunstância?


   Ser-se será diferente de estar-se? Ou será, apenas e contudo, o estar, ou mesmo ser-se, ansioso de permanência? Desde que se "libertou" da lógica dita aristotélica, a filosofia "ocidental" foi-se enredando numa espécie de labirinto ontológico. E, certamente, os progressos da descoberta do universo extraterrestre abriram brechas por onde entram dúvidas e interrogações novas, abalando fundações antigas do nosso pensarsentir o espaço e o tempo onde  pressupúnhamos mover-nos. Serão finitos, em expansão, ou infinitos?  E poderão ser quer  categorias mentais, quer seres em si - classificações lógicas, ou realidades ontológicas?


   A simples circunstância deste novo pensarsentir faz de mim um eu mesmo diferente do que terei sido ontem, não na realidade de mim, que desconheço, mas no estar aqui, na minha circunstância. Todavia, posso estar enganado, na medida em que for eu mesmo o sustento do diferente, já que sou a minha circunstância e eu mesmo. Ou não será assim? A recusa oriental do eu, de que já falámos, pretende que este mais não seja do que um aglomerado de contingências biológicas e outras, ilusório e evanescível. Mas, seja como for, ele surge sempre como um momento de consciência de si em circunstância. E continuará a revelar-se por essa presença recíproca na relação que o constitui, o faz evoluir, o torna atual (no próprio sentido aristotélico do termo). 


   Receando  reconhecer-me essencialmente, contento-me com verificar-me existencialmente enquanto eu e a circunstância minha que, qual mundo flutuante, é sempre efémera, mas sempre deixa um rasto, promessa de permanência. Tudo junto e misturado dá um "panaché", faz de cada um de nós um mestiço de passado e presente e mais sonhos de futuro, de contrastes e combates, de esperanças apesar das desilusões, de loucuras apesar das evidências...


   Mas, contas feitas, o que fica do rosário de efemérides da nossa vida? Eu que para aqui estou - e, nesse estar aí, como eu mesmo me surpreendo agora e em qualquer instante do meu existir - sou, afinal, o quê? Uma relação, um ténue fio no tecido imenso, infinito, do universo? Que sentido tem o ser humano? Poderemos construir um humanismo? E como deverá ele ser? Sobre a sua obra Autrement qu'être ou au delà de l´essence, diz Emmanuel Levinas (traduzo): Falo aqui  da responsabilidade enquanto estrutura essencial, primeira, fundamental, da subjetividade. Pois é em termos éticos que descrevo a subjetividade. A ética não aparece aqui como suplemento para uma base existencial precedente: é na ética entendida como responsabilidade que se dá o próprio nó do subjetivo...  


   
Deves lembrar-te, Princesa de mim, de alguns passos antigos dessas minhas cartas, em que, inspirado por trechos de S. João evangelista, meditava sobre o amor constitutivo das pessoas, ou o valor divino do humano, para que maior seja a nossa alegria. Curiosamente, descobri hoje - dia de chuva intensa, em que, confinado numa casa de quinta solitária entre o silêncio cúmplice dos campos invernosos, escutei um ofício de trevas do Couperin interpretado pelo Arts Florissants e seu William Christie - uns trechos do belíssimo Humanisme de l´autre homme, do Emmanuel Levinas, que te traduzo:


   O homem livre está votado ao próximo, ninguém pode salvar-se sem os outros. O campo do outro lado da alma não se fecha por dentro. Foi «o Eterno que fechou sobre Noé a porta da Arca», diz-nos um trecho do Génesis com precisão admirável. Como se fecharia ela na hora em que perecia a humanidade? Haverá horas em que o dilúvio não seja ameaçador? E eis aqui a interioridade impossível que desorienta e reorienta as ciências humanas nos nossos dias. Impossibilidade que não nos ensina nem a metafísica, nem o fim da metafísica. Distância entre o mim e o si, recorrência impossível, identidade impossível. Ninguém pode ficar em si: a humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade para os outros, uma vulnerabilidade extrema. O regresso a si torna-se interminável desvio. Antes da consciência e da opção - antes que a criatura se recomponha em presente e representação para se tornar essência - o homem aproxima-se do homem. Está tecido por responsabilidades. Por elas, lacera a essência. Já não se trata de um sujeito assumindo responsabilidades ou furtando-se a elas, dum sujeito constituído, posto em si e para si como identidade livre.


   Talvez devêssemos pensarsentir melhor a advertência sobre a vigilância perene: não sabemos o dia nem a hora...Tal pouco ou nada tem a ver com a surpresa de sermos enviados para um qualquer eterno castigo. Antes nos diz, e ensina, que o alerta da nossa circunstância  -  sobretudo a evolução e a situação da natureza e dos nossos próximos  -  é algo que devemos ter sempre presente à nossa atenção. É precisamente a nossa incompletude ou imperfeição que nos induzirá a estarmos sempre atentos aos sinais dos tempos e à circunstância do nosso ser estando. A parábola do Bom Samaritano ensina-nos a ser o próximo dos outros pela atenção e descoberta, pelo encontro e o cuidado. Aliás, a simples atenção ao outro poderá conduzir-nos à descoberta de nós mesmos e a uma metanoia: na cena evangélica da mulher adúltera, todos os que se prontificavam a lapidá-la foram saindo, depois de Jesus lhes ter dito que quem não tivesse pecado lhe atirasse a primeira pedra... 


   O humano ser estando é a nossa consciência ética, formada pelo si e a sua circunstância. Estranho a si próprio, obcecado pelos outros, o eu é refém, até na própria recorrência de um eu que incessantemente se falha a si, como escreve Levinas. Mas acrescenta : E fica assim cada vez mais próximo dos outros, mais obrigado, agravando a falta que se faz a si mesmo. Tal passivo só se reabsorve alargando-se: glória da não-essência!


   
Ao dissertar sobre a "estranheza ao ser", conceito filiado na ideia heideggeriana da "estranheza do homem ao mundo" - ou, se assim melhor entenderes, Princesa de mim, ao exílio que é a condição humana -, Levinas cita um passo do salmo 119 (v.119): Sou um estrangeiro na terra, não me ocultes os teus mandamentos. E encontra esta afirmação fundamentada no Levítico (25, 23), anterior aos gregos Sócrates e Platão: Terra alguma poderá ser irrevogavelmente alienada, porque a terra pertence-me, e vós mais não sois do que estrangeiros que moram em casa minha. E o filósofo judeu prossegue: Não se trata aí da estranheza da alma eterna exilada entre sombras fugazes, nem de um desterro que a construção de uma casa e a posse de uma terra pudessem ultrapassar, eliminando pela sua construção, a hospitalidade de um sítio que a terra envolve. Porque, tal como no salmo 119, que apela aos mandamentos, esta diferença entre eu e o mundo  prolonga-se pelas obrigações para com os outros... ... A condição, ou incondição, de estrangeiros e de escravos no Egipto aproxima o homem do próximo. Os homens procuram-se na incondição de estrangeiros. Ninguém está em sua casa. A lembrança dessa servidão reúne a humanidade. A diferença que se abre entre mim e si, a não-coincidência do idêntico, é uma profunda não-indiferença relativamente aos homens.


   
Na circunstância geral da nossa presente atualidade, enfrentando uma pandemia soez, levantam-se vozes de protesto contra algumas das medidas sanitárias impostas profilaticamente, tais como a obrigatoriedade do uso de máscara, do confinamento domiciliário, ou do encerramento de estabelecimentos comerciais, etc. Esses protestos surgem de diferentes quadrantes, refletindo sobretudo a indignação de desconfortos pessoais e rebeldia de indisciplinas confundidas com liberdades individuais, mesmo quando recorrem a diatribes solenes acerca da ameaça de estados totalitários contra princípios fundadores da democracia... Muito embora existam casos pungentes de injustiça sofrida - e por inimputáveis autores, ou apenas imagináveis bodes expiatórios...


   Todavia, a questão que agora se levanta não tem, nem pode nem deve ter, uma base ética individualista, egocêntrica, mas antes nos coloca, a todos, perante essa realidade que é cada um e a sua circunstância, o eu mesmo como próximo de todos os outros. Ninguém se salvará sozinho. Qualquer de nós sente bem, sendo honesto consigo, que todo o nosso relacionamento é, em cada um, também um elemento da sua própria subjetividade. Yo soy yo y mi circunstancia.


   
Hoje, nenhum de nós está fora, é  estrangeiro, nem pode ser estranho a esta pandemia que nos obriga a ser um por todos, todos por um.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

P.S. Na verdade, como me lembrou um amigo, os versos citados não são de António Ferro, mas de Mário de Sá Carneiro. No labirinto por vezes escuro da minha memória, ficaram mal registados, quiçá por tê-los lido citados num livro de António Ferro.

 

FELIZ NATAL!


Minha Princesa de mim:


   Escrevo esta carta pensandossentindo-te, não só a ti, mas a todos os que a lerem e não só. A circunstância atual da vida humana no nosso planeta, leva-me a viver este tempo de Natal, não só como festa da promessa de Vida que se vai realizando, mas como tempo de espera. Respiro a vida à minha volta, transpondo-a para textos e imagens da simbologia tradicional, que nos falam de um paraíso vindouro, em que os humanos convivem com uma natureza limpa em que todos os seres estão em harmonia. E imagino este cenário idílico como antecipação sensorial do universo que todos desejamos - e por isso mesmo já é, mais do que aspiração, semente em nós - posto que a nossa atual capacidade de inteligência, visão ou antevisão das coisas não nos faculta a possibilidade de o concebermos realmente.

   No mundo presente, a nossa vida terrenal tem sido cada vez mais marcada pelo frenesi e pela sofreguidão, com forte propensão ao imediatismo. Até arrisco dizer que, na agitação de querermos logo tudo, não só perdemos a capacidade de esperar, como também o sentido da própria esperança. Dir-se-ia que só os pobres, destituídos e despojados, poderão saber hoje o que é a esperança, por muito que as suas próprias expectativas continuem a ser desiludidas... E nós, os abastados, teimamos em não querer entender que não há esperança sem partilha, que esperar não é tão somente aguardar com paciência, antes é acreditar na realidade possível de um mundo novo. 

   Eis o que me ocorre compartilhar contigo, neste Natal "pandémico", minha Princesa de mim: este Menino Jesus, pobrezinho e forte, aguarda com misericordiosa e infinita paciência a nossa esperança na harmonia do Reino de Deus, na tal que só surgirá em verdade no coração de todos se formos capazes de abraçar a alegria da partilha, em que descobriremos o sorriso de Deus.

   FELIZ NATAL!

 

Camilo  Maria

 

Camilo Martins de Oliveira